Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
109/12.8TACNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: RECUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 02/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (INSTÂNCIA LOCAL DE CANTANHEDE)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECUSA DE JUIZ
Decisão: INDEFERIDO O PEDIDO
Legislação Nacional: ART. 43.º DO CPP
Sumário: I - São requisitos cumulativos do incidente de recusa de juiz:
- que a sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita;

- por se verificar motivo sério e grave;

- que seja adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

II - Sendo o princípio do juiz natural pilar fundamental do princípio da imparcialidade, a recusa daquele juiz, como acto extremo que é, exige que se apresentem e provem motivos objectivos, sérios e graves adequados a poder gerar na comunidade desconfiança sobre a sua imparcialidade.

III - Ainda que se reconheça a delicadeza da situação e a posição menos cómoda e até algo desagradável em que se encontram o Meritíssima Juíza e a mandatária do requerente, [a juiz escusada havia intentado processo crime com pedido de indemnização civil contra a mandatária do aqui requerente] não se vê em que medida está posta em causa a imparcialidade da Meritíssima Juíza e muito menos que estejamos perante uma situação em que deva ser preterido o princípio do juiz natural.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

No processo n.º 109/12.8TACNT, veio o assistente A..., nos termos do art.º 43.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, suscitar incidente de recusa de juiz com a fundamentação que passamos a transcrever:
“1. A M. Juiz a quem foi distribuído para julgamento o presente processo é a M.J. B... .
2. O requerente entende que a intervenção da M. J. B... nos presentes autos é suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade.
3. E por tal deve a sua intervenção ser recusada.
4. Não pretende o requerente beliscar a dignidade da M. Juiz, adiantando-se, desde já, que o que está em questão não é a capacidade genérica da MJ1. B... , a qual deve existir sempre para que aquela possa exercer a função que lhe é confiada, mas sim a capacidade específica, a qual aqui se consubstancia na existência de motivos particulares e especiais que, na óptica do requerente, inibem a M. J. de exercer a respectiva função nos presentes autos, com a imparcialidade que lhe é exigida.
5. Assim entende o requerente, pelos motivos e fundamentos que passa a expor e Invocar.
- Quanto à desconfiança sobre a imparcialidade da M. J. recusada por ser mandatária do assistente a Advogada C....
6. A mandatária do ora requerente patrocinou, no ano de 2010/2011, o seu Colega Advogado D..., enquanto réu numa acção judicial de inibição de responsabilidades parentais (Processo n° 178/10.5T6AVR da Comarca do Baixo Vouga, Aveiro-Juízo de Família e Menores) instaurada pela aqui M. Juiz, que é a mãe da filha de ambos.
7. Como é do conhecimento público o infeliz D... foi morto a tiro, no dia 05 de fevereiro de 2011, pelo pai da M. Juiz recusada, no âmbito de um encontro entre o pai e a sua filha ( E... ) encontro esse agendado em conferência de pais realizada no dia 28 de Janeiro de 2011 no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais da referida menor que correu termos pelo Tribunal de Família de Aveiro, conferência na qual estiveram presentes a M. Juiz recusada e a mandatária do aqui requerente, patrocinando o referido progenitor D... .
8. A mandatária do ora requerente foi testemunha indicada pela acusação do Ministério Público no processo crime por homicídio em que foi arguido o pai da M. Juiz recusada, tendo prestado depoimento com autorização e dispensa de sigilo profissional pelo Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados.
9. Sucede que a M. Juiz recusada apresentou queixa-crime contra a mandatária do requerente por factos extraídos das peças processuais por esta subscritas enquanto mandatária do infeliz D... e de seus pais, bem como por factos extraídos do depoimento prestado pela aqui mandatária do requerente na audiência de julgamento do processo crime por homicídio em que o seu pai foi arguido e condenado em pena de prisão efectiva que cumpre neste momento.
10. A M. J. recusada deduziu acusação particular contra a mandatária do aqui requerente, encontrando-se o respectivo processo em fase de instrução (doc. 1 anexo) e do qual foi extraído expediente remetido ao Conselho Superior da Ordem dos Advogados para efeitos disciplinares (doc. 2).
11. No artigo 5.° da queixa crime instaurada contra a mandatária do requerente, a M. J. recusada imputa-lhe o seguinte facto (doc. 3):
No decorrer de tal resposta o Ilustre Mandatário da Defesa questionou a ora participada sobre o conteúdo do artigo 87.º da petição inicial da acção de inibição de responsabilidades parentais:
- MANDATARIO-DEF: - No artigo 87 da petição inicial, diz-se assim: “A autora [Dra B... ], alega que o Dr. [Dr. D...] a chamava de doente mental, criança, manipuladora,” - peço desculpa mas tenho de dizer isto tudo, estes palavrões, - “falsa, mentirosa, sem dignidade, mal-educada, incompetente, não é mulher nenhuma, não presta para nada, é uma merda, precisa de ser fodida”. - E a Sra. Dra. Na contestação que assina no artigo 194, diz: - “Hoje, não há dúvida nenhuma, infelizmente, de que a mesma é tudo o que aí se alega”.
12. A M. J. recusada imputa tais declarações à mandatária do requerente, o que, na sua óptica, consubstancia a prática de um crime de difamação.
13. Entendimento que, aliás, a M. J. recusada reiterou na acusação particular que deduziu contra a mandatária do requerente, acrescentando ainda, nos artigos 10°, 11º e 12° de tal arrazoado, o seguinte (doc. 4):
10° - A arguida agiu com vontade e intenção de atingir o bom nome, a honra e a consideração da participante - o que conseguiu - actuando deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
11 ° - A arguida agiu livre e conscientemente, ciente do carácter ofensivo das suas afirmações e da sua falsidade, querendo denegrir a imagem e bom nome da assistente, ciente de que a sua conduta era susceptível de consubstanciar factos ilícitos e puníveis pela nossa lei penal, o que não podia de todo desconhecer, até porque exerce a profissão de advogada, e mesmo assim não se coibiu de praticar tais factos.
12° - A arguida agiu dolosamente bem sabendo do real alcance e consequências jurídicas dos seus actos - até atente a sua profissão, advogada - e mesmo assim persistiu na sua actuação o que só por si revela a real intenção dolosa da mesma”
14. Ou seja, a M. J. recusada entende que a mandatária do requerente a apelidou dos epítetos que identifica na queixa crime, e que essa actuação foi livre, consciente e com o propósito de denegrir a imagem e bom nome da M. J. recusada.
15. Na sequência de tais factos imputados pela M. J. recusada à mandatária do requerente foi também deduzida por aquela contra esta, em 27 de Abril de 2015, pedido de indemnização civil (doc. 4):
16. Nessa peça, a M. J. recusada refere o seguinte:
7.º - Ao imputar-lhe tais factos que bem sabia serem falsos, a arguida ofendeu de forma grave e profunda a assistente/ofendida, ficando esta, em consequência das afirmações proferidas por aquela muito desgostosa, triste, humilhada e perturbada, o que se reflectiu no seu ambiente familiar, profissional, e até social.
(...)
10° - Mais se diga que o comportamento da arguida apenas pretendeu atingir, como atingiu, o bom nome, honra e consideração da assistente/demandante, o que conseguiu de sobremaneira.
11° Todas as falsas afirmações supra causaram à assistente/demandante incomensurável e indescritível dor, sofrimento atroz e revolta, com reflexos físicos vários, dificuldade em dormir, necessidade de tomar ansiolíticos, perda de apetite. Não obstante,
12. o - A arguida/demandada tivesse perfeito conhecimento de tamanha situação - como pretende ainda hoje, uma vez que não se retratou nem pública nem junto da assistente/demandante - com a prática dos actos descritos, para além de ofender a assistente/demandante na sua honra e consideração, quer dolosamente que a propalada imagem pública distorcida do seu carácter se mantenha.
(...)
14º - A assistente/ofendida/demandante sentiu como sente vergonha e desgosto nomeadamente no seu seio social e profissional
15º - No que concerne à assistente/demandante Juiz de Direito, para além de denegrir a sua imagem enquanto pessoa a arguida quis atacar o que conseguiu o prestígio, a honra e o bom nome profissional daquela, o que lhe causou sérios danos passando a ser olhada com desconfiança, o que lhe causou perturbação e incómodo.
16 - Tais maledicências perpetradas pela arguida tiveram o claro propósito de desacreditar a Assistente perante a opinião pública, quer enquanto cidadã, que enquanto profissional, ou seja, enquanto Pessoa!
17º - As afirmações e imputações em causa são causadoras de graves prejuízos à postura e carreira profissionais da assistente/demandante, atentando contra a sua dignidade humana e do seu bom nome e consideração.
(...)
23º - O facto de a demandante ver a sua reputação, honra e imagem social atingida para todo o sempre de forma irremediável perante todos quantos ouviram directamente em sede de audiência quer perante todos os seus pares que tiveram a possibilidade de ler as declarações da demandada bem a sua peça processual. - todos os destaques são nossos.
17. Considera, portanto, a M. J. recusada que a mandatária do requerente atacou o seu prestígio, honra e bom nome profissional, dolosamente, o que pretende ainda hoje, causando-lhe, dessa forma, incomensurável e indescritível dor, sofrimento atroz e revolta, com reflexos físicos vários, dificuldade em dormir, necessidade de tomar ansioliticos, perda de apetite desacreditando-a enquanto profissional, porquanto tais imputações foram causadoras de graves prejuízos à postura e carreira profissionais para todo o sempre de forma irremediável.
18. Ambas as peças processuais supra referidas, nomeadamente queixa-crime e acusação particular/pedido de indemnização civil, se encontram assinadas pela M.J. recusada, pelo que dúvidas não há de que foi esta a autora dos respectivos conteúdos.
19. Por outro lado, após a trágica morte do pai da filha da M. Juiz recusada a mandatária do requerente foi constituída advogada dos avós paternos da menor, filha do D... e da M. Juiz recusada, tendo instaurado acção de Processo Tutelar Comum n° 194/11.0T6AVR. contra a M. Juiz aqui recusada com vista ao estabelecimento de visitas à sua neta, com fundamento nos impedimentos e obstáculos por aquela continuamente levantados à realização de tais visitas e ao estreitamento dos naturais laços existentes entre avós e neta, acção esta que está em curso e em execução de sentença (doc. 5).
20. Ou seja, para além de a mandatária do requerente ser arguida num processo em que é queixosa a M. Juiz recusada, esta é requerida num processo tutelar comum em que são requerentes os avós paternos da menor, filha do D... e da M. Juiz recusada, patrocinados pela mandatária do assistente ora requerente, Dra. C... .
21. A mandatária do assistente nestes autos, o Doutor A... , é-o desde a data da participação crime (8 de Fevereiro de 2012), tendo subscrito a participação crime com que se iniciou o presente procedimento judicial.
22. Será a Advogada constituida C... quem irá estar presente nas sessões de julgamento.
23. Nos termos do n.º 2 da Constituição da República Portuguesa Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
24. Como corolário deste princípio está o do direito de escolha de advogado por parte de todos os sujeitos processuais.
25. O requerente escolheu como mandatária a Advogada C... .
26. As imputações feitas pela M. J. recusada à mandatária do requerente foram-no enquanto esta exercia o mandato forense que lhe foi conferido pelo Dr. D... , ou seja, no exercício da sua profissão de Advogada.
27. Ou seja, mesmo não sendo a mandatária do requerente parte no presente processo, será o seu interlocutor no mesmo nos presentes autos.
28. De tudo quanto se disse e que foi dito pela M. J recusada no processo crime, terá de retirar-se a conclusão que o facto de o requerente ser patrocinado pela mandatária é causa suficiente de gerar a desconfiança, por motivos sérios e graves, sobre a imparcialidade da M. J. recusada - quer na decisão, quer na direcção da(s) audiência(s) de julgamento - possível de gerar favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro, na medida em que a M. J. recusada considera que a mandatária do requerente, no exercício da sua profissão, teve afirmações contra a sua pessoa causadoras de graves prejuízos à postura e carreira profissionais para todo o sempre de forma irremediável.
29. Assim, estando pendente um processo crime instaurado pela M. Juiz recusada contra a mandatária do assistente e aqui requerente (no qual a M. Juiz recusada deduziu acusação particular e pedido de indemnização civil contra a mandatária deste, imputando-lhe os factos e danos supra mencionados), e sendo a M. Juiz requerida em processo instaurado pelos avós paternos da sua filha, e sendo estes nele patrocinados pela Advogada C... , entende-se que tais motivos, por serem sérios e graves, são adequados a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade da M. J. recusada.
- Quanto à desconfiança sobre a imparcialidade da M. J. recusada em face dos factos alegadamente por si praticados que são, substantivamente, semelhantes aos factos que são objecto destes autos
30. Pelos avós paternos da menor E... , filha da M. J. recusada e do falecido D... , foi instaurado um processo crime contra a M. J. recusada em que lhe são imputados vários factos e crimes, entre os quais os seguintes:
“A denunciada Dra. B... , através de comportamentos processuais inadmissíveis, escandalosos, muitas vezes patéticos e grotescos, tem violentado repetidamente, e deliberadamente, a saúde dos denunciantes, pessoas extremamente idosas, já muito fragilizadas pelo abate cruel de um filho e que só desejam ver a neta tão querida, o que não lhes é deixado fazer desde que o filho faleceu, face ao comportamento obstaculizador indecoroso da denunciada.” - carregado nosso.
31. Embora o crime denunciado pelos avós paternos da menor, filha do D... e da M. Juiz recusada, não seja o mesmo em investigação nos presentes autos, existe alguma similitude entre os factos de um e de outro processo, embora com modus operandi diverso.
32. Com efeito, nessa participação criminal os avós paternos da menor, filha do D... e da M. Juiz recusada, invocam uma série de factos que se consubstanciam, genericamente, na recusa da aqui M. J. recusada em permitir o convívio daqueles com a criança, não subsumindo tal conduta no crime de subtracção de menor p. e p. no art.º 249.° do Código Penal, mas no de ofensas à integridade física, na modalidade de ofensas à saúde, contemplado no art.º 143.°, n.° 1 do Código Penal.
33. Tal processo crime foi arquivado, tendo sido requerida a abertura de instrução por parte dos avós paternos da menor, filha do D... e da M. Juiz recusada.
34. Por outro lado, os factos que têm paralelismo com os factos que são objecto do presente processo (existindo uma similitude manifesta entre os factos da douta acusação do Ministério Público e os factos que foram praticados pela M. J. recusada) foram dados como provados na sentença proferida no processo tutelar comum supra identificado.
35. Com efeito, no âmbito desse processo, resultou como provada a seguinte factualidade:
2 - Com excepção do dia 16/05/2011, dia de aniversário da criança, em que foi permitido pela Requerida mãe aos Requerentes conversar telefonicamente com a menina, desde o falecimento do seu filho D... que os ora Requerentes avós nenhum contacto mais tiveram com a sua neta, por a tal se opor e impedir veementemente a Requerida mãe, encontrando-se assim impossibilitados de ver e estar com a sua neta.
3 - Devido aos obstáculos que a Requerida mãe colocava ao falecido progenitor nas visitas deste à filha por força do conflito existente entre eles, os ora Requerentes avós paternos tiveram, como consequência reflexa, dificuldade em ter acesso à neta, razão pela qual os convívios concretizavam-se de forma pouco regular, as visitas eram praticamente inexistentes contrariamente aos contactos telefónicos os quais eram mais frequentes.
4 - A progenitora e avós maternos manipulavam o tempo da neta, afastando-a do pai e dos demais elementos da família paterna, não existindo, por isso, uma relação familiar significativa.
5 - Com efeito, não obstante o pai da Requerida insistir com o progenitor da E... para este trazer os avós paternos e visitarem a neta, durante o ano de 2010 as visitas do progenitor à filha eram agendadas pelo pai da Requerida e ocorrendo na casa dos avós maternos, rodeadas de fortes medidas de segurança.
6 - A Requerida mãe opõe-se veementemente a que os avós paternos e demais familiares paternos contactem com a criança, não revelando aos mesmos sequer o infantário que a mesma eventualmente frequente (Acta da Conferência).
7 - O último convívio que os avós paternos tiveram com a neta ocorreu nas férias de Verão de 2010, no domicílio dos avós maternos.
36. Mais considerou o Meritíssimo Juiz da 1 a Secção de Família e Menores - J1, da Instância Central da Comarca de Aveiro, na fundamentação da dita e douta sentença, o seguinte:
A E... já lhe tiraram, para toda a eternidade, o inalienável direito de crescer tendo um pai vivo. O Estado não pode permitir agora que a Requerida mãe lhe queira tirar o direito de se poder relacionar e conviver com os avós paternos, referenciais vivos mais próximos do seu pai. É um direito da filha e os bons pais devem respeitar os direitos dos filhos.
A Requerida mãe não pode ignorar isso, até porque é juíza de direito e até já exerceu funções neste Juízo de Família e Menores.
Alega a Requerida mãe que deverá ter-se em conta a vontade da criança. Mas, como a Requerida mãe deve saber, o superior interesse da criança não se confunde nem se identifica com a “vontade JJ da criança. Não é uma criança de 5 (cinco) anos de idade que manda ou que decide o que é que é ou pode ser melhor para ela, pois ainda não possui a maturidade suficiente e necessária para dever ser tida em conta a sua opinião como único e exclusivo referencial decisivo. Mal seria que assim fosse.
Não será de admirar e não se estranhará que, no início, a criança, por lealdade à sua mãe, manifeste recusa ou desinteresse na visita aos Requerentes avós, mas isso poderá facilmente encontrar explicação na influência que a progenitora exercerá na filha.
Naturalmente, neste caso, a vontade da criança não poderá considerar-se livre de qualquer pressão, e, nessa medida, não é vinculativa para o juiz, devendo ser valorada no contexto do caso concreto, pois o superior interesse da criança não corresponde, não se identifica, nem se confunde com a vontade da criança, podendo o juiz impor uma decisão que vá mesmo contra a sua vontade, pois não é a criança que manda.
(...)
Sem quebra do devido respeito, tendo como padrão a normalidade da vida em sociedade e as regras de conduta que proporcionam uma convivência sã e social, é manifesto que a conduta da Requerida mãe, objectivada nos factos, se revela moralmente reprovável, censurável, na medida em que não se vislumbra qualquer justificação razoável para, na sequência da tragédia que aconteceu, impedir as visitas, podendo e devendo comportar-se de modo diverso consentâneo com a sua posição de mãe e de juíza. Neste contexto, pela posição assumida pela Requerida mãe é expectável, é previsível que a mesma vai continuar a dificultar as visitas, ainda que o tribunal decida pelo exercício das mesmas.
37. Ou seja, a M. Juiz recusada já viveu, e vive ainda, uma situação semelhante à imputada à arguida,
38. realçando-se que na supra referida sentença, foi dado como provado que, ainda em vida do progenitor da menor E... , a mãe desta, a aqui M. Juiz recusada, colocava ao falecido progenitor sucessivos obstáculos às visitas deste à filha por força do conflito existente entre eles, manipulando aquela o tempo da filha e afastando-a do pai e dos demais elementos da família paterna.
39. Com efeito, desde a separação do casal, o falecido D... via sucessiva e injustificadamente limitado e coarctado o direito de ver a sua filha e de estar na sua companhia, por tal motivo tendo requerido ao tribunal a Regulação das Responsabilidades Parentais da sua filha,
40. sendo que, a M. Juiz recusada, mesmo na pendência de processo de regulação das responsabilidades parentais, continuou a protelar sucessivamente a fixação de um regime definitivo, tudo fazendo para afastar o pai da sua filha, continuando a limitar e a coarctar sucessiva e injustificadamente os direitos do pai a conviver com a filha, impedindo o pai de com esta estabelecer uma normal relação de proximidade e de convívio.
41. Ora, se a M. Juiz recusada praticou factos, materialmente semelhantes aos factos praticados pela aqui arguida, existe uma incompatibilidade moral da M. J. recusada para julgar a arguida, que vem acusada de impedir o pai de ver o filho de ambos.
42. Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 43.° do Código de Processo Penal, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo (art. 40.°), também pode configurar motivo de recusa nos termos do n.º 2 do art. 43.° do CPP.
43. Esta intervenção anterior do julgador noutro processo, se entendida em sentido lato, pode estender-se à sua conduta como parte noutro processo judicial, tendo, nessa medida, aplicação ao caso concreto.
44. Caso assim se não considere, não se poderá olvidar que à M. J. recusada foi imputada conduta semelhante à praticada pela arguida nos presentes autos, traduzida na obstaculização ao pai e aos avós paternos da sua filha de verem a filha e neta, respectivamente.
45. Essa conduta foi considerada como provada por um tribunal.
46. Ora, tal conduta da M. J. recusada poderá, na opinião do assistente, influenciar a sua imparcialidade nos presentes autos. 
47. Certo é que o posicionamento anterior manifestado pela M. J. recusada revela, de forma insofismável, algum comprometimento com um prejuízo acerca do thema decidendum.
48. Havendo um justo receio por parte do assistente que a M. J. recusada se reveja na posição da arguida, ou que por ela venha a nutrir compaixão ou qualquer outro tipo de sentimento que possa pôr em causa a isenção exigida ao julgador.
49. Ou ainda que a M. J. recusada se abstenha de tomar qualquer posição no processo com receio de que qualquer posição por si assumida venha a ser usada contra si nos processos em que é requerida e arguida.
50. A recusa arranca de uma particular posição do julgador ante a causa, que pode comprometer a postura de independência e de imparcialidade, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 43.º do CPP, desde que se perfile o concreto risco de verificação de motivo sério e grave adequado a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade.
51. Ora, a M. Juiz recusada mostrou já, antes deste processo que lhe foi distribuído, uma particular posição ante factos semelhantes que, na óptica do requerente, comprometem indelevelmente a sua postura de independência e imparcialiadade, que são condição essencial para que seja proferida uma decisão justa.
52. Em suma, a presente situação configura uma excepção, fundada em suspeita séria e grave, objectivamente adequada a gerar desconfiança sobre a imparcialidade na administração da justiça e que, pela ponderação do circunstancialismo concreto, deve conduzir ao deferimento do presente requerimento.
53. A presente situação configura uma parcialidade subjectiva respeitante ao foro íntimo do juiz.
54. Posto isto, e uma vez que a M. Juiz recusada não pediu, ao que se sabe, escusa de intervir na presente causa, sendo objectivas e notórias as circunstâncias para que se possa suspeitar da sua imparcialidade para o julgamento da presente causa,
55. e porque está em tempo, uma vez que o requerente teve conhecimento de que o presente processo fora distribuído à M. Juiz recusada com a notificação recebida a designar data para a audiência de julgamento,
56. deve o presente incidente ser recebido e processado nos termos dos 43.° e seguintes do Código de Processo Penal.
Nestes termos, e nos dos art°s 43.°, n.ºs I e 2 e art.º 45.°, todos do Código de Processo Penal, deverá ser recusada, por risco de ser suspeita, a intervenção da M. J. B... nos presentes autos, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade.”

A Senhora Juíza Drª. B... pronunciou-se pela seguinte forma:
“Tendo sido deduzido incidente ele recusa contra a subscritora, impõe-se dar cumprimento ao estabelecido no art.º 45º, nº 3 do CPP, reputando-se necessário consignar, sintética e objectivamente, o seguinte:
1. A dedução de incidente de recusa integra o catálogo de direitos processuais que as partes têm à sua disposição, estando o seu exercício apenas limitado pelos princípios éticos da Verdade, da urbanidade e do respeito pela dignidade das pessoas.
2. Ora, o concreto requerimento apresentado afigura-se-nos, todo ele, uma grave e intencional (para mais desnecessária, para o fim visado...) ofensa à honra e dignidade pessoal e profissional da subscritora, o que já não estranhamos.
3. Na verdade, a signatária só se apercebeu de identidade da Senhora Advogada que patrocina o assistente no preciso momento que tomou conhecimento do requerimento de recusa.
4. Com efeito, ao proferir o despacho previsto no artº 311º do CPP, apenas se preocupou com o cumprimento dos requisitos legais, tendo consignado apenas, como se impunha, a identidade do advogado do arguido.
5. Aliás, caso tivesse então verificado a identidade da mandatária do assistente, poderia a subscritora ter colocado a (confortável) hipótese de fazer uso do preceituado no art.º 43º nº 4 do CPP.
6. No que concerne ao argumentário utilizado pelo requerente, crê a signatária, salvo melhor e mais abalizada opinião, que a sua construção assenta num duplo equívoco: a confusão entre Advogado e Parte no processo (art.s 6º a 29º) e a confusão entre a esfera profissional e a esfera pessoal (art.ºs 30º a 54º).
7. Com efeito, o que está em causa nos presentes autos é um litígio do foro criminal que envolve dois cidadãos, sendo o assistente representado pela Srª Drª C... .
8. Ora, dizer que qualquer mau relacionamento entre a Juiz do processo e a mandatária de uma das partes pode influir na decisão final é, com o devido respeito, julgar os outros pela sua própria bitola e considerar o Julgador influenciável por questiúnculas profissionais, erguendo qualquer discussão processual mais acesa em fundamento de recusa.
9. Na verdade, a seguir o raciocínio enviesado e puramente emocional do requerente verificamos que a sua Advogada não mais poderá trabalhar com a Juiz subscritora.
10. Acresce que esta Juiz, embora susceptível ao erro involuntário em razão da sua humanidade, não confunde (nem nunca confundirá), a nuvem com Juno, sabendo distinguir perfeitamente os interesses de cada um dos cidadãos em conflito nos autos, daqueles que fazem andar os seus advogados... Dito isto:
11. É verdade ter a signatária participado criminalmente contra a Senhora Advogada do requerente, tendo sido deduzida acusação particular e pedido cível indemnizatória no processo nº 779/13.0T3AVR, que actualmente se encontra em fase instrutória.
12. E fê-lo por a Senhora Advogada ter, do seu ponto de vista, ultrapassado os limites do razoável e do legalmente exigido para o exercício do patrocínio forense na defesa dos interesses que lhe foram confiados, tendo tecido acerca da signatária, em peça processual por si apresentada considerações profundamente injuriosas e difamatórias (que, aliás, não teve o pejo de "citar" desnecessariamente - na fundamentação do incidente).
13. O mesmo sucedendo aquando do seu depoimento como testemunha, em processo cujo arguido era o pai da subscritora (40/11), sendo certo que aos advogados, dada a sua especial qualificação, deve ser exigido um maior rigor não só quanto ao conteúdo como, fundamentalmente, quanto à Verdade.
14. No que concerne à referência aos processos em que a Senhora Advogada exerceu o patrocínio da parte contrária à signatária, cumpre esclarecer o seguinte:
I5. O processo 178/1O.ST6AVR da Comarca do Baixo Vouga, Aveiro - Juízo de Família e Menores, encontra-se há muito arquivado, não se entendendo a que propósito foi "repristinado" salientando-se, todavia, que nunca em tal processo ele regulação das responsabilidades parentais foi deduzido qualquer incidente de incumprimento contra a recusada.
16. No que concerne ao processo tutelar comum nº 194/11.0T6AVR, citado no artigo 19º da peça em análise, dir-se-á que se não vê qual o interesse na sua invocação, sendo certo que a Senhora Advogada representa nesses autos os avós paternos (interesses diferentes dos que estão aqui em causa) o que faz no exercício da sua profissão e não, acredita-se, numa perspectiva de agressão e confronto.
17. Acresce que, a recusante convoca tal processo que tem natureza reservada, cujo acesso é restrito às partes e aos seus advogados... E por força das suas especificidades, designadamente para salvaguarda dos direitos fundamentais da criança e da reserva da vida privada e familiar, não deveria, sequer, ter sido mencionado...
18. Assim se responde à primeira parte do requerimento apresentado (art.ºs 6º a 29).
19. Quanto à segunda parte (art.ºs 30º a 54º), oferece-nos dizer o seguinte:
20. A invocação dos processos crimes que lhe foram movidos pelos avós paternos da sua filha surpreende a signatária por vários motivos:
- O primeiro tem a ver em que termos e condições o assistente (que é o requerente do incidente) deles teve conhecimento;
- O segundo porque a Senhora Advogada do assistente não interveio, em qualquer qualidade, nos referidos processos;
- O terceiro, e último, qual a razão por que o assistente os considera pressuposto do incidente que levanta.
21. Quanto às duas primeiras situações alegadas não teceremos qualquer comentário, pois estas são objectivas.
22. Já no que toca à terceira, diremos apenas que, ao longo de toda a sua vida profissional, o Juiz vai experienciando variadíssimas situações sociais, económicas, comerciais, ou outras (até pessoais, como ser parte, ou arguido, ou assistente em processo judicial, posições que a subscritora já ocupou e que considera profissionalmente enriquecedoras), quer por si, quer por via daquelas que vai dirimindo.
23. Este acumular de experiências vai-lhe, seguramente, permitir uma melhor decisão e uma melhor aplicação da lei e da Justiça.
24. Mas fundamental é esclarecer aqui que todos os processos-crime movidos contra si pelos avós da sua filha já não estão pendentes, como refere o recusante, mas outrossim se encontram extintos pelo arquivamento (tendo no último, aquele a que o assistente faz referência, e que correu neste Tribunal da Relação com o nº 70/12.9TRCBR, sido proferido despacho de não pronuncia em 14/10/2015, já transitado em julgado).
25. Já no que respeita ao processo tutelar 194/11.0T6AVR, que volta a repristinar, transcrevendo, até, passagens da sentença proferida, confunde o requerente a vida privada da signatária com a sua função jurisdicional.
26. Aliás, omite o requerente que tal sentença ainda não transitou em julgado. Circunstância de que convenientemente se esqueceu...
27. Da mesma forma se diga que em tal processo 194/11.0T6AVR também nunca existiu contra a subscritora qualquer incidente de incumprimento de regime de visitas judicialmente fixado, estando as visitas a decorrer, sob a direcção da Mmª Juiz, como bem sabe a Dra C... , que sempre acompanha a sua cliente.
28. De qualquer das formas, o argumentário expendido, a ser aceite, significa que a signatária nunca mais poderia tramitar, por exemplo, regulações das responsabilidades parentais (saliente-se que a subscritora exerceu funções na jurisdição de menores, quer no Tribunal de Família e Menores de Aveiro, quer na Comarca de Cantanhede, quando a competência era genérica e nunca - nem aí - foi alvo de nenhum incidente deste tipo...).
29. E a signatária, seguindo tal linha de raciocínio, também nunca poderia julgar qualquer facto típico ilícito relacionado com a filiação, ou até processos de violência doméstica (por ter sido queixosa) ou de difamação...
30. Ora, é precisamente por ter sido Parte num aceso processo de regulação das responsabilidades parentais (não tendo nunca sido condenada em qualquer incidente de incumprimento, repita-se) que a subscritora se sente mais capaz de entender os argumentos de cada um dos intervenientes e de melhor sopesar a prova que vier a ser produzida, proferindo, em consequência, decisão mais próxima da verdade e, por isso, mais adequada em termos de lei e de Justiça.
Cumpre, ainda, para reposição da Verdade e possibilitar um olhar binocular sobre factos da vida privada indevidamente trazidos à colação (numa visão monocular trazida pelo assistente) fazer referência a uma situação, que lhe é doloroso referir, mas que todavia se afigura essencial para demonstrar a inexistência de qualquer similitude.
32. E porque também a defesa da honra da recusada assim o impõe, na verdade, o seu relacionamento afectivo com o Dr. D... , pai da sua filha, terminou por força dos comportamentos agressivos deste ultimo o que a levou a apresentar queixa-crime de violência doméstica) facto ao qual não seria alheia a patologia psiquiátrica - perturbação paranóide da personalidade - que lhe foi diagnosticada, tendo inclusivamente sido requerido o internamento compulsivo por parte da família deste - cfr 4 documentos que se juntam.
33. Do que se deixou exposto afigura-se-nos resultar, salvo melhor opinião, que o incidente não pode proceder em razão dos fundamentos convocados, por o mesmo ter como ponto de partida um duplo equívoco, pois nele se confunde a Parte com o seu Mandatário e a esfera profissional com a esfera pessoal (e todos os Juizes têm uma Vida, pelo que a ser procedente, estaria a abrir-se a caixa de Pandora ... ) sentindo-se a signatária - no que concerne aos argumentos aduzidos em absolutas condições de realizar o julgamento e fazer Justiça.
34. Há, todavia, um argumento novo, que aqui se pretende deixar consignado, por decorrer do próprio incidente e do teor da fundamentação aí aduzida.
35. Uma vez que a redacção do incidente atenta, directamente, contra a honra, bom nome e dignidade da signatária em ternos pessoais e profissionais, mas também reflexa, mas necessariamente, contra o prestígio e credibilidade da Justiça e da Magistratura, ao abrigo do disposto no art.º 43º, n.º 4 do CPP, requer a esse Venerando Tribunal que a escuse de intervir no julgamento dos presentes autos.”

*

Da leitura do requerimento em causa resulta que o assistente A... pretende a recusa da Drª. B... , juiza natural do processo em causa, de poder nele intervir nessa qualidade.

Vejamos se lhe assiste razão:

O princípio constitucional da independência dos Tribunais[[1]] tem como um dos seus corolários o princípio da imparcialidade, o qual é complementado pela independência dos juízes e pela correspondente obrigação de imparcialidade, o que impõe o direito dos juízes decidirem serenamente, resguardados de qualquer pressão de cariz social, mediático, económico ou resultante de alguma ação individual.

Intimamente ligado à garantia de independência dos Tribunais, está o princípio do juiz natural que encontra consagração no art.º 32º, nº 9 da Constituição da República Portuguesa[[2]] e que se concretiza em o juiz da causa ter que ser determinado de acordo com regras de competência anteriormente estabelecidas.

Este princípio apenas pode ser afastado quando outros princípios o ponham em causa pois que dada a possibilidade de resultarem do princípio do juiz natural efeitos perversos (nomeadamente, quando o juiz natural não ofereça garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função), houve a necessidade de os prevenir criando mecanismos que garantam a percepção da imparcialidade pela comunidade receptora da Justiça[[3]].

Tais mecanismos compreendem os impedimentos, recusas e escusas.

No caso dos autos — recusa — regula o art. 43°, n° 1 Código de Processo Penal que estipula que a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

São assim requisitos cumulativos do incidente de recusa de juiz:

- que a sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita

- por se verificar motivo sério e grave

- que seja adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Vejamos:

A existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz natural tem que se traduzir numa aparência de parcialidade na sua conduta processual e tem que resultar de comportamentos processuais ou extra processuais objectivamente considerados, não bastando por isso um mero convencimento subjectivo por parte de um dos sujeitos processuais para que se tenha por verificada tal “parcialidade”[[4]]. Mais: também não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz sendo necessário que o mesmo seja grave e sério[[5]].

É que, como lembra Maia Gonçalves no seu Código de Processo Penal Anotado, 9ª edição, pág. 163, “os motivos de suspeição são menos nítidos do que as causas de impedimento, podendo ser, por isso, fraudulentamente invocados para afastar o juiz”, o que só por si justifica uma especial exigência quanto à gravidade objectiva da invocada causa de suspeição, pois que, de outro modo, estaria facilmente encontrado o meio de contornar o princípio do juiz natural.

Torna-se assim essencial alegar e provar os motivos e a sua especial gravidade[[6]], sendo certo que, como é jurisprudência pacífica, “o motivo sério e grave adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do julgador há-de resultar de objectiva justificação, avaliando as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias, a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador; o que importa é, pois, determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o Juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e injustificadamente o prejudique” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de fevereiro de 2004, in www.dgsi.pt).

Em suma: sendo o princípio do juiz natural pilar fundamental do princípio da imparcialidade, a recusa daquele juiz, como acto extremo que é, exige que se apresentem e provem motivos objectivos, sérios e graves adequados a poder gerar na comunidade desconfiança sobre a sua imparcialidade[[7]].

Temos assim que o afastamento do juiz natural sem que a razão da suspeição tenha como base motivo comprovadamente sério e grave que seja adequado a poder gerar na comunidade desconfiança sobre a sua imparcialidade, violaria o próprio princípio constitucional ínsito no art. 32.º, n.º 9 da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos o caso em apreço:

O assistente assenta a sua pretensão em duas vertentes: uma em que alega a existência de grave animosidade da Meritíssima Juíza B... para com a sua advogada e uma outra em que alega que tendo sido aquela parte em processo idêntico ao seu, torna-se duvidosa a sua imparcialidade.

Por seu turno, e na sequência do requerimento, a visada anuncia que perante o teor do mesmo pede escusa.

Ora, resulta do requerimento dois pontos essenciais: traz-se à colação um processo tutelar(?) em que a Juíza foi parte e com o qual o assistente/requerente nada tem a ver e um processo crime com pedido de indemnização civil instaurado pela juíza contra a atual mandatária do assistente.

No que respeita ao processo tutelar, diz o requerente que tendo a juíza sido nele interveniente como parte, fica desde logo a suspeita de que pode não ser imparcial no julgamento de uma situação idêntica pois que tenderá a aplicar em qualquer outro processo o entendimento que expressou naquele.

Não faz qualquer sentido tal entendimento visto que para além de cada processo ter a sua especificidade, se o requerente tivesse razão ficaríamos perante uma verdadeira caixa de pandora: qualquer experiência pessoal do juiz implicaria a impossibilidade de o mesmo julgar casos idênticos para futuro, ou que equivale a dizer que um juiz apenas poderia julgar situações para as quais não tivesse experiência de vida.

Quanto ao processo crime com pedido de indemnização civil que a requerida intentou contra a mandatária do assistente teremos que dizer, como acontece no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31 de maio de 2006 que se as queixas-crime e as participações ao Conselho Superior da Magistratura e ao Conselho Distrital da Ordem dos Advogados fossem o bastante para que se suscitasse a questão da imparcialidade dos juízes, poderíamos estar perante um intolerável meio de pressão sobre o juiz natural de um processo ou até sobre o juiz natural de todos os processos que um advogado tivesse em determinado tribunal (ou, na vertente oposta, com um pedido de escusa em todos os processos que um determinado juiz tivesse com o mesmo advogado).

Por isso, só em casos muito excecionais, até porque advogados e juízes são profissionais do foro e agem necessariamente com toda a seriedade e imparcialidade, deve ser deferido um pedido de recusa ou de escusa com base na existência de simples participações crime ou disciplinares, mormente quando estão em causa ilícitos de gravidade reduzida, como é o caso dos autos.

Por isso, ainda que se reconheça a delicadeza da situação e a posição menos cómoda e até algo desagradável em que se encontram o Meritíssima Juíza e a mandatária do requerente, não se vê em que medida está posta em causa a imparcialidade da Meritíssima Juíza e muito menos que estejamos perante uma situação em que deva ser preterido o princípio do juiz natural.

Assim, é para nós evidente que inexistem quaisquer razões para que o princípio do juiz natural seja postergado e consequentemente que a intervenção da Dr.ª B... no processo seja recusada.

Pelo exposto, acorda-se em indeferir ao pedido de recusa.

Custas pela recusante, fixando-se a taxa de Justiça em 4 (quatro) UC.

*

Coimbra, 17 de fevereiro de 2016

(Luís Ramos - relator)

(Olga Maurício - adjunta)


([1]) Princípio este consagrado no art. 203º, da Constituição da República Portuguesa — “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”
([2])”Nenhuma causa pode ser subtraída ao Tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”

([3]) Conforme desenvolve o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, citado no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 52/92, DR, I-A, de 14 de Março  de 1992, “a imparcialidade da jurisdição não é só a imparcialidade subjectiva. É também a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada... Afinal, trata-se da confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às partes... Deve pois recusar-se qualquer juiz relativamente ao qual se possa legitimamente recear a existência de uma falta de imparcialidade ... O elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem ter-se como objectivamente justificadas”.
([4]) Por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Novembro de 1996, CJ, ano 1996, tomo 3, pág. 187, onde se escreve: “Embora nesta matéria as aparências possam revestir-se de alguma importância, entrando em linha de conta com a óptica do acusado, sem, todavia, desempenhar um papel decisivo, o elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem considerar-se objectivamente justificadas”
([5]) Neste sentido, v.g., Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de Julho de 1996, in CJ, ano 1996, tomo 4, pág. 62
([6]) Neste sentido, v.g., Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2 de Dezembro de 1996, CJ, ano 1996, tomo 4, pág. 92
([7]) No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 2000, in C.J. (Acs do STJ), tomo II, pág. 244, decidiu-se que, “só deve ser deferida escusa ou recusado o juiz natural quando se verifiquem circunstâncias muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção”