Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
123/10.8TAAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
PROIBIÇÕES OU INTERDIÇÕES
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DE ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 353º, DO C. PENAL
Sumário: Após 15/9/2007 (entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro), pratica o crime do artigo 353º, do C. Penal (“Violação de imposições, proibições ou interdições”), aquele que não entrega a carta de condução, após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 10/10.0TAAGN do Tribunal Judicial de Arganil, foi deduzida acusação pública contra o arguido A..., melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violação de proibições previsto e punido no art. 353.° do CP.

2. Através de despacho judicial proferido em 30/1/2012, foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público por entender que os factos de que vem acusado o arguido não constituem crime, ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.º 2, al. a) e 3, al. d), do Código de Processo Penal, considerando-a pois manifestamente infundada.

3. Inconformado com o assim decidido, recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. No âmbito dos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de crime de violação de imposições, proibições e interdições, previsto e punido pelo art. 353º do Código Penal.

2. O Mmº Juiz a quo decidiu que os factos imputados ao arguido não consubstanciam a prática do crime que lhe fora imputado na acusação deduzida - crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo art.353º do Código Penal - rejeitando a acusação deduzida pelo Ministério Público, por a mesma ser manifestamente infundada.

3. Conforme V. Exa. já doutamente decidiram que, a al. d) do n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal apenas consente a rejeição da acusação se os factos que dela constam não constituírem crime, ou seja, se no estrito quadro dos termos em que foi deduzida a acusação, se verificar, pela leitura dos factos, que os mesmos não conformam a prática de qualquer ilícito penal - in Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/07/2010.

4. Quanto ao entendimento vertido no douto despacho recorrido relativamente aos factos imputados ao arguido não integrarem a prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo art. 353º do Código Penal, assumimos posição diferente, porquanto entendemos que tais factos integram a prática do referido ilícito criminal.

5. No caso em apreço, resulta suficientemente indiciado da prova coligida para os autos durante o inquérito que, por sentença transitada em julgado proferida no âmbito do processo nº39/10.8 GBAGN, o arguido foi condenado na pena acessória de conduzir veículos a motor pelo prazo de 7 meses, tendo ficado obrigado a entregar a sua carta de condução no Tribunal ou no Posto da GNR, nos 10 dias seguintes ao trânsito em julgado da sentença que o condenou, o que não cumpriu.

6. A entrega da carta de condução pelo arguido condenado em pena acessória de proibição de conduzir a fim de iniciar o cumprimento dessa pena, é uma imposição determinada por sentença judicial transitada em julgado, cujo não cumprimento determina a frustração de sanção imposta por sentença criminal, porquanto a pena acessória de proibição de conduzir só se inicia com a entrega da carta de condução.

7. Considerando-se que a não entrega da carta de condução no prazo estipulado não integra o tipo de ilícito criminal previsto no art. 353º do Código Penal, tal traduzir-se-ia num vazio punitivo para a conduta do arguido que não procedesse à entrega voluntária da sua carta de condução e se visse frustrada a apreensão daquele documento nos termos do artigo 500º, nº 3 do Código de Processo Penal, pois que tal culminaria na ausência de quaisquer consequências para a recusa do arguido em cumprir a pena acessória a que está obrigado.

8. Em boa verdade, uma vez que o cumprimento da pena acessória só se inicia com a apreensão do título de condução, admitindo-se que a conduta do arguido de não entregar no prazo dos 10 dias a sua carta de condução não integraria o elemento objectivo do tipo de ilícito criminal em investigação, haveria arguidos que, tendo sido condenados na pena acessória de proibição de conduzir, por se furtarem à apreensão policial do título, não mais cumpririam essa pena, havendo outros que obedecendo à ordem legalmente dada pelo Tribunal, sofreriam efectivamente a condenação — Parecer do Ex.mo Sr. Procurador - Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Coimbra, (in Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/07/2010).

9. Ora, a eventual recusa de o arguido cumprir com a pena acessória, traduzida na falta da entrega da carta de condução, parece-nos, pois, ser merecedora de suficiente dignidade a valorar em termos penais. É que, assim não sendo, equivaleria a admitir-se a possibilidade de deixar à consideração do arguido a decisão de cumprir ou não com tal pena acessória, ou de cumpri-la apenas quando entendesse. Acreditamos, pois, que tal não seria desejado pelo legislador e daí a nova redacção do art.353º do Código Penal.

10. Consideramos, pois, que os factos imputados ao arguido consubstanciam a prática do crime de violação de imposições, proibições e interdições, previsto e punido pelo art.353º do Código Penal, pelo que, não deve ser a acusação pública rejeitada com o fundamento que os factos imputados ao arguido não configuram a prática de crime.

11. Face ao exposto, em nosso entendimento, o despacho ora posto em crise viola o preceituado no art.311º do Código de Processo Penal, pelo que deve ser o mesmo revogado e substituído por outro que, recebendo a acusação pública deduzida contra o arguido designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento.

Nestes termos e nos mais de direito doutamente supríveis, deve o presente recurso proceder, revogando-se o douto despacho recorrido e substituindo-se por outro que receba a acusação deduzida e designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento»

4. O arguido não respondeu ao recurso.

5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal.

6. Na Relação, o Ilustre Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, concluindo que o recurso deve proceder.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP não foi apresentada resposta.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do âmbito do recurso

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões da motivação constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Ed., pág. 335, e Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, pág. 103).

Assim, no caso concreto a única questão que se impõe decidir traduz-se em saber se o Tribunal a quo, perante a factualidade vertida na acusação, deveria ter realizado o julgamento a fim de apurar se o arguido/recorrido incorrera na prática de um crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal.

2. É esta a decisão recorrida (transcrição):

“(…)

Autue como processo comum singular.

*

O Tribunal é absolutamente competente.

*

Ao arguido A... é imputada na acusação pública deduzida a fls. 22/23 a prática de factos susceptíveis de integrar o cometimento do crime previsto no artº 353º do Código Penal (crime de violação de imposições, proibições ou interdições), porquanto em síntese útil, o arguido não entregou a carta de condução no prazo de 10 dias conforme lhe foi cominado na sentença, apesar ter sido advertido de que se a não entregasse em tal prazo, poderia incorrer na prática de um crime.

Todavia, entendemos que tais factos não constituem crime.

Na verdade, não pode deixar-se de aderir aos fundamentos vertidos no Acórdão da Relação de Coimbra, de 09.11.2011, proc. nº 984/09.3 TAVIS C1, relatora, Desembargadora Maria José Nogueira, in www.dgsi,pt, remetendo-se ainda para a jurisprudência aí citada concordante com a tese de que, conforme nele se sumaria: “ O arguido, pese embora tenha sido notificado, para esse efeito, ao não proceder à entrega da sua carta de condução, no prazo de 10 dias contados do trânsito em julgado da sentença, com vista ao cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado, não incorreu na prática do crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353º, do Código Penal, já que a sua conduta não representa a violação da concreta proibição de conduzir, a qual apenas se consuma com a realização da conduta de que se está inibido”.

Com efeito, no aludido aresto diz-se: “Por nos revermos na argumentação aí expendida transcreveremos o que a propósito ficou consignado no acórdão do TRC de 12.05.2010 [ Relator, Desembargador Ribeiro Martins], reproduzido no acórdão do TRC de 06.10.2010 [Relator, Desembargador Orlando Gonçalves], O que a norma do art. 353.º do CP diz é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória; não diz, imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória. Logo, só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art. 69º do CP), quem exercer função (art. 66º do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art. 67º. do CP). Já não pratica o crime quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g. não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa do serviço, estas obrigações processuais (…). E não se pode entender que a obrigação de entrega da carta faz parte do contéudo da própria pena acessória (…) Isto porque o legislador define o conteúdo desta no art. 69/1 do Código Penal. E o princípio da legalidade e da tipicidade da norma penal não deixam espaço para interpretações que contrariem o elemento literal do tipo. A imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só”.

Prosseguindo o citado aresto, em abono da tese sufragada, refere ainda: “Em idêntico sentido, contrariando a tese que vê na alteração introduzida, pela Reforma Penal de 2007, ao artigo 353º do Código Penal a expressão da vontade inequívoca do legislador de nele, também, incluir a não entrega da carta de condução, no prazo de 10 dias contados do trânsito em julgado da decisão, e uma vez mais por traduzir, a esse respeito o nosso pensamento (leia-se e também o deste tribunal), até porque, modestamente reconhecemos nada termos já a acrescentar, reproduzimos as seguintes passagens do acórdão do TRP de 02.03.2011 [Relator, Desembargador Araújo Barros]: «Do que se trata é de violação de obrigações que consubstanciam a própria pena. Não abrangendo as que, como a da apresentação do título de condução, são impostas para possibilitarem o cumprimento de uma pena acessória. O teor do preceito não deixa margem para dúvidas - «quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada» (…) A alteração do artigo 353º do Código Penal operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ao acrescentar à previsão legal a violação das penas com obrigações de conteúdo positivo, como as injunções cominadas a pessoas colectivas, penas acessórias que, com o mesmo diploma, passaram a estar contempladas nos artigos 90º-A, nº 2, alínea a), e 90º-G do Código Penal”.

Igualmente neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 12.07.2011, proc. Nº 295/09.4 TAVIS C1, relator, Desembargador Jorge Dias, in www. dgsi.pt, quando se diz: “(…) Como salienta Maia Gonçalves em anotação ao art. 353 do CP anotado e comentado, “ a violação prevista é só relativamente a proibições ou interdições impostas por sentença criminal a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade”, sendo que a alteração operada pela L. nº 59/2007 não altera este entendimento, ao acrescentar a violação de imposições. Tem de ser uma imposição relativa a pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade (ou pena aplicada em processo sumaríssimo). E, a não entrega da licença de condução no prazo legal após o trânsito em julgado da decisão que determinou a apreensão não é pena acessória. A pena acessória consiste na inibição da faculdade de conduzir veículos motorizados, sendo a entrega da carta um meio de facilitar a materialização e até controlo do cumprimento da pena acessória. Nem a sentença tem que impor a entrega e, não se verificando a entrega voluntária, prescreve o artigo 500, do Código de Processo Penal: 2 – No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo. 3 – Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução. A consequência única da não entrega da licença de condução é, ser ordenada a sua apreensão. (…) O preceito em causa (art. 353 do CP) não consente a integração nele de comportamentos processuais prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem”.

*

E os factos constantes da acusação também não são, em nossa opinião, susceptíveis de integrar a prática do crime de desobediência previsto e punido pelo artº 348º, nº 1, al. b) do Código Penal.

Dispõe o artigo 348º, nº 1 do Código Penal que “Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimo, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.

Entendemos e desde já por antecipação que os factos constantes da acusação não constituem, em nossa opinião, o crime pelo qual o arguido se encontra acusado.

Com efeito, no que concerne a esta matéria, aderimos integralmente à doutrina expressa e demais jurisprudência aí citada, no Ac. Relação de Coimbra de 14.10.2009, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Paulo Guerra, no processo 513/05.8, cujos trechos mais significativos passamos a citar: 

“ (…)

A respeito do bem jurídico protegido por tal incriminação, escreve Cristina Líbano Monteiro – “in” “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, tomo III, pág. 350 - que se trata da autonomia intencional do Estado, impondo-se assim ao cidadão uma forma particular de não colocação de entraves à actividade do ente público no exercício das suas funções, dirigidas ao bom andamento da vida comunitária.

Opina Lopes da Mota, “como se salienta no preâmbulo do Código Penal (nº 36), o que se protege, nos crimes contra o Estado, em geral, e, em particular, nos crimes contra a autoridade pública, é a própria ordem democrática constitucional. Nas palavras do legislador, o bem jurídico não se dilui na noção de Estado, antes se concretiza no valor que este, para a sua prossecução, visa salvaguardar” (Jornadas de Direito Criminal”, do CEJ, Vol II, p. 412).   

Nestes termos, o tipo objectivo de ilícito fica preenchido com o acto de falta de obediência, por acção ou omissão, desde que esta seja devida, designadamente por a ordem ser legítima, emanada de quem tenha competência para o efeito e regularmente chegada ao conhecimento do destinatário, entendendo-se aqui que terá de haver condições para que este último se possa inteirar efectivamente da ordem emitida, por forma a fundar-se o respectivo dolo.

Posto o que se acaba de dizer, a fonte da dignidade penal do acto de desobediência impõe então que exista disposição legal que expressamente comine a incriminação (são os casos da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do referido artigo 348º) ou, na ausência de tal norma, que a autoridade ou o funcionário que emite a ordem expressamente realize a referida cominação.

Assim, no primeiro caso, a conduta em obediência impõe-se por via de norma geral e abstracta anterior à prática do facto; no segundo impõe-se por acto de vontade da autoridade ou funcionário que realizem a correspondente cominação.

(…)

 Maia Gonçalves (Código Penal Português Anotado e Comentado, 18.ª ed., pág. 1045) opina sobre este normativo: «Trata-se de um artigo controverso. Não é possível a sua eliminação, porque serve múltiplas incriminações extravagantes e por isso poderia desarmar a Administração Pública. Mas seria certamente excessivo proteger desta forma toda e qualquer ordem da autoridade, incriminando aqui tudo o que possa ser considerado não obediência».

(…)

Ficou, portanto, clarificado que para a existência deste crime, para além do que se estabelece no corpo do nº 1, é necessário que, em alternativa, se verifique ainda o condicionalismo de alguma das alíneas deste número.»

3.3. In casu, o preceito que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

De facto, prescreve o artigo 500.º n.º2, do C.P. Penal:

«No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.»

Adianta o n.º 3 do mesmo preceito:

«Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.»

Façamos também uma alusão ao artigo 69.º, n.º 3, do Código Penal:

«No prazo de 10 dias contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.»

Como tal, inexiste qualquer cominação legal da punição da não entrega como crime de desobediência.

3.4. E a alínea b) do n.º 1 do dito artigo 348º do CP?

Aí existe uma cominação feita por uma autoridade.

Cristina Líbano Monteiro (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 354) doutrina que «[(…) a al. b) existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (i. é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal]».

Para a execução da pena acessória de proibição de conduzir, o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução – entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – tem como consequência a determinação da sua apreensão, razão pela qual não se entende, na linha do já profusamente defendido por esta Relação, que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega acaba por contrariar o sentido da norma.

Recuperemos o citado Acórdão desta Relação, de 22 de Outubro de 2008, processo 43/08.6TAALB.C1 (lido em www.dgsi.pt), referido pelo Exmº PGA na sua vista:

«(…) O preceito que regula a execução da proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

Digamos que a notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tem apenas um carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, como vimos, apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais.

Não há pois qualquer cominação da prática de crime de desobediência.

Por outro lado como é sabido, o intérprete deve presumir na determinação do sentido e alcance da lei, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas. (art. 9.º C. Civil).

Significa isto claramente que no caso em análise se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente (…)

Tomando igual posição, temos, pelo menos, os outros dois acórdãos citados a fls 152 - o Acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Dezembro de 2008, no processo 1932/2008-9 (lido em www.dgsi.pt), e o Acórdão da Relação de Coimbra, de 22 de Abril de 2009, no processo 329/07.7GTAVR.C1 (lido na mesma base de dados).

No primeiro desses arestos adiantam-se mais argumentos:

« (…) criando a lei mecanismos para quando, ultrapassada a fase “declarativa” da decisão sem que o agente cumpra voluntariamente, se passe a uma fase executiva da mesma, reagindo-se ao comportamento omissivo (no caso a não entrega da carta) com emprego de meios coercivos (determinando-se a concretização oficiosa da sua apreensão, fase para a qual se mostra indiferente a adopção de um comportamento colaborante por parte do arguido), e considerando que, entregue ou não a carta, se este conduzir no período de proibição comete o crime do artigo 353.º do CP (o que reduz, repete-se, a entrega da carta a um mero meio de permitir um mais fácil e melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir), a cominação da prática de crime de desobediência para a não entrega no momento em que surge no caso dos autos carece de legitimidade».

O segundo aresto poderia ter o seguinte Sumário:

· Para a entrega da pena acessória de proibição de conduzir, o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução – entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – tem como consequência a determinação da sua apreensão, razão pela qual se entende que a cominação de um crime de desobediência para a conduta de não entrega contraria o sentido da norma.

· A entrega ou apreensão de uma carta de condução constituiu um meio próprio e eficaz de controlar a efectiva execução da pena acessória.

Estando, portanto, na disponibilidade do arguido a entrega voluntária da carta, não podia o JUIZ substituir-se ao legislador, fazendo a referida cominação, opinando-se, em clara consequência, que a cominação feita carece de suporte legal.

3.5. Poderão ser aventados argumentos contrários à bondade desta tese que agora se segue e que, no fundo, corrobora a posição do tribunal recorrido (não haver lugar, no caso, à prática do crime de desobediência).

- em primeiro lugar, uma interpretação sistemática sugere a conclusão de que o carácter verdadeiramente injuntivo da ordem de entrega e a respectiva cominação com o crime de desobediência são de considerar como perfeitamente compatíveis com o ordenamento jurídico em vigor. Com efeito, o Código da Estrada prevê, para os casos de aplicação de sanção acessória de inibição de conduzir, que a falta de entrega da carta no prazo de 15 dias após a notificação para o efeito faz incorrer o responsável na prática do crime de desobediência – art.160º, nº 3 do Código da Estrada. Ora, não se compreende que a falta de entrega da carta para cumprimento de sanção administrativa aplicável a contra-ordenação seja cominada com o crime de desobediência, enquanto a mesma falta para cumprimento de pena acessória judicialmente decretada pela prática de crime não possa ter essa mesma consequência e que não tenha, afinal, consequência sancionatória alguma (e nem se diga que é assim porque a falta de entrega para cumprimento de pena acessória tem outra consequência – a apreensão – pois que tal apreensão está também prevista para a sanção acessória – art. 160º, n.º 3 e 4 do Código da Estrada).

- por outro lado, não parece que seja de considerar que a lei preveja sanção expressa para a falta de entrega da carta subsequente à aplicação da pena acessória. Efectivamente, é certo que a lei prevê em caso de não entrega voluntária da carta a sua apreensão, mas esta apreensão não tem natureza sancionatória mas, de outro modo, executiva. Dito de outro modo: não estando legalmente prevista qualquer sanção, o que se prevê com a apreensão é a forma de execução da pena acessória, aliás, como se disse, em termos paralelos à forma de execução da sanção acessória prevista no Código da Estrada. É que a apreensão - operação material de execução da pena - nada tem que ver com a sanção, designadamente criminal (ou contra-ordenacional), para a omissão de cumprimento de uma ordem (judicial ou administrativa) de entrega da carta.

- assim, da omissão do legislador quanto à sanção a aplicar no caso de não entrega da carta de condução em cumprimento de pena acessória (e da previsão quanto ao modo de execução material daquela pena), não resulta a irrelevância sancionatória, nomeadamente criminal, dessa omissão, caindo a situação, deste modo e em pleno, na previsão da alínea b) do nº 1 do artigo 348º do C. Penal.

- por último, também não se entende que a notificação efectuada para entrega da carta tenha valor meramente informativo, já que a lei – art. 69º do CP - é clara no sentido de que, após o trânsito em julgado, o arguido deve entregar a sua carta de condução no prazo de 10 dias, não estando prevista (nem sendo necessária) qualquer mediação judicial do sentido da norma. De outro modo, o que se entende é que tal comunicação visa dar uma ordem de entrega da carta em cumprimento do previsto no referido artigo 69º do CP cujo não cumprimento tem o desvalor criminal de inobservância de uma injunção judicial.

3.6. Os argumentos avançados em 3.5. não nos impressionam ao ponto de mudarmos de posição quanto à consideração da justa absolvição decretada por sentença de 20 de Maio de 2009.

Trata-se, no fundo, de uma norma em branco a do artigo 348º, n.º 1, alínea b) do CP – (que prevê uma «cominação funcional») -, a qual tem uma carácter absolutamente subsidiário, na medida em que a autoridade ou o funcionário só podem fazer uma tal cominação quando o comportamento em causa não constitua um ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa mesma conduta, seja ele de natureza criminal, contra-ordenacional ou outra, só sendo válida tal cominação “se for, de entre o mais, materialmente legítima", em nome também de um modelo de intervenção mínima constitucionalmente consagrado no art. 18°, n° 2.

Ora, no caso concreto, a sanção é a apreensão da carta em causa (artigo 500º, n.º 3 do CPP), não havendo qualquer outra sanção para o incumprimento dessa obrigação, não sendo legítimo ao intérprete e aplicador da lei substituir-se ao legislador e “inventar” uma nova cominação, no caso, dispensável e ilegítima.

Nesta situação, na hipótese de o arguido não entregar a carta no período estipulado pelo juiz, e no uso do artº 500°, n° 3 do Código de Processo Penal, o tribunal poderia ordenar a apreensão da licença de condução, cumprindo-se, assim, a pena acessória de proibição de condução.

Além disso, a entrega da carta tem a "mera função de permitir um melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir".

Existe, portanto, uma norma legal que prevê a entrega coerciva da carta de condução e, sendo a mesma idónea a produzir o efeito pretendido, falece a condição essencial à cominação mais gravosa: a já aqui referida legitimidade.

Não se pode, assim, secundar o raciocínio exposto na argumentação que defende o crime de desobediência, segundo o qual a lei penal não prevê, ao contrário da lei contra-ordenacional (estradal), directamente, a desobediência, só havendo, assim, que interpretar a lei penal de acordo com a lei estradal…

No fundo, é esse um dos argumentos decisivos da tese da desobediência - existindo no âmbito do direito contra-ordenacional uma disposição legal a prever a cominação da desobediência simples no caso de desrespeito do dever de entrega do título de condução para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir - artigo 160° nº 3 do Código da Estrada ­não se compreenderia que a punição da mesma conduta não fosse possível, ainda que através de cominação funcional do crime de desobediência, estando em causa uma infracção criminal.

As alterações efectuadas ao Código da Estrada, no que tange à incriminação da referida conduta, nos termos previstos na actual redacção do art.° 160°, n.° 3, e na redacção anterior às alterações de 2005, nos artigos 166° e 157°, teriam, para tal teses, duas consequências:

- sabido que a jurisprudência dominante não punha em causa a referida incriminação, designadamente, a legitimidade do juiz para fazer a referida advertência, demonstra que a intenção do legislador foi a de manter a referida incriminação em virtude de ter reforçado essa ideia no âmbito do processo contra-ordenacional e não estabeleceu qualquer restrição no regime penal;

- por força do princípio da unidade do sistema jurídico, não teria qualquer cabimento descriminalizar a referida conduta no âmbito dum processo de natureza criminal na medida em que "não pode sustentar-se um regime mais benévolo para sanção de natureza criminal/penal que o da contra-ordenação correspondente", ou seja, por maioria de razão, não pode o legislador deixar de incriminar o mesmo facto para os casos em que a decisão é tomada por um Magistrado Judicial, quando a mesma advertência pode ser feita por um funcionário da Administração Pública!

3.7. Não se ignora, contudo, que uma incriminação é, em todas as situações, uma conatural restrição de direitos fundamentais e, como tal, as normas incriminatórias devem ser lidas de modo restritivo, não o contrário (v.g. 18º, n.º 2 da CRP), reservando-se o Direito Penal para uma função subsidiária, “de última linha da política social”.

Tal premissa é convocada, sem qualquer dúvida, para a situação que ora se discute, na qual um JUIZ emite uma ordem, substituindo-se ao legítimo legislador.

Urge, pois, esgotar os meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil da ordem judicial de entrega (no caso, a apreensão da carta), residindo aí a condição da legitimidade material da própria ordem em nome do princípio da proporcionalidade.

O juiz que comina o crime de desobediência descura e olvida completamente o princípio da proporcionalidade, podendo cair-se numa perigosa república dos juízes, sempre amparados pela ameaça penal, necessariamente desproporcionada. Há mesmo quem afirme que a proporcionalidade da cominação é ela própria condição da legitimidade material da ordem judicial.

Como tal, o raciocínio desta tese é circular e falacioso – como a lei penal não prevê directamente, ao contrário da lei contra-ordenacional, a desobediência, só haverá que interpretar a lei penal de acordo com a lei estradal!

Ora, não estamos aqui a “contar espingardas” entre juízes e funcionários da administração pública. Talvez por não deterem o mesmo “ius imperium” ínsito na actuação de um juiz, democraticamente legitimado no exercício da sua judicatura, estes últimos precisarão de uma ameaça penal e de uma promessa de coercividade penal, não justificável quando estamos a falar de sentenças de juízes em que, a título principal, se aplicam penas criminais e não meras coimas, fazendo-se assim as devidas compensações sancionatórias…

O que se deve fazer é uma correcta aplicação dos princípios constitucionais considerados estruturantes na nossa ordem jurídica e não uma simplista comparação de regimes, tão falaciosa e pouco significativa.

De facto, não pode o aplicador recorrer à analogia para qualificar um facto como crime, na linha do estipulado no artigo 1º, n.º 3 do C.Penal.

O juízo da tipificação criminal deve estar reservado para o legislador democraticamente legitimado.

Se é verdade que a lei estradal não comina crime de violação de proibições (artigo 353° do CP) para quem conduza inibido para tal, também é verdade que a lei penal não comina desobediência para quem não entrega a carta estando proibido de conduzir, cominação que é feita na lei estradal (artigo 160º, n.º 3, do CE).

Ou seja, não há que fazer equiparações quando foi o próprio legislador que não as quis fazer…

Se existem “assimetrias” sancionatórias para a não entrega da carta e para a condução sob inibição ou proibição, conforme se trate de contra-ordenação ou de crime, diremos que só há que respeitar essa opção, por muito que não concordemos com elas, não sendo também possível corrigir tais assimetrias por via de uma nova incriminação, além do mais, pela simples circunstância da equidade não ser fonte de Direito Penal ou critério legitimador da incriminação. (...)”

*

Por conseguinte, ao abrigo do disposto no artigo 311º, nºs 1 e 2, alínea a), e 3, alínea d) do Código de Processo Penal, rejeito a acusação por a mesma ser manifestamente infundada, uma vez que os factos nela descritos não constituem crime.

Notifique.

Sem tributação».

 

                                                        *

3. Apreciando

3.1. A questão suscitada no recurso tem vindo a obter diferentes soluções, inclusive no mesmo tribunal da Relação, o que revela a necessidade urgente de fixação de jurisprudência pelo STJ.

O mesmo sucede na doutrina, pronunciando-se Paulo Pinto de Albuquerque no sentido de que o incumprimento da obrigação de entregar a carta integra o crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal – [cf. Comentário do Código Penal, 1.ª edição, pág. 834 e Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, pág. 1256], enquanto Tolda Pinto, em comentário ao artigo 160.º do Código da Estrada, incluído no “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, vol. I, 2010, UCE, defende que … o tribunal, ao proferir decisão condenatória que aplica a pena acessória prevista no art. 69.º deve notificar o arguido da obrigatoriedade da entrega da carta no prazo de 10 dias (cfr. n.º 3 do art. 69.º do CP e n.º 2 do art. 500.º do CPP), após o decurso do prazo do recurso, advertindo-o de que o não cumprimento tem consequências penais – o cometimento do crime de desobediência conforme contempla o n.º 3 do CE. Essa advertência deve constar da notificação da decisão (oral ou escrita), conforme estabelece a parte final do n.º 3 do art. 160º do Código da Estrada.

Vejam-se a propósito e a título meramente exemplificativo, os acórdãos do TRC de 20.01.2010 [proc. n.º 672/08.8TAVNO.C1], 23.06.2010 [proc. n.º 1001/08.6TAVIS.C1], 30.06.2010 [proc. n.º 149/08.1TAVGS.C1], 14.07.2010 [proc. n.º 48/09.0TAVGS.C1], 12.07.2011 [proc. n.º 295/09.4TAVIS.C1], 12.05.2010 [proc. n.º 1745/08.2TAVIS.C1], 06.10.2010 [proc. n.º 24/09.2TAVGS.C1], 16.12.2009 [proc. n.º 82/08.7TAOBR.C1], 22.04.2009 [proc. n.º 329/07.07] do TRG de 03.05.2011 [proc. n.º 50/11.1GBGMR.G1], do TRE 14.06.2011 [proc. 146/09.0TAPTG], 24.03.2011 [proc. 2/09.1TAABF.E1], do TRL de 18.12.2008 [proc. 1932/08], 24.03.2010 [proc. 470/04.8TAOER.L1 – 3] do TRP de 10.11.2010 [proc. 118/09.4T3OVR.P1], 22.09.2010 [proc. 2700/09.0TAVLG.P1].

Assim, há quem entenda que pós a revisão do Código Penal realizada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, a conduta concreta do arguido definida na acusação pública, como seja a falta de entrega da sua carta de condução, no prazo legalmente fixado, entrega que lhe foi imposta, por sentença criminal transitada em julgado, para cumprimento da pena acessória de inibição de conduzir em que fora condenado, consubstancia o crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal.

Os defensores desta solução defendem que resulta evidente que ao referir-se à violação de imposições foi intenção do legislador abranger a falta de entrega da carta de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir a que alude o artigo o artigo 69.º - 1/a do Código Penal, sendo certo que tal cumprimento apenas se inicia com a entrega efectiva daquele título. Consideram que a obrigação de entrega da carta de condução é inerente à própria pena acessória de proibição de conduzir, porque a condenação em tal pena implica a imposição ao condenado daquela obrigação, sem a qual não é possível o respectivo cumprimento.

É ESSA A NOSSA POSIÇÃO, ALIÁS já exarada no Recurso n.º 149/08.1TAVGS.C1 desta Relação.

3.2. Escrevemos nessa altura:

«Note-se que os factos narrados nos autos ocorreram em data[1] posterior à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007 de 4/9 (diploma que veio rever o Código Penal), sendo, assim, abrangidos pelo seu novo regime.

Estaremos agora perante o crime de violação de imposições p. e p. pelo artigo 353º do CP (nova redacção)?

É o que importa decidir.

Recordemos o teor dessa norma:

«Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias».

Ora, o confronto do texto actual com a anterior redacção do preceito não deixa margem para dúvidas – aditou-se o substantivo «imposições».

E para quê?

A descrição típica do crime, anteriormente apenas epigrafado de “Violação de proibições ou interdições”, foi substantivamente ampliada, prevendo agora, não só o sancionamento por violação das proibições impostas por sentença criminal a título de pena acessória, mas também a criminalização dos casos consubtanciadores de violação de imposições determinadas a igual título.

Bem acentua Alberto Mira, no seu eloquente Acórdão desta Relação de 20/10/2010, citado nas alegações do Exmº PGA:

«A incriminação que, na lei antiga, apenas tratava de garantir o cumprimento de sanções impostas por sentença criminal que não possuíssem qualquer outro meio de assegurar a sua eficácia, foi alargada com a nova lei, de modo a contemplar também a violação de imposições onde se integra, inter alia, o não cumprimento de obrigação determinada na sentença, consubstanciada no dever de entrega, pelo arguido, da carta/licença de condução.

Como observa Cristina Líbano Monteiro, a propósito dos artigos 349.º-354.º do Código Penal, tais preceitos emprestam a certas decisões do foro criminal a força coactiva prática de que careciam. Quando o tribunal condena, constitui o condenado numa situação de sujeição, que se traduz na maioria dos casos em deveres a observar.

Na situação concreta, com a amplitude normativa supra assinalada, concedida pela Lei n.º 59/2007 ao artigo 353.º, quis o legislador estabelecer consequências jurídico-penais para a violação da imposição, determinada na sentença, de entrega da carta/licença de condução

Afigura-se-nos, pois, que a incriminação agora prevista no artigo 353.º foi obviamente alargada com o objectivo de incluir os casos de incumprimento de imposições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória, nos quais se integra a situação traduzida na omissão de entrega, por arguido a quem está imposta pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor nos termos do artigo 69.º do CP, no prazo legalmente fixado previsto (cfr. artigos 69.º, n.º 3 e 500.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal) e determinado na sentença, de carta/licença de condução.

Os artigos da lei adjectiva penal supra referidos não contêm, é certo, qualquer cominação de punição da não entrega da carta de condução como crime.

Mas não teriam que conter, pois apenas regulam os moldes pelos quais o ordenamento jurídico procura efectivar e garantir o estrito cumprimento da pena acessória imposta, cabendo à lei substantiva penal a definição do quadro criminalizador».

Note-se ainda que na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 98/X, que esteve na origem da Lei n.º 59/2007, diploma que alterou o Código Penal pode ler-se que «O ilícito criminal de violação de proibições ou interdições é alargado. Entre as condutas típicas inclui-se agora também a violação de imposições, pelo que o tipo de crime englobará o incumprimento de quaisquer obrigações impostas por sentença criminal, tenham elas conteúdo positivo ou negativo».

Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pp. 226 e 834, deixa opinado que:

· «Se o arguido não entregar a carta no prazo fixado, comete o crime do artigo 353º do CP», devendo o juiz, na sentença condenatória proferida em processo penal, «ordenar a entrega do título de condução, com a advertência do artigo 353º do CP, se a mesma não se encontrar já apreendida», na medida em que «a previsão deste artigo foi alargada com o propósito de incluir precisamente estes casos de incumprimento de imposições resultantes de penas acessórias»;

· «O tipo objectivo – do artigo 353º do CP – consiste na violação de imposições (obrigações sanções de conteúdo positivo), proibições ou interdições (sanções de conteúdo negativo) determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade», nela se incluindo as sanções previstas «nos artigos … 69º …do CP».

Se assim não fosse, não se veria utilidade no acrescento do substantivo «imposições» na letra do artigo 353º.

Presume-se que as alterações legais sejam feitas com fitos determinados e objectivos precisos – neste caso, achamos que o legislador de 2007, perante o vazio legal ínsito nas nossas explanações de 3.1., e que estão na base da nossa consideração de que inexiste crime de desobediência no acto da não entrega de um título de condução após uma condenação em pena acessória, tomou finalmente a decisão de incluir no elenco de crimes essa actividade, usando o artigo 353º para tal efeito (entendendo que não seria curial usar o artigo 500º do CPP, como norma adjectiva que é, para tomar tal posição expressa e constitutiva).

Era importante deixar uma força coerciva suplementar, paralela à que já consta do artigo 160º, n.º 3, do Código da Estrada para as contra-ordenações. Sob pena de se deixar ao critério do arguido a decisão do melhor momento para cumprir a pena acessória (e sabemos que a execução da pena acessória só se inicia com a entrega da carta ou efectiva apreensão, como a jurisprudência tem sempre acentuado).

E ficarão finalmente satisfeitos aqueles que consideravam que haveria sempre de haver a cominação de um crime perante a omissão da entrega do título de condução, só se assim se compreendendo a letra do artigo 69º, n.º 4 do CP, quando impõe que «a secretaria do tribunal comunica a proibição de conduzir à DGV (…), bem como participa ao Ministério Público as situações de incumprimento do disposto no número anterior», encontrando-se assim, enfim, a coerência do sistema sancionatório em termos globais, nesta matéria de crimes ligados maieuticamente a infracções rodoviárias.

Não se ignora que há quem opine que o que a norma do art. 353.º do CP diz é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória, não falando a lei em imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.

Para tal tese, sancionada pelo relator do Acórdão desta Relação de 12/5/2010 (Pº 1745/08.2TAVIS.C1), só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art. 69.º do CP), quem exercer função (art. 66.º do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art. 67.º do CP), já não o praticando quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g, não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa de serviço, estas obrigações processuais.

Argumenta-se que a obrigação de entrega da carta não faz parte do conteúdo da própria pena acessória, sendo certo que o legislador define o conteúdo desta no art. 69º/1 do Código Penal – se assim é, a imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só.

O substrato material da pena acessória em causa é a proibição de conduzir, excluindo-se dela o acto de entrega da carta como elemento integrante desse substrato.

Perante a não entrega da carta, resta a apreensão da mesma (artigo 500º/3 do CPP), nada mais.

No dito acórdão desta Relação, sancionadora de tese contrária àquela que é por nós aqui defendida, deixa-se escrito que:

«Só no período de execução da pena fará então sentido falar-se em violação de proibições judiciais. Até à entrega espontânea ou forçada da licença de condução não haverá execução da pena e consequentemente violação de proibição judicial.

Se bem se atentar na redacção do tipo e para o que ao caso interessa, nele se dispõe que comete o crime «quem violar imposições ou proibições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória».

Ou seja, o tipo prevê como conduta criminosa a voluntária violação de imposições ou proibições que integrem o conteúdo duma pena acessória.

E a pena acessória no caso consubstancia-se na “proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses”. Pergunta-se -, a obrigação de entrega no indicado prazo da carta de condução integra tal proibição? Obviamente que não! É apodíctico que não integra a pena a obrigação da entrega da carta nas indicadas condições».

Para tal tese:

§ o preceito (353º) quando fala em imposições não se refere à situação em apreço;

§ entende que o que no preceito está agora clara e completamente dito é que a condução no período da proibição aplicada constitui infracção penal - aquela infracção penal;

§ o cidadão que conduz no período em que está proibido de o fazer, em virtude da pena acessória imposta, pratica aquele crime.

§ o que a norma diz é que quem violar imposições, proibições… determinadas… por sentença criminal …a título de pena acessória é punido – ou seja, o que a lei quer é não deixar na impunidade o incumprimento (com culpa dolosa) da pena acessória aplicada.

§ o juiz na sentença (em consequência do julgamento) condena na proibição de conduzir – esta proibição é que é a pena (acessória) aplicada. O arguido não é condenado a entregar o título num determinado prazo.

§ a questão da obrigação de entrega do título de condução constitui parte de um procedimento coactivo de modo a levar o arguido a cumprir a pena, mas só.

           

Não comungamos da bondade desta tese, precisamente por entendermos que, se é certo que a obrigação de entrega em prazo da carta de condução não integra a proibição[2], já integrará a imposição ínsita no novo tipo legal.

Imposição é uma sanção de carácter positivo, QUE PODERÁ ATÉ TER INCIDÊNCIA PROCESSUAL, na medida em que funciona como uma mais-valia de coercividade a uma real proibição decretada por sentença.

Imposição é, segundo o Dicionário de Língua Portuguesa 2006 – Porto Editora, é o acto de impor, reporta-se a «coisa imposta», a «ordem que tem de se obedecer».

Existe proibição quando se manda não fazer, abster-se de uma conduta, estando previstas essas proibições nos artigos 66º, 67º, 69º/ 1 e 2, 90º-A, n.º 2, alíneas c), 179º, 246º e 346º

As interdições estão previstas nos artigos 100º e 101º do CP.

E onde estão, afinal, as imposições acrescentadas em 2007 no tipo legal?

Parece-nos que o sistema legal penal, sem ser ferido de morte, suporta a interpretação de que cabe nessa imposição a ordem dada por um juiz para entrega da carta de condução num determinado prazo a fim de que seja cumprida uma pena acessória de proibição (artigo 69º/3 do CP).

Como adianta Cristina Líbano Monteiro, no Comentário Conimbricense do Código Penal, p. 402, «afinal, o artigo 353º tem um papel parecido com o da prisão subsidiária no domínio da pena de multa: funciona como um incentivo, uma norma dissuasora do não cumprimento da reacção criminal, uma sanção penal de constrangimento».

Queremos melhor constrangimento que esta norma aplicada ao n.º 3 do artigo 69º do CP?

E não deixa de ser esta ordem – que não terá somente, por isso, uma fisionomia processual – parte integrante da pena acessória aplicada. Por tal motivo, consideraremos que essa ordem judicial de entrega da carta é determinada por sentença criminal, a título de pena acessória (não o sendo somente a proibição de conduzir).

Por tal motivo, somos remetidos de imediato para a letra do artigo 353º do CP.

O que, diga-se a finalizar, não faz a nossa tese violar o princípio da legalidade, o disposto no artigo 18º, n.º 2 da CRP e o princípio da intervenção mínima do direito penal.

Em sede conclusiva, diremos, a propósito, que:

1º- Existe crime de desobediência nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de contra-ordenação, a que corresponde sanção acessória de inibição de conduzir;

2ª- Até à entrada em vigor do CP, na versão de 2007, não existia crime de desobediência – quer pela alínea a) (inexistência de norma expressa que tal comine), quer pela alínea b) (inexistindo legitimidade legal para tal cominação casuística feita pelo julgador) nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir;

3º- Após 15/9/2007, pratica o crime do artigo 353º do CP aquele que não entrega a carta após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir

Diremos ainda que nos parece que, após a leitura da sentença condenatória, onde se venha a incluir uma pena acessória de proibição de conduzir, o arguido deve ser notificado/informado de:

A)- que deve entregar o título de condução no prazo de 10 dias, sob pena do mesmo lhe vir a ser apreendido, nos termos do artigo 500º, n.ºs 2 e 3 do CPP;

B)- que a não entrega da carta nesse prazo o fará incorrer na prática de um crime de violação de imposições p. e p. pelo artigo 353º do CP;

C)- que a condução de veículo motorizado no período de proibição o fará incorrer na prática de um crime de violação de proibições p. e p. pelo artigo 353º do CP[3];

Concluímos, assim, que os factos descritos na acusação preenchem os requisitos objectivos e subjectivos do crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto no artigo 353.º do Código Penal.

O que só pode significar que a acusação dos autos não poderia ser considerada manifestamente infundada, na medida em que os factos nela descritos constituem crime».

3.3. Tudo, pois, a censurar no despacho recorrido, que assim se revoga, enquanto se aguarda uma tomada de posição do STJ no sentido da uniformização da jurisprudência.

Há crime – e esse é o do 353º do CP.

                                                        *

        

III. Dispositivo

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso intentado pelo Ministério Público, razão pela qual se revoga o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que receba a acusação pública e designe dia para a realização da audiência de julgamento.

Sem tributação


Paulo Guerra (relator por vencimento)

Vieira Marinho (Presidente)

Isabel Valongo (vencida nos termos do voto que segue)


A questão suscitada no recurso tem vindo a obter diferentes soluções, inclusive no mesmo tribunal da Relação, o que revela a necessidade urgente de fixação de jurisprudência pelo STJ.

Com efeito, e aproveitando a pesquisa efectuada no Ac Relação de Coimbra de 9-05-2012 (relator Vasques Osório) a título meramente exemplificativo, nesta Relação, no sentido de que a conduta preenche o crime do art. 353º do C. Penal [após a alteração operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro], os acórdãos 24 de Fevereiro de 2010, proc. nº 117/09.6TAVNO.C1, de 30 de Junho de 2010, proc. nº 149/08.1TAVGS.C1, de 14 de Julho de 2010, proc. nº 48/09.0TAVGS.C1, e de 25 de Janeiro de 2012, proc. nº 433/11.7TAPBL.7C114 [todos em www.dgsi.pt], e no sentido de que se trata de conduta penalmente atípica, os acórdãos de 12 de Maio de 2010, proc. nº 1745/08.2TAVIS.C1, de 6 de Outubro de 2010, proc. nº 24/09.2TAVGS.C1, de 12 de Julho de 2011, proc. nº 295/09.4TAVIS.C1 e de 9 de Novembro de 2011, proc. nº 984/09.3TAVIS.C1 [todos in www.dgsi.pt].

No sentido de que se trata de crime de desobediência, podem ver-se os acórdãos da R. do Porto de 2 de Março de 2011, proc. nº 583/09.0TAVFR.P1 e de 15 de Fevereiro de 2012, proc. nº 319/02.TAVRL.P1, da R. de Lisboa de 24 de Março de 2010, proc. nº 470/04.8TAOER.L1 e de 5 de Abril de 2011, proc. nº 1712/08.6TACSC.L1, da R. de Évora de 27 de Maio de 2010, proc. nº 171/09.0TASLV.E1 e de 31 de Janeiro de 2012, proc. nº 1102/08.0TAABF.E1 [todos in, www.dgsi.pt]. Pelo crime de violação de imposições alinham os acórdãos da R. do Porto de 10 de Novembro de 2010, proc. nº 118/09.4T3OVR.P1 e da R. de Guimarães de 3 de Maio de 2011, proc. nº 50/11.1GBGMR.G1 [todos in www.dgsi.pt]. E no sentido da irrelevância penal da conduta, podem ver-se os acórdãos da R. de Lisboa de 18 de Dezembro de 2008, proc. nº 1932/2008 e da R. de Évora de 27 de Março de 2012, proc. nº 154/10.8TAPSR.E1 [in www.dgsi.pt

O mesmo sucede na doutrina, pronunciando-se Paulo Pinto de Albuquerque no sentido de que o incumprimento da obrigação de entregar a carta integra o crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal – [cf. Comentário do Código Penal, 1.ª edição, pág. 834 e Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, pág. 1256], enquanto Tolda Pinto, em comentário ao artigo 160.º do Código da Estrada, incluído no “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, vol. I, 2010, UCE, defende que … o tribunal, ao proferir decisão condenatória que aplica a pena acessória prevista no art. 69.º deve notificar o arguido da obrigatoriedade da entrega da carta no prazo de 10 dias (cfr. n.º 3 do art. 69.º do CP e n.º 2 do art. 500.º do CPP), após o decurso do prazo do recurso, advertindo-o de que o não cumprimento tem consequências penais – o cometimento do crime de desobediência conforme contempla o n.º 3 do CE. Essa advertência deve constar da notificação da decisão (oral ou escrita), conforme estabelece a parte final do n.º 3 do art. 160º do Código da Estrada.

            Assim, há quem entenda que após a revisão do Código Penal realizada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, a conduta concreta do arguido definida na acusação pública, como seja a falta de entrega da sua carta de condução, no prazo legalmente fixado, entrega que lhe foi imposta, por sentença criminal transitada em julgado, para cumprimento da pena acessória de inibição de conduzir em que fora condenado, consubstancia o crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal. Os defensores desta solução defendem que resulta evidente que ao referir-se à violação de imposições foi intenção do legislador abranger a falta de entrega da carta de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir a que alude o artigo o artigo 69.º - 1/a do Código Penal, sendo certo que tal cumprimento apenas se inicia com a entrega efectiva daquele título. Consideram que a obrigação de entrega da carta de condução é inerente à própria pena acessória de proibição de conduzir, porque a condenação em tal pena implica a imposição ao condenado daquela obrigação, sem a qual não é possível o respectivo cumprimento.

Não concordamos com os fundamentos desta solução, antes aderimos à argumentação expendida a propósito no acórdão do TRC de 12.05.2010 [Relator, Ribeiro Martins], reproduzido no acórdão do TRC de 06.10.2010 [Relator, Orlando Gonçalves], “O que a norma do art. 353.º do CP diz é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória; não diz, imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória. Logo, só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art. 69.º do CP), quem exercer função (art. 66.º do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art. 67.º do CP). Já não pratica o crime quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g, não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa do serviço, estas obrigações processuais (…). E não se pode entender que a obrigação de entrega da carta faz parte do conteúdo da própria pena acessória (…) Isto porque o legislador define o conteúdo desta no art. 69º/1 do Código Penal. E o princípio da legalidade e da tipicidade da norma penal não deixam espaço para interpretações que contrariem o elemento literal do tipo. A imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só”.

Em idêntico sentido, contrariando a tese que vê na alteração introduzida, pela Reforma Penal de 2007, ao artigo 353.º do Código Penal a expressão da vontade inequívoca do legislador de incluir a não entrega da carta de condução, no prazo dos 10 dias contados do trânsito em julgado da decisão, escreve-se no acórdão do TRP de 2.03.2011 [Relator, Desembargador Araújo Barros]: Do que se trata é de violação de obrigações que consubstanciam a própria pena. Não abrangendo as que, como a da apresentação do título de condução, são impostas para possibilitarem o cumprimento de uma pena acessória. O teor do preceito não deixa margem para dúvidas - «quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada»

(…)

A alteração do artigo 353º do Código Penal operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ao acrescentar à previsão legal a violação de “imposições”, a par das de “proibições e interdições”, pretendeu a punição da violação das penas com obrigações de conteúdo positivo, como as injunções cominadas a pessoas colectivas, penas acessórias que, com o mesmo diploma, passaram a estar contempladas nos artigos 90º - A, nº 2, alínea a), e 90º - G do Código Penal”.

O art. 353.º do CP na versão anterior à Lei 59/2007, de 4 de Setembro, dispunha que “quem violar proibições ou interdições impostas por sentença criminal, a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”

Com a revisão operada pela Lei 59/2007, foi introduzido no tipo o segmento “imposições”, e substituiu-se “impostas” por “determinadas” passando o tipo a prever que “quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

A propósito da alteração legislativa, P. Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário do Código Penal (...)”, em anotação ao art. 69.º escreveu, na anotação 13. que “ (...) a incriminação neste artigo foi alargada com o propósito de incluir precisamente estes casos de incumprimento de imposições resultantes de penas acessórias.”

Embora respeitando a opinião de PPA, e ainda que tivesse sido essa a intenção do legislador, o que se revela altamente duvidoso, o certo é que tal intenção não se reflecte no texto da lei.

Efectivamente, o princípio da legalidade exige que uma infracção esteja claramente definida na lei, estando tal condição preenchida sempre que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os actos ou omissões que determinam responsabilidade penal e as respectivas consequências. E obsta a qualquer interpretação extensiva das normas e ao recurso à intenção do legislador para as interpretar quando no texto não se constata a correspondência verbal inequívoca exigível. E é esta intenção que surge invocada na jurisprudência, e constitui uma hermenêutica que atenta, manifestamente, contra o assinalado princípio da legalidade.

Em suma, a interpretação de uma norma incriminadora, que, no plano material, conduza à sua extensão, constitui uma violação daquele princípio e do princípio da tipicidade, seu corolário.

Impõe-se observar o princípio da legalidade, com inscrição constitucional (artigo 29º, nº l da Constituição) a significar que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poene sine lege)

Consequentemente, também no Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 12/07/2011 - Proc. 295/09.4TAVIS.C1 -, se refere que:

Como salienta Maia Gonçalves em anotação ao art. 353º do seu CP anotado e comentado, "a violação prevista é só relativamente a proibições ou interdições impostas por sentença criminal a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade", sendo que a alteração operada pela L. nº 59/2007 não altera este entendimento, ao acrescentar a violação de imposições. Tem de ser uma imposição relativa a pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade (ou pena aplicada em processo sumaríssimo).

E, a não entrega da licença de condução no prazo legal após o trânsito em julgado da decisão que determinou a apreensão não é pena acessória. A pena acessória consiste na inibição da faculdade de conduzir veículos motorizados, sendo a entrega da carta um meio de facilitar a materialização e até controlo do cumprimento da pena acessória.

Nem a sentença tem que impor a entrega e, não se verificando a entrega voluntária, prescreve o artigo 500, do Código de Processo Penal:
2- No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.
3- Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.

A consequência única da não entrega da licença de condução é, ser ordenada a sua apreensão, (sublinhado nosso).

Neste sentido, os Acs. desta Relação citados, aí se referindo: "A norma do artigo 353º do CP diz quem violar imposições, proibições... determinadas... por sentença criminal ...a título de pena acessória é punido...; não diz imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória"  (sublinhado nosso).

E o Ac. desta Relação proferido no Proc. 1745/08.2TAVIS.C1 "Não comete o crime p. e p. artigo 353° do CP (Violação de imposições, proibições ou interdições) o agente que, condenado em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, não entrega o título de condução, pese embora a expressa notificação para o efeito levada a cabo pelo tribunal da condenação".

O preceito em causa (art. 353º do CP) não consente a integração nele de comportamentos processuais prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem."

E com efeito, o legislador foi claro e explícito quanto ao tipo objectivo – violação de imposição (sanção de conteúdo positivo) determinada por sentença criminal a título de pena acessória.

No que respeita à execução desta sanção acessória de proibição de conduzir, está previsto que, feita a cominação para entrega da carta de condução com vista ao cumprimento da medida de inibição de conduzir, a não entrega da carta de condução conduzirá tão só a que se diligencie administrativamente pela sua apreensão.

Repare-se que os arts. 69º do CP e 500º do C.P.P não cominam expressamente a falta da entrega do título de condução com a prática de qualquer tipo legal de crime, antes neles se prescreve que essa falta dita a sua participação ao Ministério Público.

Acresce que a proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão – art 69, nº 2 do CP – mas o cumprimento da pena acessória não ocorre de forma imediata e automática a partir do trânsito em julgado da sentença que a aplicou, mas tão só após a entrega espontânea ou forçada do título – art 500 CPP.

Ora, é inviável pretender que a obrigação de entrega da carta é parte integrante ou o conteúdo da própria pena acessória, ou seja, uma imposição em si, dado que o legislador define o conteúdo desta no n.º 1 do art. 69.º do Código Penal e o princípio da legalidade e da tipicidade da norma penal obstam a interpretações que contrariem o elemento literal do tipo: a imposição material penal é apenas a “proibição de conduzir”.

Também neste sentido o referido Ac desta Relação de 9-05-2012 - que a propósito do alargamento da previsão do art. 353º do C. Penal pela redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, - salienta que “… a letra da lei não consente, em nosso entender, e ressalvado sempre o devido respeito por opinião contrária que é muito – não sendo ocioso aqui relembrar que nos encontramos no campo dos princípios da legalidade e da tipicidade –, é o entendimento de que este alargamento visou também abranger a violação de imposições conexas com penas acessórias decretadas. O conteúdo da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor é constituído apenas pela própria proibição de conduzir veículos com motor. E a violação desta proibição, traduzida, necessariamente, na acção de conduzir veículo motorizado, preenche o tipo do art. 353º do C. Penal.

A imposição de entrega do título de condução não integra o conteúdo desta pena acessória nem com ela se confunde, sendo antes e apenas uma imposição conexa com tal pena, e que se destina somente a possibilitar [como resulta do art. 500º, nº 4, do C. Processo Penal] a sua execução e respectivo controlo.”

Concluindo, só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória, cuja execução só se inicia com a entrega da carta ou efectiva apreensão.

E conforme supra se assinalou, a falta de entrega da carta constitui obrigação processual do condenado, não punida penalmente, e não integra os elementos objectivos do tipo de ilícito do art. 353.° do Código Penal.

Reportando-me aos autos, concluiria que o arguido, ora recorrido, ao não proceder à entrega da sua carta de condução, no prazo de 10 dias contados do trânsito em julgado da sentença, com vista ao cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado, não incorreu na prática do crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal, já que nos termos sobreditos, a sua conduta não representa a violação da concreta proibição de conduzir, a qual, apenas se consuma com a realização da conduta de que se está inibido.

Consequentemente, manteria o despacho recorrido.


[1] Logo posterior a 15/9/2007.
[2]E não precisávamos de todo deste novo preceito para considerar que incorria neste crime quem conduzisse em período de duração da dita «proibição», sendo certo que se teve sempre por assente tal incriminação.
[3]Já a violação da inibição de conduzir após prática de contra-ordenação é subsumida à letra do artigo 348º/2 do CP, por referência à norma do artigo 138º/2 do CE (mesma moldura penal abstracta do artigo 353º do CP).