Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
105/06.4GATND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
OMISSÃO DE AUXÍLIO
LEGITIMIDADE
SEGURADORA
Data do Acordão: 04/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 29.º E 19.º, AL. C), DO DECRETO-LEI N.º 522/85, DE 31-12
Sumário: Se, em face do disposto no artigo 19.º, alínea c), da Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro [em vigor à data do acidente], no caso de ter ocorrido abandono de sinistrado, o direito de regresso que à seguradora assiste incide, tão só, sobre a indemnização relativa ao quid resultante da descrita situação, então esse normativo, conjugado com o artigo 29.º do mesmo diploma, conduz-nos também à inevitável conclusão de que, por tais danos, responde aquela, em primeira linha.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 105/06.4GATND do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela, mediante acusação pública, foi o arguido A..., melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática, como autor material, na forma consumada e em concurso real, de:

a. um crime de ofensa à integridade física por negligência agravada (relativamente ao ofendido C...), p. e p. pelos artigos 148.º, nºs 1 e 2 e 144.º, als. a) e c), do Código Penal por referência às contra-ordenações p. e p. pelos artigos 3.º, n.ºs 2 e 3, 11.º, n.ºs 2 e 3, 13.º, n.ºs 1 e 3, 18.º, n.ºs 2 e 3, 24.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código da Estrada;

b. um crime de ofensa à integridade física por negligência agravada (relativamente ao ofendido B...), p. e p. pelos artigos 148.º, n.ºs 1 e 2 e 144.º, als. a), b), c) e d), do Código Penal, por referência às contra-ordenações p. e p. pelos artigos 3.º, n.ºs 2 e 3, 11.º, n.ºs 2 e 3, 13.º, n.ºs 1 e 3, 18.º, n.ºs 2 e 3, 24.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código da Estrada;

c. dois crimes de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal;

d. um crime de condução perigosa de veículo, p. e p. pelo artigo 291.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, por referência às contra-ordenações p. e p. pelos artigos 3.º, n.ºs 2 e 3, 11.º, n.ºs 2 e 3, 18.º, n.ºs 2 e 3, 24.º, n.ºs 1 e 3, 31.º, n.ºs 1, al. c) e 2, 35.º, n.ºs 1 e 2, 38.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 3 e 4, todos do Código da Estrada, e ainda dos artigos 8.º al. a), 21.º e 23.º, 60.º, n.º 1, 64.º e 65.º, al. b), 27.º e 61.º, todos do R.S.T., aprovado pelo Decreto – Regulamentar n.º 22- A/98, de 01.10, incorrendo ainda na pena acessória prevista no artigo 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 16.07.2012, o tribunal proferiu decisão do seguinte teor:

«Por tudo o exposto o tribunal julga procedente porque provada a acusação pública, e em disso:

a) Condena o arguido A... pela prática como autor de um crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º, nº 1 do Código Penal, na pessoa de B... numa pena de 6 meses de prisão;

b) Condena o arguido A... pela prática como autor de um crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º, nº 1 do Código Penal, na pessoa de C..., numa pena de 6 meses de prisão;

c) Condena o arguido A... pela omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200.º, nº 2 do Código Penal, na pessoa de B... numa pena de 6 meses de prisão;

d) Condena o arguido A... pela omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200.º, nº 2 do Código Penal, na pessoa de C... numa pena de 6 meses de prisão;

e) Condena o arguido A... numa pena de 1 ano de prisão pela prática como autor de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º, nº 1, al b), do Código Penal;

f) Em cúmulo jurídico condena o arguido A... na pena única de 2 anos de prisão suspensa na execução por igual período;

g) Condena o arguido A... na pena complementar de proibição de conduzir veículos a motor por 12 meses;

h) Condena o demandado A... a pagar aos demandantes B...e C... a quantia de € 3.500,00, a título de danos não patrimoniais;

i) Condena o arguido A... nas custas penais fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigo 513º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal);

j) Custas cíveis na proporção do decaimento.

…».

3. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido/demandado, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

- Quanto à matéria de facto – artigo 412º nº 3 do CPP

I. A sentença foi omissa quanto à pronúncia de factos essenciais sobre os quais se deveria debruçar e dar como provados.

Tais factos são os enumerados na dissertação atrás feita enumerados no seguimento dos relatados na sentença:

a) – 68º - o arguido A... tinha segurado o seu veículo ...IT na D..., S.A, com sede na ... Lisboa, para a qual havia transferido a sua responsabilidade pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais ou materiais causados a terceiro até ao capital de 600.000,00€ através da apólice nº 204084722.

b) – 69º - A Vitima B...declarou ter recebido em consequência do acidente descrito nos autos a quantia de 225.000,00€, e com o recebimento dessa quantia liquida, considerou-se ressarcido de todos os danos presentes e futuros decorrentes do acidente de viação em causa, nada mais tendo a reclamar da seguradora.

c) – 70º - Pago em 24/05/10, assinou o respectivo recibo perante a seguradora.

d) – 71º - Em idênticos termos declarou a vítima C..., declarando ter recebido 90.000,00€.

e) – 72º - Pago em 12.10.2009, assinou o recibo perante a mesma seguradora.

f) – 73º - A vítima C... após o acidente ficou consciente, lembrou-se que tinha o telemóvel consigo, conseguindo ligar para os bombeiros e para o seu colega, E....

g) – 74º - O C...disse ao E...que tinha sofrido conjuntamente com seu pai um acidente grave de viação e pediu-lhe para vir ao local que identificou.

II. O nº 68 tem como provas a participação subscrita pelo militar da GNR a Fls. 9, a carta verde a fls. 71 e os documentos de fls. 531, 533, 534, 535, 536 e 537.

Os números 69º, 70º, 71º e 72º fundam-se nesta última série de documentos. Os números 73º e 74º fundam-se nos respectivos depoimentos da vítima C... e testemunha E....

III – Pois mais censurável ou chocante que seja o abandono, os crimes de omissão de auxilio previstos e declarados puníveis pelo artigo 200º nº 1 e nº 2 do CP, só são puníveis desde que haja grave necessidade desse mesmo auxilio.

IV – Daí decorre que tendo a vítima obtido o auxílio necessário por seus próprios meios, nomeadamente através de uma chamada de telemóvel feita por si, não existe o crime de omissão de auxílio.

V – O Tribunal a quo, interpretando o artigo 200º nº 1 do CP, sem cuidar de examinar um dos seus elementos típicos – a grave necessidade – violou esse mesmo preceito e em consequência o nº 2 sucedâneo daquele;

VI – O mesmo tribunal a quo interpretou a omissão de auxílio ou abandono da vítima como não indemnizável pela seguradora do seguro automóvel obrigatório entendendo-a como autónoma do acidente.

VII – Quando a omissão de auxílio ou abandono é feita na sequência do acidente de viação, e o auxílio decorre das consequências deste, todas as indemnizações até ao limite do capital obrigatoriamente seguro, por danos patrimoniais e não patrimoniais resultante de lesões corporais materiais, cabem em primeira mão à companhia de seguros.

É este o sentido do artigo 1º nº 1, 19º al. c) e 29º nº 1 al. a) do D.L. 522/85 de 31.12, que o Tribunal a quo violou.

VIII – Decidindo-se pela absolvição dos crimes de omissão de auxílio e pela absolvição dos pedidos de indemnização civil, se fará JUSTIÇA!

4. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:

I – Atento os documentos juntos aos autos, bem como, das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pelo ofendido C... e pela testemunha E..., deveriam ter sido dados como provados os factos que o recorrente/arguido alude no ponto I das conclusões que apresentou e que deveriam corresponder aos pontos 68 a 74, dos factos provados.

II – Defende o recorrente/arguido que tendo a vítima obtido auxílio pelos próprios meios, nomeadamente, através de uma chamada de telemóvel feita por si, não existe crime de omissão de auxílio, uma vez que estes crimes só são puníveis desde que haja grave necessidade desse mesmo meio.

III – Atento os factos provados, nomeadamente nos pontos 26 a 31, competia ao recorrente/arguido naturalmente, na medida das suas possibilidades, providenciar por socorro.

IV – Contudo, abandonou o local e não cuidou de saber do estado de saúde dos ofendidos ocupantes do ciclomotor, deixando-os entregues às contingências da sorte.

V – Houve, pois, abandono dos ofendidos por parte do recorrente/arguido, ruindo por completo toda a construção argumentativa aduzida.

VI – Foram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de omissão de auxílio, pelo que, deverá improceder o recurso, nesta parte.

VI – Afigura-se-nos que no momento em que o condutor voluntariamente decide omitir o auxílio às vítimas e afastar-se sem as socorrer já os danos resultantes do acidente, cobertos pelo seguro, estão, efectiva ou potencialmente, provocados, existindo já, relativamente a eles (ainda que futuros), responsabilidade civil da seguradora.

VII – Conforme consta dos autos, nomeadamente, da carta verde de fls. 71 e dos documentos de fls. 531, 533, 534, 535, 536 e 537, o recorrente/arguido havia transferido para a seguradora “ D..., S.A.”, através da apólice nº 204084722, a responsabilidade pela responsabilidade dos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causados a terceiros até ao capital de 600.000,00€.

VIII – Tendo os ofendidos recebido as quantias acima mencionadas e terem declarado encontrarem-se ressarcidos dos danos presentes e futuros, em sequência do acidente, deverá o recorrente/arguido ser absolvido da indemnização civil em que foi condenado.

IX – Em consequência, verifica-se violação do disposto no artigo 1º, 19º, alínea c) e 29º, nº 1, alínea a), do Dec. Lei nº 522/85, de 31.12.

X – Pelo que, deverá o recurso, nesta parte proceder, revogando-se a sentença recorrida, com a consequente absolvição do recorrente/arguido da indemnização civil a que foi condenado.

5. Também os demandantes responderam ao recurso, concluindo:

1. O recorrente pretende a revogação da douta sentença proferida na parte em que foi condenado como autor pela prática de dois crimes de omissão de auxílio, na pena de 6 meses cada e ainda na parte em que o condenou a pagar a cada um dos demandados/recorridos a quantia de 3.500,00 Euros a título de indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da prática de tal crime.

2. Para tanto, recorre da matéria de facto e de direito sustentando que a sentença é omissa quanto à pronúncia de factos essenciais e que deveriam ter sido dados como provados e pelo recorrente enunciados nas alíneas a) a g) da conclusão I.

3. E ainda que a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais resultante de lesões corporais cabem em primeira – mão à Companhia de Seguros não sendo o arguido/recorrente responsável pelo pagamento das indemnizações peticionadas, as quais cabem no âmbito do contrato de seguro.

4. Salvo o devido respeito pela douta motivação apresentada pelo recorrente, não lhe assiste razão qualquer razão, sendo que as respectivas conclusões não têm qualquer fundamento quer legal, quer factual, não obstante o âmbito do recurso ser dado por tais conclusões.

5. Na opinião demandantes/recorridos foi correcta e acertada e decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal, como resulta da fundamentação da douta sentença proferida.

6. Inexistindo qualquer omissão de relevante para a boa decisão da causa, devendo por isso manter-se na íntegra a douta sentença recorrida, tendo o Meritíssimo Juiz, em obediência ao art.º 127º do C.P. Penal apreciado criticamente a prova produzida em audiência de julgamento, segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.

7. O recorrente pretende recorrer de facto, sendo certo que não impugna a factualidade dada como provada na douta sentença nos pontos 1 a 67, aceitando-os, nomeadamente os pontos 26 a 31, 49 a 50, 62 a 67, que dizem respeito expressamente à prática do crime de omissão de auxílio e consequente obrigação de indemnizar os demandantes por esta conduta.

8. Ao aceitá-los, significa que a factualidade dada como provada é suficiente para se manter a condenação do recorrente pela prática de tal crime e no pagamento da indemnização pelos danos sofridos pelos demandantes.

9. Significa, pois, que o recorrente ao formular a sua motivação nos termos em que o faz, não impugna, como se lhe impunha, nos termos do nº 3 do art.º 412º do C.P. Penal, a matéria de facto dada como provada na douta sentença proferida, antes aceitando-a expressamente, pelo que não existe à luz do art.º 412º qualquer fundamento legal para a interposição do recurso.

10. O recorrente também não discorda da apreciação critica efectuada pelo Meritíssimo Juiz dos meios de prova, significando que a sentença proferida não é verdadeiramente impugnada quanto à matéria de facto e consequente quanto ao direito aplicado, devendo o recurso ser julgado improcedente na sua totalidade.

11. Quanto à matéria de facto que se pretende que seja dada como provada e identificada no ponto I das conclusões do recorrente, os mesmos não têm qualquer interesse para a boa decisão da causa, não podendo conduzir por si só à revogação da sentença na parte de que se recorre.

12. Sendo certo que o facto de se considerar provado que o veículo conduzido pelo arguido se encontrava transferido para a Companhia de Seguros D..., não é, com todo o devido respeito, essencial para se concluir pela exclusão da prática do crime de omissão de auxílio, e absolvição do pedido de indemnização civil, sendo irrelevante tal facto e ainda que o capital seguro correspondia ao mínimo obrigatório de 600 000,00 Euros.

13. Também não é relevante que se dê como provado o conteúdo dos depoimento de fls. 531, 533 a 537 dos autos, por deles constar os montantes indemnizatórios recebidos pelos ofendidos.

14. Na sequência do contrato de seguro celebrado com a Seguradora D..., o recorrente/arguido havia transferido a sua responsabilidade pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causados a terceiros, danos esses decorrentes do acto de condução do seu veículo automóvel.

15. Significa, pois, que a Companhia de Seguros D... indemnizou os ofendidos de acordo com os documentos de fls. atrás mencionados, danos esses patrimoniais e não patrimoniais decorrentes das lesões causadas no âmbito do acidente de viação, isto é, decorrentes do acto de conduzir, e do risco que o mesmo importa.

16. E que tiveram por base a prática dos crimes de ofensas à integridade física por negligência e a que corresponde a matéria de facto dada como provada nos pontos 1 a 25, 46 a 48, 51 e 54 da douta sentença.

17. Danos esses que não foram peticionados nestes autos e que decorreram das lesões causadas e inerentes ao risco de condução automóvel e culpa da mesma, resultante da actuação culposa do arguido recorrente.

18. Nestes autos peticionam-se apenas danos decorrentes da omissão de auxílio perpetuada pelo arguido/recorrente, consistindo numa acção ou acto/omissão, acto doloso posterior ao exercício da condução e traduzida nos pontos de facto dados como provados sob os nºs 26 a 31, 49, 50, 62 a 67 da douta sentença proferida, que aqui se dão por reproduzidos.

19. Acção essa dolosa do recorrente e por si só geradora de danos distintos dos da condução automóvel ou agravamento dos danos da condução automóvel.

20. Os danos pelos quais os demandantes/recorridos foram indemnizados e mencionados no facto 59 nada têm a ver com os danos consubstanciados nos pontos 62 a 67 da douta sentença, estes sim danos morais decorrentes da violação por parte do recorrente, do dever de solidariedade social de prestação de auxílio na situação concreta dos autos, e após ter embatido violentamente contra os demandantes/recorridos, com a sua viatura automóvel, deixando-os ao mais total abandono, pondo em causa seriamente a sua integridade física e pondo em perigo a sua vida.

21. Tendo por isso se constituído autor material do crime de omissão de auxílio e consequentemente responsável pelos danos morais que tal omissão de auxílio gerou na pessoa dos recorridos, os quais temeram pela sua vida, sofrendo naqueles instantes forte angústia, pensando que não iriam ser socorridos.

22. A invocação de que o demandante C... ligou à testemunha E... logo após o acidente pedindo auxílio e que o mesmo chegou poucos minutos depois não é exacta, conforme decorre do depoimento de tais testemunhas.

23. Aliás, conforme foi referido pelas testemunhas C... e E..., desde a ocorrência do acidente terá decorrido cerca de 3 a 5 minutos até o C... telefonar ao E... e desde a chegada deste ao local terá decorrido outros 5 minutos, não tendo este visualizado de imediato o demandante C..., tendo o socorro, isto é, ambulâncias, INEM e bombeiros, chegado ao local apenas cerca de 15 minutos depois.

24. Sendo irrelevante para o preenchimento do tipo legal de crime cometido pelo recorrente o facto de o ofendido ter conseguido contactar a testemunha poucos minutos após a ocorrência do acidente, uma vez que se trata de um crime omissivo próprio, de mera actividade, isto é, a inactividade do recorrente que é geradora da responsabilidade criminal e consequentemente de responsabilidade civil por não agir, em contrariedade com o dever jurídico de o fazer.

25. O recorrente não desconheceu que embateu com a sua viatura de forma violenta nos demandantes, atenta a factualidade dada como provada e atrás mencionada, no entanto não parou, ausentou-se, seguindo de forma desgovernada, não providenciando pelo seu auxílio ou socorro.

26. As provas documentais juntas aos autos, nomeadamente participação do acidente, fotografias, relatórios periciais e depoimentos das testemunhas C... (sessão de audiência de julgamento do dia 24 de Maio de 2012, depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:29:15, extractos do depoimento gravado em faixa de CD de 00:01:50 a 00:02:16, 00:02:26 a 00:05:59, 00:06:48 a 00:11:08, 00:12:10 a 00:13:23, 00:21:59 a 00:24:42, 00:25:18 a 00:29:07), E... (sessão de audiência de julgamento do dia 19 de Junho de 2012, depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:14:57, extractos do depoimento gravado em faixa  de CD de 00:01:11 a 00:01:47, 00:02:00 a 00:03:27, 00:03:37 a 00:03:49, 00:04:27 a 00:06:51, 00:07:19 a 00:07:27, 00:11.16 a 00:12:53, 00:13:52 a 00:14:40), B... (sessão de audiência de julgamento do dia 24 de Maio de 2012, depoimento gravado em faixa CD de 00:00:00 a 00:34:36, extractos do depoimento gravado em faixa de CD de 00:02:28 a 00:09:23, 00:10:01 a 00:10:36, 00:11:12 a 00:14:54, 00:15:16 a 00:15:38, 00:16:08 a 00:16:34, 00:21:09 a 00:22:12, 00:25:24 a 00:25:55, 00:26:54 a 00:28:10, 00:32:47 a 00:34:41), F... (sessão de audiência de julgamento do dia 19 de Junho de 2004, depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:15:37, extractos do depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:22 a 00:00:35, 00:00:55 a 00:03:02, 00:03:11 a 00:04:12, 00:54:59 a 00:06:20, 00:07:02 a 00:08:05, 00:08:34 a 00:09:25, 00:10:53 a 00:13:46), G... (sessão de audiência de julgamento do dia 19 de Junho de 2012, depoimento gravado em duas faixas de CD de 00:00:00 a 00:06:03 e 00:00:00 a 00:00:24, extractos do depoimento gravado na 1.ª faixa de CD de 00:00:28 a 00:00:33, 00:00:54 a 00:01:43, 00:01:54 a 00:02:46), H... (sessão de audiência de julgamento do dia 19 de Junho de 2012, depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:17:30, extractos do depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:46 a 00:00:51, 00:01:26 a 00:02:16, 00:03:02 a 00:03:18 a 00:03:38 a 00:04:03, 00:04:20 a 00:04:50, 00:05:21 a 00:05:47, 00:08:11 a 00:09:28, 00:09:38 a 00:09:56, 00:10:06 a 00:11:12, 00:14:48 a 00:16:20, 00:16:57 a 00:17:26), I... (sessão de audiência de julgamento do dia 19 de Junho de 2012, depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:10:53, extractos do depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:56 a 00:02:13, 00:04:01  00:04:36, 00:05:29 a 00:05:51, 00:06:30 a 00:06:59), J... (sessão de audiência de julgamento do dia 19 de Junho de 2012, depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:17:17, extractos do depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:59 a 00:03:59, 00:05:57 a 00:06:45, 00:06:56 a 00:08:28, 00:09:31 a 00:12:22, 00:13:24 a 00:15:10), L.... (sessão de audiência de julgamento do dia 19 de Junho de 2012, depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:10:28, extractos do depoimento gravado em faixa de CD de 00:00:26 a 00:00:31, 00:00:40 a 00:00:45, 00:01:35 a 00:03:01, 00:05:54 a 00:07:34, 00:08:24 a 00:09:16) impõem a manutenção da decisão recorrida sobre a matéria de facto dada como provada, sem qualquer aditamento da matéria de facto que o recorrente pretende que se dê como provada.

27. Tanto basta, pois, para que se mantenha a decisão do recorrente de condenação pela prática do crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art.º 200º do Código Penal, o qual, conforme jurisprudência e doutrina é um crime de omissão pura e de perigo concreto, não se exigindo qualquer resultado, mas apenas que se providencie pelo auxílio (veja-se Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04/12/2000).

28. Encontram-se, pois preenchidos tanto o elemento objectivo como o elemento subjectivo de tal ilícito criminal, uma vez que em face da factualidade dada como provada na douta sentença resulta de forma inequívoca que o recorrente abandonou de forma censurável os demandantes/recorridos à sua sorte violando de forma grave o dever de solidariedade social de prestação de auxílio.

29. E ao embater nos demandantes, não lhes prestando o auxílio devido, sabia que não procedia com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado, representando necessariamente a realização do facto que preenche o tipo legal de crime e nada faz para modificar a sua atitude.

30. Até porque nem se diga que o facto de uma das vítimas ter solicitado auxílio através do telefonema que fez para um colega, é causa justificativa ou impeditiva do preenchimento do tipo legal de crime.

31. Os recorridos impugnam, pois, as conclusões II a V da motivação do recorrente.

32. Também se impugnam as conclusões VI a VII, uma vez que a indemnização fixada pelo Tribunal aos demandantes nada tem a ver com os danos que foram indemnizados pela Seguradora, e no âmbito do contrato de seguro automóvel, indemnização esta que decorre das lesões causadas pelo recorrente em virtude da acção de conduzir a sua viatura automóvel.

33. Pelo que nenhuma razão assiste ao recorrente na invocação das normas dos art.ºs 1º, 19º e 29º do citado Decreto – Lei, normas essas que não foram violadas pelo Meritíssimo Juiz, resultando da letra da Lei, nomeadamente do art.º 1º do Diploma citado que toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais, causados a terceiro por um veículo terrestre motor, pela acção de conduzir deve transferir essa responsabilidade para uma entidade seguradora.

34. Resulta, pois, que nada tem a ver com a omissão de auxílio, isto é uma acção ou omissão dolosa que não tem a ver com o risco de circulação terrestre do veículo automóvel conduzido pelo recorrente, o facto de tal condução, temerária do arguido ter originado lesões corporais, as quais causaram danos patrimoniais e não patrimoniais, os mesmos foram indemnizados pela Seguradora, ao contrário dos resultantes de falta de socorro perpetuada pelo recorrente ao não providenciar pelo mesmo, causando forte angústia e receio nos demandantes/recorridos que sentiram-se abandonados no local do acidente.

35. Pois que, a indemnização peticionada não faz parte do objecto do seguro obrigatório, nem a lei inclui no seguro obrigatório danos não patrimoniais resultantes da prática do crime de omissão de auxílio.

36. Em face dos factos dados como provados, nomeadamente nos pontos 26 a 31, 49 e 50 e 62 a 67, da douta sentença e cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, resulta inequivocamente que os demandantes ao serem abandonados e deixados à sua sorte pela recorrente, sentiram que não poderiam ser auxiliados, temendo pela sua vida, sentindo profunda angústia e medo com a possibilidade de não serem socorridos.

37. Assim, a conduta do recorrente é geradora da obrigação de indemnizar os demandantes pelos danos não patrimoniais, resultantes do seu abandono e omissão de auxílio, sendo o recorrente o único responsável pelo pagamento da respectiva indemnização e não a Seguradora.

38. Pelo que deve improceder na íntegra o recurso interposto pelo recorrente, mantendo-se a douta sentença recorrida.

Pelo que farão Vossas Ex.as a acostumada JUSTIÇA.

6. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este tribunal.

7. Na Relação, pronunciou-se o Exmo. Procurador – Geral Adjunto defendendo a improcedência do recurso no que respeita ao crime de omissão de auxílio, posto que dos factos provados vertidos nos pontos 26, 27, 28, 29, 30, 31 e 49 resulta «com clarividência, a prática do mesmo crime, sendo irrelevante para a sua consumação que se considere provado, como pretende o arguido/recorrente, que “A vítima C... após o acidente ficou consciente, lembrou-se que tinha o telemóvel consigo, conseguindo ligar para os bombeiros e para o seu colega E...”»

Com efeito, prossegue, «como afirmam os recorridos/demandantes civis, trata-se de um crime omissivo próprio, de mera actividade, em que a inactividade do recorrente é geradora da responsabilidade criminal. “Toda a conduta do arguido/recorrente vai no sentido de não desconhecer obrigatoriamente que embateu com a sua viatura de forma violenta nos demandantes/recorridos e apesar disso não pára, ausenta-se seguindo a sua condução desgovernada, conforme matéria de facto dada como provada, não podendo desconhecer que não prestava auxílio aos demandantes, isto é, não providenciando pelo seu auxílio ou socorro”.

(…) o crime de omissão de auxílio é um crime de perigo concreto, bastando “o perigo de uma lesão como resultado da acção: a produção do perigo é elemento do tipo e deve constatar-se no caso concreto”. E “a circunstância de um terceiro ter prestado auxílio não desculpa o arguido. O omitente de auxílio é punível, mesmo que, posteriormente à sua recusa de prestação de auxílio, apareça uma outra pessoa que realize a devida e eficaz assistência [Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 859]”.

Neste sentido, o Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 2011.11.02, in CJ, 2011, V, 314 (Sumários), de que dimanou a seguinte doutrina:

“I – No crime de omissão de auxílio, o facto típico deve-se por dolosamente cometido quando o agente, tendo representado a necessidade de auxílio, por o dele carenciado correr risco de vida ou de lesão grave para a saúde, se abstêm de o prestar, conformando-se ou mostrando-se indiferente perante a situação (de perigo).

II – É indiferente à verificação do elemento objecto do crime a circunstância de a vítima do sinistro ter sido socorrida por outras pessoas que transitavam no local e o facto de uma delas haver chamado uma ambulância por meio de telemóvel.»

8. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do CPP nenhum dos interessados reagiu.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

       De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente ainda que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso em apreço, dissente o recorrente da matéria de facto, que impugna, bem como da sua condenação nos pedidos de indemnização civil, convocando, em consequência, como disposições violadas, o artigo 200.º do Código Penal e os artigos 1º, 19º, al. c) e 29º, n.º 1, al. a) do D.L. n.º 522/85, de 31.12, sendo, pois, estas as questões que urge enfrentar.

2. A decisão recorrida

Mostra-se consignado na sentença recorrida [transcrição parcial]:

Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, como da respectiva acta consta e do qual resultaram provados os seguintes:

Factos provados:

1. No dia 08 de Outubro de 2006, cerca das 20h00m, o ofendido B..., conduzia o seu veículo ciclomotor, de matrícula 1-TND-27-46, na Variante do Lagedo, em Santiago de Besteiros, Tondela, no sentido Muna (Santiago de Besteiros) – Campo de Besteiros (Lagedo).

2. Fazia-o, depois de descrever a designada Rotunda de Muna e a uma velocidade não concretamente apurada mas inferior aos 50km/hora, seguindo pela metade direita da faixa de rodagem (destinada ao trânsito de veículos no sentido Muna - Campo de Besteiros), atento o seu sentido de marcha.

3. No referido circunstancialismo de tempo e lugar, o ofendido B... transportava consigo, seguindo no lugar do passageiro (pendura), o seu filho, C..., circulando a cerca de um metro de distância da linha longitudinal contínua delimitadora da berma direita da via (atento o referido sentido de marcha).

4. Entretanto, nesta mesma ocasião de tempo e lugar, o arguido conduzia o seu veículo de marca FIAT, modelo PUNTO, de cor branca, com a matrícula ...IT por esta mesma via (Variante do Lagedo) mas em sentido contrário, ou seja, no sentido Campo de Besteiros (Lagedo) – Muna (Santiago de Besteiros), dirigindo-se para mencionada rotunda de Muna.

5. Fazia-o a velocidade não concretamente apurada, mas muito superior à imprimida ao ciclomotor pelo ofendido B..., e pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha.

6. A via, naquele local, permite o trânsito de veículos em ambos os sentidos de marcha e, tendo em conta o sentido de marcha do arguido, configura-se, como uma recta com mais de 350 metros de extensão (até à referida rotunda de Muna) em sentido ligeiramente ascendente.

7. A velocidade máxima legalmente permitida no local é de 90km/h.

8. Os dois sentidos de marcha são separados por uma linha longitudinal descontínua situada no eixo da via e que, a 69,40m de distância da ponta do ilhéu triangular existente junto à rotunda de Muna (e separador dos sentidos de trânsito de quem sai e de quem entra na rotunda), é substituída por uma linha longitudinal contínua.

9. Nas aludidas circunstâncias de tempo e lugar, o pavimento da via, constituído por asfalto, estava em bom estado de conservação, apresentando-se ainda seco, tal como o tempo que então se fazia sentir.

10. Naquele local, a variante do Lagedo, à data, não estava dotada de iluminação pública.

11. Quando B... já tinha percorrido nesta variante cerca de 185,40 metros e ao aproximar-se desse local, sem que nada o fizesse esperar, o arguido deixou obliquar o veículo que conduzia para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, invadindo a faixa de rodagem contrária àquela onde seguia, e passando a circular na metade da faixa destinada ao trânsito no sentido Santiago de Besteiros/Lajedo, sem que tenha efectuado qualquer manobra para regressar à sua hemi-faixa de rodagem (sentido Lajedo/Santiago de Besteiros).

12. Veio assim a embater com a parte lateral frontal esquerda junto da roda dianteira esquerda e a parte lateral esquerda junto da porta (do lado do condutor) do veículo de matrícula ...IT, na parte dianteira esquerda do ciclomotor de B....

13. O que sucedeu não obstante o ofendido B... ter ainda tentado desviar-se para a berma da sua mão de trânsito.

14. Tal embate deu-se na hemi-faixa da via por onde seguiam os ofendidos B... e C..., a cerca de 185,40 metros do já mencionado ilhéu direccional situado junto à rotunda de Muna (considerando o sentido de marcha dos ofendidos) e a cerca de 1,50metros da linha longitudinal contínua delimitadora da berma direita, atento também o sentido de marcha dos ofendidos.

15. Neste local, a via tem 6,20 metros de largura (medidos desde as linhas longitudinais contínuas delimitadoras das respectivas bermas) e a berma do lado direito da via (considerando o sentido de marcha dos ofendidos) mede 1,40metros de largura, sendo delimitada por railes metálicos.

16. Por força do embate do veículo ...IT no ciclomotor tripulado por B..., o corpo deste foi projectado, vindo a colidir com o rail de protecção metálico que delimita a berma do lado direito da via (atento o sentido de marcha do ofendido B...), onde ficou imobilizado.

17. O ciclomotor acabou por se imobilizar na berma do lado direito, atento o sentido de marcha dos ofendidos, a cerca de 22,60 metros do local do embate (considerando o referido sentido de marcha), estando o rodado traseiro a cerca de 0,40 centímetros dos referidos rail’s, e a parte do guiador a cerca de 0,70 centímetros dos mesmos railes.

18. O B... ficou imobilizado a cerca de 8,70 metros do rodado traseiro do ciclomotor, ou seja, a cerca de 14 metros do local do embate (considerando sempre o sentido de marca dos ofendidos).

19. Por sua vez, o ofendido C... foi imediatamente projectado para o ar, acabando por cair já após a barreira de protecção metálica da via (do lado direito, considerando o sentido de marcha dos ofendidos), em plano inferior à mesma, e a cerca de 5/6 metros da estrada num terreno adjacente à estrada.

20. O ofendido B... foi conduzido nesse mesmo dia ao Hospital de S. Teotónio de Viseu e aí sido imediatamente operado ficando internado desde esse dia até ao dia 13/12/2006, apenas tendo tido alta médica em 07/03/2010.

21. Em consequência directa deste embate e da actuação descrita, resultaram para B..., além, de dores, as lesões descritas nos autos de exame médico-legal de fls. 31 e segs., 38 e segs., 108 e segs., 152 e segs., 186 e segs., 253 e segs., 323 e segs., cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, sofrendo, designadamente, as seguintes consequências permanentes: amputação pelo terço médio da perna esquerda; fractura do fémur e fractura exposta do úmero esquerdo; esfacelo dos dedos da mão esquerda; amputação pelo terço médio da perna com limitação da flexão do joelho a 90º; cicatriz extensa, vertical da face externa da coxa e da perna esquerdas; anquilose do ombro, cotovelo e articulações da mão esquerda, com grande limitação em todos os movimentos: limitação da flexão do cotovelo esquerdo a 90º e da extensão a 130º graus; atrofia muscular de um centímetro em relação ao braço direito; oponência normal do polegar da mão esquerda, mas com limitação da flexão de todas as falanges dos 2º, 3º, 4º e 5º dedos a 130º; cicatriz de incisão cirúrgica da face posterior do braço e ante-braço esquerdos; material de osteossíntese exposto ao nível do cotovelo; duas cicatrizes de intervenção cirúrgica na face externa do braço esquerdo, no terço superior devidas a introdução de material de osteossíntese, ambas com 2,5x0,5cm; grande atrofia muscular da cintura escapular e dos músculos do membro superior esquerdo, atrofia dos músculos da coxa esquerda, com diminuição de 7cm do perímetro da coxa em relação à contralateral.

22. Estas lesões determinaram-lhe 1246 dias para a consolidação, com afectação da capacidade para o trabalho geral de 300 dias e para o trabalho profissional de 1246 dias, tendo ainda resultado do evento, em concreto, perigo para a sua vida.

23. Também o seu filho C..., foi assistido nesse mesmo dia no Hospital de S. Teotónio de Viseu e sido imediatamente operado ficando ali internado desde esse dia até ao dia 30/11/2006.

24. Como consequência directa do referido embate e da actuação descrita, C... sofreu, além de dores, as lesões descritas nos autos de exame médico-legal de fls. 27 e segs., 37 e segs., 103 e segs., 128 e segs., 157 e segs., 175 e segs., 192 e segs., cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, designadamente sofrendo: fractura exposta do fémur esquerdo, fractura exposta da tíbia e do perónio, esfacelo do joelho, amputação parcial do primeiro dedo do pé esquerdo e esfacelo dos tecidos moles da coxa esquerda, ficando com cicatriz cirúrgica vertical, da face anterior da coxa esquerda que se estende desde o terço médio anterior até ao joelho numa extensão de 28 cm e depois desvia para baixo para a face lateral externa da perna esquerda com 14 centímetros de comprimento, cicatriz cirúrgica na face lateral externa da raiz da coxa esquerda, vertical, com 9 cm; cicatriz de ferida contusa da região lateral externa da coxa esquerda, no terço superior com 5x1,5 cm; várias outras cicatrizes na face anterior da mesma coxa, tendo a maior 2x1,7cm; imobilização com gesso da perna esquerda; edema acentuado do joelho e pé esquerdos; ferida inciso-contusa do primeiro dedo do pé esquerdo, apresentando sinais de sutura e cicatrização circular, em torno da falange proximal, com 7,5x0,5cm cicatriz de ferida contusa da face anterior, terço distal da perna esquerda, com formação de quelóide com 12x3cm; outras cicatrizes, paralelas à anterior, na mesma zona e a cerca de 3 cm com 4x2 e 5x1,5cm, também com formação de quelóide; múltiplas cicatrizes de abrasão, da face anterior da região média da perna com uma área de 10x5cm; cicatriz de ferida contusa da raiz dos dedos do pé esquerdo com 4x1,5cm, cicatriz cirúrgica, na região externa da bacia à esquerda, vertical, com 9 cm de comprimento; encurtamento de cerca de um centímetro do membro inferior direito em relação ao membro contra-lateral; cicatriz de ferida operatória na face lateral externa do joelho esquerdo, vertical, com 8 centímetros de comprimento.

25. Estas lesões determinaram-lhe 862 dias para a consolidação com afectação da capacidade de trabalho geral de 85 dias e profissional de 329 dias.

26. Na sequência do referido embate, o arguido ausentou-se do local sem prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo em que se encontravam os ofendidos, nem providenciando pelo respectivo socorro, quer directamente, quer accionando os meios de emergência.

27. E fê-lo, não obstante se ter apercebido do acidente, e das graves consequências que do mesmo, previsivelmente – dada a violência do embate e o facto de ter embatido num ciclomotor que transportava duas pessoas – resultariam para os ofendidos.

28. No entanto, mesmo assim, o arguido nem sequer abrandou a sua marcha, seguindo em direcção à rotunda de Muna.

29. Cerca de uma hora após o embate supra descrito o arguido providenciou pelo arranjo do seu veículo.

30. Nem nesse momento o arguido se certificou que aos sinistrados e ofendidos havia sido prestado socorro.

31. Após o embate no motociclo de B..., o arguido continuou a sua marcha, sem abrandar a velocidade, em direcção à rotunda de Muna.

32. Na sua aproximação, esta está identificada através dos sinais B1 e D4 e da marca rodoviária M9a, que constituem respectivamente sinais de cedência de passagem (os quais indicam ao condutor que este deve ceder passagem a todos os veículos que transitem na via de que se aproxima); sinais de aproximação (que indicam a entrada numa rotunda onde vigoram regras de circulação próprias destas intersecções e onde o trânsito se deve efectuar em sentido giratório) e marca transversal linha de cedência de passagem com símbolo triangular, consistindo numa linha transversal descontínua (que indica ao condutor que deve ceder a passagem o local onde deve parar), a qual ali estava reforçada pela marca, no pavimento, do símbolo constituído por um triângulo com a base paralela à referida linha descontínua.

33. A rotunda está dotada de iluminação pública que se encontrava ligada na ocasião.

34. Esta rotunda possui duas vias paralelas de trânsito no mesmo sentido giratório, sendo que possui cinco intersecções de vias de trânsito, a saber: uma que dá acesso de e para a Rua do Junqueiro; outra que dá acesso de e para a Rua de São Marcos; outra que dá acesso de e para a variante do Lajedo e outras duas que constituem a EN 228 e que naquele local se designa de Rua Padre José J. Sousa Júnior, sendo que uma delas conduz de e para Santiago de Besteiros e a outra de e para Muna.

35. Entretanto, quando o arguido se aproximou desta rotunda, não abrandou a marcha do seu veículo e, desobedecendo ao estabelecido naqueles sinais e nas regras estradais, entrou na mesma sem respeitar a sinalização vertical e horizontal que ali existe e que lhe impõe que ceda a prioridade na passagem a quem já circulava na rotunda, acabando por sair da mesma na saída que conduz à A25 pela EN 228, no sentido Santiago de Besteiros-Muna.

36. Porém, momentos antes, havia entrado na referida rotunda um veículo ligeiro de passageiros conduzido por M.... M..., e onde seguia como passageira, O... O....

37. Este seguia na E.N. 228, que ali assume a designação de Rua Padre José J. Sousa Júnior, no sentido Santiago de Besteiros-Muna e já tinha iniciado a travessia da rotunda, circulando pela faixa mais à direita da rotunda.

38. No momento em que o arguido se aproximou da rotunda, sem abrandar ou imobilizar o seu veículo, já o veículo conduzido por M...circulava sensivelmente em frente ao ilhéu triangular direccional que se encontra no confronto da referida rotunda com a Variante do Lagedo, ou seja, mesmo antes da intercepção da via por onde seguia o arguido com a referida rotunda.

39. Ao aperceber-se que o arguido não ia imobilizar o seu veículo, cedendo-lhe a prioridade de passagem, não tendo sequer abrandado a velocidade que imprimia ao veículo, a testemunha M...travou, conseguindo imobilizar o seu veículo.

40. Nessa ocasião, o veículo conduzido pelo arguido passou a escassos cerca de 30 cm do pára-choques dianteiro do automóvel desta testemunha, só não tendo embatido neste veículo, dada a perícia deste condutor, a atenção com que este seguia e a velocidade a que conduzia, que lhe permitiram, ainda assim, lograr imobilizar o veículo mesmo antes do embate.

41. Nessa mesma ocasião de tempo e lugar, N...., que conduzia o seu ciclomotor na direcção de Santiago de Besteiros-Muna, tinha acabado de sair desta rotunda na saída que tem a placa em direcção a Muna e à A25 e prestava-se a prosseguir na E.N. 228, estando a passar pelo ilhéu triangular direccional de trânsito ali existente (e que divide os sentidos de trânsito para quem entra e sai dessa via em direcção à rotunda ou vindo desta) e que é delimitado por marcas M17 no pavimento (raias oblíquas delimitadas por uma linha contínua, as quais proíbem a entrada na área por elas abrangida).

42. Fazia-o a velocidade não superior a 30km/h e a cerca de 1 metro de distância do traço que delimita a sua via de trânsito em relação à berma do lado direito da via (atento o seu sentido de marcha).

43. Foi aí que o arguido o ultrapassou, fazendo passar o veículo por si tripulado entre o (lado esquerdo do) ciclomotor conduzido pela testemunha N...(e a escassos centímetros deste), e o referido ilhéu direccional (parte lateral direita deste). Ao fazê-lo, o arguido transpôs as referidas marcas M17 no pavimento e ainda a linha longitudinal contínua que se segue à ponta do referido ilhéu e que separa os dois sentidos de trânsito daquela via, passando a circular, ainda que parcialmente (com pelo menos os rodados do lado esquerdo do seu veículo) pela metade da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário, o que fez pelo menos num percurso de cerca de 10 metros.

44. O arguido passou a escassos centímetros da traseira e parte lateral esquerda traseira do ciclomotor, só não embatendo neste, por mero acaso.

45. O embate supra descrito entre o veículo conduzido pelo arguido e o ciclomotor tripulado por B... deveu-se única e exclusivamente à manobra realizada pelo arguido que, de forma inopinada, invadiu a hemi-faixa destinada ao trânsito que seguia em sentido contrário ao seu. E fê-lo por não ir a conduzir com a atenção e cuidado a que estava obrigado e que era capaz, e ainda por não atentar nas condições de tráfego daquela via, não atentando, designadamente, no facto de, em sentido contrário, circular outro veículo.

46. Ao invadir a faixa de trânsito contrária àquela em que seguia sem se assegurar que ali não circulava naquela ocasião qualquer veículo, e ao passar a circular na mesma, o arguido violou o dever de cuidado que lhe era exigível na circulação estradal e para o qual era capaz, quando podia e devia ter agido daquele modo, o que teria evitado que o acidente se tivesse produzido, bem assim como as referidas consequências para os ofendidos.

47. Agiu o arguido com manifesta falta de cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitindo cautelas exigíveis e indispensáveis para quem conduz veículos automóveis, tanto mais que desenvolvia uma actividade perigosa, assim vindo a causar um resultado que deveria e poderia prever.

48. Ao não actuar de acordo com as regras de cuidado que conhecia e que, como normal condutor, era capaz de cumprir, o arguido não conseguiu evitar o embate do seu veículo com o tripulado pelas vítimas, assim vindo a causar as lesões descritas nos autos de exame médico-legal constantes dos autos e que se deram por reproduzidas.

49. Ao abandonar o local do acidente, não obstante se ter apercebido da sua ocorrência e que, necessariamente, causara ferimentos nos ofendidos, o arguido omitiu conscientemente o dever de auxílio e socorro devidos aos ofendidos B...e C..., bem sabendo que estava obrigado a prestá-los ou a providenciar para que fossem de imediato prestados. Mau grado se ter apercebido que tinha invadido a faixa contrária, que, por sua causa, tinha embatido no ciclomotor de B... e que este e o seu filho tinham ficado feridos, o arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, ausentando-se do local, e não providenciando então ou posteriormente pelo socorro aos ofendidos, nem se certificando que o mesmo fora prestado.

50. Agiu sempre sabendo que esta sua conduta era proibida e punida por Lei penal.

51. Ao conduzir em sem respeitar a obrigação de cedência de prioridade imposta por sinalização vertical e horizontal existente no local, não imobilizando a sua viatura imediatamente antes da entrada na rotunda e deixando passar o mencionado veículo, bem assim como ao invadir a faixa de trânsito destinada à circulação em sentido inverso ao por si prosseguido, transpondo a linha longitudinal contínua demarcada no pavimento e as referidas marcas, e transitando ainda muito próximo do veículo que ultrapassava, o arguido perspectivou a possibilidade de, da sua conduta, poder resultar perigo para a integridade física das testemunhas M..., O... e N..., o que só não sucedeu por mero acaso e por força, quanto aos primeiros, da intervenção do condutor M..., conformando-se com tal resultado e possibilidade.

52. Actuou ainda livre e conscientemente, aceitando que da sua conduta pudessem resultar, como efectivamente resultaram, perigo para a vida e integridade física destas testemunhas, bem sabendo que praticava actos proibidos por lei.

53. Conhecia ainda os referidos sinais e o seu significado, bem sabendo que por força dos mesmos lhe era imposto que imobilizasse o veículo, cedendo passagem ao veículo conduzido por M..., e que não podia, como fez, invadir a faixa da via destinada ao trânsito em sentido inverso, quer transpondo a linha longitudinal contínua demarcada no pavimento (e as referidas marcas), quer passando muito próximo do veículo ultrapassado.

54. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.

Além da acusação provou-se que:

55. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.

56. O arguido vive conjuntamente com a esposa e duas filhas de 15 e 19 anos ambas estudantes.

57. O arguido aufere de salário €486,00/mês e a esposa igual montante.

58. Encontra-se a pagar uma prestação mensal de €370,00/mês para aquisição da casa e uma prestação de €150,00 para aquisição do veículo automóvel.

59. B... e C... foram já indemnizados pela companhia de seguros pelos danos corporais que sofreram em virtude do acidente.

60. O arguido possui carta de condução desde 20-12-1999.

61. O arguido no dia em causa havia recebido um telefonema da sua esposa a relatar-lhe que a filha mais velha tinha ingerido comprimidos com o propósito de cometer suicídio e, por isso, deslocou-se rapidamente para casa da sua sogra para assistir a filha, mas depois constatou que havia tomado apenas um comprimido.

Do pedido de indemnização civil provou-se que:

62. O arguido teve perfeita consciência da ocorrência do acidente.

63. O arguido não poderia deixar de ter consciência de que haveria feridos decorrente do embate que sabia ter sido interveniente.

64. As lesões corporais descritas supra causaram sério risco para a vida dos demandantes.

65. Após o sinistro os demandantes sentiram que poderiam não ser auxiliados, temendo pela vida.

66. Sentiram angústia decorrente de tal, com a consciência que não tinham possibilidade de se socorrerem, em especial o demandante C... que se encontrava na ravina e não era visível da estrada.

67. Pelo facto de ser noite tiveram a noção que era mais difícil serem vistos.

Factos não provados:

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.

Fundamentação da decisão da matéria de facto:

Para julgar como provados os factos que antecedem o tribunal formou a sua convicção na análise crítica do conjunto dos meios de prova a saber:

Nas declarações do arguido que admitiu a propriedade do veículo automóvel descrito nos factos provados em 4, o percurso que efectuou no dia em causa, ter levado o veículo ao Sr. P... para que o mesmo fosse recolhido e ter ido depois, já durante a noite ao posto da GNR do Caramulo onde se apresentou junto da GNR e confessou a condução do veículo.

Teve em conta o depoimento das testemunhas B..., e C..., quanto ao embate descrito em 11 a 19 dos factos provados, que não obstante o tempo decorrido, relataram com minúcia os factos que presenciaram, descreveram o local, a forma como o arguido conduzia, a violência do embate, de nem sequer ter abrandado, bem como o medo que tiveram após o acidente e o grau de preocupação que tiveram um com o outro.

Tais depoimentos são consentâneos com a prova por inspecção efectuada em sedede inquérito, o relatório do Laboratório de Polícia Criminal da Polícia Judiciária a fls. 78 a 82; Auto de apreensão de veículo automóvel, de fls. 44 e segs. e informação de fls. 142; documentos de fls. 71 e segs., 118, 302 e segs.; Relatório de inspecção de fls. 83 e segs. e fotografias de suporte de fls. 85 a 96 (cfr. ainda o CD anexo na contracapa com o suporte digital das mesmas), do quais resultam os danos no veículo conduzido pelo arguido, os danos causados no veículo conduzido por B..., sendo os mesmos compatíveis.

Nessa parte não é credível que o arguido não desse conta do embate, tanto mais que o para brisa do veículo partiu, o espelho do lado esquerdo do veículo partiu-se e parte da carcaça do mesmo foi parar dentro do automóvel, bem como resto do vidro do espelho.

Ora, de tais elementos resulta de forma clara que o arguido conduzia o veículo com o vidro da porta de frente do lado esquerdo aberto.

Por outro lado a violência do embate, revelada pelos danos na chaparia e vidros do veículo, foi de tal forma que qualquer condutor não poderia deixar de sentir o barulho.

No depoimento da testemunha H..., militar da G.N.R que se deslocou ao local como agente participante e confirmou em sede de audiência a descrição do local e medições efectuadas por si e apontadas no croquis de fls. 4 e segs.

No depoimento de E..., pessoa a quem C... telefonou após o acidente e pediu auxílio,

No depoimento de Q..., o condutor que parou e telefonou para o 112 e que referiu que B... questionava sobre o seu filho que não sabia dele e que o transportava no veículo, bem como o pânico que este sentia, pelo filho e por si, sendo que tal depoimento foi secundado por J....

Tais depoimentos foram espontâneos relatando factos que presenciaram e descrevendo que seria de esperar numa situação como a descrita nos factos provados em que após um embate com a violência como a descrita se tenta saber como estão os intervenientes.

Declarações idênticas fizeram F..., e de G..., pessoas que pararam para auxiliar C... e B..., mas que só viam este último.

No depoimento de P... que relatou a hora e a forma como o arguido lhe apareceu em casa para que o veículo fosse recolhido na sua garagem e que depois passava para que o mesmo fosse reparado, relatando que já era depois das nove e meia da noite que já estava de pijama.

Esta testemunha ao ver, no dia seguinte, como estava o veículo do arguido optou por não iniciar qualquer reparação nem mexer no mesmo, atendendo á responsabilidade que lhe poderia trazer.

Quanto às manobras efectuada pelo arguido nos pontos 34 a 44 no depoimento de M... e O..., pessoas que circulavam no veículo que se encontrava a circular na rotunda quando o arguido entrou na mesma e que relataram a velocidade inadequada, por ser muito superior à que permitia circular com segurança e limite legal imposto (50km/h) que o mesmo imprimia ao veículo automóvel, bem como a necessidade travar a fundo para evitar o embate e danos que poderiam ter ocorrido tendo relatado que o embate só não ocorreu por terem parado a tempo e por irem devagar, bem como a manobra que quase atingiu o condutor N.... Também no depoimento de N... que relatou a forma como o veículo conduzido pelo arguido saiu à sua frente da rotunda, passou pela faixa da esquerda, e a velocidade que o mesmo imprima ao veículo.

Estes depoimentos são consentâneos com os factos, relatados, factos que estes presenciaram, sendo o relato efectuado de forma espontânea logrando convencer o tribunal da autenticidade dos seus relatos.

Quanto ao estado em que se encontrava os demandantes C... e B..., além do relato por si efectuado relativamente á forma como ocorreu o acidente de viação, no depoimento de R... e L..., Bombeiros Voluntários que se deslocaram ao local e relataram a forma como conseguiram encontrar C... sendo que no momento o mesmo perdia muito sangue e que se a assistência demorasse mais tempo o mesmo corria o risco de vida ou de danos irreparáveis atendendo à hemorragia que tinha, sendo do conhecimento geral que em tais situações a vítima, que se encontra consciente sente medo de que se não for efectivamente assistida pode morrer.

Tais depoimentos são consentâneos com os relatórios periciais existentes nos autos, e relatórios médicos.

Quanto á integração social do arguido o depoimento de S... e T..., pessoas com quem trabalha o arguido e o descreveram como um condutor cuidadoso, com boas relações com os colegas de trabalho.

Quanto aos factos não provados por não ter sido feita qualquer prova quanto aos mesmos.

3. Apreciando

Perscrutadas as conclusões extraídas da motivação do recurso, facilmente se identificam os aspectos contra os quais se insurge o recorrente, vindo a «impugnação da matéria de facto» gizada com o desiderato de conduzir a uma diferente decisão de direito, em duas «frentes» bem identificadas, a saber: a condenação pelos crimes de omissão de auxílio, bem como a condenação a título de indemnização civil, matérias relativamente às quais, defende, a decisão deveria, antes, ter sido no sentido da absolvição.

Vejamos, então, por partes.

a.

No que aos crimes de omissão de auxílio concerne, entende o recorrente que, em função dos depoimentos da vítima C... e da testemunha E..., deveria o tribunal a quo ter dado por assente [provado] que:

- «A vítima C... após o acidente ficou consciente, lembrou-se que tinha o telemóvel consigo, conseguindo ligar para os bombeiros e para o seu colega, E...»; e

- «O C... disse ao E...que tinha sofrido conjuntamente com o seu pai um acidente grave de viação e pediu-lhe para vir ao local que identificou».

Tal factualidade, de acordo com o excurso argumentativo expendido, conduziria à absolvição pelos sobreditos crimes de omissão de auxílio, pois que comprometeria a afirmação da «grave necessidade desse mesmo auxílio» uma vez que resultaria inequívoco ter a vítima «obtido o auxílio necessário por seus próprios meios, nomeadamente através de uma chamada de telemóvel feita por si», afastando, assim, o elemento típico do crime traduzido na «grave necessidade» - [cf. pontos I. f. e g., II., 2.ª parte, III., IV. e V. das conclusões].

Pois bem, tendo-se, embora, por certo que a decisão de facto deve reflectir as versões vertidas na acusação/pronúncia, na contestação e ainda resultantes da discussão da causa - em concretização, aliás, do disposto no artigo 368.º, n.º 2 do CPP - não nos suscita dúvida que tal dever tem como limite a relevância para a decisão de direito dos factos que aquelas encerram.

Significa, pois, que se em face da factualidade apurada [não impugnada] não resultar minimamente abalado o acerto da decisão, o qual jamais sairia beliscado em função da preconizada alteração, então não há que convocar como «provados» ou «não provados» factos que se antevêem irrelevantes por insusceptíveis de conduzirem a diferente resultado.

Ora, retomando o caso concreto – realçando-se a circunstância de ser a contestação omissa quanto os factos que o ora recorrente pretende ver consignados como provados – decisivo, como evidencia, no seu parecer, o Exmo. Procurador – Geral Adjunto, surgem os factos provados [não impugnados] que o julgador consignou nos pontos 26., 27., 28., 29., 30., 31. e 49., os quais, lidos no contexto de toda a decisão recorrida [cf. vg. os pontos 16., 17., 18., 19. da matéria de facto provada], não consentem a dúvida – ténue que seja – sobre a verificação in casu da «grave necessidade» exigida na conformação do tipo legal de omissão de auxílio, circunstância que, recorde-se, «ocorre quando o portador do bem jurídico se encontra em perigo iminente de lesão dos bens jurídicos protegidos: a vida, a integridade física e a liberdade … de outra pessoa» [cf. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Portuguesa, pág. 540; no mesmo sentido vd. Taipa de Carvalho quando a propósito da «grave necessidade» a que se reporta o tipo legal refere o «risco ou perigo iminente de lesão substancial (grave)», excluindo da tutela do tipo «as situações de perigo de lesão não iminentes e as situações de perigo de leves lesões corporais ou da liberdade …», in “Comentário Conimbricense”, I, pág. 849].

Afigura-se-nos, pois, incorrer o recorrente em equívoco quando pretende ilidir o elemento típico traduzido na «grave necessidade» com base na circunstância de haver a vítima «obtido o auxílio necessário por seus próprios meios, nomeadamente através de uma chamada de telemóvel feita por si …» já porque não só, nos termos da preconizada alteração da matéria de facto, não decorre que as vítimas tenham sido, efectivamente, de imediato, e de forma adequada, assistidas por um terceiro [cf. acórdão do STJ de 06.06.2002, in SASTJ, 62, 79], já, sobretudo, porque «O auxílio prestado por uma pessoa não desobriga os demais obrigados do dever de auxílio, mantendo-se esse dever até que o carecido de auxílio dele não careça, nomeadamente por ter sido socorrido (acórdão do TRC, de 18.10.2000, in CJ, XXV, 4, 58)» - cf. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 540].

No mesmo sentido vd., entre outros, os acórdãos do STJ de 31.03.2004 [proc. n.º 04P136] enquanto consigna «Como um dos elementos objectivos do tipo, surge a “grave necessidade”, exigindo tal conceito que se trate de um risco ou perigo eminente de lesão substancial daqueles bens jurídicos, “pressupondo a impossibilidade de a pessoa a socorrer, por si só, poder afastar o perigo que ameaça esses mesmos bens jurídicos», do TRP de 25.02.2004 [proc. n.º 0344756] considerando que «A circunstância de um terceiro ter prestado auxílio não desculpa o arguido. O omitente de auxílio é punível, mesmo que, posteriormente à sua recusa de prestação de auxílio, apareça uma outra pessoa que realize a devida e eficaz assistência [Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 859], do TRC de 02.11.2011 [CJ, 2011, V, 314] quando refere «É indiferente à verificação do elemento objecto do crime a circunstância de a vítima do sinistro ter sido socorrida por outras pessoas que transitavam no local e o facto de uma delas haver chamado uma ambulância por meio de telemóvel», do TRC de 21.03.2013 [proc. n.º 284/10.6PBVFX.C1], na parte em que realça a inocuidade à verificação do tipo da circunstância da vítima do sinistro ter sido socorrida por outras pessoas, evidenciando a circunstância de o princípio legitimador da incriminação que consagra o dever de auxílio se reconduzir à «solidariedade humana, face à vivência em comunidade ética».

Concluindo, impõe-se, pois, decidir pela irrelevância no caso concreto da pretendida alteração da matéria de facto por se apresentar, tal como vem equacionada, insusceptível de conduzir ao resultado pretendido, improcedendo, nesta parte, o recurso, o que determina a manutenção da decisão recorrida, a qual não representa qualquer afronta ao artigo 200.º do Código Penal.

b.

E que dizer da pretensão dirigida à modificação da matéria de facto quanto à parte cível da decisão?

Defende o recorrente, convocando para tanto os documentos contantes de fls. 531, 533, 534, 535, 536, 537 dos autos e, bem assim, a participação subscrita pela GNR de fls. 9 e a carta verde de fls. 71, dever ter o tribunal recorrido feito consignar como provados os seguintes factos:

- «O arguido A... tinha segurado o seu veículo ...IT na D..., S.A, com sede na ... Lisboa, para a qual havia transferido a sua responsabilidade pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais ou materiais causados a terceiro até ao capital de 600.000,00€ através da apólice n.º 204084722.»;

- «A vítima B...declarou ter recebido em consequência do acidente descrito nos autos a quantia de 225.000,00€, e com o recebimento dessa quantia liquida, considerou-se ressarcido de todos os danos presentes e futuros decorrentes do acidente em causa, nada mais tendo a reclamar da seguradora.»;

- «Pago em 24/05/10, assinou o respectivo recibo perante a seguradora.»;

- «Em idênticos termos declarou a vítima C..., declarando ter recebido 90.000,00€.»;

- «Pago em 12.10.2009, assinou o recibo perante a mesma seguradora.», realçando, ainda, não traduzir o ponto 59. dos factos tidos por provados na decisão o que decorre dos documentos de fls. 531, 533 a 537, impondo-se, em consequência, sofrer o mesmo alteração de forma a adoptar o sentido destes constante.

A ter procedido do modo descrito, prossegue, a decisão não deixaria de ser no sentido da sua absolvição dos pedidos de indemnização civil.

Indica como disposições violadas as normas constantes dos artigos 1.º, n.º 1, 19º, al. c) e 29.º, n.º 1, al. a) do D.L. n.º 522/85, de 31.12, diploma em vigor à data do acidente.

Aqui, diferentemente do supra decidido em a., não se nos afigura – bem pelo contrário - ser de refutar in limine, com vista à conformação da decisão, a pertinência dos factos sinalizados pelo recorrente, considerando as normas envolvidas, apontadas como tendo sido objecto de violação, bem como a interpretação que vêm merecendo.

Com efeito, em face dos documentos juntos a fls. 9 [participação do acidente], fls. 71 [certificado internacional de seguro automóvel], fls. 531/533 [recibo de indemnização], fls. 534 [acta de transação], fls. 535/537 [recibo de indemnização] e fls. 536 [acta de transação], os quais, aliás, não resultam questionados pelos demandantes recorridos, podemos assentar em que:

a. «A responsabilidade civil que adviesse em consequência e resultado da circulação estradal com o veículo de matrícula ...IT encontrava-se, à data do acidente, transferida, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 204085722, para a D..., SA»;

b. «A título de danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do acidente em causa nos autos, a D..., SA. indemnizou B... no montante global de € 225.000,00, dos quais o remanescente de € 205.000,00 [dado ter sido deduzida a quantia de € 20.000,00, já objecto de adiantamento] em 24.05.2010, na sequência de transação [extra processual] entre ambos [em 05.05.2010], realizada, ocasião em que o sinistrado [B...] declarou nada mais ter a reclamar, considerando-se ressarcido de todos os danos presentes e futuros decorrentes do acidente de viação»;

c. «A título de danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do acidente em causa nos autos, a D..., SA. indemnizou C... no montante global de € 90.000,00, o que correu em 12.10.2009, na sequência de transacção [extra processual] entre ambos [22.09.2009] realizada, ocasião em que o sinistrado [ C...] declarou nada mais ter a reclamar, considerando-se ressarcido de todos os danos presentes e futuros decorrentes do acidente de viação».

Em função da concretização, alcançada através dos pontos a., b. e c., supra, perde acuidade o ponto 59. dos factos provados, naqueles integrado.

Termos em que, ao abrigo do disposto nos artigos 428.º e 431.º do CPP, se procede à alteração da matéria de facto do seguinte modo:

1. O ponto 59. dos factos provados passa a assumir a redacção consignada em a. supra;

2. O exarado em b. e c. supra passa, agora, a integrar, respectivamente, os pontos 60. e 61. dos factos provados;

3. Os pontos dados como provados [na sentença recorrida] em 60., 61., 62., 63., 64., 65., 66. e 67. passam a constituir, respectivamente, os pontos 62., 63., 64., 65., 66., 67., 68. e 69. dos factos provados.

É, pois, perante este novo quadro fáctico que importa apurar se assiste razão ao recorrente.

A questão que se coloca traduz-se em saber se os danos decorrentes da omissão de auxílio, concretamente de natureza não patrimonial, peticionados no âmbito dos presentes autos, o deveriam ter sido perante a Seguradora.

A linha argumentativa do recorrente sintetiza-se nos seguintes termos:

Compreendendo-se [à luz do valor do seguro obrigatório à data do acidente] os pedidos formulados [considerando, ainda, as quantias já pagas, a título de indemnização, pela Seguradora a cada um dos sinistrados, ora demandantes] dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório, deveriam os danos decorrentes da omissão de auxílio ter sido reclamados à Companhia de Seguros, à qual, sempre, assistiria o direito de regresso, tudo conforme disposto nos artigos 29º, nº 1, al. a) e 19º, al. c) do D.Lei n.º 522/85, de 31.12.

Atenta a data dos factos, em causa está o regime definido no citado diploma legal [D. Lei n.º 522/85, de 31.12], entretanto revogado pelo D. Lei n.º 291/07, de 21.08, o qual, não colhendo aqui aplicação, sempre se poderá adiantar não ter introduzido, no que ora interessa, alteração de relevo.

Dispõe o artigo 29º do dito D. Lei n.º 522/85:

1. As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente:

a) Só contra a seguradora, quando o pedido formulado se contiver dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório;

(…)», estatuindo, por seu turno, o seu artigo 19º:

«Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso:

(…)

c) Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado;

(…) [destaque nosso].

Ora, sobre o direito de regresso conferido à seguradora [artigo 19º, al. c)], tem sido maioritária, no seio do Supremo Tribunal de Justiça, a posição no sentido de, apenas, abranger o mesmo os danos derivados do abandono da vítima ou o agravamento dos danos causados pelo acidente, decorrente desse abandono e não já a totalidade dos danos originados pelo mesmo e que a seguradora tenha indemnizado.

Por elucidativo, extracta-se do acórdão do STJ de 01.02.2011 [proc. n.º 1587/08.5TBOVR.P1.S1], as seguintes passagens:

«Dado o fim fundamental do seguro obrigatório (garantia ao lesado, nos limites quantitativos estabelecidos pela lei e para os danos previstos, a obtenção da indemnização em todas as hipóteses em que alguém possa ser chamado a indemnizar – LEITE CAMPOS, O Seguro de Responsabilidade Civil em Acidentes de Viação, p. 43), os diversos sistemas jurídicos tendem a apresentar determinadas características comuns, entre as quais sobressaem: atribuição de um direito contra o segurador, garantido por uma acção directa; impossibilidade de oposição, por parte do segurador, de algumas, ou mesmo a totalidade das excepções que poderiam opor ao segurado com base no contrato de seguro … (SINDE MONTEIRO, Reparação dos Danos em Acidente de Trânsito, p. 142).

No nosso sistema legal, por um lado, o contrato de seguro obrigatório vem a cobrir a responsabilidade tanto do tomador do seguro e de todo e qualquer legítimo condutor do veículo como as dos autores de furto, roubo, furto de uso de veículos ou dos que causam dolosamente o acidente (artigo 8º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro) e, por outro lado, a seguradora só pode opor aos lesados as excepções previstas no artigo 14.º daquele diploma legal.

A responsabilidade civil muda completamente de fisionomia: de instituto destinado a endossar a um indivíduo as consequências patrimoniais dos seus actos transforma-se …”em instrumento jurídico e técnico da pretensão ao seguro” …ou “em simples instrumento de limitação da garantia fornecida pelo segurador (SINDE MONTEIRO, obra citada, pp. 147 e 481).

Apesar de o seguro obrigatório ter mudado a fisionomia da responsabilidade civil, o certo é que continua a ser um seguro pessoal e não real. O que se transfere para o segurador é a responsabilidade de alguém enquanto detentor de determinado veículo e não o próprio veículo.

(…)

Preceitua … o art. 19º, al. c), do diploma em análise que, satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso quando o condutor houver abandonado o sinistrado.

O que está em causa no equilíbrio contratual não é o montante das indemnizações devidas por um qualquer acidente, mas tão só as relativas ao quid resultante do abandono do sinistrado: com as primeiras contava a seguradora, mas já não com estas.

Caso o segurado fosse obrigado a suportar todo o montante indemnizatório previamente pago pela seguradora, sem qualquer discriminação entre os danos produzidos normalmente em consequência do acidente e os acrescidos em virtude da atitude reprovável do segurado haveria, sem dúvida alguma, um desequilíbrio contratual resultante do facto de estar a suportar importâncias que só a seguradora devia pagar pela singela razão de que foi isso mesmo o que foi contratualizado

Na verdade, entendemos que os danos resultantes do acidente, em si, não podem senão ficar a cargo da seguradora, sob pena de desrespeito pela base negocial e, mais do que isso, porque tal criaria uma situação de enriquecimento sem causa por parte da seguradora.

Outrossim, o desequilíbrio contratual também se daria, caso a seguradora fosse “obrigada” a suportar as despesas resultantes pura e simplesmente do abandono: se isso acontecesse, bem poderíamos dizer que o legislador a tinha colocado numa situação não previsível, na justa medida em que não faz parte do comportamento do homem médio (pelo qual o Direito se rege e para o qual se dirige) abandonar um sinistrado, independentemente da determinação de culpa (a própria Ordem Jurídica sanciona, no plano criminal, tal conduta ao punir … o crime de omissão de auxílio – art. 200.º, n.º 2, do Código Penal).

Com efeito, o segurado acabaria por ser contemplado com uma situação que não estava na previsão e na base do contrato de seguro firmado, ficando indevidamente com as importâncias correspondentes às indemnizações relativas aos danos resultantes do abandono do sinistrado.

A ideia de Direito obriga, pois, a separar as águas, só concedendo à seguradora direito de regresso daquele montante que ela pagou em consequência directa e necessária do abandono, mas já não em relação a tudo o mais pago em virtude da consequência “normal” do acidente.

(…)

E é também este propósito de obviar ao enriquecimento infundado à custa da seguradora que garantiu a indemnização devida aos lesados em acidente de viação que o artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, instituiu a possibilidade de exercício de direito de regresso contra o condutor.

(…)

Por outro lado …, o carácter obrigatório do seguro sobre a circulação de veículos automóveis não influi no carácter pessoal (não real) do contrato celebrado. O que se transfere para o segurador é a responsabilidade do segurado, enquanto detentor de um dado veículo e não o próprio veículo. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 1999 (proc. 99B356, www.dgsi.pt) “segurado é quem contrata o seguro; a medida da responsabilidade da seguradora é a responsabilidade do seu segurado; o segurador só é obrigado na medida em que o seria o segurado se respondesse pessoalmente: em todos os casos em que os danos sejam causados a terceiros ou por utentes ocasionais do veículo – os autores de furto, roubo ou furto do uso do veículo – ou se o acidente for dolosamente praticado”. Ou seja, a seguradora responde pela indemnização que caberia ao seu segurado e queda titular de um direito de regresso contra ele cuja extensão será definida pela sua responsabilidade na eclosão do acidente e dos subsequentes danos, sempre que este tenha agido em violação do supra referido artigo 19º do Decreto – Lei n.º 522/85.

(…)

O art.º 19.º, nas alíneas a) a c), prevê dois casos distintos de direito de regresso da seguradora com fundamento em actuações dolosas: um, quando o acidente foi provocado dolosamente (a); o outro, quando o condutor abandonou voluntariamente o sinistrado após o acidente (b).

A cada um deles correspondem diferentes factos, danos e indemnizações.

A interpretação não se cinge à letra da lei e, na fixação do seu sentido e alcance, o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – art.º 9.º, n.ºs 1 e 3, do C. Civil.

A solução mais acertada, de acordo com a função do direito de regresso atribuído à seguradora, é a que, no caso de abandono do sinistrado, conduz a que ela possa reaver a indemnização que satisfez pelos danos desse abandono, porque não podia opor ao lesado que eles não estavam incluídos no risco por si assumido no contrato de seguro.»

No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do STJ de 31.01.2007 [proc. n.º 06A4637], do qual se respiga:

«Por força da lei do seguro obrigatório, o segurado fica, em princípio, isento de pagamento de qualquer importância reclamada a título de indemnização desde que a mesma se situe dentro dos seus limites.

Com a celebração do seguro obrigatório, a seguradora … fica obrigada a, mediante o pagamento do respectivo prémio por parte do tomador do seguro, indemnizar os danos causados por via da utilização da viatura, com exclusão dos casos previsto no art. 7º do mesmo diploma lega.

(…)

O legislador entendeu que era justo o equilíbrio de prestações estabelecido entre a seguradora e o tomador do seguro e daí que este passasse a estar certo que houvesse o que houvesse, sempre estaria livre de responsabilidade perante terceiros.

Mas, como sempre, a regra comporta excepções.

Não seria justo que, em certos e determinados casos, a seguradora respondesse sem mais, apesar de os mesmos não terem feito parte da base negocial que serviu de fundamento à celebração do contrato.

Referimo-nos concretamente aos casos previstos no art. 19º, al. c), do citado D.-L. 522/85.

Seria contrária à ideia de Direito e, portanto transgressora dos princípios da boa fé, a lei que obrigasse a seguradora, depois de ter assegurado perante terceiros as indemnizações devidas nesses casos, continuasse na mesma situação patrimonial, ou seja, que não tivesse direito de regresso sobre o tomador.

Interessa-nos o caso particular do abandono de sinistrado.

Preceitua, a este respeito, o art. 19º, al. c), do diploma em análise que, satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso quando o condutor houver abandonado o sinistrado.

O que está em causa no equilíbrio contratual não é o montante das indemnizações devidas por um qualquer acidente, mas tão – só as relativas ao quid resultante do abandono do sinistrado: com aquelas primeiras contava a seguradora, mas já não com estas.

Caso o segurado fosse obrigado a suportar todo o montante indemnizatório previamente pago pela seguradora, sem qualquer discriminação entre os danos produzidos normalmente em consequência do acidente e os acrescidos em virtude da atitude reprovável do segurado haveria, sem dúvida alguma, um desequilíbrio contratual resultante do facto de estar a suportar importâncias que só a seguradora devia pagar pela singela razão de que foi isso mesmo o que foi contratualizado».

Por outro lado, também a propósito dos danos dolosamente provocados pelo condutor do veículo tem vindo o Supremo Tribunal a entender mostrarem-se, os mesmos, cobertos pelo seguro obrigatório, sendo, pois, em função da finalidade da imposição do seguro, cuja obrigatoriedade é a protecção do lesado, que deve ser interpretado o âmbito do risco a segurar.

Assim decidiu o acórdão STJ de 17.01.2013 [proc. n.º 358/08.3TBVLP.P1.S1], no qual se pode ler:

«A questão de saber se estão ou não “cobertos pelo seguro obrigatório os danos resultantes da utilização de um veículo dolosamente causados pelo respectivo condutor” … já foi apreciada por diversas vezes por este Supremo Tribunal, no sentido do acórdão recorrido (cfr. acórdãos de 1 de Abril de 1993, proc. 043258, de 18 de Dezembro de 1996, proc. 047823, de 18 de Dezembro de 2008, proc. 08P3852, de 7 de Maio de 2009, proc. 09A 0512, de 23 de Setembro de 2010, proc. 672/08.8TBEPS – A.G1.S1, ou de 6 de Julho de 2011, proc. 3126/07.6TVPRT.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt, excepto o de 23 de Setembro de 2010, cujo sumário se pode ver em www.stj.pt) e em sentido divergente do acórdão fundamento, o acórdão de 13 de Março de 2007, proc. 07A 197 (igualmente disponível em www.dgsi.pt).

Tal como no presente recurso, estava em causa em todos o regime definido pelo Decreto – Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, entretanto revogado pelo Decreto – Lei nº 291/07, de 21 de Agosto, mas vigente à data dos factos.

A recorrente discorda da sua aplicabilidade ao caso dos autos porque entende, em síntese, que os factos provados implicam que não se trata de um acidente de viação, mas sim da prática de um crime, mediante a utilização intencional de um veículo automóvel como seu instrumento; ora o Decreto – Lei n.º 522/85 abrange apenas a responsabilidade por acidentes de viação, por factos casuais ou fortuitos que “consubstancie(m) a concretização de um risco inerente à circulação e à natureza própria do veículo, enquanto meio de transporte e de locomoção terrestre”, sob pena de desconsideração do “risco como elemento essencial do contrato de seguro”

Tal como os acórdãos atrás citados, ressalva feita para o acórdão fundamento, considera-se que não deve ser assim entendido o âmbito de aplicação do regime definido pelo Decreto – Lei nº 522/85 …

Não se ignora que um contrato de seguro (actualmente regulado em geral, pelo Decreto – Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril e, na altura dos factos, pelos artigos 425º e segs. do Código Comercial) é um contrato aleatório, do qual o risco coberto é, naturalmente, um elemento essencial …

Mas também não se pode esquecer que, quando a lei prevê e regula a obrigatoriedade de seguro para determinada actividade, é em função da finalidade da imposição do seguro que deve ser interpretado o âmbito do risco a segurar …

(…)

Não se levantarão grandes dúvidas de o objectivo primeiro da obrigatoriedade do seguro automóvel é a protecção do lesado, o que justifica uma interpretação do âmbito de aplicação conforme com essa mesma protecção. “A obrigatoriedade do seguro é estabelecida no interesse de terceiros (vítimas do acidente ou danos das coisas transportadas) e não do detentor ou condutor do automóvel …, escreveu Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., Coimbra, 2000, pág. 710, enunciando os pontos fundamentais do Decreto – Lei n.º 522/85.

(…)

Como se observa no acórdão de 1 de Abril de 1993, “É certo que a expressão “acidente dolosamente provocado”, para quem veja o acidente apenas na acepção tradicional de “acontecimento causal e fortuito”, será contraditória consigo própria. Simplesmente, e como decorre do pensamento do legislador espelhado nas normas acima transcritas, a expressão acidente não está utilizada naquele sentido tradicional (…), mas apenas no sentido mais geral de fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo.

(…)».

De relevo, por expressivo quanto à noção de acidente, o acórdão do STJ de 06.07.2011, enquanto refere:

«Deste modo, as várias formulações, por identificação material e teleológica, traduzem uma mesma realidade que é a da circulação automóvel … e dos danos que tal actividade provoque, nomeadamente, aos utilizadores das vias estranhos ao veículo, de deficiências da própria via, por causa fortuita ou por acto do próprio condutor, que se não desligue de uma qualquer imputação subjectiva, seja no domínio da falta de cuidado ou de impreparação, ou da negligência simples ou grosseira, sem excluir o acto voluntário.

(…)

Assim, na perspectiva do lesado, constitui acidente um facto exterior do qual resultem consequência lesivas, no sentido de acontecimento que, involuntariamente, suporta, que lhe é estranho, que não prevê, que não condiciona e que escapa à sua capacidade de influência ou domínio, enquanto que, no sentido pressuposto pelo regime de seguro obrigatório do direito comunitário, incluindo o direito nacional que assume esse regime, a noção de “acidente” ou “sinistro” deve ser considerada e integrada, sob o ponto de vista e pela posição do lesado, ou seja, da «protecção», na expressão da intencionalidade legislativa «dos legítimos interesses dos lesados»

Com efeito, para o lesado, todo o acontecimento resultante da circulação de um veículo com motor que lhe cause danos, pessoais ou materiais, e a cuja génese ou domínio foi estranho, constitui um «acidente de viação», no sentido de uma ocorrência exógena e não esperada, e, portanto, fortuita …»

Isto dito, e retomando o caso em apreço, considerando:

a. O teor conjugado das disposições dos artigos 29º e 19º, al. c) do D. Lei n.º 522/85, de 31.12 [em vigor à data do acidente];

b. O facto de a responsabilidade civil [que adviesse em consequência e resultado da circulação estradal com o veículo de matrícula ...IT] se mostrar, à data do acidente, transferida para a seguradora;

c. A circunstância de os danos a indemnizar se encontrarem compreendidos dentro dos limites do seguro obrigatório,

Tendo presente:

d. Que o direito de regresso que à seguradora assiste, no caso de ter ocorrido abandono de sinistrado, incide, tão só, sobre a indemnização relativa ao quid resultante desse abandono; significando, portanto, que, também, por tais danos deve, em primeira linha, ser a mesma a responder;

e. A qual, só pode opor ao lesado as excepções previstas no artigo 14.º do D. Lei n.º 522/85;

f. A densificação que tem vindo a sofrer o conceito de «acidente»;

g. Residir o objectivo primeiro da obrigatoriedade do seguro automóvel na protecção do lesado,

resultando incontornável que os factos susceptíveis de gerar a responsabilidade do demandado não o deixaram de ser pelo mesmo produzidos ao volante do veículo,

afigura-se-nos ser de concluir no sentido de que os pedidos de indemnização formulados nos presentes autos o deveriam ter sido perante a seguradora circunstância que não tendo ocorrido conduziria, em princípio, à ilegitimidade do aqui demandado com a consequente absolvição da instância [artigos 288.º, n.º 1, al. d), 494º, al. e) e 495º, todos do CPC], o que, porém, não sucede, em função dos factos, ora, dados por assentes - dos quais decorre mostrarem-se os demandantes integralmente ressarcidos pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do sinistro, realçando-se a declaração de nada mais terem a reclamar da seguradora -, impondo-se, em consequência, a absolvição do demandado do pedido.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso, decidindo, em consequência:

a. Alterar a matéria de facto [artigos 428º/431º do CPP] nos precisos termos descritos em II., 3., b. supra;

 b. Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o demandado A... a pagar a cada um dos demandantes B...e C... a quantia de € 3.500,00, a título de danos não patrimoniais, absolvendo-o, antes, dos pedidos de indemnização civil formulados pelos demandantes;

c. Manter em tudo o mais, não prejudicado pelo decidido em b. supra, a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente em 3 [três] Ucs de taxa de justiça.

(Maria José Nogueira - Relatora)

(Isabel Valongo)