Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6348/10.9TDLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: APROPRIAÇÃO ILÍCITA POR ACESSÃO
CONSUMAÇÃO
DIREITO DO ARGUIDO AO SILÊNCIO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PAGAMENTO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 05/08/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 209.º E 51.º, N.ºS 1, ALÍNEA A), E 2, DO CP; ARTIGO 343.º, N.º 1, DO CPP
Sumário: I - O crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada, p. e p. no artigo 209.º, n.º 1, do CP, se consuma quando a coisa sai da esfera de pertença do titular inicial e o agente adquire um mínimo de estabilidade no domínio de facto correspondente ao seu empossamento, uma estabilidade que lhe assegure uma possibilidade plausível de fruição e disposição do bem (ilicitamente) apropriado.

II - Assim, só a partir do momento em que o arguido manteve em seu poder o montante transferido, por engano, pela lesada, para conta bancária de que aquele é titular - poder esse revelado através de actos demonstrativos da recusa na devolução da quantia transferida -, ocorre a consumação do referido ilícito penal.

III - A génese do direito ao silêncio não assenta num intuito de beneficiar o arguido; antes decorre do princípio do contraditório, que impõe à acusação o dever de provar os factos imputados, facultando àquele um comportamento que, em última análise, poderá obstar à sua auto-incriminação.

IV - Mas se o silêncio constitui um direito do arguido, não se traduz, no entanto, numa circunstância atenuante, não implicando diminuição da culpa e redução da ilicitude do facto.

V - Perante o disposto no artigo 51.º, n.º 2, do CP, a suspensão da execução da pena de prisão não pode ficar dependente de uma condição impossível, fisicamente impossível, e/ou de uma condição irrazoável.

VI - Contudo, o princípio da razoabilidade, se determina que a imposição de deveres, como seja o do pagamento, no todo ou em parte, da indemnização devida ao lesado, deve atender às forças do destinatário, o agente do crime, não deve cair no extremo que leve a considerar que esse dever contempla apenas as possibilidades económicas e financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que está subjacente à figura jurídica em causa, qual seja o de dar ao arguido margem de manobra suficiente para desenvolver diligências que lhe permitam obter recursos indispensáveis à satisfação do dever ou condição.

VII - Na situação dos autos, embora o arguido seja estudante universitário, sem qualquer fonte de rendimento, mas tendo já havido negociações, ainda que infrutíferas, no sentido de restituição da quantia objecto da apropriação ilícita (€ 129999,19), é razoável a subordinação da suspensão da execução da pena de nove meses de prisão ao dever de o arguido, no prazo de seis meses, pagar à lesada aquele montante.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                                                                                           

I. Relatório:                                                                        

                A) No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 6348/10.9TDLSB.C1 que corre termos no Tribunal Judicial de Ourém, 2.º Juízo, em 30/5/2012, foi proferida Sentença, cujo Dispositivo é o seguinte:

                “7. Dispositivo:

                Pelo exposto e decidindo:

                Julgo a acusação deduzida contra A... procedente, por provada, e, em consequência, condeno-o como autor material de um crime de apropriação ilegítima, p. e p. pelo artigo 209.º, n.º 1, do C. Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada à condição de o arguido proceder ao pagamento à Assistente, no prazo de 6 (seis) meses a contar do trânsito desta decisão, da quantia de 128.420,59 euros, acrescidos de juros à taxa legal, desde a notificação para contestar tal pedido e até integral e efectivo pagamento (artigos 50.º, n.º 1, 51.º, n.º 1, al. a), do Código Penal).

                Condeno, ainda, o arguido no pagamento de 2 UC de taxa de justiça.

                Julgo o pedido de indemnização civil formulado por E... – Companhia de seguros, S.A., integralmente procedente por provado e condeno o demandado a pagar-lhe a quantia de 128.420,59 euros, acrescidos de juros à taxa legal, desde a notificação para contestar tal pedido e até integral e efectivo pagamento.

                Custas do pedido de indemnização civil a cargo do demandado (artigo 446.º, n.º 2, do CPC).

                Boletim ao C.I.C.C.

                Notifique.

                                                                                                ****

                B) Inconformado com um despacho proferido durante a audiência de julgamento (em 14/5/2012), dele recorreu, em 5/6/2012, o arguido, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

                1) Conforme resulta da acta de fls., o Recorrente, em Audiência de Julgamento, em 14 de maio de 2012, requereu o que acima se transcreveu;

                2) O Meritíssimo Juiz proferiu o Despacho que acima se transcreveu;

                3) O momento da consumação do crime é aquele em que a Recorrida abre mão da coisa ou do valor, sem que a partir daí possa controlar o seu destino, perdendo a disponibilidade dela ou desse valor no seu património;

                4) Tendo em conta que a quantia, objecto da transferência bancária deixou de estar na disponibilidade da lesada no preciso momento em que procedeu à transferência bancária para a conta bancária do arguido, o crime ficou consumado com a transferência bancária efectuada pela Recorrida;

                5) O Tribunal competente para apreciar a questão suscitada nos presentes autos é o Tribunal da comarca de Lisboa;

                6) A Recorrida deixou de ter o domínio sobre o dinheiro no momento em que o transferiu para a alegada conta bancária do Arguido;

                7) Foi no momento em que procedeu à transferência bancária que a quantia deixou de estar na disponibilidade da Recorrida e passou alegadamente para a alegada conta bancária do arguido;

                8) A quantia titulada pela transferência bancária deixou de estar na disponibilidade da Recorrida no preciso momento em que procedeu à respectiva transferência bancária para a alegada conta bancária do Arguido;

                9) Isto porque a partir desse momento deixou de poder dispor da referida quantia;

                10) O crime de apropriação ilegítima no caso de acessão ou de coisa achada ficou consumado com a transferência bancária efectuada pela Recorrida, pelo que o Tribunal competente para conhecer este crime é o Tribunal de Lisboa;

                11) Deve ser o Despacho recorrido ser revogado, com todas as consequências legais, o que, desde já e, aqui se requer;

                12) O Despacho recorrido é nulo nos termos do artigo 379º do Código do Processo Penal;

                13) Dizer-se como se diz no Despacho recorrido, é o mesmo que nada se dizer, pois fartamente se verifica que o Tribunal competente para decidir o crime dos presentes autos é o Tribunal da comarca de Lisboa;

                14) Tem forçosamente o Despacho recorrido de ser Revogado com todas as consequências legais para a acusação, por erro de apreciação das normas aplicáveis ao caso concreto;

                15) Tem tal Despacho de ser Revogado;

                16) Deixando o Meritíssimo Juiz de se pronunciar sobre estas questões que devesse apreciar, nomeadamente as já alegadas nesta peça processual, ou apreciando-as superficialmente, e com bastantes lacunas, como acima já se disse;

                17) As partes precisam de ser bem elucidadas sobre os motivos da decisão;

                18) Não basta pois que os Meritíssimos Juízes decidam as questões postas, em "crise";

                19) Lendo, atentamente, o Despacho recorrido, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo da condenação do arguido;

                20) O (Tribunal) o Meritíssimo Juiz com a decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos do arguido, e não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e sobretudo ao não apreciar criticamente e fundamentar expressamente o razão da sua não apreciação;

                21) Dúvidas não existem de que assim, o arguido não foi tratado de forma igual a outros cidadãos perante a lei;

                22) O Despacho é nulo, por interpretação e aplicação deficiente das normas legais citadas, conforme já acima se disse;

                23) O Despacho recorrido viola:

a) Artigo 19, nº1, 359º, n.ºs 1 e 2; , 374º, 375º, 377º; 379º e 410º do, C.P.P;

b) Artigos 205º, 207º e 208º da C. R. P.

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C) Inconformado, também, com a sentença proferida em 30/5/2012, dela recorreu, em 26/6/2012, o arguido, extraindo da motivação as seguintes conclusões: 

1) Conforme resulta de fls. 94 e 95, foi deduzida acusação contra o Arguido: “Pelo exposto cometeu o arguido um crime de apropriação ilegítima, p. e p. pelo artigo 209º, nº 1, do C.P.”;

2) O Arguido apresentou a contestação, e alegou o acima transcrito;

3) Conforme resulta da acta de fls., o Recorrente, em Audiência de Julgamento, em 14 de maio de 2012, requereu o que acima se transcreveu;

4) O Meritíssimo Juiz proferiu o Despacho acima transcrito;

5) Não se conformando com o Despacho de fls., o Recorrente dele recorreu para o Tribunal de Coimbra, alegando em conclusões, o que acima se transcreveu;

6) Recurso este que ainda não foi apreciado e, que desde já aqui se requer a sua reapreciação prévia, visto que sendo deferida a sua pretensão, todos os actos praticados posteriormente serão anulados, o que desde já e aqui se requer;

7) Na sentença que deu objecto a este recurso, o Meritíssimo Juiz decidiu o que acima se transcreveu;

8) Do valor probatório do silêncio do arguido, o direito ao silêncio não pode ser valorado contra o arguido, isto é a proibição de valoração incide sobre o silêncio do arguido;

9) O direito do arguido ao silêncio impõe que essa circunstância não pode ser valorada contra si, como indício de culpabilidade;

10) Do silêncio do arguido não pode concluir-se que é ele o autor do crime porque não apresentou qualquer justificação para os factos que lhe são imputados;

11) Não podia o Meritíssimo Juiz dizer, na fundamentação da sentença que “… Agente esse que, apesar da sua tenra idade, denota já uma atitude de perfeita indiferença perante o desvalor da sua acção como o traduz na perfeição a remessa ao silêncio – legítima – todavia, a sugerir essa indiferença perante o seu ato. E ato esse perfeitamente documentado nos autos para o qual o arguido nenhuma explicação aduziu adivinhando-se a conveniência obvia da retenção de uma quantia monetária que, em jeito de prémio de euromilhões ou qualquer outro jogo de fortuna ou azar lhe coube em sorte.”;

12) Daqui resulta que o Meritíssimo Juiz valorou negativamente o silêncio do Arguido, que qualificou como uma atitude de perfeita indiferença perante o desvalor da sua ação e de indiferença perante o seu ato;

13) Entende-se que o desvalor que foi atribuído ao silêncio do Arguido, na nossa opinião, erradamente por violar o  princípio do direito ao silêncio sem que o mesmo possa, por tal, ser prejudicado;

14) Isto porque o silêncio não pode prejudicar o arguido, pois o mesmo não pode ser valorado em desfavor do arguido;

15) O direito ao silêncio, como direito que é não pode prejudicar o arguido, não podendo dele ser retiradas quaisquer consequências probatórias da matéria da acusação, sendo certo que é à acusação que compete provar os seus pressupostos e não o arguido através das suas declarações provar o contrário;

16) E, em caso de dúvida fundada/razoável, esta beneficia o arguido, por efeito do princípio da presunção de inocência e in dubio pro reo que nele entronca;

17) No caso dos autos nunca poderia o Meritíssimo Juiz ter valorado o silêncio do arguido do modo como fez e, muito menos, ter retirado quaisquer consequências probatórias da matéria da acusação;

18) Deve a Sentença recorrida ser revogada, com todas as consequências legais, por violação dos princípios acima aduzidos, o que, desde já e, aqui se requer;

19) A prova produzida e analisada em sede de audiência de julgamento não deu ao “Tribunal a quo” as necessárias certezas da culpabilidade do Arguido, ou para que este pudesse ter sido condenado nos termos em que o foi na sentença recorrida;

20) Se atentarmos aos depoimentos das testemunhas da acusação, nomeadamente da Sra. F...e Sra. G..., que se encontram gravados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal, não resultou provada a prática do crime por parte do arguido;

21) Conforme as mesmas confirmaram, nunca viram o arguido, nem nunca falaram com o mesmo, nunca viram nenhum documento assinado por ele, etc., etc.;

22) Nem sequer confirmaram se o Arguido era único e exclusivo titular da conta bancária ou se outrem possuía autorização especial (procuração) para poder movimentar a conta;

23) Mesmo que se dê como provado que efectivamente tais quantias deram entrada na conta do Arguido, não significa, portanto, que tenha sido este a levantá-las e a ficar na sua posse, bem como usufruir delas;

24) O arguido não levantou, não utilizou, não se aproveitou, etc., etc., de nenhuma das quantias referidas na acusação;

25) O arguido é estudante Universitário, não recebe nenhum vencimento, e vive às custas de seu pai;

26) No nosso direito penal apenas se pode usar a prova directa e não a prova indirecta – pelo menos na fase de Julgamento – o que não se verificou neste caso, pois, parece ao Arguido que o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”,  apenas utilizou a prova indirecta, nomeadamente o facto do nome do Arguido constar como titular da conta;

27) Não existem quaisquer elementos que permitam, sem qualquer dúvida, afirmar que foi o Arguido quem levantou a quantia em causa e ficou na sua posse - vide o depoimento das testemunhas Sra. F...e G..., que se encontram gravados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal e que acima se transcreveram;

28) Do depoimento da testemunha Sra. F...nunca se poderia ter dado como provado que o arguido praticou o crime pelo qual vem acusado;

29) A mesma afirma que nunca viu o arguido, nem nunca falou com ele, sendo que todos os contactos foram feitos com o pai do Arguido, o Sr. B...;

30) Não resultaram provados em sede de audiência de julgamento os factos vertidos nos pontos 3, 4, 5, 7, 9, 10, 11 e 12 dos factos que na Sentença recorrida vêm dados como provados quanto à acusação;

31) Bem como não resultaram provados os factos vertidos nos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 dos factos, que na Sentença recorrida vêm dados como provados, quanto ao pedido de indemnização civil;

32) Conforme resulta da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento nunca houve qualquer contacto entre a Recorrida e o Recorrente;

33) Todos os contactos foram feitos com o Sr. B..., pai do Recorrente e pessoa diferente do mesmo;

34) Nunca o Meritíssimo Juiz poderia ter dado como provado os pontos da Sentença recorrida acima indicados como se fosse o Recorrente a praticá-los, quando na verdade resultou provado que tais factos foram praticados pelo seu pai, Sr. B...;

35) Não resultou provado que tenha sido o Recorrente a fazer o uso do dinheiro transferido, nem que a conta, para a qual foi transferido o montante aqui peticionado, pertencia ao Recorrente;

36) Também por esse facto não podiam ser dado como provados os pontos acima referidos;

37) O Recorrente nunca foi titular de qualquer conta bancária em exclusivo, nem nunca exerceu qualquer actividade, visto que ainda é estudante e está totalmente dependente dos seus pais;

38) Nunca poderá o arguido devolver qualquer quantia, pois não recebeu nem utilizou essa quantia ou outra qualquer, que não seja a “mesada” dos seus pais;

39) O Recorrente é estudante, encontrando-se a frequentar o 3º ano do curso de Gestão, no ISLA, em Lisboa, vivendo dependente dos pais, pelo que, não aufere quaisquer rendimentos – vide os depoimentos da testemunhas I..., J...e L..., que se encontram gravados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso nesse Tribunal e que acima se transcreveram;

40) Não pode o arguido proceder à devolução do dinheiro, uma vez que não possui qualquer fonte de rendimento, vivendo a expensas dos seus pais, não tendo recebido esse dinheiro, etc;

41) Sempre foi o pai do Recorrente que manteve contactos com a Recorrida, não tendo o Recorrente qualquer conhecimento sobre os factos por que vem condenado – vide depoimento das testemunhas da acusação acima transcritos;

42) Deve ser a Sentença recorrida revogada com todas as consequências legais, o que, desde já e aqui se requer;

43) Caso se mantenha a sentença recorrida, esta levará a que o arguido seja condenado a prisão efectiva, dado que foi condição da não prisão o pagamento integral, acrescido dos juros à taxa legal;

44) Como o arguido não obtém qualquer rendimento da sua actividade, nunca poderá pagar no prazo fixado o valor da condenação, a não ser que lhe calhe o euromilhões;

45) O prazo fixado, e caso o arguido tivesse aproveitado e gasto a quantia referida na sentença, o que não foi o caso conforme acima já se disse e provou, nunca seria suficiente para devolver tal quantia, dado que apenas lhe foi dado um prazo de 6 meses;

46) Esta sentença a manter-se é o mesmo que mandar o arguido para a prisão, pois nunca terá possibilidades de pagar, mesmo que termine o seu curso superior, pois como é sabido não existem empregos disponíveis para os recém licenciados em gestão;

47) Os mais velhos licenciados nestas matérias, até têm dado mal acolhimento às suas teses, pois o nosso país está quase na insolvência, e se não entrar o país, estão a entrar os particulares;

48) Mesmo que se condenasse o arguido a devolver a quantia que é referida na acusação, nunca se poderia fazer depender a suspensão da pena, pelo facto de ter de pagar a referida quantia em seis meses – de referir que o ordenado mínimo nacional é de 485,00 €;

49) Caso o arguido venha a terminar o seu curso até ao final do presente ano lectivo, o melhor que conseguirá, será arranjar um emprego numa pequena empresa, onde estagiará e receberá o ordenado mínimo nacional de 485,00 € mensais;

50) O que descontando depois as despesas de deslocação, alimentação, vestuário, etc., talvez fique com 145,00 € livres ao fim do mês;

51) Tendo em conta a quantia que consta da acusação, facilmente se poderá ver quantos anos seriam necessários para devolver tal quantia – quantia que conforme acima já se disse o arguido não recebeu nem utilizou;

52) Tendo sido fixado na sentença recorrida o prazo de 6 meses, é fácil de ver que é o mesmo que enviar o arguido para a prisão, a cumprir pena de um crime que não cometeu e nem aproveitou;

53) Na sentença recorrida também se diz que resultou provado que o arguido através de carta solicitou o envio de 1.5578,60 €;

54) Embora conste da sentença recorrida, em julgamento não se fez nenhuma prova desta questão, pois ninguém disse em audiência de julgamento que viu o arguido a escrever uma carta à ofendida, e a entregar tal carta nos CTT, ou em mão na sede da ofendida;

55) Não se pode assim dar como provado tal matéria;

56) As testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, e cuja transcrição acima foi feita para melhor apreciação neste recurso, nenhuma delas disse que sabia que o arguido tinha enviado uma carta a pedir a devolução e a indicar o NIB, pois nenhuma das testemunhas alguma vez falou com o arguido, ou sequer o conhecia;

57) Uma coisa é a fotocópia de uma carta, outra coisa é o original da carta, e outra coisa bem diferente, é saber quem escreveu a carta e a assinou, enviou, etc.;

58) No Tribunal não ficou provado quem enviou a carta, quem pediu a transferência, quem recebeu a quantia, quem utilizou essa quantia, etc.;

59) As testemunhas apenas confirmaram que existiu um erro, e que foi feita a transferência de valores para uma conta bancária, por existência desse erro;

60) Teria de se ter provado que o erro foi causado pelo arguido, e que este sabia perfeitamente do erro que a ofendida iria cair, ao fazer o pedido;

61) Pela documentação junta e que foi apreciada em julgamento – a que não foi apreciada em julgamento, não pode ser tida em conta para efeitos de sentença final – nunca se poderá condenar o arguido, pois não praticou nenhum dos factos descritos na acusação e confirmados na sentença recorrida;

62) Nenhuma testemunha sabia quem escreveu as cartas, por quem e como foram enviadas, etc.;

63) Outra coisa não resta do que absolver o arguido da condenação que foi vitima na sentença recorrida;

64) As Instituições BANCÁRIAS e de seguro, como é o caso da ofendida, têm seguros que cobrem todos os erros dos seus funcionários envolvidos nas operações de transferências de valores, etc.;

65) No processo nunca se discutiu esta questão;

66) O mais certo terá sido a ofendia já ter recebido a quantia que reclama, ou parte dela da companhia de seguros, e ter deduzido o pedido de indemnização cível a pedir toda a quantia, como se de facto não existisse nenhum seguro para esse fim;

67) No inquérito deveria ter-se apreciado esta questão, assim como na sentença final;

68) Na sentença final nada se diz, embora se saiba, pois é do conhecimento comum, que as sociedades financeiras, como é o caso da ofendida, têm seguros de protecção para erros de empregados, como parece ser o caso neste processo, e caso se prove a existência desse erro;

69) Nada disto foi discutido neste processo, tendo a ofendida agido como se de facto não tivesse seguro para os erros cometidos com os seus funcionários superiores – neste caso trata-se de funcionários com curso superior;

70) Para no caso de ter existido seguro de responsabilidade civil ou outro, já a ofendida teria recebido o seu dinheiro, e não existe nenhuma responsabilidade do arguido, para no prazo de 6 meses, devolver a quantia que não recebeu e nunca viu nas suas mãos de forma a poder utilizá-la;

71) E caso a ofendia já tivesse recebido a respectiva quantia que pede, já leva a que a mesma seja parte ilegítima neste processo, pois a verificar-se essa circunstância, já a ofendida não tem qualquer prejuízo no erro cometido pelos seus funcionários, e está ressarcida de todos os prejuízos;

72) De referir que se existe erro, ele é apenas dos funcionários da ofendida e não do arguido;

73) O arguido não cometeu nenhum erro ou crime, pois não levantou, nem recebeu, nem utilizou a quantia descrita na acusação;

74) A investigação correu como se de facto o arguido tivesse recebido e utilizado a quantia que consta da acusação e sentença recorrida, quando na verdade não se fez qualquer prova desses factos;

75) Factos esses que são essenciais à descoberta da verdade material para que se possa aplicar ao arguido uma sanção, caso se venha a provar que utilizou a referida quantia;

76) O arguido não deixa de ainda referir que tendo em conta o descrito na acusação, e a matéria apreciada em julgamento, nunca o arguido poderia ser condenado da forma que o foi, pois a norma legal não permite que a condenação possa ser feita daquele modo;

77) Não está provado que o arguido foi sequer notificado para pagar a quantia descrita na condenação, pois quanto muito o que poderá ser dado como provado, que existiu uma reunião em Fátima no escritório do pai do arguido, em que as testemunhas da acusação, inquiridas em julgamento, confirmaram que estiveram presentes, e o arguido não, e que o pai do arguido subscreveu o documento de fls., e não o arguido;

78) O disposto no artigo 209º, nº 1 do CP, não pode ser aplicado a este caso em concreto, por falta de fundamento e de pressupostos legais;

79) Não se tendo provado que o arguido beneficiou da transferência, ou que deu ordem para essa transferência, ou que prometeu pagar depois, ou que utilizou ele próprio o montante, etc. – não pode de forma alguma ser condenado, como de facto foi neste caso em concreto;

80) A condenação do arguido não poderá alguma vez ser mantida, por erro de interpretação da prova testemunhal inquirida em julgamento, assim como por erro de interpretação da prova documental apreciada em audiência de julgamento, e ainda pelo facto da aplicação e interpretação da norma elgal ao caso em concreto – artigo 209º, nº 1 do CPP;

81) Quanto muito, esta questão poderia e deveria ser resolvida no for civil, nunca criminal;

82) Para que pudesse existir crime, teria forçosamente de ter existido uma intervenção do arguido;

83) Em nenhuma parte do processo está provado que o arguido interveio em algum momento nos factos descritos na acusação, nomeadamente na elaboração da proposta do seguro, no pedido de reembolso, no recebimento da quantia, na utilização da valor transferido, em reuniões com a ofendida, na subscrição da carta a pedir o pagamento em prestações, etc.

84) O arguido nunca poderá ser condenado;

85) No nosso direito não é possível condenar-se alguém, POR ORA - porque os documentos foram feitos e utilizados por terceiros em nome do arguido, sem que este alguma tivesse intervenção ou agido em sem nome ou em nome de outrem;

86) A sentença recorrida não poderá manter-se., pelas razões supra aduzidas;

87) Deverá a sentença recorrida ser REVOGADA, com todas as consequências legais daí resultantes;

88) Não sabendo tais testemunhas se a conta bancária para onde foi feita a transferência, era apenas movimentada pelo arguido se pelo arguido juntamente com outras pessoas, ou apenas por outras pessoas que não o arguido, etc., etc., etc.;

89) No nosso direito, apenas poderá ser condenado o arguido que, em julgamento, se provem os factos descritos na acusação;

90) E que esses factos sejam suficientes para condenar o arguido;

91) O que não foi o caso nos presentes autos;

92) Nenhuma das testemunhas inquiridas em julgamento conhecia o arguido, tendo inclusivamente as testemunhas referido que a carta de fls., foi feita na presença delas e assinada pelo seu pai B..., e não pelo arguido que nunca tinham visto até ao dia do julgamento;

93) Também não se poderá ter dado como provado que o arguido tenha celebrado um contrato de seguro com a assistente e ofendida E..., no valor de 12.238,50 €, com diversos fundos em diferentes percentagens, pois nenhuma das testemunhas inquiridas e arroladas pela acusação sabia e conhecia tal questão, tendo dito todas elas que não conheciam o arguido, nem quem celebrou o contrato, e em que condições foi celebrado o referido contrato;

94) A matéria constante dos artigos 1 e 2 da matéria dada como provada, terá de ser alterada no sentido de não provado, pelas razões supra aduzidas;

95) A Sentença recorrida é nula nos termos do artigo 379º do Código do Processo Penal;

96) Na Sentença recorrida, embora de faça essa referência, porém, pelas declarações das testemunhas inquiridas, não se poderia efectivamente condenar o Arguido, pois nenhuma das testemunhas conhece, viu ou falou com o Arguido, conforme já se disse, e portanto não se pode de forma alguma condenar o Arguido deste modo;

97) Dizer-se como se diz na Sentença recorrida, é o mesmo que nada se dizer, pois fartamente se verifica que pelo depoimento das testemunhas, não se pode aferir que o Arguido tenha cometido os factos dados como provados e que são referidos na Sentença;

98) Tem forçosamente a Sentença recorrida de ser Revogada com todas as consequências legais para a acusação, por erro de apreciação das provas testemunhais prestadas em audiência de julgamento, bem como de todos os elementos juntos ao processo, nomeadamente as cartas juntas aos autos;

99) Para que pudesse o arguido ser condenado, seria necessário saber-se quem levantou de facto a quantia, para onde foi transferida essa quantia, onde está essa quantia, etc;

100) A investigação deveria ter sido eficaz, no sentido de apurar quem de facto levantou a quantia, quem a gastou, ou até para onde foi transferida e utilizada essa quantia, ou se de facto essa quantia foi utilizada e por quem;

101) A investigação nada investigou, e deu como provado nessa fase o que consta da acusação, depois a sentença recorrida deu como provado o que constava da acusação, sem ter em conta o que se provou em julgamento e quais os documentos que foram apreciados nessa fase processual, assim como as declarações prestadas pelas testemunhas da acusação;

102) Se de facto qualquer das testemunhas nunca viu o arguido, não o conhecia, nunca falou com ele e até o telefone indicado na apólice era de seu pai, nunca poderá o arguido ser condenado de forma alguma;

103) A Sentença recorrida viola o disposto no artigo 410º do C.P.P., e que esse Venerando Tribunal pode apreciar as questões postas em crise, nos termos do n.º 2 desta disposição processual/legal;

104) Na verdade, na Sentença recorrida existe erro notório na apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, erro notório da apreciação dos documentos juntos e apreciados em julgamento, etc.;

105) Os documentos que não foram apreciados em julgamento não podem ser tido em conta na sentença final, como, de facto, sucedeu com alguns desses documentos;

106) Deixando o Meritíssimo Juiz de se pronunciar sobre estas questões que devesse apreciar, nomeadamente as já alegadas nesta peça processual, ou apreciando-as superficialmente, e com bastantes lacunas, como acima já se disse;

107) Lendo, atentamente, a Sentença recorrida, nesta parte, ou noutra parte qualquer, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo da condenação do arguido.

108) Isto é, o (Tribunal) o Meritíssimo Juiz com a decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos do arguido, e não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e sobretudo ao não apreciar criticamente todas as provas produzidas em audiência de julgamento, nomeadamente o depoimento das testemunhas arroladas pela acusação, ou fundamentar expressamente o razão da sua não apreciação;

109) Tem forçosamente de ser alterada a matéria de facto dada como provada nos pontos 1, 2, 3, 5, 7, 9, 10, 11 e 12 dos factos que na Sentença recorrida vêm dados como provados quanto à acusação e os factos vertidos nos pontos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 dos factos que na Sentença recorrida vêm dados como provados quanto ao pedido de indemnização civil, atendendo aos depoimentos acima transcritos, nos termos do artigo 412º do C.P.P;

110) Dúvidas não existem de que assim, o arguido não foi tratado de forma igual a outros cidadãos perante a lei;

111) Sendo o arguido primário, boa pessoa, sem quaisquer rendimentos, conforme resultou provado na Sentença recorrida, como nunca poderia aplicar-se uma condenação da forma e modo como foi;

112) O nosso Código é no sentido de recuperar os arguidos primários, e apenas se podem condenar os arguidos, quando a conduta destes não reúnem os requisitos para a absolvição, o que não é o caso;

113) A Sentença é nula, por interpretação e aplicação deficiente das normas legais citadas, conforme já acima se disse e provou;

114) V. Exas. certamente REVOGARÃO o Sentença recorrida, absolvendo o arguido do crime de que foi condenado, por ser de LEI, DIRETO E JUSTIÇA;

115) A Sentença recorrida viola:

a) Artigos 209º, nº 1 do CP;

b) Artigos 374º, nº 2, 375º, 377º, 379º e 410º do CPP,

c) Artigos 13º, 205º, 207º, 208º da CRP.

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D) O Ministério Público junto da 1ª instância, no dia 2/7/2012, apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido no dia 5/6/2012, defendendo a sua improcedência e, sem apresentar conclusões, argumentou, em resumo, o seguinte:

1. O crime em apreço consuma-se no momento em que o agente se apropria do bem, quando dispõe da coisa animo domini.

                2. Mantém-se a competência territorial na comarca de Ourém.

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                E) A Assistente “ E... – COMPANHIA DE SEGUROS DE VIDA; S.A.”, em 5/7/2012, veio responder ao recurso apresentado pelo arguido no dia 5/6/2012, defendendo a sua improcedência, nos seguintes termos:

                1. No decurso da Audiência de Discussão e Julgamento de 14 de Maio de 2012, o Arguido apresentou requerimento nos autos, requerendo que fosse declarada a incompetência territorial do Tribunal de Comarca de Ourém, alegando, então, que os factos da acusação tiveram lugar na sede da Assistente E... S.A., localizada em Lisboa pelo que o tribunal competente sempre teria de ser o Tribunal Criminal da comarca de Lisboa.

                2. Após o Ministério Público e a Assistente se terem pronunciado sobre o requerimento referido, o Mmo. Juiz proferiu despacho de indeferimento, fundamentando, em suma, que a consumação do crime de apropriação ilegítima, p. e p. no artigo 209.º, n.º 1, do C. Penal, se verificou com a transferência para a conta bancária do Arguido que se encontra domiciliada na localidade de Freixianda que pertence à Comarca de Ourém.

                3. Por discordar do indeferimento do requerimento apresentado, vem o Arguido do mesmo apresentar recurso. Alega, em suma, que a consumação do crime de que foi acusado e pela prática do qual foi condenado o Arguido se verifica quando o lesado “abre mão da coisa ou do valor, sem que a partir daí possa controlar o seu destino”. Mais refere que, “tendo em conta que a quantia, objecto da transferência bancária, deixou de estar na disponibilidade da lesada no preciso momento em que procedeu à transferência bancária para a conta do arguido, o crime ficou consumado com a transferência bancária efectuada pela lesada.” Concluindo, entende que o Tribunal competente para julgar o processo é o Tribunal da Comarca de Lisboa.

                4. Mais requer que o despacho de indeferimento seja REVOGADO, alegando que o mesmo se encontra ferido de nulidade, nos termos do disposto nos artigos 379.º 3 374.º, n.º 2, do CPP. Alega, assim, que o despacho de indeferimento proferido pelo Mmo. Juiz, na audiência de julgamento, se encontra ferido de nulidade por falta de fundamentação e insuficiente apreciação das normas aplicáveis ao caso concreto, violando também os artigos 359.º e 410.º, do CPP.

                5. Entende a Assistente não caber qualquer razão ao Arguido quando alega que a consumação do crime de apropriação ilegítima se consuma com a operação realizada pela Assistente, quando emite a ordem de transferência bancária. Trata-se de uma conclusão que, para além de desvirtuar o tipo de crime de apropriação ilegítima, não encontra qualquer base de fundamentação.

                6. O artigo 209.º, do C. Penal, refere que:

                “1. Quem se apropriar ilegitimamente de coisa alheia que tenha entrado na sua posse ou detenção por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade (…)”.

                7. Tal como melhor consta do supra citado artigo, um dos elementos essenciais do tipo do crime é o acto de apropriação por parte do agente. É o elemento que dá início à descrição do tipo, o que, obviamente, é compreensível, tendo em conta que é o “acto de apropriação” que se reprova e que se pretende punir. Obviamente não se trata de um qualquer acto de apropriação, sendo essencial que o mesmo seja “ilegítimo”, em relação ao agente.

                8. É certo que o acto que levou à entrada do bem na posse ou detenção do agente, no caso a transferência bancária, também é relevante porquanto permite diferenciar o tipo de crime de apropriação ilegítima de outros semelhantes (por ex. abuso de confiança ou furto), sendo característica essencial que essa entrada tenha tido lugar independentemente da vontade do agente (no caso, do Arguido). Contudo, e quando nos referimos em concreto à consumação do crime de apropriação ilegítima, é o “acto de apropriação” por parte do agente que fecha o ciclo de eventos que compõem a prática deste crime. Sem que haja apropriação por parte do agente, não se verifica a prática do crime.

                9. Por outro lado, a “apropriação” apenas acontece quando o agente se recusa a devolver o bem que entrou na sua posse ou age de forma que evidencia que não é sua intenção devolver o bem alheio ao legítimo proprietário ou a terceiro a quem essa entrega seja devida. Contrariamente ao afirmado pelo Arguido no Recurso, o crime não se consuma com a realização da transferência bancária ordenada pela Assistente/Lesada, correspondendo este apenas ao momento em que o bem alheio entra na posse ou detenção do arguido. Tivesse o Arguido devolvido à Assistente a quantia que foi depositada na sua conta bancária, sem fundamento, e o crime não se consumaria.

                10. O Arguido reconhece nas suas Alegações que a transferência bancária foi realizada pela Assistente “para a conta bancária do Arguido”, porém apresenta as conclusões erradas, porquanto a consumação do crime apenas se verificou com a recusa do Arguido em devolver à Assistente a referida quantia, mantendo-a em seu poder, no caso, na sua conta bancária domiciliada numa instituição bancária localizada em Freixianda.

                11. O Arguido alega, ainda, que o despacho proferido pelo Mmo. Juiz, indeferindo o Requerimento apresentado, se encontra ferido de nulidade por violar o disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP. Entende, assim, o Arguido que o despacho recorrido apresenta “erro de apreciação das normas aplicáveis ao caso concreto”, sendo ainda insuficiente a apreciação das normas aplicáveis ao caso concreto, afirmando mesmo que “Dizer-se como se diz no despacho recorrido é o mesmo que nada se dizer (…)”.

                12. Ora, salvo melhor opinião, o despacho proferido pelo Mmo. Juiz e de que recorre o Arguido é bastante claro e explicita, de forma indubitável, o entendimento do Tribunal quanto ao local da consumação do crime, que define a escolha do tribunal competente para apreciar os autos. Se o Arguido discorda da apreciação do Mmo. Juiz, então falamos de uma outra questão que é a divergência de opiniões. Mas isso não consubstancia falta de fundamentação ou insuficiência de apreciação por parte do Tribunal!

                13. De salientar, ainda, que os fundamentos da condenação do Arguido, como o próprio refere no requerimento apresentado, encontram-se na sentença e não no despacho proferido que apenas veio indeferir um pedido por este formulado na audiência e que não consubstancia uma condenação.

                14. Conforme bem define o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, a fundamentação da decisão deve consistir numa “exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.” Não vemos como possa o Arguido alegar que o despacho recorrido não cumpre o disposto no artigo supra citado.

                15. Salvo melhor entendimento, parece-nos evidente que a pretensão do Arguido nas Alegações apresentadas não foi bem sucedida porquanto, a existir falta de fundamentação, apenas poderá ser por parte do Arguido no recurso apresentado. De facto, o Arguido alega várias “deficiências” do despacho recorrido, sem contudo explicar de forma clara ou sustentar as suas alegações com factos ou elementos de direito.

                16. Concluímos, assim, que não assiste razão alguma ao Arguido no recurso apresentado, o qual, estando ferido de fundamento legal, deverá ser julgado improcedente por não provado, mantendo-se a decisão recorrida.

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                F) A Assistente “ E... – COMPANHIA DE SEGUROS DE VIDA; S.A.”, em 17/9/2012, veio responder ao recurso apresentado pelo arguido no dia 26/6/2012, defendendo a sua improcedência, nos seguintes termos:

1. Não pode a Assistente E... deixar de se pronunciar sobre o Requerimento e Alegações de Recurso apresentadas pelo Arguido, não só pela certeza quanto à total falta de fundamento, mas também por considerar que as mesmas atentam de forma ofensiva contra o princípio do direito de acesso à justiça e a boa utilização que dele deve ser feita.

2. A Assistente reitera o que anteriormente expôs no que diz respeito à alegada incompetência territorial do tribunal a quo, aguardando que este Tribunal da Relação de Coimbra se pronuncie quanto a esta matéria.

3. O direito ao silêncio consubstancia um dos muitos direitos atribuídos ao Arguido em Processo Penal (mais concretamente no artigo 61º, nº 1, do CPP), tendo como base o Artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.

4. Como bem refere o Arguido nas Alegações de recurso apresentadas, “O direito do arguido ao silêncio impõe que essa circunstância não pode ser valorada contra si, como indício de culpabilidade.” Efectivamente, não pode o julgador deduzir do silêncio do Arguido a confissão ou admissão da autoria do crime, ou que o exercício de tal direito apenas é invocado pelo Arguido como forma de fugir ao dever que sobre este impende de responder à verdade a todas as questões que lhe sejam colocadas, obrigando-o a confessar a autoria de um crime.

5. Discordamos, porém, da interpretação feita pelo Arguido nas Alegações de recurso apresentadas, no que diz respeito à interpretação feita pelo Mmo Juiz a quo, claramente explanada na sentença recorrida.

6. Contrariamente ao que é referido pelo Arguido, e salvo melhor opinião, não entendemos que os comentários referidos pelo Mmo Juiz na sentença recorrida quanto à indiferença do Arguido perante aos factos de que vem acusado, bem como à prova por demais evidente que foi recolhida em processo de inquérito, consubstancie uma valoração negativa do exercício do direito ao silêncio. Parece-nos, na verdade, bastante evidente que o Mmo Juiz a quo não atribui a autoria do crime de apropriação ilegítima ao Arguido pelo seu silêncio quanto aos factos, baseando-se outrossim na prova produzida.

7. Não é verdade que o tribunal a quo tenha retirado consequências probatórias do silêncio! Para que tal acontecesse, esse facto teria de ser salientado na apreciação da prova explanada na sentença, sendo ainda feita uma apreciação da forma como tal silêncio poderia revelar a evidência da autoria dos crimes (motivação da decisão de facto), o que não acontece.

8. Não deixa, contudo, de ser evidente que nada dizendo ao logo de todo o processo, o Arguido, não só não colabora com o bom andamento do processo, mas também não expressa arrependimento que possa existir! E certamente não será expectável que, perante a evidência das provas reunidas no processo de inquérito, todas elas do pleno conhecimento do Arguido, e ainda de todos os factos que constavam na Acusação, o tribunal não possa considerar que a atitude revelada em audiência pelo Arguido seja valorada na apreciação da culpa, quando a autoria é evidente.

9. Não foi o silêncio do Arguido que permitiu ao tribunal a quo concluir pela prova integral dos factos da acusação. Tal silêncio apenas foi considerado em termos da valoração da culpa, evidenciando a ausência de arrependimento revelada pelo Arguido quando era evidente a autoria dos factos.

10. Tal como a ausência de antecedentes criminais e o facto de ser um estudante do ensino superior e “bom rapaz” são relevantes para a determinação da medida da pena, também o será a demonstração clara de arrependimento ou a sua ausência. Ao remeter-se ao silêncio, apenas poderia o tribunal a quo concluir pela ausência de arrependimento do Arguido, como referido.

11. Atente-se, neste sentido, o Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.01.2012: “A génese do direito ao silêncio não assenta num intuito de beneficiar o arguido, antes decorrendo do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que lhe são imputados, facultando ao arguido um comportamento que, em última análise, poderá obstar a que se auto-incrimine. No entanto, se o uso do direito ao silêncio não poderá em caso algum prejudicar o arguido, também o não deverá beneficiar! Aliás, não se vislumbra nenhuma razão de ordem lógica, ou mesmo jurídica, para que um arguido que se refugia no direito ao silêncio deva ser beneficiado, porventura na mesma medida dos arguidos que colaboram com a justiça ou que manifestam sincero arrependimento. O silêncio constitui, é certo, um direito do arguido, mas não se traduz numa circunstância atenuante; não implica diminuição da culpa e também não reduz a ilicitude do facto. Logo, o silêncio não beneficia o arguido; apenas o não prejudica! Ou seja, também neste particular aspecto não assiste razão ao recorrente, já que não ocorre violação do art. 61º, nº 1, al. d).” (www.dgsi.pt)

12. Entender que o silêncio, ainda que sem qualquer valor de prova da culpa ou inocência do Arguido, não pode ser analisado e considerado na avaliação da atenuação ou agravamento da pena, em comparação com os Arguidos que revelam arrependimento e colaboram com o tribunal, seria desvirtuar por completo este princípio.

13. Em suma, e salvo melhor entendimento, parece-nos que a sentença recorrida não viola de forma alguma o princípio do direito ao silencio ou do in dúbio pró reo, não sendo de admitir a revogação da sentença por conta do mesmo.

14. Considerando a clareza da sentença recorrida na exposição da fundamentação de facto e de direito, não vemos como pode Arguido alegar que a prova produzida “não deu ao tribunal a quo as necessárias certezas da culpabilidade do Agente”, afirmação que nos parece bastante ousada e descontextualizada, tendo em conta que foi com base na produzida que o tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto.

15. Não foi unicamente a prova testemunhal apresentada pelo Ministério Público e pela Assistente que permitiu concluir pela prova dos factos da acusação, mas a conjugação dessa prova com a prova documental que consta dos autos, recolhida durante o inquérito realizado e que é de pleno conhecimento do Arguido.

16. O Arguido refere, ainda que sem identificar de que documentos fala, que “Os documentos que não foram apreciados em julgamento, não podem ser tidos em conta na sentença final, como de facto sucedeu com alguns desses documentos.” Entende a Assistente que o Arguido poderá querer referir-se aos documentos que identificam o titular da conta bancária para onde foi realizada a transferência do montante de € 129.999,19 pela Assistente e que apresenta o nome do Arguido A..., mas prefere evitar salientar tal documento.

17. Os documentos considerandos na sentença constam do processo de inquérito e são plenamente conhecidos do Arguido, pois caso não o fossem, certamente este o faria saber. Consequentemente, não houve qualquer violação do direito ao contraditório por parte do Arguido que em tempo se poderia ter pronunciado sobre os mesmos.

18. A decisão proferida na sentença recorrida, corresponde ao trabalho realizado pelo Mmo Juiz a quo na apreciação e valoração critica da prova que foi produzida, conforme exigido no artigo 374º, nº 2 e de acordo com o princípio do artigo 127º, ambos do CPC.

19. Parece-nos que, tal como é exigível, o Mmo Juiz a quo fez a sua apreciação dos factos que constam da Acusação, analisou a documentação constante dos autos e os depoimentos das testemunhas apresentadas, misturando ainda a sua experiência e sensibilidade crítica. A final, conjugados todos os elementos, o Mmo Juiz a quo entendeu que era evidente a condenação do Arguido por também ser evidente que era este quem tinha praticado os factos da acusação que consubstanciam o crime de apropriação ilegítima, pp no artigo 209º do CP.

20. Não cabe razão ao Arguido quando refere que a indicação expressa da identificação do Arguido como titular da conta para onde foi realizada a transferência bancária do montante de € 129.999,19 pela Assistente, evidente na documentação constante dos autos, consubstancia uma “prova indirecta” de tal titularidade. Prova mais directa do que esta parece-nos difícil!

21. De facto, para além da identificação do Arguido na referida conta, consta ainda dos autos um documento assinado pelo Arguido e remetido para a Assistente, com os dados da referida conta para a realização da transferência do montante de € 1.578,60, cuja assinatura foi confrontada com o documento de identificação do Arguido, no qual consta a sua fotografia, conforme explicado pela testemunha G..., cujo depoimento foi transcrito pelo Arguido no requerimento das Alegações de Recurso.

Este conjunto de factos certamente consubstancia mais do que meras coincidências.

22. Perante estes factos, é certamente fácil presumir que a quantia de € 129.999,19 foi transferida para o Arguido, para uma conta por este titulada, e que foi este quem se apropriou da mesma!

23. O Arguido alega que os factos constantes da Acusação foram praticados pelo seu Pai, Sr. B..., sendo certo que, por outro lado, também alega que vive da mesada que os seus pais lhe dão. Ou seja, acusa o pai de ter praticado factos que consubstanciam ilícito criminal, mas ao mesmo tempo não aparenta afastamento do Pai, de quem depende financeiramente, o que seria compreensível já que é o Arguido quem está a ser julgado por factos alegadamente praticados pelo Pai.

24. Todo o discurso do Arguido apresentado nas Alegações de Recurso revela falta de coesão e sentido, tendo este escolhido um estilo de apresentação dos argumentos totalmente vazio de organização e sentido. É que não basta ao Arguido nas Alegações apresentadas alegar que “não ficou provado”. Também sobre este pende o dever de fundamentar as suas Alegações de forma a permitir ao julgador compreender o fundamento das suas conclusões e da sua opinião. Algo que não soube fazer!

25. É totalmente descabido alegar ou pedir que se conclua que por ser estudante o Arguido não pode ser titular de uma conta bancária. Também não faz sentido referir que “teria de se ter provado que o erro foi causado pelo arguido, e que este sabia perfeitamente do erro que a ofendida iria cair, ao fazer o pedido” (entenda-se, o pedido de pagamento do montante de € 1.578,60 pela Assistente). Na verdade, parece-nos que, a provar-se esse facto, outro ilícito criminal estaria em causa.

26. Para prova dos factos constantes da Acusação e, assim, da prática do crime de apropriação ilegítima do montante de € 129.999,19 pelo Arguido A..., não é exigível que fique provado que o Arguido utilizou o montante em causa, onde o utilizou e se foi ele quem o utilizou!

27. Tal como melhor consta do artigo 209º do CP, um dos elementos essenciais do tipo do crime é o acto de apropriação por parte do agente. É o elemento que dá início à descrição do tipo, o que obviamente é compreensível tendo em conta que é o “acto de apropriação” que se reprova e que se pretende punir. Obviamente não se trata de um qualquer acto de apropriação, sendo essencial que o mesmo seja “ilegítimo”, por parte do agente.

28. Por outro lado, a “apropriação” apenas acontece quando o agente se recusa a devolver o bem que entrou na sua posse ou age de forma que evidencia que não é sua intenção devolver o bem alheio ao legítimo proprietário, ou a terceiro a quem essa entrega seja devida. Ou seja, tivesse o Arguido devolvido à Assistente o montante que foi depositado na sua conta, sem fundamento, e o crime não se consumaria!

29. O que é preciso provar, como se fez, é que o Arguido recebeu o referido montante e não o devolveu a quem de direito, no caso a Assistente, apesar de saber que tinha esse dever! Se o Arguido utilizou o referido montante para benefício próprio ou de terceiros, é uma questão à qual apenas o Arguido pode responder mas que também apenas àquele diz respeito.

30. O Arguido alega, por um lado, que não pode devolver o montante de € 129.999,19 à Assistente uma vez que não possui qualquer fonte de rendimento, para além da mesada dos pais, sendo certo que também não vislumbra encontrar uma fonte de rendimento em breve, tendo em conta que “como é sabido, não existem empregos disponíveis para os recém-licenciados em gestão”. Por outro lado, acaba por admitir como possível “arranjar um emprego numa pequena empresa, onde estagiará e receberá o ordenado mínimo nacional de 485,00 € mensais”, plano que parece bastante organizado e optimista, mas descontadas todas as despesas que o Arguido irá ter, “apenas ficará com 145,00 € livres ao fim do mês”.

31. Obviamente a Assistente poderia até revelar alguma preocupação ou compreensão pela “delicada” situação do Arguido, não fosse o facto deste apenas se encontrar nesta situação “difícil” por ter utilizado uma quantia elevada que sabia não lhe pertencer e que, eventualmente, teria de devolver.

32. Discordamos que a pena aplicada seja excessiva ou que viole qualquer normativo legal. Se o Arguido não prevê que haja qualquer possibilidade de conseguir ressarcir a Assistente dos danos a esta causados, certamente não pode esperar que os seus actos sejam desvalorizados e o crime praticado integralmente desconsiderado.

33. Na verdade, até poderíamos considerar que esse facto agrava ainda mais a culpa do Arguido pois, ao despender o montante que recebeu, sabendo que não o poderia repor, actuou com dolo evidente. Esperou o Arguido, como evidencia nas suas Alegações, que por não ter rendimentos, tudo se passaria sem consequências. Salvo melhor entendimento, tal não pode nunca acontecer!

34. O grau de culpa evidenciado pelo Arguido na forma como actuou e tem actuado ao longo do processo, quando a prova da autoria do crime é por demais evidente, deve afastar outras atenuantes que pudessem ser consideradas.

35. Se a situação económica do Arguido e a ausência de antecedentes devem ser tidas a seu favor, também a recusa do Arguido em reembolsar a Assistente, fazendo claro que não tem esperança sequer de o conseguir, bem como a sua posição nos autos devem ser tidas contra aquele.

36. Como bem refere o Mmo Juiz a quo na sentença recorrida, o Arguido agiu com dolo directo e culpa intensa, sabendo de forma clara que a sua conduta não era permitida e sequer mostrou arrependimento pelos factos que praticou. Acresce que, mantém a sua recusa na reparação do dano, evidenciando nas Alegações apresentadas a sua esperança de não sofrer qualquer consequência já que não tem como ressarcir a Assistente de uma quantia que, aparentemente, já terá sido despendida!

37. Salvo melhor opinião, entende a Assistente que, mantendo-se a recusa de ressarcimento dos danos por esta sofridos, a suspensão da execução da pena de prisão não seria suficiente para acautelar a finalidade da punição. Por todo o exposto, deverá manter-se a pena aplicada nos termos expostos na sentença recorrida.

38. O Arguido alega, ainda, que a sentença recorrida, se encontra ferido de nulidade por violar o disposto nos artigos 379º e 374º, nº 2 do CPP. Entende, em suma, que pelo depoimento das testemunhas não se pode aferir que o Arguido tenha cometido os factos dados como provados e que são referidos na sentença, e que a sentença recorrida evidencia:

“- Erro notório na apreciação da prova produzida em audiência de julgamento;

- Erro notório na apreciação dos documentos juntos e apreciados em julgamento.

- Etc.”

39. Tal como referido anteriormente, os documentos que constam do processo de inquérito e que são conhecidos do Arguido, também devem ser considerados como prova, ainda que não tenha sido analisados em audiência de julgamento. Por outro lado, não vemos que erros possam ter sido realizados pelo Mmo Juiz a quo na sentença recorrida, sendo evidente que o próprio Arguido tem dificuldade em identificá-los nas suas confusas Alegações de Recurso.

40. Se o Arguido discorda da apreciação do Mmo Juiz, então falamos de uma outra questão que é a divergência de opiniões. Mas isso não consubstancia falta de fundamentação ou insuficiência de apreciação por parte do tribunal!

41. Contrariamente ao que é referido nas Alegações de recurso, não nos parece que tenha existido qualquer omissão de pronúncia por parte do Mmo Juiz no despacho recorrido, o qual se revela bastante claro para o entendimento comum.

42. Conforme bem define o artigo 374º, nº 2 do CPP, a fundamentação da decisão deve consistir numa “exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”

Não vemos como possa o Arguido alegar que a sentença recorrida não cumpre o disposto no artigo supra citado.

43. Concluímos, assim, que não assiste razão alguma ao Arguido no recurso apresentado o qual, estando ferido de fundamento legal, deverá ser julgado improcedente por não provado, mantendo-se a decisão recorrida.

44. As apreciações feitas pelo Arguido quanto à necessidade de julgar, nestes autos, a Assistente para apurar se esta recebeu o montante devido pelo Arguido por outros meios, são claramente atentatórias da boa fé, para além de injuriosas.

45. Ao alegar de forma expressa que “O mais certo terá sido a ofendida já ter recebido a quantia que reclama, ou parte dela da companhia de seguros, e ter deduzido o pedido de indemnização cível a pedir toda a quantia, como se de facto não existisse nenhum seguro para esse fim” revela de forma clara o carácter do Arguido e a ausência de noção dos factos em análise.

46. Entendendo que não deve ser condenado nos presentes autos caso se prove que a Assistente recebeu o montante de que se apoderou o Arguido através de terceiros, salienta ainda mais a falta de consciência que o Arguido apresenta relativamente à gravidade dos factos praticados.

47. Essa inconsciência apenas agrava, em nosso entender, a culpa do Arguido e evidencia a razão do tribunal a quo na sentença proferida.

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G) O Ministério Público junto da 1ª instância, no dia 24/9/2012, apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido no dia 26/6/2012, defendendo a sua improcedência e, sem apresentar conclusões, argumentou, em resumo, o seguinte:

1. Mantém-se a competência territorial na comarca de Ourém.

                2. O Meritíssimo Juiz não realizou qualquer extrapolação do silêncio do arguido para, deste, concluir pela sua autoria na prática dos factos

                3. O recurso às presunções naturais não viola o princípio in dubio pro reo,

                4. Não foi violado qualquer princípio ou regra norteadora da apreciação da prova em processo penal

   5. A sentença apresenta-se devidamente fundamentada.

6. Considerando que ao arguido foi aplicada pena de prisão de nove meses não poderia o M.mº Juiz de Julgamento aplicar o período de suspensão de nove meses, mas de um ano, atento o limite mínimo inultrapassável previsto no supra descrito artigo 50º, n.º 5, do Código Penal, razão pela qual se impõe a alteração do período de suspensão para o período de um ano, o que se requer.

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                Os recursos, em 9/10/2012, foram admitidos,

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 11/12/2012, emitiu douto parecer no qual defendeu a improcedência dos recursos, acompanhando os argumentos usados nas respostas do Ministério Público junto da 1ª instância.

Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, tendo o arguido, em 19/12/2012, exercido o direito de resposta, sem que nada de novo fosse trazido aos autos. 

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Decisão Recorrida:                                                                                                                                     “ (…)

2. Fundamentação de facto:

2.1 Factos provados:

A. Da acusação:

1. Em 28.12.2007, o arguido celebrou contrato de seguro com a sociedade E... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., contrato de seguro esse denominado E... – Multioportunidades, no valor de 12.238,50 (doze mil duzentos e trinta e oito euros e cinquenta cêntimos).

2. O mencionado contrato de seguro foi constituído com diversos fundos e em diferentes percentagens.

3. Em 23.12.2009, o arguido recebeu uma carta remetida por E... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., informando-o de que o Fundo Autónomo Natural havia sido encerrado por decisão do Conselho de Administração da M....

4. Nessa mesma carta, foi solicitado ao arguido que, em relação ao montante de 1.578,60 (mil quinhentos e setenta e oito euros e sessenta cêntimos), esclarecesse onde pretendia investir o mesmo ou, em alternativa, indicasse o NIB para efeitos de crédito do aludido valor na sua conta bancária.

 5. Na sequência desta comunicação, em 06.01.2010, o arguido remeteu à E... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., um fax no qual declarou que o mencionado fundo deveria ser transferido/creditado para a sua conta bancária, pelo que optou por indicar o seu NIB para crédito da sua conta.

6. Em 14.01.2010., a E... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., em vez de transferir o montante de 1.578,60 (mil quinhentos e setenta e oito euros e sessenta cêntimos), como pretendia, e devido ao arguido, transferiu, por lapso, o valor de 129.999.19 (cento e vinte e nove mil novecentos e noventa e nove euros e dezanove cêntimos).

7. Logo que foi detectado o erro, a E... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., procurou que o arguido devolvesse o excesso de valor a que tinha direito.

8. Assim, em 09.03.2011, por contacto telefónico, e em 11.03.2011, por escrito, a E... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., solicitou a devolução do aludido montante.

9. O arguido, em vez de devolver o referido montante a que não tinha direito e de cujo depósito em conta beneficiou por lapso, usou-o como entendeu, encontrando-se a E... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., privada do mesmo até á actualidade.

10. Sabia o arguido que o montante transferido para a sua conta na parte em que excedia 1.578,60 (mil quinhentos e setenta e oito euros e sessenta cêntimos) não lhe pertencia e que havia sido transferido para a sua conta por mero lapso, não tendo o mesmo qualquer direito a tal montante e que, ao usá-lo e gastá-lo, fazia tal montante seu, sem que tivesse qualquer fundamento para assim proceder.

11. Quis agir deste modo.

12. Sabia que a sua conduta não lhe era permitida porque proibida por lei, tendo agido de forma livre, deliberada e consciente.

13. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

14. É solteiro e não tem filhos.

15. Declara residir em casa de seus pais.

16. Estuda gestão.

17. É tido por quem o conhece como sendo “bom rapaz”.

B. Da contestação:

Nada a consignar nesta parte, posto que a tese desenvolvida pelo arguido consiste apenas e só na negação pura da factualidade vertida na acusação, factualidade essa que mereceu acolhimento na íntegra.

C. Do pedido de indemnização civil:

1. A Assistente é uma companhia de seguros que exerce a sua actividade no território português.

2. O contrato de seguro celebrado entre o arguido e a Assistente E... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., foi constituído com diversos fundos, em diferentes percentagens.

3. A Assistente realizou as diligências necessárias para a transferência do montante existente no fundo de seguro do arguido.

4. O arguido, no primeiro contacto estabelecido entre ele e a E... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., informou que aceitava proceder à devolução do montante de 128.420,59 (cento e vinte e oito mil quatrocentos e vinte euros e cinquenta e nove cêntimos), correspondente ao excesso do montante que lhe era efectivamente devido.

5. O arguido apresentou à Assistente um plano de pagamento em prestações do montante de 128.420,59 (cento e vinte e oito mil quatrocentos e vinte euros e cinquenta e nove cêntimos), com os seguintes termos: 1ª prestação: dez mil euros, com pagamento em Abril de 2010; 2ª prestação: dez mil euros, com pagamento em Maio de 2010; 3ª prestação: dez mil euros, com pagamento em Junho de 2010; 4ª prestação: dez mil euros, com pagamento em Julho de 2010; 5ª prestação: trinta mil euros, com pagamento em Agosto de 2010, e 6ª prestação: trinta e oito mil quatrocentos e vinte euros e nove cêntimos, com pagamento em Setembro de 2010.

6. O arguido nunca efectuou o pagamento à Assistente por conta da devolução do montante de 128.420,59 (cento e vinte e oito mil quatrocentos e vinte euros e cinquenta e nove cêntimos).

7. Posteriormente, na tentativa de resolver o problema, o arguido sugeriu a realização de um empréstimo hipotecário pela Assistente E... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., pelo montante de 128.420,59 (cento e vinte e oito mil quatrocentos e vinte euros e cinquenta e nove cêntimos).

8. O empréstimo seria realizado pelo prazo de dois anos, podendo a amortização do mesmo ser realizada pelo arguido em qualquer momento do contrato sem custos adicionais.

9. Como garantia do contrato, propunha o arguido a entrega de dois imóveis de que seria proprietário, mais concretamente as fracções autónomas “A” e “C” do prédio urbano sito em (...), com o artigo matricial n.º 3940 sobre os quais seria constituída hipoteca a favor da Assistente.

10. Apesar da disponibilidade da Assistente para auxiliar o arguido a encontrar uma solução que fosse satisfatória para ambas as partes, o arguido adiou uma vez mais a resolução da questão, recusando prosseguir com a conclusão do dito empréstimo.

2.2 Factos não provados:

Da instrução e discussão da causa, considerando o objecto do processo recortado pela acusação pública e pela douta contestação apresentada, não resultaram quaisquer factos não provados.

2.3 Motivação da decisão de facto:

2.3.1 Factos provados:

O tribunal formou a sua convicção com base na prova produzida e examinada em audiência de julgamento. Teve-se designadamente em conta os seguintes elementos:

a) a posição do arguido:

                O arguido optou por se remeter ao silêncio, optando por não prestar declarações que não em torno da apurada condição sócio económica.

                b) prova testemunhal e documental:

                As testemunhas F... e H... prestaram um depoimento, escorreito, claro, isento e espontâneo, denotando preocupação de verdade e rigor, referindo, confirmando toda a factualidade no libelo acusatório vertida.

                Ademais, o seu depoimento encontra perfeito acolhimento na documentação aos autos junta a fls. 7 (proposta de celebração de contrato de seguro); fls. 8 (condições particulares atinentes ao seguro E... Multioportunidades contratado); fls. 9 (carta expedida e dirigida ao arguido, aludindo ao facto de, por via do encerramento do Fundo autónomo M... Natural Resources haver lugar, caso o arguido assim o pretendesse, haver lugar à transferência do montante de 1.579,60 (mil quinhentos e setenta e nove euros e sessenta cêntimos) para conta bancária do arguido; fls. 10 (carta enviada pelo arguido e por ele assinada, solicitando a transferência no montante de 1.579,60 (mil quinhentos e setenta e nove euros e sessenta cêntimos) para conta bancária cujo NIB ali indicou; fls. 11 (proposta de liquidação do montante em causa nos moldes tidos por convenientes pelo arguido).

                Teve-se igualmente em conta o teor da documentação aos autos junta de fls. 74 a 67, na inversa, posto que a documentação em causa em termos cronológicos assim respeita, documentação essa atinente às negociações efectuadas entre a Assistente e o arguido por forma a ser efectuada a devolução do excesso de montante pelo arguido devido.

                c) prova documental:

                Para além da documentação supra aludida e ali consignada por facilidade de raciocínio, no que concerne aos antecedentes criminais do arguido, louvou-se o Tribunal do teor de fls. 100.

                3. Motivação de direito:

                3.1 Subsunção:

                (…)

                Ora, perante a factualidade assente por provada, não restam dúvidas que se mostram preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo de crime imputado ao arguido, posto que este, bem sabendo que não tinha qualquer direito à quantia em excesso em relação àquela que lhe deveria ter sido devolvida dela se vem a apropriar, dando-lhe o destino que por bem teve. E infrutíferas resultaram as tentativas da Assistente em reaver aquela quantia, resultando dos autos que o arguido, apesar de entabular negociações tendentes a essa devolução, não restituiu a dita quantia. E quantia de monta, importando numa soma elevadíssima para a generalidade das pessoas a reforçar a ilicitude da acção e o dolo do agente. Agente esse que, apesar da sua tenra idade, denota já uma atitude de perfeita indiferença perante o desvalor da sua acção como o traduz na perfeição a remessa ao silêncio – legítima – todavia a sugerir essa indiferença perante o seu acto. E acto esse perfeitamente documentado nos autos para o qual o arguido nenhuma explicação aduziu, adivinhando-se a conveniência óbvia da retenção de uma quantia monetária que, em jeito de prémio de euromilhões ou qualquer outro jogo de fortuna ou azar lhe coube em sorte.

                (…)

3.2 Determinação da pena:

(…)

3.3 Determinação da medida concreta da pena:

Aplicando agora os princípios sumariamente expostos, salienta-se que:

- a gravidade objectiva dos factos decorre do modo de execução dos mesmos e da moldura penal abstractamente cominada.

- o arguido agiu com dolo directo e culpa intensa.

- o arguido não mostrou qualquer arrependimento ou contrição pelo seu facto, antes revelou uma atitude de perfeita indiferença e frieza perante os factos, denotando ser-lhe totalmente irrelevante o desapossamento da Assistente da quantia de que se apropriou.

- denotou, também, com o seu silêncio, ser-lhe irrelevante as consequências do erro ocorrido relativamente à pessoa física que na base deste está.

- não ocorreu a reparação do dano nem a mesma se antolha como viável pela tenra idade do arguido e a putativa ausência de bens na sua posse que permitam a sua cobrança coerciva.

- em benefício do arguido, milita apenas e só, mas de forma não determinante, a ausência de antecedentes criminais registados.

- são prementes as necessidades de prevenção geral no sentido de reafirmação das expectativas comunitárias no sentido da validade e até reforço da norma violada.

No caso dos presentes autos, numa ponderação global do mesmo, ponderando a inexistência de antecedentes criminais, entende-se que a pena de multa não permite acautelar as finalidades da punição, optando-se pela aplicação ao arguido de uma pena de 9 (nove) meses de prisão.

6. Do pedido de indemnização civil:

(…)

No caso em apreço, estão em causa danos patrimoniais, traduzidos pelo montante de que o arguido se apropriou. Verificados que estão os enunciados pressupostos constitutivos da obrigação de indemnizar, impõe-se concluir pela procedência do pedido nos precisos termos em que o mesmo é formulado.

Da suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido é condenado:

(…)

Neste ponto, deve salientar-se que o arguido se mostra socialmente inserido, não tem antecedentes criminais registados.

Por outra banda, são bem conhecidos os efeitos criminógenos associados à pena de prisão, pelo que, tudo visto e ponderado, é convicção do tribunal que a advertência que agora é feita ao arguido e, bem assim, a ameaça da prisão que – qual espada de Damôcles – sobre ele paira, realizam de forma adequada as finalidades da punição, pelo que entende poder suspender a execução da pena de prisão ora imposta pelo período da pena aplicada. Todavia, entende igualmente o Tribunal que esta suspensão de execução da pena deve ser subordinada ao cumprimento de certos deveres, desde logo o pagamento à lesada da quantia de que esta se viu desapossada, entendendo-se fixar em 6 (seis) meses o prazo para que tal suceda, o que se decide ao abrigo do disposto no artigo 51.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

(…)

                                                                                              ****

III. Apreciação dos Recursos:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.

Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

                São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

As questões a conhecer são as seguintes:

A) Recurso interposto no dia 5/6/2012:

1 - Saber se o Tribunal competente para conhecer o objecto do processo é o Tribunal Judicial de Ourém.

2 – Saber se o despacho recorrido padece de falta de fundamentação e se viola o disposto nos artigos 374.º, 375.º e 377.º, 379.º e 410.º, do CPP.

B) Recurso interposto no dia 26/6/2012:

1. Saber se a sentença é nula, nos termos do artigo 379.º, do CPP.

2. Saber se foi violado o princípio do direito ao silêncio do arguido e o princípio in dubio pro reo.

3. Saber se deve ocorrer alteração da matéria de facto.

4. Saber se a condição imposta ao arguido, em sede de suspensão da execução da pena, se revela adequada

                                                                              ****

A) Recurso interposto no dia 5/6/2012:

Uma vez que o arguido, no recurso interposto em 26/6/2012, declarou manter interesse na sua apreciação, há que conhecer do mesmo, tendo em consideração o disposto no artigo 412.º, n.º 5, do CPP.

                                                                              ****

1) Da incompetência territorial do Tribunal Judicial de Ourém para conhecer do objecto do processo:

Na Acta de Audiência de Discussão e Julgamento de fls. 187/193, em 14/5/2012, pode ser lido o seguinte:

1) O Ilustre Mandatário do Arguido apresentou o seguinte requerimento:

Tendo em conta o disposto na al. b), do artigo 32.º, do CPP, requer a Vossa Excelência que seja declarada a incompetência territorial dos autos, visto que, segundo a acusação, os factos decorreram na sede da E..., em Lisboa, como tal é competente para proceder ao julgamento o tribunal da Comarca de Lisboa e não o tribunal de comarca de Ourém.

Assim sendo, requer que seja declarada a devida incompetência territorial e a audiência de julgamento adiada.

2) Dada a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público, pela mesma foi dito:

Afigura-se que a questão da competência territorial já foi clarificada nos presentes autos e, neste caso, considera-se, nos termos do artigo 19.º, do CPP, que é competente para conhecer o crime o Tribunal em cuja área decorreu, sendo certo que o arguido assumiu e apoderou-se da coisa, quantia monetária que aqui nos trás, na área de Ourém, mais precisamente na conta bancária que tem no lugar de Freixianda, razão pela qual se promove que seja indeferido o requerido pelo ilustre mandatário do arguido.

3) Dada a palavra à Ilustre mandatária da Assistente, pela mesma foi dito:

Considerando que a questão da incompetência territorial já foi anteriormente analisada e nada foi dito ou requerido pelo arguido, parece-nos de salientar que essa questão é, neste momento, e claramente, extemporânea. Face ao exposto, requer-se que seja indeferido o requerimento apresentado pela defesa.

4) Na sequência, o Meritíssimo Juiz proferiu o seguinte Despacho:

 “Ao arguido vem imputada a autoria material, e na forma consumada, a prática de um crime de apropriação ilegítima, p. e p. pelo artigo 209.º, do C. Penal.

Na lógica da acusação, a consumação do crime operou-se com a transferência da quantia monetária em apreço nos autos para a conta bancária titulada pelo arguido, domiciliada essa conta bancária, embora não venha mencionada na acusação, na localidade de Freixianda.

A consumação do crime ocorreu, pois, na circunscrição geográfica do Tribunal de Comarca de Ourém, nos termos do artigo 19.º, n.º 1, do CPP, o que impõe ser este o tribunal competente para do mérito dos autos conhecer, indeferindo-se a arguição da excepção da incompetência deduzida nos autos.

Notifique.

                                                                              ****

O artigo 7.º, n.º 1, do Código Penal, estipula o seguinte:

1 – O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido.

O artigo 19.º, do CPP, consagra o seguinte:

1 – É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação.

2 – (…).

3 – Para conhecer de crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados, ou por um só acto susceptível de se prolongar no tempo, é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último acto ou tiver cessado a consumação.

4 – (…).

Pois bem, segundo a previsão do art.º 209.º, n.º 1, do Código Penal, pratica o respectivo  crimeQuem se apropriar ilegitimamente de coisa alheia que tenha entrado na sua posse ou detenção por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade”.

Revertendo ao caso dos autos, não é de aceitar a posição defendida pelo arguido, isto é, a de que o crime ficou consumado com a transferência bancária efectuada pela lesada (em Lisboa), pois, a partir daí, esta deixou de ter a disponibilidade da quantia em causa.

Na realidade, só tem sentido considerar consumado o crime apenas quando o agente (arguido), além da transferência da disponibilidade da coisa por qualquer das referidas vias, adquire um mínimo de estabilidade no respectivo domínio do facto.

Dito de outra maneira: há que reconhecer que o crime em causa nos autos só se considera consumado quando o agente tem esse mínimo de possibilidade de disposição da coisa apropriada.

Na verdade, a apropriação implica a eliminação do domínio de facto de uma pessoa e a (ou pela) afirmação de domínio de facto do agente do crime.

Por conseguinte, é condição da consumação do crime a verificação do novo “empossamento” como possibilidade de gozo e fruição das utilidades da coisa por parte do infractor, pelo menos com estabilidade.

Podemos, então, afirmar que o crime se consuma quando a coisa sai da esfera de domínio do titular inicial e o agente adquire um mínimo de estabilidade no domínio de facto correspondente ao seu empossamento, uma estabilidade que lhe assegure uma possibilidade plausível de fruição e disposição da coisa apropriada.

Assim sendo, só a partir do momento em que o arguido manteve em seu poder o montante transferido pela lesada (designadamente através de actos dos quais se retirava a sua recusa da devolução devida), é possível considerar verificada a consumação do crime, sendo certo que tal só se verificou a partir da conta bancária domiciliada em instituição localizada em Freixianda, Ourém.

Concluindo, o tribunal competente para conhecer o objecto do processo é o Tribunal Judicial de Ourém.

                                                                              ****

2) Dos vícios do despacho recorrido:

O recorrente afirma que o despacho recorrido é nulo, nos termos do artigo 379.º, do CPP.

Mais considera que o mesmo viola os artigos 359.º, 374.º, 375.º, 377.º e 410.º, todos do CPP.

Como é consabido, o dever de fundamentar uma decisão judicial mostra-se decorrência, em primeiro lugar, do disposto no art.º 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, em cujos termos “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma previstas na lei.

Mais, tal dever de fundamentação, no âmbito do processo penal e na perspectiva do arguido, surge, igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa, expressas no art.º 32.º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental.

Tal implica que, ao proferir-se uma decisão judicial, se conheçam as razões que a sustentam, de modo a possibilitar aferir-se da sua conformidade com a lei.

É isso que decorre expressamente, e desde logo, do disposto no art.º 97.º, n.º 5 do Código Processo Penal, ao estabelecer que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

Por isso, essa exigência é, simultaneamente, um acto de transparência democrática do exercício da função jurisdicional, que a legitima, e das garantias de defesa, ambas com assento constitucional, de forma a se aferir da sua razoabilidade e a obstar a decisões arbitrárias.

Daí que a fundamentação de um acto decisório deva estar devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido, sendo certo que, no caso de uma sentença, deve obedecer ainda aos requisitos formais enunciados no citado art.º 374.º, n.º 2.

É preciso ter bem presente que, no caso dos autos, estamos perante um despacho que indeferiu um pedido formulado pelo Arguido e não face a uma sentença.

Liminarmente, só por mero lapso pode ser entendida a referência feita ao artigo 359.º, do CPP, respeitante à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, pelo que nada será dito quanto ao mesmo.

Avançando, salvo o devido respeito, não encontra qualquer justificação o apelo feito aos artigos 374.º, 375.º, 377.º e 379.º, todos do CPP, na medida em que os mesmos apenas dizem respeito, de um modo expresso, ao acto decisório definido na lei como sentença - artigo 97.º, n.º 1, al. a), do CPP.

Resta a referência feita ao artigo 410.º, do CPP.

Acontece que a referida norma também surge ligada à prolação de uma sentença.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no citado artigo 410.º, n.º 2, do CPP, naquilo que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou, através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas desse mesmo n.º 2, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.

Por consequência, também não é possível afirmar que o despacho recorrido violou o artigo 410.º, do CPP.

Aqui chegados, é tempo de dizer que a lei adjectiva penal consagrou, em matéria de invalidades, o princípio da legalidade, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular – n.ºs 1 e 2, do artigo 118º, do CPP.

A falta de fundamentação das decisões, com excepção da sentença - alínea a) do n.º 1, do artigo 379º, do Código de Processo Penal -, não se mostra cominada com a sanção da nulidade, razão pela qual constitui mera irregularidade.

As irregularidades processuais só determinam a invalidade do acto a que se referem quando tiverem sido arguidas pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em tiverem sido notificados para qualquer termo no processo ou intervindo em algum acto nele praticado – n.º 1, do artigo 123º, do CPP.

Deste modo, encontrando-se o recorrente presente, aquando da prolação do despacho recorrido, certo é que a eventual falta de fundamentação daquele despacho e a irregularidade daí resultante deveriam ter sido por si arguidas no próprio acto, sendo que, não o tendo sido, sempre se têm de considerar sanadas.

Assim sendo, improcede, também nesta parte, o recurso.

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B) Recurso interposto no dia 26/6/2012:

1. Da nulidade da sentença:

Por uma questão de lógica de raciocínio, entendemos por bem ser esta a primeira questão a ser analisada, muito embora o recorrente só se refira, de um modo expresso, a ela no n.º 95 das suas conclusões.

Já sabemos que, por força do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

                E determina o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, sobre os requisitos da sentença que: ao relatório, segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

                O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, portanto, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 14/6/2007, Processo n.º 1387/07, 5ª Secção.

                Antes da vigência da Lei n.º 59/98, de 15 de Agosto, entendia-se que o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem impondo que o julgador pormenorizasse o raciocínio lógico que se encontrava na base da sua convicção, pelo que somente a ausência total da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal constituía violação do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, a acarretar nulidade da decisão, nos termos do artigo 379.º, do CPP – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 9/1/1997, C.J., Acs. do STJ, V, Tomo 1, pág. 172, e Ac. do S.T.J., de 27/1/1998, B.M.J. n.º 473, pág. 166.                                                                                                                                             Actualmente, face à nova redacção do n.º 2, do artigo 374.º, do CPP, - aditamento à redacção do preceito: exame crítico das provasé indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 7/7/1999, C.J., Acs. do S.T.J., VII, Tomo 2, pág. 246.

                Foi a referida Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que aditou a exigência do exame crítico das provas, sendo certo que a revisão de 2007 levada a cabo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, nada alterou nesta matéria.

                Pois bem, o exame crítico das provas tem como finalidade impor que o julgador esclareçaquais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra”, conforme resulta do Ac. do S.T.J., de 1/3/2000, B.M.J. n.º 495, pág. 209.

                Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, tal exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo essencial que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de base ao respectivo conteúdo.

                Sem receio de errar, podemos afirmar que a fundamentação decisória tem que deixar claro o processo de raciocínio que conduziu o juiz a proferir a decisão, isto é, para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, reclama do julgador o exame crítico das provas que consiste na sua descrição e no respectivo juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório.

                Por outras palavras, é necessário que a decisão contemple a crítica por que razão umas provas merecem credibilidade e outras não, sendo imperioso que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 9/5/2007, Processo n.º 247/07, 3ª Secção.

                 Ora, não basta uma mera referência dos factos às provas, torna-se obrigatório um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam de forma a poder concluir-se quais as provas e, em que termos, garantem que os factos aconteceram ou não da forma apurada.

                Em resumo, “a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (de um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 31/10/2007, Processo n.º 3280/07, 3ª Secção.

                                                                                              ****                                                                                                    Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, afigura-se-nos suficiente a fundamentação que a mesma contém, quanto ao processo de raciocínio levado a cabo pelo Tribunal, no que tange aos factos provados e não provados, ou seja, pela motivação, é possível reconduzir racionalmente as razões probatórias que determinaram que o Tribunal a quo formasse a sua convicção.               

Aliás, o recorrente percebeu bem a fundamentação da sentença. Caso contrário, não faria uma crítica tão extensa ao seu teor.

Sublinhe-se não ser exigível que, no acto decisório, fiquem exauridos todos os possíveis posicionamentos que se colocam a quem decide, esgotando todas as questões que lhe foram suscitadas ou que o pudessem ser.

O que interessa é que a motivação seja necessariamente objectiva e clara, e suficientemente abrangente em relação às questões aí suscitadas, de modo que se perceba o raciocínio seguido.

Muitas vezes confunde-se motivação com prolixidade da fundamentação e esta apenas serve para confundir ou obnubilar a compreensibilidade que deve ser uma característica daquela.

Ora, relendo-se a sentença recorrida, podemos certamente discordar da mesma, fundadamente ou não, mas percebe-se qual foi o raciocínio seguido na motivação da sua convicção probatória e como a mesma se alicerçou para aí chegar, mediante o exame crítico da prova.

Neste sentido, não opera então a nulidade invocada.

****

2. Da violação do princípio do direito ao silêncio do arguido e do princípio in dubio pro reo:

O recorrente alega o seguinte:

Do valor probatório do silêncio do arguido:

O direito ao silêncio não pode ser valorado contra o arguido, isto é a proibição de valoração incide sobre o silêncio do arguido.

                O direito do arguido ao silêncio impõe que essa circunstância não pode ser valorada contra si, como indício de culpabilidade.

Assim, do silêncio do arguido não pode concluir-se que é ele o autor do crime porque não apresentou qualquer justificação para os factos que lhe são imputados.

Pelo que, não podia o Meritíssimo Juiz dizer, na fundamentação da sentença que “… Agente esse que, apesar da sua tenra idade, denota já uma atitude de perfeita indiferença perante o desvalor da sua acção como o traduz na perfeição a remessa ao silêncio – legítima – todavia, a sugerir essa indiferença perante o seu ato. E ato esse perfeitamente documentado nos autos para o qual o arguido nenhuma explicação aduziu advinhando-se a conveniência obvia da retenção de uma quantia monetária que, em jeito de prémio de euromilhões ou qualquer outro jogo de fortuna ou azar lhe coube em sorte.”

Daqui resulta que o Meritíssimo Juiz valorou negativamente o silêncio do Arguido, que qualificou como uma atitude de perfeita indiferença perante o desvalor da sua ação e de indiferença perante o seu ato.

Assim, entende-se que o desvalor que foi atribuído ao silêncio do Arguido, na nossa opinião, erradamente por violar o princípio do direito ao silêncio sem que o mesmo possa, por tal, ser prejudicado.

Isto porque o silêncio não pode prejudicar o arguido, pois o mesmo não pode ser valorado em desfavor do arguido.

O direito ao silêncio, como direito que é não pode prejudicar o arguido, não podendo dele ser retiradas quaisquer consequências probatórias da matéria da acusação, sendo certo que é à acusação que compete provar os seus pressupostos e não o arguido através das suas declarações provar o contrário.

E, em caso de dúvida fundada/razoável, esta beneficia o arguido, por efeito do princípio da presunção de inocência e in dubio pro reo que nele entronca.

Ora, no caso dos autos nunca poderia o Meritíssimo Juiz ter valorado o silêncio do arguido do modo como fez e, muito menos, ter retirado quaisquer consequências probatórias da matéria da acusação.

Pelo que deve a Sentença recorrida ser revogada, com todas as consequências legais, por violação dos princípios acima aduzidos.”

                                                                                              ****

    No que tange ao silêncio do arguido, sem dúvida que este é uma das manifestações basilares do princípio de não auto-incriminação.

Logo, tem razão o recorrente quando afirma que “O direito do arguido ao silêncio impõe que essa circunstância não pode ser valorada contra si, como indício de culpabilidade.”, da mesma forma que a Assistente aborda de modo correcto a questão, ao afirmar que “Efectivamente, não pode o julgador deduzir do silêncio do Arguido a confissão ou admissão da autoria do crime, ou que o exercício de tal direito apenas é invocado pelo Arguido como forma de fugir ao dever que sobre este impende de responder à verdade a todas as questões que lhe sejam colocadas, obrigando-o a confessar a autoria de um crime.”

No Acórdão do TRC, de 13/1/2010, Processo n.º 546/06.7GTLRA.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Jacob, in www.dgsi.pt, escreveu-se o seguinte:

“A génese do direito ao silêncio não assenta num intuito de beneficiar o arguido, antes decorrendo do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que lhe são imputados, facultando ao arguido um comportamento que, em última análise, poderá obstar a que se auto-incrimine.

No entanto, se o uso do direito ao silêncio não poderá em caso algum prejudicar o arguido, também o não deverá beneficiar! Aliás, não se vislumbra nenhuma razão de ordem lógica, ou mesmo jurídica, para que um arguido que se refugia no direito ao silêncio deva ser beneficiado, porventura na mesma medida dos arguidos que colaboram com a justiça ou que manifestam sincero arrependimento. O silêncio constitui, é certo, um direito do arguido, mas não se traduz numa circunstância atenuante; não implica diminuição da culpa e também não reduz a ilicitude do facto. Logo, o silêncio não beneficia o arguido; apenas o não prejudica!”

Não vemos como divergir desta orientação.

Em resumo, sendo o silêncio do arguido um direito que lhe assiste, sem que isso o possa prejudicar, não pode o mesmo esperar um benefício resultante do exercício desse direito.

No caso em apreço, o julgador não realizou qualquer extrapolação do silêncio do arguido para, deste, concluir pela sua autoria na prática dos factos.

O tribunal a quo, na verdade, não retirou consequências probatórias do referido silêncio. Este apenas foi considerado em termos de evidenciar uma certa atitude do arguido, perante toda a prova produzida e interpretada em determinado sentido pelo tribunal, nomeadamente ao nível do arrependimento.

E não se argumente que foi violado o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.      

Dispõe a Constituição no n.º 2 do seu artigo 32.º que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», preceito que se identifica em geral, com a formulação do princípio da presunção de inocência constante da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.11.º, n.º 1).

De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos.

O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto.

Como todos sabem, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213 – já Ulpiano dizia “é melhor um crime impune do que um inocente castigado”.

Todavia, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997.       Lendo a fundamentação da decisão (processo de convicção do tribunal), facilmente é constatado que o tribunal a quo, simplesmente, não ficou com dúvidas sobre a matéria de facto.

A fundamentação de facto é consistente, racional e clara, no sentido exposto. Logo, não assiste razão ao arguido.

O princípio geral do processo penal ora em análise é aplicável apenas nos casos em que, apesar de toda a prova recolhida, continuam os factos relevantes para a decisão a não poderem considerar-se como provados por continuar a subsistir dúvida razoável do Tribunal.

O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância a todas as dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos.                    É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver, para si, certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.

A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.        

No caso vertente, o Tribunal “a quo” não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável sobre certos factos relevantes à decisão, pelo que não há lugar a qualquer aplicação do princípio in dubio pro reo.                                                          

A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética.

Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25.

Assim, para a revogação da sentença nos termos pretendidos pelo recorrente, importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido.            
                Ora, ao remeter-se ao silêncio, é evidente que o arguido acabou por nem sequer apresentar uma versão que pusesse em causa a prova produzida nos autos.
                                                            ****

3. Da alteração da matéria de facto:

O recorrente considera que “Tem forçosamente de ser alterada a matéria de facto dada como provada nos pontos 1, 2, 3, 5, 7, 9, 10, 11 e 12 dos factos que na Sentença recorrida vêm dados como provados quanto à acusação e os factos vertidos nos pontos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 dos factos que na Sentença recorrida vêm dados como provados quanto ao pedido de indemnização civil, atendendo aos depoimentos acima transcritos, nos termos do artigo 412º do C.P.P”.

A impugnação da matéria de facto está, pois, situada no âmbito do erro de julgamento.

O erro de julgamento, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.                               

Na situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.

Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.      

Nos casos desta impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.                                                                         

E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.P.:

«3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:            

a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c)-As provas que devem ser renovadas».                                                                                                   A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.                           

Além disso, o n.º 4, do citado artigo 412.º contempla o seguinte:                                                            “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

Desenvolvendo algo mais sobre esta matéria, ao pretender o recorrente impugnar a matéria de facto nos termos acabados de mencionar, tem de respeitar as regras previstas na lei, ou seja, há-de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto no art. 412.º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal (redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputa incorrectamente provados e não provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas - als. a), b) e c) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4).                                                                                                                            

A especificação dos “concretos pontos de facto só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.                                                                                                                                        

Como todos sabem, uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão.                                                                                   

Tenhamos presente, neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 24/10/2002, proferido no Processo n.º 2124/02, em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).

Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.

Mais, como se observa no Acórdão do S.T.J. de 26/1/2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”.

Acresce que a exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova.

Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação.   

Para atingir esse desiderato, aderimos à posição defendida no Acórdão de 14/7/2010, Processo n.º 508/07.7GCVIS.C1, deste Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt, onde se considera que o recorrente, a par da indicação das concretas provas, há-de proceder de uma das seguintes formas:

- Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante;

- Expor, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou

- Situar objectivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas.

Mas tal não basta.                                                                                                                                                            Na realidade, o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. 

Este é o cerne do dever de especificação.                                                                                                     O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente obrigar o recorrente a relacionar o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado, conforme defende Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134/1135.                                                                                                          

Tudo o que vem de ser exposto significa, pois, que as menções exigidas pelo artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do CPP, não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

                                                                                              ****

                   Ao alegar o que consta das suas motivações, em boa verdade, o recorrente está, em síntese, a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre o mesmo aquele adquiriu em julgamento, esquecendo-se da regra da livre apreciação da prova inserida no artigo 127.º, do C.P.P.

O citado artigo 127.º dispõe que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Prova livre não significa prova arbitrária ou caprichosa, antes quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos. Se O tribunal decidisse como lhe apetecesse não apreciaria livremente as provas, antes estaria a desprezá-las…

A livre apreciação da prova significa, em resumo, que esta deve ser feita de acordo com a convicção íntima do juiz. Aliás, já Chiovenda o afirmava, citando o imperador Adriano, conforme pode ler-se no Digesto 3, 2, De testibus, 22, 5…

 À valoração do tribunal preside um juízo atípico, porque fundando-se nas regras da experiência, isto é em critérios generalizadores e tipificados, índices corrigíveis, critérios definidores de conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas sempre tendo presente a individualidade histórica do caso concreto, tal como ela foi adquirida representativamente no processo, pelas alegações, respostas, inquirições e outros meios de prova disponibilizados[1].

E se é certo que o princípio da livre apreciação da prova não pode ser confundido como uma apreciação judicial arbitrária - ou, na expressiva fórmula de Paolo Tonini “o conflito entre a acusação e a defesa não pode ser resolvido com base num acto de fé[2] -, e que a livre convicção do juiz não pode ser meramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável[3], certo é, também, que a “verdade material que se busca em processo penal, não é o conhecimento ou apreensão absolutos de um conhecimento, que todos sabem escapar à capacidade de conhecimento humano; tanto mais que aqui intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes de possível erro, quer porque se trata do conhecimento de acontecimentos passados, quer porque o juiz terá as mais das vezes de lançar mão de meios de prova que, por sua natureza - e é o que se passa sobretudo com a prova testemunhal -, se revelam particularmente fiáveis».[4]

E assim, como ensina o insigne Professor, “a convicção judicial será suficientemente objectivável e motivável quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará, pois, na “convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e contra toda a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável pelo menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse».

Consabidamente, a verdade que o direito encerra é a «processualmente demonstrada por recurso às provas carreadas para os autos, sujeita a todos os limites que, por definição, tem o espírito humano na tentativa de conhecer e compreender o real. O conhecimento da verdade (correspondente ao “pedaço de vida” acontecido) «na maioria das situações pressuporia uma impossível incursão na mente humana, empreitada essa, de patente que é, não necessita de ser sublinhada».[5]

Intimamente ligados ao princípio da livre apreciação da prova estão os princípios da continuidade da audiência, ou da concentração, oralidade e imediação da prova.

Quanto aos dois últimos, constituem a um tempo decorrência lógica do princípio da livre apreciação da prova e “conditio sine qua non” para a respectiva admissibilidade. Com efeito, apenas quem tenha assistido à produção da prova e às disposições assumidas pela acusação e pela defesa poderá estar capaz, no fim da discussão, de se considerar convicto de uma determinada verdade, podendo proceder ao julgamento. Paralelamente, a oralidade permite com muito maior probabilidade aceder a um discurso directo, espontâneo, não ensaiado e vivo, o que obviamente contribui para um aumento das possibilidades de descoberta da verdade e de formação de uma correcta convicção.

Quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende patentemente as regras da experiência comum.

                                                                                              ****

          Revertendo ao nosso caso, temos que, para justificar a sua pretensão, o arguido elenca depoimentos das testemunhas e prova documental.

          Em primeiro lugar, o recorrente alega, em síntese, que, se atentarmos aos depoimentos das testemunhas da acusação F...e G..., não resultou provada a prática do crime por parte do arguido, porque ambas afirmaram nunca terem visto o arguido, nem nunca com ele terem falado, assim como nunca terem visto nenhum documento assinado por ele, sendo certo que também não confirmaram se o Arguido era único e exclusivo titular da conta bancária ou se outrem possuía autorização especial (procuração) para poder movimentar a conta.

                   Mais considera que, mesmo que se dê como provado que efectivamente tais quantias deram entrada na conta do Arguido, tal não significa que tenha sido este a levantá-las e a ficar na sua posse, bem como usufruir delas, realçando que, na sua perspectiva, o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, apenas utilizou a prova indirecta, nomeadamente o facto do nome do Arguido constar como titular da conta.

                   No que tange ao depoimento das duas referidas testemunhas, o recorrente elenca as seguintes passagens:

                   A) Depoimento de F...:

                “(…)

                MP: Para esse efeito contactaram o cliente?

                Testemunha: Foi enviado uma carta, que é costume, dadas essas circunstâncias, para que o cliente indique o que é que pretende fazer.

                MP: Sr. Dr. podia ser confrontada a testemunha com as fls. 119 a 121. É o contrato em si e depois a carta (docs. 1, 2, 3, 4 e 5). Estávamos a falar do contrato. É este contrato de que estamos a falar?

                Testemunha: Portanto, isto é a proposta de seguro, em que o cliente escolhe aqui os fundos …

                MP: Que tipo de seguro é este? Como é que se chama este seguro?

                Testemunha: É o novo produto que é … É o multioportunidades.

                MP: E que valor é que era este seguro então?

                Testemunha: Era portanto, o valor que está aqui, o valor de doze mil e trezentos Euros.

                MP: A subscrição de todos …?

                Testemunha: Era constituído por vários fundos.

                MP: E então em que data é que me diz que se venceu um dos investimentos que me referiu há pouco?

                Testemunha: Isto portanto era a apólice de seguro que consubstancia, no fundo que contem os vários fundos subscritos e a distribuição …

                MP: Já está a fls. 120?

                Testemunha: Exacto. Estou a seguir a ordem. Isto é a apólice que consubstancia a proposta de seguro. Depois a carta a seguir é a carta que referi há bocado, que foi enviada em Dezembro de 2009, a dizer que um destes fundos, portanto, o fundo autónomo fidelity chegou ao seu fim e que tinha este valor, portanto, 1.578,60, para ser poupado ou para ser transferirido para qualquer dos outros fundos que detinha …

                MP: Estas cartas é procedimento serem enviadas por carta simples, carta …

Testemunha: Simples. Carta simples. E nós sabemos que ela foi recebida.

                MP:  Porque depois vocês receberam o fideback?

Testemunha: O Fideback do cliente.

                MP: E o que foi em que sentido?

                Testemunha: No fundo de creditar o montante, os tais 1.580,60 Euros, numa conta que indicou como sendo … e indicou o NIB do Banco N....

                MP: Qual é a verdadeira questão que aqui nos traz. Vocês creditaram estes mil, quinhentos e setenta e oito Euros e sessenta cêntimos neste NIB ou aconteceu outra coisa?

                Testemunha: Fizemos o crédito nesta conta não foi neste valor, que houve um engano e foi creditado um valor bastante superior.

                MP: E qual é que foi o valor creditado na conta?

                Testemunha: Agora não sei, mas cento e vinte e seis mil, não tenho preciso o valor aqui comigo. Posso nos meus papéis, nos meus apontamentos.

                MP: E se passarmos à outra folha à frente.

                Testemunha: Portanto, esta aqui será a diferença. Portanto, a devolução da diferença. Estes cento e vinte e oito, quatrocentos e vinte será a diferença.

                MP: Já com …

                Testemunha: Deduzidos os mil, quinhentos e setenta e oito euros. O valor foi pago, até está aqui na carta, cento e vinte e nove mil e novecentos e noventa e nove ponto …

          MP: Que contactos é que fizeram posteriormente para tentar recuperar esse dinheiro, se é que fizeram alguns contactos?

        Testemunha: De imediato, portanto, nesta data, em Março, foi quando constatamos o erro foi feito um contacto telefónico para os números de telefone que constavam na proposta, aquele primeiro documento que vimos. Para estes contactos telefónicos que constavam aqui na proposta de seguro.

       MP: Conseguiram falar com a pessoa?

     Testemunha: Portanto, contactamos estes telefones, pedimos para falar com o Sr. A....

      MP: Quando diz pedimos está a falar no plural? Foi a Sra.?

       Testemunha: Não fui eu, não.

      MP: Quem foi?

      Testemunha: Foi a minha colega G... …

     MP: Continue.

       Testemunha: Portanto, que fez este contacto telefónico e quem atendeu para estes números foi o Sr. B..., que disse que era o pai do Sr. A... e que seria ele que trataria de todos os assuntos, e que poderíamos falar com ele para tratar do assunto em questão. O que lhe foi transmitido, portanto, o erro que …

      MP: E combinaram alguma coisa pelo telefone? Todas essas comunicações foram feitas por telefone ou posteriormente houve mais alguma missiva escrita?

       Testemunha: Naquele dia fizemos o contacto telefónico e mandamos também aquela carta, no fundo formalizando a própria situação. Depois agendou-se uma reunião que ocorreu, penso que a 16 ou a 17 de Março, aqui em Fátima, onde eu estive presente e a minha colega também, G..., também estivemos presentes com o Sr. B....  No fundo para expor a situação e perceber, no fundo, qual era a forma de como iria ser feita a devolução do montante.

        MP: E combinaram, chegaram a combinar alguma forma?

       Testemunha: Pronto, nessa reunião o Sr. B... disse que não tinha disponibilidade imediata de pagar na integra o capital naquele momento, mas, no fundo, comprometeu-se e até fez um pequeno documento onde dividiu em várias prestações o montante sendo o mais elevado para o final, porque ele referiu que queria fazer umas vendas e, portanto, em Agosto/Setembro poderia ter mais algum capital disponível. Portanto, os valores das prestações finais seriam mais avultadas.

        MP: E foi com base nisso que vocês fizeram esta proposta de liquidação?

        Testemunha: Portanto, não fomos nós. Foi o Sr. próprio B... que fez essa proposta. Portanto, no decorrer da reunião, ele elaborou esse documento e deu-nos na reunião dizendo que aquilo era a disponibilidade que ele tinha para pagar.

       MP: Portanto, de quem é esta assinatura que aqui consta neste documento?

       Testemunha: É do B....

       MP: Nalguma dessas reuniões esteve presente o arguido, o Sr. A...?

       Testemunha: Não. Nunca.

       MP: Nunca o contactaram com ele posteriormente?

       Testemunha: Não. Nós tentamos, mas todos os contactos que tínhamos eram sempre do pai. Mesmo na própria proposta de seguro, todos os contactos que foram dados foram sempre os do pai. Embora as cartas que nós mandamos, nomeadamente foi dirigidas para ele, para a morada da própria apólice.

        MP: E houve alguma justificação para não vos ser entregue logo o dinheiro?

        Testemunha: Disse que era indisponibilidade, não tinha disponibilidade, que o dinheiro entretanto tinha sido alugado a outras faltas e que, portanto, não havia disponibilidade do pagamento imediato.

        Advogada: Saber se até a este momento recebeu algum montante para liquidação do … inicial desta transferência indevida?

         Testemunha: Não.

        Advogada: Não receberam nada?

       Testemunha: Não, não tenho conhecimento.

       Advogada: E nessa reunião teve com o Sr. B..., que ainda agora referiu, ele nunca lhe disse, nem especificou quem é que tinha recebido o montante, nem colocou em causa que o Sr. A..., o filho tivesse recebido essa importância? Isso nunca foi, na conversa que teve consigo nunca disse que era um engano ou que …

        Testemunha: Não.

        Advogada: Confirmou efectivamente …

        Testemunha: Ele confirmou.

        Advogada: Tinha conhecimento?

        Testemunha: Sim. porque segundo a indicação, ele terá também verificado lá na própria conta bancária esse, o crédito desse valor.

        Advogada: E também nunca houve qualquer reclamação por parte do Sr. A... a pedir o pagamento desses mil e tal euros que vocês efectivamente lhes deviam, não receberam nenhuma comunicação dele a solicitar esse montante?

        Testemunha: Não.

        Advogada: Poderia ter havido alguma confusão e … nunca houve qualquer reclamação por parte dele?

        Testemunha: Não.

         Advogado: Então a Sra. é que era a responsável deste sector lá da companhia de seguros?

         Testemunha: Sim Sra.

          Advogado: A Sra. só teve conhecimento dos factos porque trabalhou directamente na reunião que teve em Fátima, não é assim?

          Testemunha: Antes da reunião.

         Advogado: Teve conhecimento antes da reunião?

         Testemunha: Antes da reunião.

         Advogado: Não foi a Sra. que elaborou nenhum documentos que estão ali juntos aos autos?

          Testemunha: Todos os documentos até à reunião, não.

         Advogado: A Sra., o conhecimento que teve foi na qualidade de responsável da instituição, não é assim?

         Testemunha: Não percebi.

         Advogado: Foi na … responsável por este sector?

        Testemunha: Exacto.

        Advogado: Foi acompanhada a Fátima da Sra. G...?

        Testemunha: Sim.

        Advogado: Nunca viu o A...?

       Testemunha: Não.

       Advogado: Nem nunca contactou consigo nem antes, nem durante, nem até agora?

       Testemunha: Não.

       Advogado: Nem até agora?

       Testemunha: Não.

        Advogado: Nem os Srs. contactaram com ele?

         Testemunha: Nós contactamos com ele só que todos os contactos ...

         Advogado: Não contactaram com ele? Ou seja, pelos contactos que lá estavam nenhum deu a ele?

         Testemunha: Os contactos que ele forneceu não eram os dele, eram os do pai.

        Advogado: E foi ele que forneceu os contactos?

        Testemunha: Na proposta de seguro é o que lá está.

        Advogado: Pergunto-lhe a Sra. assistiu ao preenchimento da proposta de seguro?

        Testemunha: Eu não.

        Advogado: Foi proposta aonde? Isso foi preenchido aonde?

       Testemunha: Não sei.”

                B) Depoimento de G...:

                                                                                                                                             

 “MP: A Sra. já disse que é profissional de seguros.

                Testemunha: Sim.

                MP: Qual foi a sua intervenção aqui neste contrato de seguros e procedimento seguinte?

                Testemunha: A minha intervenção foi o lapso que aconteceu foi na minha área e posteriormente fiz os contactos para o número de telefone que constava na proposta de seguro, para tentar resolver a situação.

                MP: A Sra. diz que o lapso foi na sua área?

                Testemunha: Sim.

                MP: Tem alguma coisa a ver com a tranferência desta importância, tem alguma coisa a ver com a sua área, em concreto?

                Testemunha: Não, a minha área deu a ordem a outra área de pagamentos para fazer a transferência. 

                MP: E a sua área deu a ordem para fazer que valor de transferência?

                Testemunha: Cento e vinte e nove mil e qualquer coisa que eu …

                MP: É o valor que aqui consta, cento e vinte e nove mil e noventa e nove, é isso?

                Testemunha: É.

                MP: A sua área é que deu essa ordem?

                Testemunha: Deu ordem à outra área, aos pagamentos para fazer essa transferência.

                MP: O erro veio da vossa área foi isso?

                Testemunha: Exacto.

                MP: E foi efectivamente esse pagamento que foi efectuado?

                Testemunha: Foi.

                MP: O que é que se passou depois? A Sra. teve conhecimento?

                Testemunha: Tenho, porque eu tive intervenção. Entretanto, isto quando foi  em Janeiro de 2010 que o pagamento foi mal, foi incorrectamente efectuado, mas só dois meses depois, em Março, a recon … bancária que é feito noutra área,  é que fomos alertados para o facto de terem existido estes problemas. Imediatamente enviamos uma carta ao tomador do seguro a informar que por lapso foi transferido um montante errado e solicitamos a sua devolução. Paralelamente, efectuei um contacto para o número de telefone, que constava da proposta de seguro.

                MP: Esse trabalho já é seu, quando está a falar em nome próprio, esse trabalho já é seu?

                Testemunha: Sim, fui eu que fiz.

                MP: A Sra. é que fez?

                Testemunha: Sim. E atendeu um Sr., que depois disse que era o Sr. B..., que era o pai do tomador do seguro, o Sr. A.... Marcamos uma reunião. Essa reunião foi efectivada no escritório, pelo menos disse que era o seu escritório no dia 16 de Março de 2010, no sentido de resolvermos rapidamente a questão, uma vez que tinham sido creditados ou creditado um montante substancialmente superir ao que era devido. Porque o devido era cerca de mil e quinhentos euros, que era o montante que deveria ter sido creditado. Fomos então a essa reunião onde conhecemos o Sr. B... que se intitulou gestor de negócios do Sr. A..., seu filho e que todo e qualquer assunto deveria ser resolvido com o próprio e assim foi. Na altura, logo a primeira proposta que o Sr. apresentou disse que realmente tinha recebido o dinheiro, e a primeira proposta foi se podíamos fazer um empréstimo bancário, para que, naquele momento não tinha disponibilidade financeira para devolver o dinheiro e queria um empréstimo bancário. Nós com a companhia de seguros, com essa figura de empréstimo bancário dissemos que não. O Sr. propôs então o pagamento faseado, e disse que o que realmente interessava era o empréstimo bancário porque estava na construção e que a venda estava, enfim, parada. Nós tentamos ir ao encontro do que ele podia liquidar para sermos ressarcidos, uma vez que fomos nós que incorrectamente creditamos aquele montante. Isto no dia 16 de Março. Posteriormente também, tendo ido ao encontro do que foi dito na reunião e, uma vez que não era possível de todo um empréstimo bancário surgiu a possibilidade de um empréstimo hipotecário e o Sr. disse que sim, que era muito melhor. Que mais uma vez não tinha liquidez e foi então que tentamos pela via do empréstimo hipotecário. Foram dadas duas fracções ou foram apala …, ditas que seriam dadas duas fracções para que cobrissem o montante em dívida. Depois a partir daí o processo deixou de estar nas minhas mãos, passou para as mãos do departamento dos Advogados porque entretanto sei que havia papéis que nunca condiziam, as propriedades ou as fracções não estavam propriamente em nome tomador de seguro e metiam uma sociedade e não recebemos documentos necessários à execução da escritura, não sei. E a partir daí eu, a minha ação cessou completamente. Foi só a primeira fase de tentar resolver as coisas de uma forma ..

                MP: A Sra. sabe se na realização da proposta de seguro, quem é que era o vosso interveniente, o vosso intermediário?

                Testemunha: Como assim, não percebi.

                MP: Nós temos aqui uma proposta de seguro, temos aqui um tomador de seguro ou o futuro tomador de seguro, o Sr. A.... Quem é que era o vosso intermediário?

                Testemunha: Quem é que era o nosso intermediário, eu não percebo Dra.

                MP: Há algum intermediário da E... quando há uma proposta de seguro, como é que funcionava?

                Testemunha: É assim, as entidades, se eu percebi a pergunta, a questão é como é que o contrato chegou à Erovida. As propostas de seguro podem chegar por várias vias, pode ser via banco popular, que eu não sei se foi, se não foi sinceramente, ou pode ser via mediação.

                MP: Se eu a confrontar com a proposta de seguro consegue-me dizer como é que esta proposta de seguro chegou às mãos da seguradora?

                Testemunha: Consigo se tiver o carimbo em baixo, consigo.

                MP: Consegue dizer alguma coisa?

                Testemunha: Não consigo identificar como é que chegou.

                Juiz: Mas foi celebrado?

                Testemunha: Foi, foi.

                MP: E para a celebração desse contrato são verificados os elementos de identificação?

                Testemunha: Sim.

                Advogada: Já referiu que não teve qualquer contacto com o tomador do seguro no momento da celebração, essa não é a sua área. Portanto não pode confirmar quem é que celebrou este contrato, isto já antecipando qualquer questão. Não pode confirmar?

                Testemunha: Não.

                Advogada: Mas desde que deram conta, referiu há pouco que deram conta de que tinha havido uma transferência de um montante que não era devido, foi isso, num acerto de contas. Pode explicar mais um pouco como é que deram conta de que esse montante não era correcto? Como é que surge este pagamento.

                Testemunha: A apólice foi celebrada em 2007 e é um produto constituído por vários fundos de investimento. Em 2009, no final de 2009, um desses fundos, por iniciativa da sociedade gestora acabou e nós enviamos, no inicio de Janeiro, no final de Dezembro de 2009, uma carta ao tomador de seguro a informar que aquele fundo no valor de mil e quinhentos, mais ou menos, e quinhentos euros iria cessar e quais, o que é que o Sr. queria fazer. Ou investir noutro fundo ou então solicitar o resgate desse montante. Então no início de Janeiro recebemos então essa cartinha assinada pelo tomador de seguro, o Sr. A... a dizer que preferia que fosse creditado o montante de mil e quinhentos euros para a conta tal, … assinado de acordo com a proposta de seguro. Foi com base nesse pedido do Sr. A... que nós incorrectamente creditamos os cento e vinte e nove mil euros. A origem do erro foi esta.

                Advogada: Nunca houve qualquer dúvida entre a identificação da conta que vos foi dada na carta que receberam?

                Testemunha: Sim.

                 Advogada: E a transferência que fizeram?

                Testemunha: Não, não. Foi só ao nível do montante que houve o problema. A conta foi exactamente aquela que nos indicaram e foi assinada pelo Sr. A....

                Advogada: E vocês em algum momento conseguiram confirmar quem era o titular da referida conta? Ou não tiveram acesso a essa informação ou limitaram-se a fazer …

                Testemunha: Não, uma vez que a assinatura estava devidamente certificada, transferimos à conta que o tomador de seguro nos indicou.

                Advogada: E depois, referiu há pouco que num acerto de contas …

                Testemunha: Depois, dois meses mais tarde, isto foi em Janeiro, no inicio de Janeiro de 2010, dois meses mais tarde fomos confrontados pelo … numa … bancária tinha valores que não podiam estar correctos e foi então aí que nós verificamos que por lapso tínhamos feito uma transferência para o NIB correcto, mas com um montante errado.

                Advogada: Não há qualquer dúvida de que aquele montante não tinha razão de ser?

                Testemunha: Não. De maneira nenhuma. Aliás, a carta que recebemos do tomador de seguro, está lá a dizer qual é o montante, o valor do fundo que ia deixar de ser gerido, ia acabar. E está lá escrito o montante, não há qualquer dúvida do montante.

                Advogada:  E posteriormente fizeram um contacto para o tomador de seguro a solicitar esse …

                Testemunha: É assim, nós tínhamos a proposta do tomador de seguro e telefonamos para o número que constava na proposta do tomador de seguro, antes disso ainda enviámos a carta a dizer que, por lapso, foram transferidos o x montante e pedimos, obviamente a devolução. Paralelamente, ou uma semana depois, telefonamos então, telefonei para o número de telefone que constava na proposta de seguro, identifiquei-me, perguntei se tinham recebido a carta.

                Advogada: E o Sr. disse-lhe que sim, que tinha conhecimento dessa carta?

                Testemunha: Sim, sim.

                Advogada: O Sr. B...?

                Testemunha: O Sr. B..., sim porque eu nem sabia de quem era o telefone. Eu achava que eu estava a telefonar para o tomador de seguro, para o Sr. A..., porque era o telefone que constava na proposta de seguro. Marcamos uma reunião e no dia 16 de Março tivemos uma reunião no seu escritório, pelo menos foi assim que foi identificado, que é ali na rotunda dos pastorinhos.

                Advogada: E o que é que vos foi dito na altura pelo Sr. B... para justificar que o dinheiro não seria devolvido ou que não tinha ainda sido devolvido o diferencial?

                Testemunha: Substancialmente não foi dito nada de concreto.

                Advogada: Só apresentada a proposta?

                Testemunha: Sim, foi apresentada uma proposta de devolução, que era muito complicado no momento ter liquidez suficiente, mas queríamos resolver as coisas e nós também, obviamente queríamos que as coisas se resolvessem, dado os montantes que estavam envolvidos. Queríamos que se resolvesse tudo a bem.

                Advogada: E a proposta que vos foi apresentada foi-lhe dado por escrito?

                Testemunha: Sim, existe uma proposta apresentada por escrito. Uma proposta de pagamento faseada, em algumas prestações. Eu lembro-me de na altura de ter ouvido que só em Junho é que podia, em Junho ou em Setembro iria realizar uma escritura, razão pela qual poderia ser um montante maior. Sei que havia sempre o problema da construção, das vendas. Então também tentamos facilitar, começar com prestações mais baixas para depois serem as outras mais elevadas porque basicamente o que nós queríamos era resolver a situação criada.

                Advogada: Exibir a proposta do pagamento faseada (fls. 124). Era esta a calendarização que refere aqui os montantes mais elevados. Portanto era isto?

                Testemunha: Foi.

                Advogada: Nenhum daqueles pagamentos foi feito, realizado?

                Testemunha: Não.

                Advogada: Por ninguém?

                Testemunha: Não.

                Advogada: Não foi realizado nenhum pagamento relativamente a este montante?

                Testemunha: Não.

                Advogada: Tem conhecimento, desde que começou este processo, a Sra. foi ouvida em fase de inquérito também, portanto prestou declarações?

                Testemunha: Sim , na polícia.

                Advogada: Desde dessa altura recorda-se de ter havido algum contacto para a E... de alguém, de nome de A... a tentar pedir esclarecimentos sobre esta situação ou tentar justificar o que se passava neste processo?

                Testemunha: Não.

                Advogada: Nunca receberam nenhuma reclamação relativamente a este ponto?

                Testemunha: Não.

                Advogada: A dizer que houve algum engano, que houve um lapso que pudesse ter havido. Não tem conhecimento de que isso tenha acontecido?

                Testemunha: Não.

                Advogada: Também não tem conhecimento de ter havido alguma reclamação da parte do tomador de seguro em como não receberam os mil e quinhentos e qualquer coisa?

                Testemunha: Não.

                Advogada: Isto apenas para poder justificar que poderia ter havido um lapso na transferência? Ma o tomador de seguro nunca se queixou relativamente aquela transferência não ter sido realizada?

                Testemunha: Não.

Advogada: E a E... continua à espera dos cento e vinte e oito mil euros, que é o diferencial?

                Testemunha: Que é a diferença, que é o diferencial.

                Advogada: Não pedem obviamente o montante integral?

                Testemunha: Sim.

                Advogada: Sabe se o contrato ainda está em vigor relativamente aos outros fundos? Tem conhecimento disso?

                Testemunha: Está. A última vez que eu olhei, estava.

                Advogada: Ainda continua em vigor?

                Testemunha: Sim, sim.

                Advogado: Às vezes os bancos tem seguros para estas situações. Neste caso a E... tem seguros para estas situações. Portanto, vocês fazem um lapso, fazem um erro, depois têm uma companhia de seguros que vocês comunicam e até à solução final, resolvem estas questões. É assim ou não é?

                Testemunha: Eu não tenho conhecimento disso. Eu trabalho, já trabalho há muitos anos nisto, nesta companhia, mas não tenho conhecimento que exista seguros para lapsos.

                Advogado: Não tem conhecimento de se existe um seguro que cobre os riscos?

                Testemunha: Eu não sou banco, eu sou a companhia de seguros. Eu sei que existe nos bancos um …, mas eu nunca trabalhei num banco. Eu trabalho numa companhia.

                Advogado: Eu estou a perguntar se a sua companhia de seguros, neste caso a E..., tem ou não tem também ela própria um seguro de riscos para este tipo de situações que as … cometem?

                Testemunha: Não tenho conhecimento.

                Advogado: A Sra. alguma vez falou com A...?

                Testemunha: Não.

                Advogado: Nunca o viu?

                Testemunha: Vi-o hoje pela primeira vez.

                Advogado: A Sra. também não sabia que era ele que …

                Testemunha: Não, não sabia.

                Advogado: Esta proposta foi preenchida?

                Testemunha: Sim.

                Advogado: Foi preenchida por quem?

                Testemunha: A assinatura é do Sr. A....

                Advogado: Mas a Sra. viu que a assinatura era dele, viu-o assinar?

                Testemunha: Se o vi assinar?

                Advogado: Sim.

                Testemunha: Não. O B.I está de acordo com … a assinatura está de acordo com o B.I, a assinatura que consta da proposta de seguro é igual à que consta no B.I.

                Advogado: A Sra. nem sequer sabe quem preencheu esta coisa aqui, … Não sabe quem é que preencheu isto?

                Testemunha: Não, mas sei que é que assinou.

                Advogado: Como?

                Testemunha: A assinatura, porque a assinatura é exactamente igual à que consta no Bilhete de Identidade.

                Advogado: Só por isso? Exibição das fls. 119. A Sra. está ali a ver alguma assinatura? Isso é o documento original?

                Testemunha: Não.

                Advogado: Isto é uma fotocópia?

                Testemunha: Sim.

                Advogado: A Sra. está a ver uma fotocópia de um documento e diz que é a assinatura do Sr. A...?

                Testemunha: Eu nunca vi o Sr. assinar.

                Advogado: Está aqui um documento que, fls. 120, quando é que a Sra. teve interferência ou quando é que o documento foi feito?

                Testemunha: Quando é que o documento foi feito?

                Advogado: Sim.

                Testemunha: Foi emitida em 28 de Dezembro de 2007. Isto é um documento automático do sistema informático.

                Advogado: …

                Testemunha: É um documento informático, que são as condições particulares … que

                Juiz: São as condições particulares desta apólice?

                Testemunha: Sim. E é emitida automaticamente pelo sistema informático.

                Advogado: A Sra. diz que isto é a proposta de pagamento?

                Testemunha: Sim, mas isto foi assinado pelo Sr. B..., que era o pai do Sr. A... e seu gestor de negócios, foi assim que se intitulou.

                Advogado: Este documento foi enviado para onde?

                Testemunha: Mandamos para o Sr. A....

                Advogado: Para ele?

                Testemunha: Sim.

                Advogado: Aqui no canto superior esquerdo, o que é que lá está escrito?

                Testemunha: O que é que lá está escrito, como assim?

                Advogado: Está lá o nome de uma empresa?

                Testemunha: Isto foi enviado em 23 de Dezembro de 2009, para o Sr. A....

                Advogado: Sim, mas está aqui …

                Testemunha: O original foi enviado para casa do Sr. …

                Advogado: Veja se a correspondência podia ter chegado a casa dele, tendo em conta a morada que aí está?

                Testemunha: Posso ver a proposta de seguro -  Está Rua W..., Z....

                Advogado: Tem a certeza de que isso foi recebido?

                Testemunha: Tivemos a resposta do … Mas eu tenho a certeza que ….”

            Face ao teor destes dois depoimentos, o arguido defende que nunca houve qualquer contacto entre a Recorrida e o Recorrente, visto que todos os contactos foram feitos com o Sr. B..., pai do Recorrente e pessoa diferente do mesmo, ou seja, sempre foi o pai do Recorrente que manteve contactos com a Recorrida, não tendo o Recorrente qualquer conhecimento sobre os factos por que vem condenado.

           Mais considera “que, na sentença recorrida, também se diz que resultou provado que o arguido através de carta solicitou o envio de 1.5578,60 €.

                   Porém, embora conste da sentença recorrida, em julgamento não se fez nenhuma prova desta questão, pois ninguém disse em audiência de julgamento que viu o arguido a esscrever uma carta à ofendida, e a entregar tal carta nos CTT, ou em mão na sede da ofendida.

                   Portanto, não se pode assim dar como provado tal matéria.

                   As testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, e cuja transcrição acima foi feita para melhor apreciação neste recurso, nenhuma delas disse que sabia que o arguido tinha enviado uma carta a pedir a devolução e a indicar o NIB, pois nenhuma das testemunhas alguma vez falou com o arguido, ou sequer o conhecia.

                   Uma coisa é a fotocópia de uma carta, outra coisa é o original da carta, e outra coisa bem diferente, é saber quem escreveu a carta e a assinou, enviou, etc.

                   No Tribunal não ficou provado quem enviou a carta, quem pediu a transferência, quem recebeu a quantia, quem utilizou essa quantia, etc.

As testemunhas apenas confirmaram que existiu um erro, e que foi feita a transferência de valores para uma conta bancária, por existência desse erro.

Assim, teria de se ter provado que o erro foi causado pelo arguido, e que este sabia perfeitamente do erro que a ofendida iria cair, ao fazer o pedido.

                   Em segundo lugar, o recorrente faz apelo aos depoimentos das testemunhas de defesa I..., J...e L..., delas salientando o seguinte:

A) Depoimento de I...:

“Advogado: Conhece o A... há quantos anos?

Testemunha: Não sei exactamente, talvez aí cinco, seis.

Advogado: Alguma vez veio ao Tribunal defender nalgum processo que tenha tido conhecimento e que ele tenha sido julgado?

Testemunha: Não.

Advogado: É a primeira vez?

Testemunha: É a primeira vez.

Advogado: Sabe o que é que ele faz?

Testemunha: Sei, é estudante de gestão.

Advogado: Não exerce qualquer actividade?

                   Testemunha: Não, está no 3º ano. Até tenho acompanhado a carreira académica dele.

                   Advogado: Está a estudar?

                   Testemunha: Sim, no ISEL.”

                   B) Depoimento de J...:

                “Advogado: Sr. J... conhece o A... há quantos anos?

                Testemunha: Desde que ele nasceu, quase.

                Advogado: O que é que o A... faz?

                Testemunha: É estudante.

                Advogado: Alguma vez teve alguma profissão, que conheça?

                Testemunha: Que ele tivesse profissão?

                Advogado: Sim.

                Testemunha: Não.

                Advogado: Está sempre dependente dos pais?

                Testemunha: Sim. Exactamente.

                Advogado: E ainda hoje está?

                Testemunha: E ainda hoje está.

                Advogado: É a primeira vez que vem a tribunal defendê-lo ou já veio muitas vezes defendê-lo?

                Testemunha: Não, é a primeira vez.

Advogado: E teve conhecimento de que ele tivesse tido assim algumas chatices lá com alguém ou lá da terra ou que …

                Testemunha: Não, nunca.

                Advogado: É bom rapaz ou mau rapaz?

                Testemunha: Muito bom.”

                   C) Depoimento de L...:

                “Advogado: Conhece o Sr. A... há quantos anos?

                Testemunha: Não sei precisar, mas há 10, 15 anos.

                Advogado: O que é que ele faz?

                Testemunha: Ele é estudante.

                Advogado: Alguma vez veio ao Tribunal defender noutro processo qualquer?

                Testemunha: Não.

                Advogado: É a primeira vez?

                Testemunha: É a primeira vez.

                Advogado: Ele é bom rapaz ou não é bom rapaz?

                Testemunha: Muito bom rapaz, pessoa muito humilde.”

           Com base nestes depoimentos, adianta-se que “ o Recorrente é estudante, encontrando-se a frequentar o 3º ano do curso de Gestão, no ISLA, em Lisboa, vivendo dependente dos pais, pelo que, não aufere quaisquer rendimentos. Deste modo, não pode o arguido proceder à devolução do dinheiro, uma vez que não possui qualquer fonte de rendimento, vivendo a expensas dos seus pais, não tendo recebido esse dinheiro, etc.

                   Em terceiro lugar, o recorrente alude, ainda, à prova documental, argumentando que, “pela documentação junta e que foi apreciada em julgamento – a que não foi apreciada em julgamento, não pode ser tida em conta para efeitos de sentença final – nunca se poderá condenar o arguido, pois não praticou nenhum dos factos descritos na acusação e confirmados na sentença recorrida.

                   Nenhuma testemunha sabia quem escreveu as cartas, por quem e como foram enviadas, etc.

                   Em quarto lugar, refere que “como é sabido, as Instituições BANCÁRIAS e de seguro, como é o caso da ofendida, têm seguros que cobrem todos os erros dos seus funcionários envolvidos nas operações de transferências de valores, etc.

                   No processo nunca se discutiu esta questão.

                   O mais certo terá sido a ofendida já ter recebido a quantia que reclama, ou parte dela da companhia de seguros, e ter deduzido o pedido de indemnização cível a pedir toda a quantia, como se de facto não existisse nenhum seguro para esse fim.

                                                                              ****

                Pois bem, o recorrente limita-se a dar a sua própria avaliação da prova, não conseguindo demonstrar que a mesma impõe uma solução diversa daquela que foi adoptada pelo Tribunal a quo.

Vejamos.

No que tange aos depoimentos das duas (únicas) testemunhas de acusação, é um facto que ambas afirmaram nunca terem contactado directamente o arguido, na medida em que todos os contactos que mantiveram foram feitos com o seu pai, B....

No entanto, convém não esquecer o essencial da situação descrita nos autos: - a testemunha G... afirmou, de forma espontânea, por duas vezes, que o referido B... se intitulou gestor de negócios do arguido e “que todo e qualquer assunto deveria ser resolvido com o próprio”, sendo certo que está em causa um contrato de seguro cujo tomador é A... e cujos beneficiários, em caso de morte, são C...e D... (fls. 7).

Ora, tendo sido exercido o princípio do contraditório na audiência de julgamento em que esteve presente o arguido, e não existindo qualquer prova que coloque em causa o que foi dito pela citada testemunha, é forçoso concluir que o pai do arguido apenas assumiu a gestão de um assunto que não lhe dizia respeito directamente, assumindo a condição de interlocutor nos contactos mantidos com a E..., S.A., relacionados com o contrato de seguro ora em causa, respeitante ao ora recorrente.

Note-se que, em nenhum momento das conversações ocorridas entre as duas testemunhas de acusação e B..., não foi colocada em crise a génese do contrato de seguro, mas apenas abordada a forma de restituição do dinheiro transferido por engano.

No que diz respeito aos depoimentos das testemunhas de defesa, nada disseram quanto à conduta imputada ao arguido, limitando-se, em resumo, a afirmar que o mesmo é estudante e que está dependente dos pais.

Estamos perante uns depoimentos vagos (nada foi dito, de concreto, quanto ao seu modo de vida) que, por isso mesmo, não podem impor uma alteração da matéria de facto.

No que toca à prova documental existente nos autos, importa salientar que, a fls. 10 dos autos, consta um documento que identifica o titular da conta bancária para onde foi realizada a transferência do montante de € 129.999,19 pela Assistente e que apresenta o nome do arguido.
                Nesse documento, consta, expressamente, “(…) Assim, o valor atrás identificado deverá ser transferido para o meu NIB …., do Banco N....” (está assinado A..., tal como o documento de fls. 7).
                Não se argumente no sentido de que a prova documental não apreciada em julgamento não pode ser tida em conta para efeitos de sentença final.
                A nossa mais alta jurisprudência não acompanha, em larga maioria, tal orientação. Exemplo disso, é o Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 6/1/2010, Processo n.º 20/05.9TAAGC.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, em que pode ser lido o seguinte:
                “Atendo-nos à disciplina da produção de prova em audiência de julgamento, deparamos com o disposto no artigo 355.º, n. 1, do CPP, segundo o qual não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, princípio que tem implícita a tutela dos princípios da oralidade, publicidade, contraditório e concentração.
                No caso dos autos, toda a prova considerada na motivação da decisão de facto da sentença recorrida foi produzida nas diversas sessões de julgamento.
                Cingindo-nos à diversa prova documental valorada na decisão, ressalvam-se do disposto no número n.º 1 do artigo 355.º do CPP as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes (n.º 2 do mesmo artigo).
                Assim, de acordo com a jurisprudência quase unânime do STJ, que trilhou a orientação de Maia Gonçalves Código de Processo Penal Anotado, 7.ª Edição, pág. 521., «valem em julgamento, independentemente da sua leitura em audiência, as provas contidas em actos processuais cuja leitura é permitida», nos termos dos artigos 356.º e 357.º do CPP.
                Ora, precisamente, «é permitida a leitura em audiência de autos...de instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas» [art. 356.º, n.º 1, al. a)].
                Decorre da conjugação das referidas normas que é permitida, mas não obrigatória, a leitura em audiência de julgamento dos documentos existentes no processo, independentemente dessa leitura, podendo o meio de prova em causa ser, como foi no caso concreto, objecto de livre apreciação pelo tribunal, sem que resulte ofendida a proibição legal prevista no art. 355.º do CPP Vide, a título meramente exemplificativo, os Acs. do STJ de 23-02-2005, CJ/STJ, XIII, tomo I, pág. 50, e de 31-05-2006, proc. n.º 06P1412, in www.dgsi.pt..
                Este entendimento não obsta a que os sujeitos processuais participem na produção da prova, contribuindo para esclarecer todos os elementos necessários à descoberta da verdade material. Porém, estando em causa documentos que existem no processo desde o inquérito ou instrução, teve a arguida todas as possibilidades de os questionar, podendo ter solicitado, na própria audiência de julgamento, a sua reapreciação individualizada, tendente ao esclarecimento de qualquer ponto relevante para a sua defesa, pedindo, inclusive, a leitura do dito documento.”
                Revertendo ao nosso caso, o arguido não colocou em causa, de um modo formal, a autenticidade das assinaturas dos documentos de fls. 7 e 10. Com efeito, nenhuma testemunha apresentou nesse sentido.
                Assim sendo, não é estultícia concluir que o arguido assinou tais documentos.

            Por fim, quanto à alegação de que a Assistente já deve ter recebido a quantia que reclama, estamos perante uma afirmação que não se apoia em qualquer facto (mera hipótese), pelo que, enquanto tal, é inócua para impor o que quer que seja.

                   Face a todo o exposto, não há que alterar a matéria de facto.
                                                                                ****

4. Da condição imposta ao arguido, em sede de suspensão da execução da pena:

O recorrente alega o seguinte:

“Acresce ainda, que caso se mantenha a sentença recorrida, esta levará a que o arguido seja condenado a prisão efectiva, dado que foi condição da não prisão o pagamento integral, acrescido dos juros à taxa legal.

Ora como o arguido não obtém qualquer rendimento da sua actividade, nunca poderá pagar no prazo fixado o valor da condenação, a não ser que lhe calhe o euromilhões.

Sendo certo também, que o prazo fixado, e caso o arguido tivesse aproveitado e gasto a quantia referida na sentença, o que não foi o caso conforme acima já se disse e provou, nunca seria suficiente para devolver tal quantia, dado que apenas lhe foi dado um prazo de 6 meses.

Esta sentença a manter-se é o mesmo que mandar o arguido para a prisão, pois nunca terá possibilidades de pagar, mesmo que termine o seu curso superior, pois como é sabido não existem empregos disponíveis para os recém licenciados em gestão.

Sendo certo que os mais velhos licenciados nestas matérias, até têm dado mal acolhimento às suas teses, pois o nosso país está quase na insolvência, e se não entrar o país, estão a entrar os particulares.

Assim, mesmo que se condenasse o arguido a devolver a quantia que é referida na acusação, nunca se poderia fazer depender a suspensão da pena, pelo facto de ter de pagar a referida quantia em seis meses – de referir que o ordenado mínimo nacional é de 485,00 €.

Ora, caso o arguido venha a terminar o seu curso até ao final do presente ano lectivo, o melhor que conseguirá, será arranjar um emprego numa pequena empresa, onde estagiará e receberá o ordenado mínimo nacional de 485,00 € mensais.

O que descontando depois as despesas de deslocação, alimentação, vestuário, etc., talvez fique com 145,00 € livres ao fim do mês.

E tendo em conta a quantia que consta da acusação, facilmente se poderá ver quantos anos seriam necessários para devolver tal quantia – quantia que conforme acima já se disse o arguido não recebeu nem utilizou.

Tendo sido fixado na sentença recorrida o prazo de 6 meses, é fácil de ver que é o mesmo que enviar o arguido para a prisão, a cumprir pena de um crime que não cometeu e nem aproveitou.”

                                                                              ****

Invoca neste âmbito o recorrente que a pena aplicada – pena de prisão de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada à condição de o arguido proceder ao pagamento à assistente, no prazo de seis meses a contar do trânsito em julgado desta decisão, da quantia de 128.420,59 Euros, acrescidos de juros à taxa legal desde a data de notificação para contestar tal pedido e até integral e efectivo pagamento – se afigura excessiva, considerando quer o diminuto período concreto de cumprimento da condição (seis meses) quer o facto de o arguido ser estudante finalista de gestão à data do julgamento.

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Desde já, e antes de entrarmos na análise da questão suscitada no recurso, há que dizer que a sentença recorrida enferma de um erro de direito.

Na verdade, considerando que ao arguido foi aplicada pena de prisão de nove meses, não deveria ter sido aplicado o período de suspensão de nove meses, mas de um ano, atento o limite mínimo previsto no artigo 50º, n.º 5, do Código Penal.

Acontece que não é possível alterar o prazo que consta da sentença recorrida, tendo em consideração o disposto no artigo 409.º, do CPP, ou seja, por força do princípio da proibição de reformatio in pejus, o Tribunal da Relação de Coimbra está legalmente impedido de proceder a uma modificação prejudicial ao ora recorrente, sendo, pois, de prevalecer o período de suspensão fixado no tribunal de 1ª instância.

Dito isto, avancemos.

De acordo com o disposto nos artigos 50.º, n.º 2, e 51.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, o poder-dever de condicionar a suspensão da execução da pena rege-se pelo critério da conveniência e adequação à realização das finalidades da punição, sendo que, no caso de imposição de deveres, a condicionante deve ser reportada às exigências de reparação do mal do crime, e a subordinação pode consistir no pagamento, do todo ou da parte que o tribunal considerar possível, da indemnização devida ao lesado – ver, neste sentido, Ac. do STJ, de 20.9.2006, processo n.º 1611/06-3).

Não se esqueça que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela – suspensão da execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado, traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização devida.

A alegação do recorrente reconduz-se, em síntese, a saber se está infringido o princípio da razoabilidade, com assento no art.º 51.º, n.º 2, do Código Penal, ou seja, se o dever imposto não pode em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir, conduzindo-o, necessariamente, à prisão.

Qual a interpretação que deve ser feita, quando a lei coloca assim ao estabelecimento de deveres o limite da exigência razoável?

Desde logo, a suspensão da execução da pena não pode ficar dependente de uma condição impossível, fisicamente impossível, tal como não pode ficar dependente de uma condição irrazoável.

Mas se limites impossíveis não podem ser estabelecidos como contrapartidas à suspensão, a suspensão também não pode ficar dependente de uma condição que, embora possível, justa, adequada, não seja razoável de exigir por se afigurar de satisfação impossível.

Sendo certo que nesta sede logo nos vêm à cabeça, inevitavelmente, os princípios da exigibilidade e proporcionalidade dos deveres impostos, teremos que considerar um outro dado neste raciocínio.

É evidente que não se pode limitar a suspensão da execução da pena ao pagamento de uma indemnização de 1000 quando os danos provocados se cifram em 100: trata-se de uma condição manifestamente desproporcionada às consequências provocadas pelo facto.

Mas será que o mesmo acontece quando os danos provocados foram de 1000 e a indemnização fixada se cifrou nesses 1000, embora o seu pagamento, possível face aos elementos disponíveis, exija esforço por parte do agente? Será que para obviar ao esforço se deve baixar o montante da condição, atendendo apenas à situação do agente e desconsiderando a do ofendido?

Conforme se vê, o juízo de razoabilidade da condição só pode fazer-se perante o caso concreto.

E no nosso caso a condição fixada – que se cifrou, e bem, na totalidade do valor transferido por engano –, não se revela impossível, nem sequer irrazoável (note-se que houve já negociações, ainda que infrutíferas, no sentido da restituição da respectiva quantia em seis meses, conforme documento de fls. 11, o que permite antever que não estamos face a algo de impossível concretização ou com contornos irrazoáveis).

Conforme referem as actas da Comissão de Revisão do Código Penal, foi acolhida neste diploma a ideia de que o agente do crime deve proceder ao pagamento segundo aquilo que puder e de acordo com as suas forças.

Mas isto não significa que a condição tenha que se restringir ao que for confortável ao agente, isto é, àquilo que ele puder cumprir sem sacrifício, sob pena de não se poder impor como condição de suspensão da execução da pena o pagamento de indemnização ao lesado quando o agente não disponha, no momento, do montante em causa.

Assim, e citando o decidido pelo S.T.J., no acórdão de 13 de Dezembro de 2006, proferido no processo 06P3116, in www.dgsi.pt, diremos que o n.º 2, do art.º 51.º, do Código Penal, consagra o princípio da razoabilidade, que significa que a imposição de deveres deve atender às forças do destinatário, o agente do crime, para não frustrar, logo à partida, o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, mas cuidando de não cair no extremo de fixar uma condição atendendo apenas às possibilidades económicas e financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, qual seja o de dar ao arguido margem de manobra suficiente para desenvolver diligências que lhe permitam obter recursos indispensáveis à satisfação do dever ou condição.

Uma pena, qualquer pena, para ser eficaz, deve ser sentida pelo agente e, no caso de pena suspensa, muitas vezes a única coisa que o agente sente é, precisamente, a condição fixada.

Por conseguinte, nenhum reparo, nesta parte, merece a sentença recorrida.

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                IV – DECISÃO:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.     

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco UC.


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(José Eduardo Martins - Relator)
               (Maria José Nogueira)


[1] - cfr. Prof. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1967/1968, n.º 4 - Os Princípios de Processo Penal.
[2] La Prova Penale, pág. 9 e segs.
[3] “A liberdade de apreciação da prova não pode estar mais longe das meras conjecturas e das impressões sensitivas injustificáveis e não objectiváveis” - Paulo Saragoça da Mata, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade de Direito de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, pág. 231.
[4] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes, secção de textos da FDUC, 1988-9, págs. 140.
[5] Paulo Saragoça da Mata, ob. cit., pág. 251.