Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1830/10.0TBFIG-Q.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADORES
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 186, 189 CIRE, 72 CSC
Sumário: Ao reportar-se tanto aos administradores de direito como aos administradores de facto, no art. 189º, nº 2, a), do CIRE, o legislador não visa excluir da qualificação da insolvência os administradores de direito que não exerçam as suas funções de facto, mas estender também tal qualificação aos administradores de facto, isto é, àqueles que praticam atos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                        I

Por apenso aos autos de insolvência de A (…), LDA., pessoa coletiva com o n.º (....) , com sede na Rua (....), Figueira da Foz, e por determinação da sentença que declarou a respetiva insolvência, foi aberto o presente incidente de qualificação da insolvência.

O Administrador da Insolvência emitiu parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa.

Referiu para tanto que, no âmbito das funções que lhe foram incumbidas, empreendeu diversas buscas no intuito de verificar a existência de bens, móveis e imóveis, em nome da sociedade insolvente, e que tentou agendar sem sucesso uma reunião com o gerente da insolvente, (…), o qual não deu resposta às duas comunicações escritas que lhe enviou para o efeito. Solicitou então a colaboração policial no sentido de apurar do paradeiro de diversas viaturas apreendidas, através da qual veio a ter conhecimento de que o gerente informou desconhecer tal paradeiro e que o mesmo já seria desconhecido quando tomou posse da empresa.

Mais invocou que a contabilidade só foi organizada até dezembro de 2008, inexistindo a partir dessa data.

Conclui que a insolvência deve ser declarada culposa por verificação, pelo menos, das previsões das alíneas h) e i) do art. 186.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Refere deverem ser afetados pela qualificação o atual gerente (…)e o anterior gerente (…)

O Ministério Público acompanhou o parecer do administrador, pronunciando-se pela qualificação da insolvência como culposa e pela afetação do gerente (…)

Pessoalmente citado, o requerido (…) deduziu oposição. Alegou para tanto que, embora nomeado como gerente em 1 de março de 2010, nunca exerceu de facto as funções de gerente, facto que foi tempestivamente comunicado ao administrador, a quem foi igualmente comunicado que nunca teve acesso à contabilidade da insolvente. Mais invoca que a insolvente não teve qualquer atividade a partir de finais de 2008 e que, desde então, deixaram de existir documentos contabilísticos.

Conclui que a qualificação da insolvência não deve afetar o oponente por não ter contribuído por qualquer ato ou omissão para o estado de insolvência da sociedade A.S.P.   

Não foi lograda a citação pessoal do requerido (…) que, citado editalmente, e através do respetivo defensor, deduziu igualmente oposição. Nesta peça, defendeu que, estando ausente em parte incerta, não se pode concluir que não colaborou com o administrador da insolvência, e que a inexistência de documentos contabilísticos dos anos 2009 e seguintes se explica devido à inatividade da sociedade desde 2008.

Concluiu igualmente que a qualificação da insolvência o não poderá afetar.

A insolvente não deduziu oposição.

Foi dispensada a realização de audiência prévia, bem como, atenta a simplicidade do incidente, a prolação de despacho saneador, de fixação do objeto do processo e dos temas da prova.

Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que decidiu:

a)         Qualificar como culposa a insolvência de A (…) Lda.;  

b)         Julgar afetados pela qualificação (…) e (…);

c)         Declarar (…) e (…) inibidos para o exercício do comércio pelo período de 2 (dois) anos, bem como declarar os requeridos inibidos, por igual período, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;

d)         Determinar a perda de quaisquer direitos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos requeridos (…) e (…)e condená-los na restituição de quaisquer bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;

e)         Condenar os requeridos (…) e (…) no pagamento das custas do incidente.

Inconformado com tal decisão, na parte que o afeta, veio o requerido (…) recorrer, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

I.) O Recorrente nunca assumiu de facto as funções de gerente. É o que expressamente consta do ponto 22. da Fundamentação de Facto da sentença recorrida. Ao não assumir as respetivas funções, não praticou qualquer ato de gestão.

II.) O facto de haver sido considerado “não provado” que o Recorrente nunca tivesse tido acesso às viaturas ou conhecimento da sua localização, não implica a prova do seu contrário, ou seja, de que tivesse efetivamente tido conhecimento da sua localização ou acesso ao mesmo.

III. ) Em consequência, não é legítimo exercer a mesma censura ético-jurídica, como se houvesse sido feita prova pela positiva ou sobre o facto positivo.

 IV.  ) Os deveres assinalados ao gerente, de manter contabilidade organizada até ao

momento previsto no art. 118º nº 6 do Código do IRC bem como, ainda, o dever de cuidado, previsto no art. 64º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), estando igualmente fora do alcance da previsão constante do art. 72º do CSC., são deveres que devem ser observados e têm apenas por destinatários quem desenvolve efetivamente a função, ativamente e pela positiva, desempenha efetivamente a atividade e não a quem a não desempenha, tendo sido mero gerente de favor, como é o caso do Recorrente.

V.) Por isso, o Recorrente, tratando-se de um gerente meramente formal e que não exerceu qualquer função, não é o destinatário de tais normas, pelo que sobre o mesmo não podem recair as consequências pelo respetivo incumprimento.

VI.) Não se verificam assim fundamentos de facto que suportem a decisão proferida e que legitimem o juízo de censura ético-jurídica que recaiu sobre o Recorrente na sentença proferida e aqui posta em crise.

VII.) A sentença padece assim do vício previsto na al. c) do nº 1 do art. 615º do nCPC.

Pelo que se impõe conceder provimento ao presente recurso.

Respondeu o Ministério Público, pugnando pela decisão recorrida:

(…) Diga-se, desde já, que a decisão proferida, não nos merece qualquer reparo, evidenciando uma correta subsunção dos factos ao direito, mostrando-se clara e devidamente fundamentada.

Nos termos do art.º 6.º, n.º 1, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante (CIRE), “para efeitos deste Código, são considerados como administradores:

a) Não sendo o devedor uma pessoa singular, aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente”, ou seja, consagra-se um critério amplo de administrador, incluindo-se na definição aqueles que exercem o “poder de facto” e não apenas o “administrador formal”, titular do órgão competente.

Contudo, há que dizer que, com a utilização da expressão “administradores de direito ou de facto”, o legislador não visa excluir das pessoas afetadas pela qualificação da insolvência os administradores de direito que não exerçam as funções de facto, mas sim estender tal qualificação também aos administradores de facto, ou seja, às pessoas que praticam atos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem, o que vale por dizer que o legislador não visou excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto, como pretende o apelante, antes quis que a qualificação abrangesse quer os administradores de direito, os legalmente designados constantes do contrato de sociedade e do registo comercial e os administradores de facto, pessoas que praticam atos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem.

Na verdade, os administradores da sociedade, ainda que exerçam efetivamente as funções de gerente, devem observar os deveres fundamentais previstos no artigo 64.º do CSC, nomeadamente, o dever de se informar sobre a sua situação e de acompanhar a sua atividade, sendo responsável perante a sociedade nos termos previstos no art.º 72.º do referido diploma.

Anote-se que ao apelante apenas lhe é imputada a infração reiterada dos deveres de informação e colaboração, já não a inexistência de contabilidade organizada relativamente ao exercício ao exercício anterior à data em que foi requerida a insolvência (esta infração imputada ao anterior gerente (…)).

Sendo certo que, além de, a insolvente incumprir em termos substanciais o dever de manter contabilidade, preenchendo a previsão da alínea h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, incumpriu de forma reiterada os seus deveres de colaboração no âmbito da insolvência, violando as obrigações impostas pelo art.º 83.º, n.º 1 do CIRE,

- fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador de insolvência, pela assembleia de credores ou pelo tribunal, - apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador de insolvência,

- prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.

Ora, da factualidade dada como provada resulta que o administrador da insolvência enviou ao apelante, no dia 21 de Julho de 2011, uma comunicação com o objetivo de ser agendada uma reunião para se apurar dos factos, não tendo este respondido a tal comunicação.

No dia 14 de Setembro de 2011, o administrador da insolvência voltou a enviar comunicação apelando ao dever de colaboração imposto pelo art.º 83.º, mantendo A (....) a mesma atitude, comportamento omissivo que determinou que, apenas com a colaboração das entidades policiais tenha logrado o administrador da insolvência obter alguma informação sobre os bens da insolvente.

Pelo exposto, parece-nos claro que a verificação das mencionadas condutas, não pode deixar de integrar as previsões das als. h) e i), do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE.

Os factos alegados por (…), quanto à medida da sua responsabilidade na administração apenas relevaria para efeitos de determinação da medida da inibição, na medida em que em tal graduação deve atender-se à medida da culpa das pessoas afetadas pela qualificação, na criação ou agravação da situação da empresa que motivou a sua insolvência, o que “in casu” não surtiria qualquer efeito, mercê da sua aplicação pelo mínimo.

 Assim, entende-se dever a decisão ser confirmada nos seus precisos termos

                                                                        II

É a seguinte a factualidade julgada provada pelo tribunal a quo:

1.         A insolvente é uma sociedade comercial por quotas, com o NIPC (....) , com sede na Rua (....), Figueira da Foz, que tem com objeto o transporte nacional e internacional e serviços.

2.         Foi constituída em 1995, com o capital social de € 250.000,00, titulado por duas quotas: uma quota no valor de € 193.625,00 de (…), e uma quota no valor de € 56.375,00 de (…), esposa daquele.

3.         Assumiu então as funções de gerente o sócio (…)

4.         A renúncia à gerência por parte de (…) foi inscrita no registo em 6 de janeiro de 2010, data em que foi inscrita a designação como gerente de (…)

5.         A renúncia à gerência por parte de (…) foi inscrita no registo em 3 de março de 2010, data em que foi inscrita a designação como gerente de (…) que se mantém como gerente da insolvente.

6.         A insolvência da sociedade foi requerida em 19 de julho de 2010 por (…) e declarada por sentença proferida em 4 de julho de 2011.

7.         O administrador da insolvência empreendeu, nessa qualidade, e no âmbito das suas funções, diversas buscas no intuído de verificar a existência quer de bens, quer móveis quer imóveis.

8.         No dia 21 de julho de 2011 enviou uma comunicação ao gerente da insolvente e requerido (…) com o objetivo de ser agendada uma reunião para se apurar de tais factos.

9.         O requerido não respondeu a esta comunicação.

10.       No dia 14 de setembro de 2011 o administrador reiterou a anterior missiva, apelando ao dever de colaboração estatuído pelo artigo 83.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

11.       O requerido voltou a não responder a esta missiva.

12.       No dia 13 de outubro de 2011 o administrador da insolvência lavrou auto de apreensão de treze viaturas, que constavam em nome da sociedade insolvente,

13.       Na tentativa de averiguar a localização das viaturas que haviam sido detetadas informativamente em nome da sociedade insolvente, o administrador dirigiu ao Comandante da PSP da Figueira da Foz um pedido de localização de viaturas, a fim de que a PSP diligenciasse junto do requerido pela obtenção de informação relativa ao paradeiro das viaturas.

14.       Na sequência desta solicitação, a PSP da Figueira da Foz comunicou ao administrador, a 28 de outubro de 2011, que havia dirigido o seu pedido ao Comandante da PSP de Loures, dado que o assunto em questão pertencia à área daquele posto.

15.       No dia 30 de novembro de 2011 o administrador recebeu da GNR de Lisboa, Destacamento de Vila Franca de Xira, Posto Territorial de Bucelas, comunicação de que em virtude das diligências em causa se localizarem na área de jurisdição do Comando do Posto da GNR de São Julião do Tojal, tal pedido seria reencaminhado para o referido posto.

16.       No dia 17 de março de 2012 o administrador recebeu um ofício do Posto Territorial de São Julião do Tojal da GNR, datado de 6 de março de 2012, da qual consta que o requerido A (....) informou que não sabia qual o paradeiro atual das viaturas, «pois quando tomou posse da empresa a maior parte das viaturas nunca as viu, possivelmente já tinham sido vendidas a outrem ou para a sucata e outras, não sabendo especificar, foram apreendidas e removidas pelo Tribunal da Figueira da Foz, não sabendo do paradeiro delas. Referiu ainda que podiam verificar através da base de dados das inspeções e dos seguros a confirmar que os veículos há muito não circulam».

17.       Com o intuito de acautelar a propriedade dos referidos bens móveis, o administrador da insolvência procedeu à apreensão registral dos mesmos, nunca tendo conseguido apreender fisicamente as viaturas porque as diversas tentativas de localização resultaram frustradas.

18.       A contabilidade da insolvente era processada por um gabinete especializado – (…) – sendo o TOC responsável o Dr. (…).

19.       A contabilidade está organizada até ao ano de 2008, inexistindo documentos contabilísticos dos anos posteriores.

20.       No dia 11 de junho de 2013 o administrador recebeu uma comunicação da Polícia Judiciária – Diretoria do Centro, no âmbito do NUIPC 745/11.0TAFIF, informando que haviam sido localizados alguns dos bens da insolvente, designadamente a viatura pesada (trator) de marca Renault, matrícula (....) RG e o semirreboque C-4 (....) .

21.       Estes bens encontravam-se em poder de (…) sócio gerente da sociedade (…) Lda. e gerente da sociedade (…), Lda., que declarou tê-los adquirido em 2010 a (…) pelo valor total de € 5.000,00.            

22.       O requerido (…) nunca assumiu de facto as funções de gerente. 

23.       O requerido comunicou que não tinha e nunca teve acesso a contabilidade, encontrando-se a mesma em poder do contabilista e nas instalações do insolvente.

24.       A insolvente deixou de laborar a partir de finais de 2008. 

25.       O requerido (…) encontra-se em paradeiro desconhecido.  

                                                                        III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (art. 635 nº 3 do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 608 in fine), é a seguinte a questão a decidir:

- Se o recorrente (…) por ser mero gerente de direito nunca tendo exercido as funções de gerente de facto, não deve ser afetado pela qualificação da insolvência como culposa.

A decisão recorrida declarou a insolvência de “(…), Lda”, qualificando como culposa a insolvência e, julgou afetado pela insolvência (…), declarando-o inibido para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de dois anos.

 Pretende o apelante que não pode ser afetado pela qualificação como culposa da insolvência porque nunca assumiu de facto as funções de gerente e, em consequência, não praticou qualquer ato de gestão.

E refere que “os deveres assinalados ao gerente, de manter contabilidade organizada até ao momento previsto no art. 118.º n.º 6 do IRC bem como, ainda o dever de cuidado, previsto no art. 64.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), estando igualmente fora do alcance da previsão constante do art. 72.º do CSC, são deveres que devem ser observados e têm apenas por destinatários quem desenvolve efetivamente a função, ativamente e pela positiva, desempenha efetivamente a atividade e não a quem a não desempenha, tendo sido mero gerente de favor” … “por isso, o recorrente, tratando-se de um gerente meramente formal e que não exerceu qualquer função, não é o destinatário de tais normas, pelo que sobre o mesmo não podem recair as consequências pelo respetivo incumprimento”.

Mas não lhe assiste razão como veremos.

Importa que previamente enquadremos a questão da afetação ou não do recorrente, na qualificação que foi feita da insolvência.

Dispõe o art. 186.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa (doravante CIRE), que «A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência».

O nº 1 do art. 186 do CIRE dá, assim uma noção geral do que seja a insolvência culposa, noção essa, que pressupõe que tenha havido uma conduta do devedor, ou dos seus administradores, de facto ou de direito, que tenha criado ou agravado a situação de insolvência, seja uma atuação dolosa ou com culpa grave, e que tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.,

Quando o insolvente não seja uma pessoa singular, o nº 2 considera a insolvência «sempre culposa», se ocorrer qualquer dos factos enumerados nas suas alíneas, quando praticados pelos seus administradores de direito ou de facto.

Neste sentido, o art. 186.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa estabelece que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º.

Da letra da lei («considera-se sempre») resulta claramente que o preceito (nº 2) estabelece uma presunção iures et de iure.

O nº 3 do art. 186 contêm uma presunção de culpa grave que se reporta a comportamentos dos administradores, de direito ou de facto, de devedores que não sejam pessoas singulares, estatuindo que, esta presunção se verifica quando aqueles tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à fiscalização devida ou de as depositar na conservatória do registo comercial.

Neste caso a presunção é ilidível, pois que o nº 3 não proíbe a prova em contrário da presunção, prevalecendo, por isso, o disposto na primeira parte do art. 350 nº 2 do C. Civ..[1]

Considerou a 1ª instância que a insolvência deve ser qualificada como culposa por se verificarem as presunções previstas no art. 186.º, n.º 2, als. h) e i), do CIRE.

Está efetivamente verificada a previsão da alínea h) do n.º 2 do art. 186.º considerando os factos provados nos n.º s 17 e 18, dos quais resulta que a contabilidade da insolvente, que era processada por um gabinete de especializado, apenas está organizada até ao ano de 2008, inexistindo documentos contabilísticos dos anos posteriores, nomeadamente do ano de 2009, que precedeu a instauração do processo de insolvência.

Como bem ponderou a sentença recorrida “a inexistência de documentos contabilísticos dos exercícios posteriores a 2008 constitui incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, já que esta contabilidade inexistia pura e simplesmente. E o incumprimento desta obrigação não é justificado pelo facto de a insolvente ter deixado de laborar, uma vez que a obrigação se mantém enquanto não for comunicada a cessação da atividade, nos termos do art. 118.º, n.º 6, do Código do IRC”.

E, está igualmente verificada a previsão da alínea i), tendo a insolvente incumprido de forma reiterada os seus deveres de colaboração no âmbito da insolvência, pois que, decorre dos factos provados que o administrador da insolvência enviou ao gerente da insolvente e ora recorrente (…), no dia 21 de julho de 2011, uma comunicação com o objetivo de ser agendada uma reunião para se apurar de tais factos, não tendo este respondido a tal comunicação.

E, no dia 14 de setembro de 2011 o administrador reiterou a anterior missiva, apelando ao dever de colaboração estatuído pelo artigo 83.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e o recorrente voltou a não responder a esta missiva.

Podemos assim concluir que, ao não dar resposta às solicitações do administrador da insolvência, a insolvente infringiu de forma reiterada os deveres de informação e colaboração previstos no referido art. 83.º, n.º 1, als. a) e c), a que acresce o facto de que, apenas com a colaboração das entidades policiais foi possível ao administrador da insolvência obter alguma informação sobre os bens da insolvente.

Assim, verificadas as previsões das als. h) e i) do n.º 2 do art. 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não poderia a insolvência deixar de ser qualificada como culposa.

Não pondo em causa tal qualificação, pretende o apelante, contudo que, pelo facto de ser mero gerente de direito nunca tendo exercido as funções de gerente de facto, não deve ser afetado pela qualificação da insolvência como culposa

Contudo, neste âmbito, a lei atribui relevo não apenas ao administrador de direito, mas também ao administrador de facto, sendo este aquele que, sem título bastante, exerce, direta ou indiretamente, e de modo autónomo, as funções próprias do administrador de direito.

O espírito da lei foi no sentido de alargar as consequências da qualificação da insolvência ao administrador de facto, sem excluir as consequências ao administrador de direito.

Posição que se mostra incontroversa na jurisprudência. Citamos como ex. o Acórdão proferido nesta Relação de Coimbra, datado de 21-01-2014, respeitante ao Processo 174/12.8TJCBR-C1, tendo como Relator o Exmº Desembargador Moreira do Carmo, ora 1º adjunto, publicado em www.dgsi.pt e, em cujo sumário se pode ler:

 «Estando a gerente de direito envolvida no giro e funcionamento comercial da insolvente, ainda que em menor grau que o gerente de facto, não fica a mesma desvinculada dos deveres de acompanhar e controlar a condução da atividade da sociedade e de se informar sobre a sua situação, sendo por isso responsável pelo quadro circunstancial apurado que preenche as previsões legais estabelecidas no art. 186º, nº 2, a), h), e i), e nº 3, a), do CIRE;  

 Ao reportar-se tanto aos administradores de direito como aos administradores de facto, no art. 189º, nº 2, a), do CIRE, o legislador não visa excluir da qualificação da insolvência os administradores de direito que não exerçam as suas funções de facto, mas estender também tal qualificação aos administradores de facto, isto é, àqueles que praticam atos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem».

Efetivamente, como se colhe das normas atrás citadas, compreende-se que assim seja porque, tal como os administradores de direito, os administradores de facto administram a sociedade, devendo por isso estar igualmente sujeitos a cumprir as regras da correta administração, sob pena de arcarem com as respetivas responsabilidades.

Ora, a responsabilidade pela inexistência de contabilidade organizada a partir de 2008 incide em primeira linha sobre o anterior gerente (…). Isso mesmo, e bem, reconheceu a sentença.

Com efeito, era sobre este requerido que, até março de 2010, incumbia o dever de gerir a empresa e, por isso, relatar a gestão e elaborar as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas previstos na lei - já que sendo a insolvente uma sociedade comercial por quotas, se encontrava sujeita à obrigação de manter escrita organizada (art. 65.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais). É-lhe, pois, imputável a inexistência de contabilidade organizada relativamente ao exercício anterior à data em que foi requerida a insolvência.

Mas, já a infração reiterada dos deveres de informação e colaboração, é imputável ao recorrente A (....) , que foi nomeado gerente quatro meses antes da propositura da insolvência.

Assim, o facto de não exercer efetivamente as funções de gerente não o desvinculava dos deveres de cuidado a que, nos termos do art. 64.º do Código das Sociedades Comerciais, se encontrava obrigado, e nomeadamente do dever de se informar o administrador judicial sobre a sua situação e de acompanhar a sua atividade.

Corroboramos assim o entendimento de que, se incumpriu tais deveres, sob o pretexto de que a sua nomeação como administrador era meramente formal, não deixa por isso de ser responsável perante a sociedade nos termos do art. 72.º do Código das Sociedades Comerciais, nem deve deixar de ser afetado pela qualificação da insolvência.

Em suma:

- Ao reportar-se tanto aos administradores de direito como aos administradores de facto, no art. 189º, nº 2, a), do CIRE, o legislador não visa excluir da qualificação da insolvência os administradores de direito que não exerçam as suas funções de facto, mas estender também tal qualificação aos administradores de facto, isto é, àqueles que praticam atos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem

                                                                        IV

Termos em que, acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

 Anabela Luna de Carvalho( Relatora )

João Moreira do Carmo

José Fonte Ramos


[1] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado” Vol II, anotação ao art. 186.