Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2371/19.6T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE COISAS
PRIVAÇÃO DE USO DO VEÍCULO
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE POMBAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR MAIORIA
Legislação Nacional: ARTIGO 130.º, N.ºS 2 E 3, DA LEI DO CONTRATO DE SEGURO
Sumário: No caso de seguro facultativo, em que não esteja prevista a indemnização pelo dano da privação do veículo, a seguradora poderá ser responsabilizada pela indemnização de tal dano se, no apuramento do sinistro e da sua responsabilidade e se no pagamento da indemnização do valor da coisa, tiver actuado com violação de deveres acessórios de conduta, designadamente dos deveres de boa-fé, diligência, probidade e lealdade.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

AA intentou ação contra a S..., pedindo que esta seja condenada no pagamento do montante pelo qual o veículo se encontrava segurado, no aluguer de veículo de substituição e, ainda, condenada no pagamento das quantias que se vierem a apurar em sede de liquidação de sentença a título de dano de privação de uso do veículo e de parqueamento, acrescidas dos juros legais.

Alega, em síntese, que enquanto proprietária do veículo ligeiro de matrícula ..-..-XN celebrou com a Ré um contrato de seguro na modalidade de danos próprios ao qual foi atribuída a apólice n.º ...77; no dia 25 de setembro de 2017, o veículo sofreu o sinistro que descreve; por fim, aquela indica os danos.

Contestou a Ré, além do mais, que não contratualizou qualquer cobertura relativa à privação do uso do veículo com a Autora e que, sendo tal cobertura facultativa, nada lhe é devido.

Realizado o julgamento, foi proferida a seguinte sentença:

1. Condenar a Ré S... a pagar à Autora quantia de € 7.644,00 (sete mil, seiscentos e quarenta e quatro euros), relativa ao valor seguro à data do sinistro, acrescida de juros de mora, desde a data da citação da Ré até efetivo e integral pagamento.

2. Absolver a Ré do demais peticionado.


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Inconformada, a Autora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1- Atenta a perda total do veículo, a Ré obrigada estava a colocar à disposição da autora, a quantia correspondente ao valor seguro.

2- A Ré sempre se recusou a pagar este indicado valor, alegando que o valor venal do veículo seguro à data do sinistro era inferior e, portanto, ocorria um resseguro, quando foi a Ré que sempre atribuiu o valor ao veículo, tendo violado assim o disposto no DL. 214/97 de 18 de agosto;

3- Ao não cumprir a Ré com a sua obrigação de pagamento, ou de entrega de outro veículo, incorreu em mora, pelo que tem a autora, direito de ser ressarcida do prejuízo que compreende, além dos juros legais, da indemnização devida a título de dano de privação do uso do veículo, porquanto se trata de um dano superior ao dos juros de mora.

4- A autora fez prova da existência deste dano (facto 18).

5- O direito da autora a ser compensada pela privação do uso do veículo reporta-se desde a data do sinistro, até á efetiva entrega do valor seguro por parte da Ré Seguradora.

6- A quantia indicada na P.I. a título de compensação pela privação referida é adequada, justa e equitativa à reparação do prejuízo sofrido, fazendo uso do princípio da equidade.

7- Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, a questão da privação do uso do veículo tanto se pode colocar na responsabilidade contratual, como na responsabilidade extracontratual.

8- Com a descrição proferida, o Tribunal a quo, violou o desposto nos art.º 762 n.º 1, 808.º, 798 n.º 1, 804 n.º 1 e 2, 805.º e 806 n.º 3 todos do Código Civil.

9- Deverão V.Ex.ª revogar a decisão proferida quanto à privação do uso do veículo, substituindo-se por outra que condene a Ré seguradora no seu pagamento, face ao incumprimento da obrigação que sobre esta impendia.


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            A Seguradora apresentou contra-alegações, defendendo a correção do decidido.

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A questão a decidir é a do ressarcimento do dano pela privação do uso, no âmbito do seguro facultativo de “danos próprios”.

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Os factos provados são os seguintes (não impugnados):

1. A Autora é proprietária do veículo de passageiros, marca ... e de matricula ..-..-XN.

2. Em 2004, a Autora celebrou com a Ré um contrato de seguro relativo ao veículo referido, sendo tal contrato titulado pela apólice n.º ...77.

3. O contrato referido em 2 previa na sua cláusula 42 a cobertura de determinados danos facultativos, designadamente: «007 - S... Auto Protecção Colisão, choque e incêndio» e «013- perda total».

4. A Ré comunicou a resolução do contrato mencionado em 2 por comunicação datada de 28 de novembro de 2017, com efeitos a partir de 26 de outubro de 2017.

5. Em consequência do contrato celebrado, a Autora, anualmente, procedia ao pagamento do respetivo prémio de seguro, tendo em atenção o valor que a Ré lhe apresentava e as coberturas contratadas, e assim aconteceu até à data da sua anulação.

6. Desde a data da celebração do contrato de seguro, era a Ré que procedia à comunicação e fixação do valor do veículo segurado para efeito danos no próprio veículo, indicando qual o valor do respetivo prémio de seguro.

7. Enquanto vigorou o contrato de seguro referido em 2, a Autora nunca interveio na indicação do valor do veículo segurado, sendo a Ré que procedia à indicação do valor, determinava o respetivo prémio de seguro e o apresentava à Autora para liquidação.

8. O capital seguro para as modalidades de cobertura contratadas era, à data de 25 de setembro de 2017, de € 7.800,00 (sete mil e oitocentos euros), existindo uma franquia de 2%.

9. No dia 25 de setembro de 2017, pelas 22 horas e 21 minutos, o veículo de matricula ..-..-XN circulava na Rua ..., lugar de BB, freguesia ..., do concelho ..., no sentido de BB, onde a estrada se desenha em sentido descendente atento o sentido seguido e era conduzido por CC.

10. Por sua vez, em iguais circunstâncias de tempo e lugar, mas em sentido contrário ao seguido pelo veículo de matricula ..-..-XN, seguia um outro veículo que circulava fora da sua hemi-faixa de rodagem e com faróis máximos acesos tendo invadido a faixa de rodagem na qual circulava a viatura de matricula ..-..-XN.

11. O condutor do veículo de matricula ..-..-XN por forma a evitar o embate com tal viatura viu-se forçado a desviar-se para o limite direito da hemi-faixa pela qual circulava, tendo fica do encandeado pelos faróis do outro veículo, acabando por cair no aqueduto de condução de água pluviais, que se encontrava junto à berma da estrada por onde seguia.

12. Em consequência da queda do veículo no aqueduto, o mesmo ficou imobilizado no local, tendo o condutor dado conhecimento às autoridades policiais, tendo sido levantado o competente auto pela GNR ....

13. Mercê da oclusão do embate, a Autora efetuou a participação da ocorrência à Ré.

14. Por comunicação datada de 11 de outubro de 2017, a Ré comunicou à Autora que o veículo se considera em situação de Perda Total e que a viatura de matricula ..-..-XN se encontra sobressegurada, tendo indicado que o valor da indemnização havia sido fixado em € 4.250,00 (quatro mil duzentos e cinquenta euros) – valor de mercado do carro –, ao qual seria deduzido o valor do salvado, avaliado em € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).

15. Na mencionada comunicação de 11 de outubro, a Ré informou ainda que seria emitido um recibo de estorno do percentual do prémio cobrado em excesso.

16. A cláusula 42 do contrato referido em 2 prevê que «nos termos da lei, a indemnização garantida para ressarcir os danos que sobrevenham ao veículo seguro, será calculada da seguinte forma 2- quando o valor venal for igual ou inferior ao valor seguro, a S... apenas responderá até à concorrência do valor venal»

17. O veículo de matricula ..-..-XN, possuía como extras relativamente a outros veículos de características semelhantes: volante sport, bancos sport em tecido, sistema isofix nos bancos traseiros, airbags em todos os bancos, jantes especiais em alumínio da marca, ..., averbamento no livrete para duas medidas de jantes, colunas de som novas da marca ....

18. A Autora exerce as funções de ajudante técnica de farmácia na farmácia C..., ..., ... e utilizava o veículo de matricula ..-..-XN para se deslocar diariamente para o seu local de trabalho e para as suas deslocações correntes, utilizando presentemente a viatura do seu companheiro para efetuar tais deslocações.

19. O veículo de matricula ..-..-XN encontra-se presentemente nas instalações da ....

20. Em 18 de outubro de 2017, a Autora procedeu ao pagamento de uma fatura de

(cinquenta euros e oitenta e dois cêntimos) respeitante ao aluguer de uma viatura automóvel por um dia.


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No caso está em causa um contrato de seguro para cobertura de danos próprios.

A Autora reclama ainda da Ré o pagamento de uma indemnização pelo não uso do veículo.

No caso ficou provado o que consta do facto nº 18.

A Ré responde perante a Autora por força de uma relação contratual.

Conforme o artigo 130.º, nº 2 e 3, do Regime do Contrato de Seguro, o ressarcimento do valor de privação de uso do bem somente ocorrerá caso tenha sido convencionada tal prestação no próprio contrato de seguro.

No caso, as partes não contrataram a referida cobertura.

Porém, a Autora alegou que o dano decorreu também do atraso no pagamento do valor do veículo.

Seguindo de perto a jurisprudência do acórdão desta Relação, de 25.1.2022, no processo 168/18, em www.dgsi.pt, com a qual concordamos, no caso de seguro facultativo em que não esteja prevista a indemnização pelo dano da privação do veículo, a seguradora poderá ser responsabilizada pela indemnização de tal dano se no apuramento do sinistro e da sua responsabilidade e se no pagamento da demais indemnização devida tiver atuado em violação de deveres acessórios de conduta (dever de boa-fé, dever de diligência, dever de probidade, dever de lealdade); noutras não poderá ser-lhe imposta tal obrigação indemnizatória, mas apenas a do pagamento dos juros moratórios sobre a demais indemnização devida.

O atraso invocado deverá ser tido por injustificado, face aos contornos do caso.

Neste, em rigor, a discussão da justificação não se fez, porventura porque a Autora parece remeter a responsabilização apenas para a mora (art.30 da petição).

No mês seguinte ao sinistro, a Seguradora fez a comunicação referida no facto 14, ou seja, não se eximiu ao pagamento de uma indemnização, mas indicou um valor inferior ao titulado para o veículo, com o argumento de ocorrer um sobresseguro.

Acontece que não está alegado o que a Autora fez a seguir em resposta à dita comunicação, vindo a propor a ação apenas dois anos depois. Nada dizer à Seguradora, em resposta à referida comunicação, não é boa fé contratual.

Não tendo a Seguradora obtido vencimento no argumento que invocou (assim transitou em julgado a parte da decisão que a condenou), pressupõe-se que a posição foi assumida de boa-fé, por ser compreensível à luz da averiguação realizada (valor do dano inferior).

De acordo com o art.342, nº 1, do Código Civil, cabia à Autora alegar e demonstrar os pressupostos do direito em causa: a violação do dever acessório, a culpa, o dano e o nexo (adequado) entre a violação e o dano.

Depois, talvez explicando a inércia da Autora, provou-se que esta tinha disponível outro veículo para as suas deslocações (facto 18).

Por fim, não se demonstrou que a Autora não comprou outro veículo porque a Ré não lhe disponibilizou o valor em que foi condenada. O atraso será relativo a parte do valor (a outra parte do valor queria pagá-lo), havendo necessidade de se estabelecer um nexo de causalidade adequada entre a falta do referido valor e a falta de veículo.

Neste contexto, que temos por insuficiente, talvez porque, como já dito, não foi destacada a discussão sobre o atraso injustificado no pagamento, entendemos que a ré não pode ser responsabilizada pelo pagamento de uma indemnização a título da privação de uso do veículo.

A qualificação adequada é a da simples mora da Ré, para a qual a sentença já fixou os respetivos juros.


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Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Coimbra, 2022-05-10


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira, com declaração de voto.)

(Moreira do Carmo)


Daria provimento ao recurso.

Na verdade, a ré recusou-se a pagar a indemnização pelo valor segurado, tendo, porém, nesta vertente, perdido e sido censurada.

Logo, tem de concluir-se que ela, no mínimo, incumpriu o seu dever de diligência na assunção dos seus deveres no âmbito do contrato firmado.

Assim, na própria ótica da posição que fez vencimento e do Ac. desta Relação citado no acórdão, a sua posição é censurável e colocou-a em mora desde a data da ilegal recusa no pagamento do valor que a sentença entendeu ser devido: não o valor venal mas o valor segurado.

E foi esta recusa indevida e mora que despoletou a privação do uso da autora de um veículo.

Havendo culpa provada na atuação da ré devedora, cumpria-lhe provar factos que a afastassem, bem como afastassem os danos decorrentes da privação do uso do veículo, ou a obrigação de os suportar.

Assim, se bem interpreto o vertido no acórdão, não era sobre a autora que impendia provar porque é que não instaurou logo a ação, mas à ré provar que ela demorou-se, injustificada e culposamente, a instaurá-la.

Nem lhe competia provar porque é que não comprou outro veículo, (porque, em tese e princípio, ela nem sequer era obrigada a comprá-lo), mas à ré provar factos - excecionais, vg. a autora é muito rica - que permitissem a conclusão de que tal compra lhe era exigível.

Finalmente, o facto de se ter provado - facto 18 - que «presentemente» ela usa o carro do companheiro, não permite a conclusão do acórdão que, a seguir ao sinistro, que é o que releva - e até porque já lá vão vários anos - já o podia usar.

Destarte, à autora assistiria jus a ser ressarcida pela privação do uso do veículo, porque se provou que dele tinha necessidade – facto 18 -, em quantum a concretizar, quiçá equitativamente.

Carlos António Moreira.