Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
27/13.2GCLMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
INDEMNIZAÇÃO
REPARAÇÃO DA VÍTIMA EM CASOS ESPECIAIS ADMISSIBILIDADE
RECURSO
Data do Acordão: 04/29/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (LAMEGO – INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 21.º, N.ºS 1 E 2, DA LEI N.º 112/2009, DE 16-09; ARTS. 82.º-A E 400.º, N.º 2, DO CPP
Sumário: É irrecorrível, na vertente cível, a decisão da 1.ª instância que quantifica em 1250 € a indemnização arbitrada, nos termos do disposto nos artigos 82.º-A, n.º 1, do CPP, e 21.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16-09, a vítima de crime de violência doméstica.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                                            

I. Relatório:                                                  

            A) No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 27/13.2GCLMG que corre termos na Comarca de Viseu, Lamego – Instância Local – Secção Criminal – J1, foi proferida Sentença, em 3/12/2014, cujo Dispositivo é o seguinte:

“VIII – DECISÃO

Nestes termos o Tribunal decide julgar procedente por provada a acusação do Ministério Público e consequentemente:

1. - Condenar o arguido A... , como autor material, pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido no art. 152.º n.º 1, al. b) e c) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, cuja execução da pena se suspende por igual período (nº 5 do artigo 50º, do CP).

Suspensão da execução da pena de prisão, esta acompanhada de regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio durante o tempo de duração da suspensão da execução, dos serviços de reinserção social.

2. Condenar o arguido a pagar à assistente B... a quantia de €1250,00.

3. No que concerne às custas criminais, uma vez que o arguido foi condenado, suportará o mesmo as custas processuais, que comportam taxa de justiça e encargos (cfr. artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal), fixando-se aquela em 2 (duas) UC´s, tendo em conta a atividade processual desencadeada (artigo 8.º, n.º 9 e tabela III, do Regulamento das Custas e artigo 8.º, da Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro).

*

Após trânsito:

- remeta boletim à Direção dos Serviços de Identificação Civil;

- cumpra as Divulgações n.ºs 80/2012 e 133/2012, ambas do Conselho Superior da Magistratura (cfr. ainda artigo 37.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro);

- Comunique ainda à D.G.R.S.

*

Remetam-se boletins ao registo criminal.

                                                                        ****

B) Inconformado com a decisão recorrida, dela recorreu, em 15/1/2015, o arguido, pedindo a sua revogação e substituição por outra que o absolva, extraindo da motivação as seguintes conclusões:      

 1. Os pontos 4, 5, 6, 7 (parte final), 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 16, 17, (primeira parte), 18, 19, 20, 21 e 22, dos factos considerados provados na Mui Douta Sentença posta em causa, foram apenas afirmados em audiência de julgamento pela pretensa vítima, a ofendida, sem, no entanto, terem sido referidos, muito menos confirmados, por qualquer outra testemunha apresentada pela Acusação.

A própria fundamentação da matéria de facto considerada como provada apresentada na Sentença recorrida não apresenta quaisquer referências a estes factos.

Assim, considera-se que existe uma manifesta insuficiência de prova para dar como provados estes factos contidos nos pontos 4, 5, 6, 7 (parte final), 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 16, 17, (primeira parte), 18, 19, 20, 21 e 22, da matéria de facto considerada provada, pelo que deve o arguido não ser condenado pelos mesmos.

2. A única prova “directa” que nos é apresentada na motivação para estes factos são as declarações da ofendida e do arguido, sendo que são contraditórias, a do arguido não convenceu o tribunal e a da ofendida convenceu, ora se ambas têm o peso do interesse próprio na causa qual o porquê da diferenciação, e ainda que exista não está devidamente fundamentado.

3. A única imagem que nos surge ao ouvir declarações de pessoas com interesse directo na causa é a de falta de isenção natural no que se diz, mas é tanto a do arguido como a da ofendida.

4. E, quando muito, poderíamos ficar com dúvidas e o princípio, neste caso, não é o da condenação.

5. Na motivação/fundamentação da prova produzida está expresso que “…a assistente tenha sido a única a confirmar os factos que se deram como provados…”.

6. Sendo que o simples facto de ser assistente já se nos afigura uma pessoa com interesse directo na causa o que nos leva, no mínimo, a duvidar das suas palavras.

7. Assim, de toda a prova resulta que não ficou claro que o arguido tenha efectuado os factos dados como provados na sentença.

8. Mesmo, e por mero caso académico, se se considerar o crime provado, afigura-se-nos que a pena é demasiado elevada, se tivermos em consideração o facto de o registo criminal do arguido nada conter e não haver agravantes que se nos afigurem de relevo.

9. Por último, a condenação do arguido ao pagamento de 1250 euros à pretensa vítima parece-nos, antes de mais, que não está devidamente fundamentada.

10. Pois em sítio nenhum a assistente fez prova dos danos que teve.

11. Nunca foi ao médico após as pretensas agressões o que por si só pressupõe a inexistência de dores.

12. Não são referidas na douta sentença quais as particulares exigências de protecção da vítima que dão base a esta reparação.

13. Mesmo que se admitisse a condenação, seria sempre um valor exagerado considerando as condições sócio-económicas do arguido.

B) O recurso foi, a 20/1/2015, admitido.

                                                              ****

C) O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu, a 16/2/2015, ao recurso, defendendo a sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões:

1. A prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento é suficientemente elucidativa da prática dos factos pelos quais o arguido vinha acusado e pelos quais foi condenado.

2. Com efeito, essa prova produzida, apreciada, ponderada e valorada pelo Tribunal a quo segundo os cânones legais, suporta objectivamente os factos dados como assentes na sentença recorrida e empresta, a todo o processo decisório da formação da convicção do julgador, foros de justeza, correcção e comportabilidade juridicamente atendíveis.

3. A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não é possuidora de qualquer vício que inquine a sua validade quer formal quer substancial.

D) A assistente respondeu, a 18/2/2015, ao recurso, defendendo a sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões:

1. São de improceder todas as conclusões do recorrente.

2. A Douta Sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada e constitui um bom exemplo de total acerto jurídico.

3. Mantendo a decisão recorrida, farão Vossas Excelências JUSTIÇA.

                                                              ****

E) Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, a 6/3/2015, emitiu douto parecer em que defendeu a improcedência total do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.

                                                              ****

II – Decisão Recorrida:

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público acusa:

A... , solteiro, desempregado, nascido a 15-08-1986, filho de (...) e (...) , natural de (...) , Gouveia, com o CC n.º (...) , residente na (...) , Gouveia;

Pela indiciada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo Art. 152.º n.º 1, al. b) e c) e n.º 2 do Código Penal.

2. O arguido não apresentou contestação, nem apresentou prova.

3. Após o despacho que designou data para julgamento não ocorreu qualquer nulidade.

4. Procedeu-se a julgamento, em estrito cumprimento do formalismo legal.

*

Mantendo-se válidos os pressupostos, nada obsta à decisão do mérito da causa.

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II – DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO RESULTARAM PROVADOS OS SEGUINTES FACTOS:

1. O arguido entre Setembro de 2009 e 23 de Fevereiro de 2013 viveu com B... como se de um verdadeiro casal com celebração de um contrato de casamento se tratasse, vivendo na mesma casa, fazendo as refeições juntos, mantendo uma economia de vida em comum e mantendo entre si, relações sexuais.

2. Na sequência destas, nasceu no dia 24 de Outubro de 2010, o filho de ambos, C... .

3. Durante 8 meses do início da vida em comum, viveram na casa de uma irmã do arguido e do então marido desta, D..., sita em (...), nesta comarca, tendo só mais tarde passado a residir no (...), Lamego, o que aconteceu até à ruptura da vida em comum.

4.Tendo o período inicial da coabitação decorrido com tranquilidade, após o nascimento do filho C... , começou a haver constantes discussões entre ambos, essencialmente relacionadas com o veículo automóvel dele, com a família dele, as suas saídas nocturnas para casas de diversão, e as despesas aí efectuadas com dinheiro que fez muita falta à vida corrente do agregado familiar do arguido.

5. Muitas vezes, na frente de terceiros, o arguido dirigiu-se à ofendida de forma grosseira, arrogante e agressiva, revelando completa falta de respeito por ela e humilhando-a.

6. Quer no decurso das discussões, quer por vezes sem razão aparente, o arguido insultou a sua companheira, chamando-a de “puta”, “cabra”, dizendo-lhe, frequentemente que “não sabia fazer nada”.

7. Como o arguido não era titular de carta ou licença de condução de veículos automóveis, era a ofendida que conduzia o veículo do mesmo, implicando ele, a todo o tempo, com a condução que ela efectuava, não se coibindo, principalmente quando se aproximavam de semáforos ou estavam prestes a chegar a casa, de lhe puxar os cabelos, bater com a cabeça dela no vidro, e mesmo empurrar-lhe a cabeça na direcção da manete de velocidades, onde a mesma chegou a bater com a cara, designadamente um dos olhos, colocando-os a ambos em risco de sofrer um acidente.

8. Também, praticamente todas as semanas, na residência de ambos, a agrediu com pontapés, bofetadas, puxões de cabelos, murros na cabeça, apertou-lhe e torceu-lhe os braços, forçando-a a cair no chão e, por vezes ainda lhe fincou com força os dedos nos pulsos, deixando-a cheia de dores.

9. Em data não determinada, durante a vivência em comum, o arguido, depois de falar ao telefone com a sua mãe, pretendeu que também a companheira falasse com ela e, perante a recusa desta em falar com a dita senhora, desferiu-lhe logo uma bofetada.

10. Igualmente, em data indeterminada desse período, na sequência de pontapés que lhe desferiu nas pernas, deixou-a a mancar, o que foi observado no dia seguinte no local de trabalho dela pelos seus colegas.

11. Também em data que não se logrou apurar, mas situada dentro do mesmo espaço temporal, apertou-lhe o pescoço com força, quase a asfixiando, não obstante os problemas de saúde dela, relacionados com os pulmões.

12. A assistente B... , na sequência de tais problemas de saúde, veio, em Fevereiro de 2011, a ser operada a um dos pulmões, e durante os meses imediatamente seguintes, tinha muita dificuldade em estar deitada nalgumas posições e dava conta de tais queixas ao arguido, sendo que, nesse período não tinha disposição para manter relações sexuais.

13. No entanto, o arguido, bem sabendo que atuava contra a vontade dela, forçou-a a ter relações sexuais, e perante as queixas dela de que a estava a magoar, e em que lhe solicitava para, ao menos, mudarem de posição, ignorou tais pedidos e disse-lhe “para estar quieta”, apenas preocupado em se satisfazer.

14. Também numa ocasião em que a assistente teve um problema vaginal, depois de ter dito ao arguido que não estava em condições de manter relações sexuais, o arguido procedeu de forma idêntica, obrigando-a à força a tal, tendo-lhe ainda puxado os cabelos, torcido o pescoço e desferido murros na cabeça.

15. Durante os últimos tempos de vida em comum, agarrou a assistente várias vezes pelas costas e apertou-lhe as mamas e os mamilos, causando-lhe dores fortes.

16. Por diversas vezes, perante as queixas dela, devido a todas as descritas condutas, puxou-a violentamente pelos braços, arrastando-a até à porta de casa, e dizendo-lhe “ …se não estava bem que fosse para casa dos seus pais, mas que o filho ficaria com ele.”

17. Foi esse argumento, de retirar da convivência da assistente o filho de ambos, que o arguido usou para que a mesma não apresentasse queixa contra ele, o que esta apenas veio a concretizar, quando no dia 25 de Fevereiro de 2013, o arguido se recusou a entregar-lhe o filho depois de o ter levado uns dias a casa dos pais dele, sita em Gouveia, situação que foi regularizada por decisão proferida no Processo de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais n.º 253/13.4TBLMG, do 2º Juízo deste Tribunal, em que foi homologado o acordo, segundo o qual o menor ficou a residir com a mãe.

18. Nos primeiros tempos após a separação, o arguido efectuou chamadas para o telemóvel da assistente, em que lhe disse que lhe iria bater e aos pais da mesma, bem como que “…se ele não ficasse com o filho, ela também não iria ficar, porque a iria matar. ”

19. E mandou-lhe também SMS em que lhe disse que viria a Lamego e iria dar cabo dela e dos seus pais.

20. Por via de todas estas condutas, a assistente andou sempre triste, infeliz, intranquila, perturbada e aterrorizada com a perspectiva de ficar sem a convivência com o filho.

21. O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, com o propósito conseguido de faltar ao respeito devido à sua companheira, de a humilhar e vexar, e de lhe provocar sofrimento físico e psíquico, de a fazer recear que atentaria contra a sua vida, de lhe provocar ferimentos e, contra a vontade da assistente, satisfazer os seus instintos sexuais, pouco se importando com o mal que lhe causava, mantendo-a sempre debaixo de grande tensão mediante o prenúncio de retirar do convívio da mesma o filho menor de ambos, pois sabia que tal alegação a deixava aterrorizada.

22. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que todas as suas relatadas condutas eram proibidas e punidas por lei.

23. O arguido é embalador de pão, auferindo cerca de €455,00; anda a tirar a carta de condução.

24. Do certificado do registo criminal junto aos autos resulta que o arguido não tem antecedentes criminais.

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III- FACTOS NÃO PROVADOS:

Com relevância para a decisão da causa inexistem factos não provados.

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IV- MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (artigo 127º, Código Processo Penal).

O Tribunal norteou a sua convicção, quer quanto à matéria de facto provada quer quanto à ausência de matéria de facto não provada, pelo princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço sério e empenhado para alcançar a verdade material, analisando dialecticamente os meios de prova que teve ao seu alcance e procurando harmonizá-los e confrontá-los criticamente entre si de acordo com os princípios da experiência comum, pois, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, inexistindo, portanto, quaisquer critérios pré-definidores do valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei dispuser diferentemente (juízos técnicos).

Na verdade, o princípio da livre convicção constitui regra de apreciação da prova em Direito Penal, e efetivamente, para conduzir à condenação, tal prova deve ser plena, pelo que, na decisão de factos incertos, a dúvida determina necessariamente a absolvição, de harmonia com o Princípio da Inocência que enforma também o direito processual penal e tem consagração constitucional.

Note-se que, como é sabido, a verdade material absoluta é, em regra, inalcançável pela via judicial na sua tarefa de reconstrução dos factos da vida real, logrando-se apenas uma verdade processualmente válida, fundamentada e plausível, sendo que, por outro lado, o relato de um facto pelo ser humano é um processo que comporta diversas etapas, a saber: a perceção dos factos, a memorização – que, muitas vezes, é acompanhada de uma racionalização dos eventos percecionados conducente à sua distorção – e a sua reprodução, sem olvidar que o julgador não é um recetáculo acrítico dos relatos que são produzidos em audiência.

É que esta “verdade” é o resultado de um labor judicial que se baseia nas declarações de quem vivenciou os factos, mas não despreza outros contributos quiçá mais relevantes (documentos, exames periciais e a própria experiência do julgador).

A convicção do tribunal é formada, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.

Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram, no que radica o princípio da imediação da prova.

Trata-se de um acervo de informação não-verbal e dificilmente documentável, e nem sequer traduzível por palavras, face aos meios disponíveis mas rica, imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras de experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

O juiz não é uma mera caixa recetora de tudo o que a testemunha diz ou de tudo o que resulta de um documento e a sua apreciação funda-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos enformada por uma convicção pessoal.

Assim, a convicção do tribunal formou-se com base na conjugação:

a) – as declarações do arguido A... , que em síntese, negou a prática dos factos constantes da acusação, sendo que a sua versão não logrou convencer o Tribunal.

Esclareceu a sua situação pessoal, familiar e económica que não foi infirmada por qualquer outro meio de prova.

b) – as declarações da assistente B... que apresentou em audiência de discussão uma versão dos acontecimentos que se coaduna com a narrativa da acusação.

Durante as suas declarações foi esclarecendo o Tribunal, quanto aos pontos constantes da acusação e que se deram como provados, tendo-os confirmado.

Esclareceu ainda como é que se sentiu com todos estes factos.

As declarações da assistente não se afiguraram destituídas nem de lógica, nem de verosimilhança, nem denotaram qualquer contradição insanável que permitisse a conclusão legítima, razoável e objetivável no espírito do julgador no sentido que os factos não podiam ter sucedido do modo como a assistente B... os narrou, na verdade, afigurou-se o seu relato sereno, detalhado e natural, logrando, por isso, convencer, firmemente, o Tribunal.

c) as declarações das testemunhas:

- D... , pessoa que afirmou que viveu na mesma casa que arguido e assistente durante algum tempo, pelo que, descreveu o que presenciou e ouviu, confirmou a existência de várias discussões, que presenciou agressões, que durante as discussões que ocorriam no quarto do casal chegou a ouvir “berros que poderiam ser de dor” da assistente; confirmou as expressões que ouviu o arguido dirigir à assistente e que constam da acusação.

- E..., afirmou ter tido um relacionamento com o arguido e ter presenciado algumas chamadas telefónicas do arguido para a ofendida tendo confirmado as expressões que ouviu o arguido proferir e o tom de voz com que as proferiu.

- F..., colega de trabalho da assistente, esclareceu como é que a mesma andava no trabalho à data dos factos; as marcas no corpo que lhe viu; confirmou que em data que não soube precisar a assistente foi para o trabalho a “mancar”.

- G...., afirmou que à data dos factos era a “ama” do filho de arguido e assistente, mas que não presenciou ou ouviu qualquer dos factos.

Ajudaram a formar a convicção do Tribunal os documentos aos autos.

Quanto aos antecedentes criminais atendeu-se ao certificado de registo criminal do arguido junto aos autos.

Pese embora a assistente tenha sido a única a confirmar os factos que se deram como provados, o certo é que não nos subsistiram dúvidas em relação à prática pelo arguido dos factos constantes da acusação dados como provados, após a ponderação e análise desse meio de prova, que foi corroborado ainda que pontualmente pelos depoimentos prestados pelas restantes testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento.

Na verdade, resulta das regras da experiência comum e do princípio da normalidade que, no seio de ambientes familiares degradados, os contendores perdem claramente o discernimento e o bom senso, não se recordando, muitas vezes, com rigor, dos factos por si praticados, atuando de forma pouco sensata.

Na verdade, a ofendida efetuou um discurso pormenorizado, relatando com minúcia as circunstâncias acima aludidas, bem como a dinâmica factual subjacente, referindo-a, sem hesitações e com segurança.

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V- ENQUADRAMENTO JURÍDICO – PENAL

Sendo este o quadro factual que resultou provado, importa agora subsumi-lo às pertinentes normas do direito penal.

Vem o arguido acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. b) e c) e n.º 2 do Código Penal.

Estabelece o artigo 152º do Código Penal, no seu n.º 1 “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação

c) A progenitor de descendente comum em 1º grau;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”

O nº 2 refere que “no caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.” (…)

O nº 4 refere que “Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

E o nº 5 – A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”

Tal como refere Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 329, pretendeu-se, com esta criminalização prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis quão perniciosas – para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar – formas de violência no âmbito da família.

O bem jurídico protegido pelo tipo de crime de maus tratos é a pessoa enquanto indivíduo e a sua dignidade enquanto ser humano, referindo, a esse respeito Américo Taipa de Carvalho, ob. Cit., pág. 332 que o preceito em causa visa proteger a saúde – bem jurídico complexo que abrange não só a saúde física como a psíquica e mental e que pode ser afetado por uma multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes ou afetem a dignidade pessoal do cônjuge.

Estamos perante um tipo de crime específico, pois que este pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo de tais comportamentos.

O sujeito passivo deste tipo de crime apenas pode ser a pessoa que se encontra para com o agente na relação pressuposta no preceito incriminador.

Para que se verifique a prática deste tipo de crime, necessário se torna, para além do concreto tipo de relação entre agente e vítima, uma reiteração das condutas, sendo que, alguma jurisprudência considera ser subsumível em tal tipo criminal uma só conduta “agressora” que, pela sua gravidade, mereça esta especial tutela e punição.

A este propósito, decidiu o Tribunal de Relação de Évora, por Acórdão de 23 de Novembro de 1999, in C.J., 1999, 5, 283 que, no geral, para a verificação do crime de maus-tratos a cônjuge, é necessário que a conduta agressiva revista um carácter de habitualidade, mas um só comportamento bastará, desde que se revista de uma gravidade tal que seja suficiente para justificar a dissolução do vínculo conjugal, por comprometer a possibilidade devida em comum.

Nesta sede decidiu ainda o Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 3 de Novembro de 1999, in C.J. 1999, 5, 223 que, “no crime de maus-tratos ao cônjuge, protege-se a saúde física e mental do cônjuge. Esse bem jurídico pode ser violado por todo o comportamento que afete a dignidade pessoal do cônjuge, designadamente por ofensas corporais simples. A punição dirige-se, porém, tão-somente aos comportamentos que, de forma reiterada, lesam a dignidade pessoal do cônjuge, e não a ofensas corporais isoladas, ainda que de duração prolongada. Não existe obstáculo legal a que se proceda à convolação do crime de maus-tratos a cônjuge no de ofensas à integridade física, uma vez que este ilícito é um «minus» em relação àquele, verificando-se entre ambos uma relação de especialidade”.

E o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 14 de Novembro de 1997, in Col. De Jur., 1997, 3, 235, entendeu que “só as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente é que cabem na previsão do artigo 152º do Código Penal”.

O Acórdão da Relação do Porto de 20-09-2000, in BMJ 499,384 “para o preenchimento do tipo de crime de maus tratos a menor previsto no artigo 152º, nº 1, alínea a), do Código Penal não bastam situações isoladas de agressão, exigindo-se antes uma reiteração de maus tratos, ativa ou omissiva, sendo esta a «ratio» da autonomização deste crime.”

No que concerne ao elemento subjetivo deste tipo de crime, exige-se o dolo em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal (dolo direto, necessário ou eventual).

De referir, no entanto, que o dolo deve abranger o próprio resultado danoso da integridade física ou da honra e consideração da vítima, bem como o conhecimento da relação com a vítima.

A razão da autonomização do crime de maus-tratos reside na reiteração das condutas, que pela sua periodicidade impedem ou dificultam o normal e saudável desenvolvimento da personalidade, agrava as deficiências de que a vítima já padeça ou seja, adecta a dignidade pessoal prejudicando o seu bem-estar.

Atentos os factos dados como provados nos pontos 1. A 22. Temos de concluir que se encontram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime em análise, relativamente à assistente.

Assim, e inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pode-se afirmar que o arguido cometeu, em autoria material, um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 Al. b) e c) e n.º 2 do Código Penal.

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VI- DA ESCOLHA E MEDIDA CONCRETA DA PENA

Feito pela forma supra descrito o enquadramento jurídico – penal da conduta do arguido importa agora determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar.

O crime de violência doméstica é punido com pena de prisão de dois a cinco anos, nos casos do nº 2 do artigo 152º, do Código Penal, o que é o caso nos presentes autos, atentos os factos dados como provados.

Dispõe o artigo 70º do código penal que, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência fundamentada à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental.

Como estatui o artigo 71º do Código Penal, para a determinação da medida da pena ter-se-á em conta, dentro dos limites abstractos definidos na lei, todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o arguido. Fixando-se o limite máximo daquela de acordo com a sua culpa, e o limite mínimo, de acordo com as exigências de prevenção geral. A pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, deve ser feita de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso convenham.

Nesta medida, pondera-se:

Em primeiro lugar, e como circunstâncias agravantes, o grau elevado da ilicitude do facto, atento ao tempo pelo qual os mesmos se prolongaram.

O dolo direto.

Como atenuantes temos a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais à data da prática dos factos.

Tendo em conta estes elementos, as necessidades de prevenção geral e especial, entendemos que a conduta do arguido deverá ser sancionada com a pena de 3 anos.

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Teremos de considerar a possibilidade de aplicação, no caso “sub judice”, do instituto da suspensão da execução da pena prevista nos artºs 50º e seguintes do Código Penal.

Como escreve o Conselheiro Maia Gonçalves, “a suspensão da execução da pena de prisão, onde se inclui agora o regime de prova como uma modalidade, é uma medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico que deve ser decretada nos casos em que é aplicada pena de prisão não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o julgador concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição, isto é, a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, talqualmente vêm apontadas no artºs 40º, nº 1.

Trata-se de um poder-dever, ou seja, de um poder vinculativo do julgador, que terá de decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os apontados pressupostos” (In “Código Penal Português”, Anotado e Comentado, 10ª Ed., 1996, pág. 231.)

Na verdade, a pena privativa da liberdade surge sempre como a última “ratio” do nosso sistema punitivo sem que isso pressuponha, como se torna claro nos referidos preceitos, que não hajam casos em que só essa pena é a adequada a satisfazer todos os fins das penas.

Como escreve o Conselheiro Robalo Cordeiro “determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstrata ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta.

Só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas. Pelo que competirá em última instância aos tribunais a seleção rigorosa dos delinquentes que hão-de ser sujeitos a umas e outras” (In Escolha e Medida da Pena, “Jornadas de Direito Criminal”, CEJ, p. 237 e segs).

Dispõe o artigo 50º n.º 1 do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

Referindo-se no nº 2 que se “o tribunal o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.”

Como refere o Prof. Figueiredo Dias, a maior das vantagens da pena privativa da liberdade sobre a pena de multa é a desta não quebrar a ligação do condenado aos seus meios familiar e profissional, evitando, por esta forma, um dos efeitos criminógenos da pena privativa da liberdade e impedindo, até ao limite possível, a dessocialização e a estigmatização que daquela quebra resultam – Consequências Jurídicas do Crime, pág. 120/121.

O arguido não tem antecedentes criminais e encontra-se inserido profissionalmente.

Assim, atentos os elementos constantes dos autos temos de concluir que a simples censura dos factos e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido da criminalidade, satisfazendo também as necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, pelo que, efetuando um juízo de prognose favorável o tribunal decide suspender a execução da pena por igual período (nº 5 do artigo 50º, do CP).

Entende-se no entanto que esta suspensão da execução da pena de prisão deve ser acompanhada de regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio durante o tempo de duração da suspensão da execução, dos serviços de reinserção social.

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VII – Da indemnização à vítima:

De acordo com o artigo 21º, nº 2, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro:

 “2 – Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

Por sua vez, determina o referido artigo 82º-A do Código de Processo Penal:

“1 – Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.

2 – No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 – A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em ação que venha a conhecer de pedido civil de indemnização”.

Ao determinar a aplicação deste regime em qualquer caso, apenas se ressalvando os casos de oposição expressa por parte da vítima, o legislador afastou o pressuposto previsto na parte final do nº 1 do artigo 82º-A do Código de Processo Penal, quando esteja em causa uma vítima de violência doméstica.

Assim, o Tribunal, salvo oposição expressa da vítima, deverá sempre arbitrar uma quantia a título de reparação, ainda que não se verifiquem no caso particulares exigências de proteção.

Uma vez que a ofendida não deduziu pedido de indemnização civil e não se opôs à aplicação do regime previsto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, haverá que fixar a quantia indemnizatória.

Estão em causa prejuízos não patrimoniais, que – reportando-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral, não se repercutem no património do lesado e portanto não são susceptíveis de avaliação pecuniária, embora sejam compensáveis – correspondem àquilo que na linguagem jurídica se costuma designar por pretium doloris ou ressarcimento tendencial de angústia, da dor física, da doença, ou do abalo psíquicoemocional.

Apenas são atendíveis os que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (conforme o artigo 496º do Código Civil) e o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção a situação económica do agente e do lesado e demais circunstâncias do caso concreto (conforme o artigo 494º ex vi artigo 496º, nº 3, ambos do Código Civil).

No presente caso releva o período de tempo em que a conduta reiterada do arguido foi mantida sobre a vítima; as consequências das condutas do arguido; as condições económicas do arguido e da vítima.

A fixação da indemnização neste caso foge aos parâmetros normais, uma vez que nos encontrámos perante uma reiteração de eventos danosos, enquanto na generalidade dos casos temos um evento danoso, ainda que com consequências que se prolongam no tempo.

Perante estes elementos, num juízo equitativo, o Tribunal julga ajustada a quantia de €1250,00, sendo certo que se justificaria montante superior caso a situação económica do arguido fosse mais favorável.”

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III. Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.

Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

As questões a conhecer são as seguintes:

1. Saber se há falta de fundamentação da sentença.

2. Saber se há erro de julgamento quanto aos pontos 4, 5, 6, 7 (parte final), 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 16, 17, (primeira parte), 18, 19, 20, 21 e 22, dos factos considerados provados.

3. Saber se a pena aplicada se mostra excessiva.

4. Saber se o montante atribuído à ofendida, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, é exagerado.

                                                                       ****

            QUESTÃO PRÉVIA – Do incumprimento pelo recorrente do estatuído no artigo 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP:

O Ministério Público, na resposta ao recurso, refere que o recorrente “apesar de haver especificado nas suas conclusões os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não mencionou as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, nem indicou concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

                                                           ****

A questão prévia ora em análise é pertinente, já que o recorrente, sem margem para dúvidas, não cumpriu o que está previsto no artigo 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP.

            Porém, de forma a permitir uma maior celeridade na administração da justiça, continuamos a entender que o disposto no artigo 417.º, n.º 3, do CPP, só se justifica naqueles casos em que seja completamente impossível compreender o alcance do recurso.

            Ora, no caso presente, face à sua singeleza, não vislumbramos qualquer necessidade de convidar o recorrente a apresentar novas conclusões.

            Como tal, sem mais delongas, há que avançar para a análise das questões atrás elencadas.

                                                                       ****

            1 – Da falta de fundamentação da sentença:

            De uma forma quase subliminar, o recorrente alega que a sentença peca por falta de fundamentação quanto à matéria de facto dada como provada e à condenação do arguido ao pagamento de 1250 euros.

Todos sabemos que, por força do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

            E determina o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, sobre os requisitos da sentença que ao relatório, segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

            O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, portanto, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 14/6/2007, Processo n.º 1387/07, 5ª Secção.

            Antes da vigência da Lei n.º 59/98, de 15 de Agosto, entendia-se que o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem impondo que o julgador pormenorizasse o raciocínio lógico que se encontrava na base da sua convicção, pelo que somente a ausência total da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal constituía violação do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, a acarretar nulidade da decisão, nos termos do artigo 379.º, do CPP – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 9/1/1997, C.J., Acs. do STJ, V, Tomo 1, pág. 172, e Ac. do S.T.J., de 27/1/1998, B.M.J. n.º 473, pág. 166.                                                                                                      Actualmente, face à nova redacção do n.º 2, do artigo 374.º, do CPP, - aditamento à redacção do preceito: exame crítico das provas – é indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 7/7/1999, C.J., Acs. do S.T.J., VII, Tomo 2, pág. 246.

            Foi a referida Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que aditou a exigência do exame crítico das provas, sendo certo que a revisão de 2007 levada a cabo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, nada alterou nesta matéria.

            Pois bem, o exame crítico das provas tem como finalidade impor que o julgador esclareça “quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra”, conforme resulta do Ac. do S.T.J., de 1/3/2000, B.M.J. n.º 495, pág. 209.

            Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, tal exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo essencial que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de base ao respectivo conteúdo.

            Sem receio de errar, podemos afirmar que a fundamentação decisória tem que deixar claro o processo de raciocínio que conduziu o juiz a proferir a decisão, isto é, para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do CPP, reclama do julgador o exame crítico das provas que consiste na sua descrição e no respectivo juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório.

            Por outras palavras, é necessário que a decisão contemple a crítica por que razão umas provas merecem credibilidade e outras não, sendo imperioso que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 9/5/2007, Processo n.º 247/07, 3ª Secção.

             Ora, não basta uma mera referência dos factos às provas, torna-se obrigatório um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam de forma a poder concluir-se quais as provas e, em que termos, garantem que os factos aconteceram ou não da forma apurada.

            Em resumo, “a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (de um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” – ver, neste sentido, Ac. do S.T.J., de 31/10/2007, Processo n.º 3280/07, 3ª Secção.

                                                                       ****                                                                          Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, afigura-se-nos suficiente a fundamentação que a mesma contém, quanto ao processo de raciocínio levado a cabo pelo Tribunal, no que tange aos factos provados e não provados e quanto ao valor atribuído à ofendida, ou seja, pela motivação, é possível reconduzir racionalmente as razões que determinaram que o Tribunal a quo formasse a sua convicção relativamente             à prova produzida e à reparação em causa.

Aliás, o recorrente percebeu bem a fundamentação da sentença. Caso contrário, não faria uma crítica tão extensa ao seu teor.

Sublinhe-se não ser exigível que, no acto decisório, fiquem exauridos todos os possíveis posicionamentos que se colocam a quem decide, esgotando todas as questões que lhe foram suscitadas ou que o pudessem ser.

O que interessa é que a motivação seja necessariamente objectiva e clara, e suficientemente abrangente em relação às questões aí suscitadas, de modo que se perceba o raciocínio seguido.

Muitas vezes confunde-se motivação com prolixidade da fundamentação e esta apenas serve para confundir ou obnubilar a compreensibilidade que deve ser uma característica daquela.

Ora, relendo-se a sentença recorrida, podemos certamente discordar da mesma, fundadamente ou não, mas percebe-se qual foi o raciocínio seguido pelo tribunal a quo.

Neste sentido, não se descortina qualquer falta de fundamentação.

****

2 – Do erro de julgamento:

Embora o arguido faça alusão a uma “manifesta insuficiência de prova”, resulta, do modo como está estruturado o recurso, que não se está a referir ao vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, mas sim a uma errada valoração da prova.

Estabelece o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:                 

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;                                            b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;            c) Erro notório na apreciação da prova.                                                                                  Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.                           A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.                  

Por sua vez, o erro de julgamento, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.         

Assim sendo, é manifesto que o recorrente não ataca um vício intrínseco da sentença, antes coloca em crise a apreciação da prova feita pelo julgador.

É, pois, neste plano que devemos prosseguir.

                                                                       ****   

Nos casos de erro de julgamento, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, do C.P.P.:

«3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;             b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;                                  c)-As provas que devem ser renovadas».                                                                              A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.                     

Desenvolvendo algo mais sobre esta matéria, ao pretender o recorrente impugnar a matéria de facto nos termos acabados de mencionar, tem de respeitar as regras previstas na lei, ou seja, há-de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto no art. 412.º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal (redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputa incorrectamente provados e não provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas - als. a), b) e c) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4).                                                                                      

A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.                                                                                                

Como todos sabem, uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão.                                                                   

Tenhamos presente, neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 24/10/2002, proferido no Processo n.º 2124/02, em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).

Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.

Mais, como se observa no Acórdão do S.T.J. de 26/1/2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”.                                                                    

Acresce que a exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova.                                                            Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação.

Para atingir esse desiderato, aderimos à posição defendida no Acórdão de 14/7/2010, Processo n.º 508/07.7GCVIS.C1, deste Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt, onde se considera que o recorrente, a par da indicação das concretas provas, há-de proceder de uma das seguintes formas:

 Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante;

- Expor, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou

- Situar objectivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas

Mas tal não basta.

Na realidade, o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida.

Este é o cerne do dever de especificação.

O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente obrigar o recorrente a relacionar o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado, conforme defende Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134/1135.  

                                                           ****

Já referimos, em sede de questão prévia, que o recorrente não respeitou o disposto no artigo 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP, o que, no caso em concreto, não deve obstar ao imediato conhecimento do recurso, na medida em que é claro que o recorrente entende que o tribunal a quo deveria ter dado como não provados os factos elencados no recurso, com base nas declarações do arguido, em conjugação com o princípio in dubio pro reo e com a circunstância de não haver testemunhas presenciais.

Vejamos.

Ao alegar o que consta das suas motivações, em boa verdade, o recorrente está, em síntese, a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados facto, em contraposição com a que sobre o mesmo aquele adquiriu em julgamento, esquecendo-se da regra da livre apreciação da prova inserida no artigo 127.º, do C.P.P.

O citado artigo 127.º dispõe que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Ora, não se extrai que o tribunal tenha procedido a um julgamento arbitrário da prova produzida.

A livre apreciação da prova significa, em resumo, que esta deve ser feita de acordo com a convicção íntima do juiz.

Aliás, já Chiovenda o afirmava, citando o imperador Adriano, conforme pode ler-se no Digesto 3, 2, De testibus, 22, 5…

   Intimamente ligados ao princípio da livre apreciação da prova estão os princípios da continuidade da audiência, ou da concentração, oralidade e imediação da prova.

   Quanto aos dois últimos, constituem a um tempo decorrência lógica do princípio da livre apreciação da prova e “conditio sine qua non” para a respectiva admissibilidade.

  Com efeito, apenas quem tenha assistido à produção da prova e às disposições assumidas pela acusação e pela defesa poderá estar capaz, no fim da discussão, de se considerar convicto de uma determinada verdade, podendo proceder ao julgamento. Paralelamente, a oralidade permite com muito maior probabilidade aceder a um discurso directo, espontâneo, não ensaiado e vivo, o que obviamente contribui para um aumento das possibilidades de descoberta da verdade e de formação de uma correcta convicção.

Quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende patentemente as regras da experiência comum.

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Desde logo, não há motivo para afirmar que houve violação do princípio in dubio pro reo.

De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos.             O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto.                                                                                 Como todos sabem, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213 – já Ulpiano dizia “é melhor um crime impune do que um inocente castigado”.                                    Porém, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997.                                          

Lendo a fundamentação da decisão ora em crise, facilmente é constatado que o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida sobre a matéria de facto em causa.

O princípio geral do processo penal ora em análise é aplicável apenas nos casos em que, apesar de toda a prova recolhida, continuam os factos relevantes para a decisão a não poderem considerar-se como provados por continuar a subsistir dúvida razoável do Tribunal.

O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio.

A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.

No caso vertente, o Tribunal “a quo” não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável sobre os factos relevantes à decisão, pelo que não há lugar a qualquer aplicação do princípio in dubio pro reo (a dúvida reside apenas no recorrente e não no Tribunal).

A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética.

Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25.                                                                                           Assim, para a revogação da sentença importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido.                                                    O que, como se viu, não sucede com a análise do recorrente, apoiada, sobretudo, na sua própria versão dos factos.

Bem se compreende que o Tribunal a quo não tenha permanecido na dúvida razoável.

Sublinhe-se que estamos na presença de factos que ocorrem na privacidade de um casal.

Logo, é natural que não haja testemunhas presenciais dos factos.

Por tal motivo, no tipo de crime que concentra agora a nossa atenção, assume especial relevo aquilo que é transmitido pela pessoa que se apresenta como vítima.

O recorrente coloca em causa a valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, em virtude da mesma estar fundamentada apenas na prova directa decorrente do depoimento da sua companheira, B... .

Compreende-se a argumentação, embora não seja de acolher.

Afinal, já o imperador Constantino escrevia assim a Juliano: “Que nenhum juiz, em nenhuma causa, admita facilmente o testemunho de um só; nem mesmo que tenha a dignidade de senador” (lei 10, Cod. de testibus).

Este preceito resumia-se, então, no aforismo testis unus testis nullus, hoje afastado da maioria dos sistemas penais.

Todo o julgador deve ter presente que, por mais honesto e por mais prudente que seja um homem, pode estar enganado ou errar ele próprio sobre o assunto sobre o qual fala.

Por isso mesmo, tendo em conta a extrema relatividade que tem a prova testemunhal em face da certeza judiciária, há que ter muita ponderação na sua apreciação, nada obstando, contudo, a que uma só testemunha possa ser suficiente para convencer o juiz.

Tudo se resume, repete-se, à credibilidade que merecem para o julgador aqueles que surgem à sua frente, desde que o caminho de convicção trilhado não ofenda patentemente as regras da experiência comum.

Ora, por maioria de razão, a citada ponderação deve existir quando a pessoa que é ouvida se constituiu assistente no processo.

Não há obstáculo legal à valoração em audiência de julgamento das declarações da assistente e demandante cível e a que, no âmbito da imediação e na oralidade, o Tribunal a quo possa racionalmente fundamentar os factos dados como provados com base nas suas declarações, em especial quando confirmadas por outros elementos probatórios, derivados de provas directas e indirectas, devidamente conjugadas entre si e com as regras da experiência comum – ver, neste sentido, Acórdão do TRC, de 6/1/2010, Processo n.º 583/07.4TATMR.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Orlando Gonçalves, in www.dgsi.pt.

No nosso caso, o Tribunal a quo não viu motivos para duvidar de B... .

Tal é compreensível, uma vez que o seu depoimento, ouvido pelo Tribunal da Relação – bem como o foram as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas -, foi espontâneo, sereno, lógico, não se vislumbrando qualquer razão para que não mereça credibilidade.

Aliás, as suas declarações aparecem corroboradas, de uma forma assertiva, pelos depoimentos das testemunhas D... , E... e F... .

Logo, não estamos na presença de qualquer dado objectivo que possa impor uma alteração da matéria de facto.

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            3 – Da medida da pena:

Façamos uma breve análise sobre as finalidades legais das penas com reflexos no seu doseamento e nos critérios legais concretos a observar neste doseamento.

Como dispõe o artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são assim na filosofia da lei penal vigente a protecção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afectados.

Na protecção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).

As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.

No caso concreto a finalidade de tutela e protecção de bens jurídicos há-de constituir o motivo fundamento da escolha do modelo e da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afectados.

Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser em cada caso prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.

Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização será encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, nos termos do artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena (cfr. nomeadamente Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1ª edição, pags. 238 a 255).

Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, preceitua, na senda do citado artigo 40.º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o n.º 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido (a necessidade da pena revela-se desse modo em função da menor ou maior exigência do exercício da prevenção e da reintegração).

Em resumo, tendo como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, ou seja, tendo como primeira referência a culpa, a fixação da medida da pena perseguirá concomitantemente a prevenção (que, neste contexto, exige fixação de pena que seja entendida pela sociedade como a necessária à tutela do direito e adequada à confiança na aplicação da justiça) e, sempre, objectivos pedagógicos e ressocializadores, tudo tendo em vista a protecção de bens jurídicos e a reinserção social do agente. 

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            Nesse quadro, o grau de ilicitude não pode ser escamoteado, face à reiteração do comportamento do arguido, sendo certo que este agiu com dolo directo que atingiu grande intensidade.

Quanto às motivações do crime, é cristalino que o arguido agiu com o propósito de colocar em causa a dignidade da sua companheira, o que é bem reprovável.

O arguido está inserido socialmente.

Além disso, não apresenta antecedentes criminais, o que, no caso presente, não assume especial relevo, dado ser aquilo que sempre é esperado de um cidadão probo, cujo comportamento não se coaduna com os factos descritos nos autos.

Tudo ponderado, e considerando que são prementes as exigências de prevenção especial de socialização do arguido, bem como as exigências de prevenção geral, quer negativa, quer de integração, é de considerar como adequado que o Tribunal a quo tenha aplicado a pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução nos termos expostos.

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            4 – Do montante atribuído a título de reparação pelos prejuízos sofridos pela ofendida:

A Lei n.º 112/2009, de 16/9, que instituiu o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das vítimas destes crimes, estabelece no seu art. 21º o direito da vítima à indemnização, nos seguintes termos:

«1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.

».

E é a seguinte a redação do art. 82º-A do C.P.P., que versa sobre a reparação da vítima em casos especiais:

«1 – Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

2 – No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 – A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização».

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            O Recorrente considera exagerado o quantum indemnizatório em que foi condenado, estando implícito que pede a sua redução a montante que não concretizou.

Porém, é de rejeitar o conhecimento desta última questão recorrida, pelo argumento lógico «identidade de razão» com o não conhecimento em Recurso da quantificação a quo de indemnização objecto de Pedido de Indemnização Civil quando não ultrapassa metade da alçada do Tribunal a quo.

Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 400.º, n.º 2, do CPP, entendemos que não faz sentido na Ordem Jurídica o conhecimento em Recurso do pedido de redução de quantum indemnizatório arbitrado oficiosamente que não era conhecível pela Relação caso tivesse sido quantificado a quo em sede de apreciação de Pedido de Indemnização Civil – ver, neste sentido, Acórdão do TRP, de 16/10/2013, Processo n.º 670/11.4PDVNG.P1, relatado pelo Exmo. Desembargador Castela Rio, in www.dgsi.pt.    

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            IV – DECISÃO:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar, na íntegra, a sentença recorrida.          

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco UC.


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Coimbra, 29 de Abril de 2015

(José Eduardo Martins - relator)
(Maria José Nogueira - adjunta)