Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
30/15.8T8SAT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: SERVIDÃO PREDIAL
SERVIDÃO NÃO APARENTE
USUCAPIÃO
SINAIS EXTERIORES DA SERVIDÃO
PORTÃO
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – SÁTÃO – JUÍZO COMP. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1548º C. CIVIL.
Sumário: I - Admitir a aquisição de servidões não-aparentes por usucapião teria o grave inconveniente de dificultar em vez de estimular as boas relações de vizinhança, pelo fundado receio que assaltaria as pessoas de verem convertidas em situações jurídicas de carácter irremovível situações de facto assentes sobre actos de mera condescendência ou obsequidade.

II - Para que uma servidão predial, designadamente de passagem, possa ser adquirida por usucapião, não basta a existência de uma situação possessória que reúna os requisitos necessários a essa forma de aquisição de direitos reais, é também necessário que durante o tempo da posse existam no prédio em causa sinais exteriores que permitam aos interessados, designadamente aos titulares do prédio serviente, constatar que o seu prédio está realmente afectado por um encargo em proveito de outro prédio, não se registando uma situação de simples cortesia ou tolerância.

III - Uma servidão de passagem pode ser revelada por sinais exteriores que não tem que ser necessariamente o traçado do caminho por onde se passa, podendo integrar esses sinais outros elementos, como a existência de um portão ou de uma “entrada” que sinalize, com evidência, uma passagem do prédio dominante para o prédio serviente.

IV - Para esse efeito, tal portão ou entrada terão que se situar na linha divisória que separa o prédio serviente do dominante, destinando-se a assegurar uma comunicação entre os dois prédios.

V - Já um portão que separa o prédio serviente da via pública ou de outro prédio que não o dominante, ou uma qualquer obra de entrada no prédio serviente que não deite para o prédio dominante, em nada revela a existência de uma qualquer passagem através do prédio serviente para o prédio dominante, pois tais construções, atenta a sua localização, são apenas meios de vedação ou de acesso ao prédio serviente, sem evidenciarem qualquer forma de comunicação entre prédio dominante e serviente.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Os Autores intentaram a presente acção declarativa com processo comum contra os Réus, pedindo:

a) Que se declare que o prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial lhes pertence em propriedade plena e exclusiva;

b) Que se declare que os Réus violaram o seu direito de propriedade quando, sem consentimento, cortaram o cadeado que estava amarrado ao portão em ferro que se situa a sul do pátio e que, consequentemente, se constituíram na obrigação de os indemnizar dos prejuízos causados.

c) Que se declare que sobre o prédio de que são proprietários não incide qualquer servidão de passagem a favor dos prédios dos Réus;

d) Que se condenem os Réus a respeitar o seu direito de propriedade plena sobre o prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial e a absterem-se da prática de quaisquer actos que afectem ou diminuam esse mesmo direito;

e) Que se condenem os Réus a pagarem aos primeiros Autores a quantia de 300€ a título de indemnização pelos danos causados com o corte do cadeado sua propriedade;

f) Que se condenem os Réus a reconhecerem que sobre o prédio urbano dos Autores não existe uma servidão de passagem a favor dos seus prédios urbanos e ficarem assim impedidos de aceder aos seus prédios através do prédio dos Autores.

Para fundamentar a sua pretensão invocaram, em síntese, a titularidade do direito de propriedade sobre um prédio urbano sito no Largo do ..., tendo o acesso para os dois prédios dos Réus sido realizado por um caminho que se situa a nascente do referido prédio dos Autores e não através de um pátio integrante de tal imóvel, onde, a sul, foi construído um portão em ferro, no qual foi colocado um cadeado, posteriormente destruído pelos demandados.

Os Réus contestaram, impugnando motivadamente a matéria alegada pelos Autores e invocando a existência de uma servidão de passagem, a pé e de carro, constituída por usucapião, sobre o prédio dos autores.

Concluíram pela improcedência da acção.

Foi proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos:

Em face do exposto, decido julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:

a) Declaro que o prédio identificado no ponto 1) da matéria de facto assente pertence em propriedade plena e exclusiva aos autores;

b) Declaro que sobre o prédio dos autores identificado no ponto 1) da matéria de facto assente não incide qualquer servidão de passagem a favor dos prédios dos réus identificados nos pontos 7) e 9) da matéria de facto assente;

c) Condeno os réus a respeitarem o direito de propriedade plena dos autores sobre o prédio identificado no ponto 1) da matéria de facto assente e a se absterem da prática de quaisquer atos que afetem ou diminuam esse mesmo direito;

d) Condeno os réus a ficarem impedidos de aceder aos seus prédios identificados nos pontos 7) e 9) da matéria de facto assente através do prédio dos autores identificado no ponto 1) da matéria de facto assente;

e) Absolvo os réus do demais peticionado.

Os Réus interpuseram recurso, apresentando as seguintes conclusões:

...

Os Autores apresentaram resposta, pugnando pela confirmação da sentença.

1. Do objecto do recurso

Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões apresentadas cumpre apreciar as seguintes questões:

a) Os factos julgados não provados sob as alíneas O, P, R e S devem ser julgados provados?

b) O facto não provado em R está em contradição com os factos provados sob os n.º 20 e 21?

c) Os factos julgados provados são suficientes para se julgar verificada a aquisição por usucapião de uma servidão de passagem a pé sobre o prédio dos Autores e a favor do prédio dos Réus?

2. Dos factos

Os recorrentes, impugnando a matéria de facto pretendem que após reapreciação das provas produzidas sejam julgados provados os factos não provados e constantes das alíneas O, P, R e S.

...

Improcede, pois, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Os factos provados são:

...

3. O direito aplicável

Para além da impugnação da matéria de facto que improcedeu, os Réus defendem neste recurso que, mesmo assim, estando reunidos os pressupostos factuais que permitem concluir pela existência de uma servidão de passagem a pé e de carro que onera o prédio dos Autores a favor dos seus prédios, a acção deve a acção ser julgada improcedente e, consequentemente, eles serem absolvidos de todos os pedidos formulados pelos Autores.

A decisão recorrida reconheceu que sobre o prédio dos Autores não incide qualquer servidão de passagem a favor dos prédios dos Réus, tendo condenado estes a respeitarem o direito de propriedade plena dos Autores sobre o seu prédio e a absterem-se da prática de quaisquer actos que afectem ou diminuam esse mesmo direito, ficando impedidos de aceder aos seus prédios através do prédio dos Autores.

Na verdade, os Autores nesta acção haviam formulado um pedido de simples apreciação negativa, através do qual pretendiam que o tribunal reconhecesse que os Réus não dispunham de um direito de servidão de passagem sobre um prédio do qual eram proprietários.

Neste tipo de acções compete aos demandados a prova dos factos constitutivos do direito que se arrogam – art.º 342º, n.º 1, do C. Civil –, ou seja o direito que os demandantes pretendem que o tribunal reconheça não existir.

O direito aqui em causa era um direito de servidão predial de passagem.

Os Réus alegaram a constituição desse direito por usucapião.

Além dos requisitos comuns da constituição dos direitos reais por usucapião no caso das servidões prediais é ainda necessário demonstrar que a servidão em causa é uma servidão aparente, uma vez que o art.º 1548º do C. Civil não admite a constituição, por usucapião, de servidões não aparentes.

Há quem refira que este requisito resulta numa exigência de publicidade da posse qualificada. Não basta demonstrar que a passagem através do prédio serviente era feita de forma a poder ser presenciada por quem se encontrasse no local, mas também que existiam marcas permanentes que eram visíveis a quem por aí se encontrasse.

Foi exactamente este requisito que o tribunal recorrido considerou que os Réus não tinham demonstrado, pelo que julgou não provada a constituição da servidão predial de passagem invocada pelos Réus e, em consequência, reconheceu a inexistência da mesma.

Neste recurso os Réus sustentam que dos factos provados é possível concluir-se que o direito por eles invocado respeita a uma servidão aparente, uma vez que está provada a existência de sinais visíveis e permanentes da sua passagem pelo prédio dos Autores.

Desde o direito romano que no domínio das servidões se sentiu a dificuldade de distinguir as servidões não aparentes, isto é aquelas que não se revelam por sinais visíveis e permanentes, dos actos de mera tolerância, o que justificava a colocação de entraves à aquisição deste tipo de servidões em resultado de um uso prolongado.

Entre nós, até à aprovação do C. Civil de 1867, em matéria em que assumiam especial relevância os “costumes e posturas dos lugares” [1], os tratadistas já só admitiam a aquisição, por usucapião, de servidões prediais não-aparentes através de uma posse imemorial [2].

Com o Código Civil de 1867, seguindo o Código de Napoleão – artigo 1691 –, a usucapião passou a ser uma forma de aquisição do direito de servidão, proibida relativamente às servidões não-aparentes – artigo 2273º –, solução que se manteve no art.º 1548º do C. Civil de 1966.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, admitir a usucapião como título aquisitivo deste tipo de servidões, não obstante a equivocidade congénita dos actos reveladores do seu exercício, teria o grave inconveniente de dificultar em vez de estimular as boas relações de vizinhança, pelo fundado receio que assaltaria as pessoas de verem convertidas em situações jurídicas de carácter irremovível situações de facto assentes sobre actos de mera condescendência ou obsequidade” [3].

Assim, para que uma servidão predial, designadamente de passagem, possa ser adquirida por usucapião, não basta a existência de uma situação possessória que reúna os requisitos necessários a essa forma de aquisição de direitos reais, é também necessário que durante o tempo da posse existam no prédio em causa sinais exteriores que permitam aos interessados, designadamente aos titulares do prédio serviente, constatar que o seu prédio está realmente afectado por um encargo em proveito de outro prédio, não se registando uma situação de simples cortesia ou tolerância. 

Como se disse no Acórdão desta Relação de 10 de Julho de 2013 [4]: a visibilidade dos sinais respeita à sua materialidade, no sentido de serem percepcionáveis e interpretáveis como tais, pela generalidade das pessoas que se confrontem com eles e a permanência consiste na manutenção dos sinais, com a aludida visibilidade, ao longo do tempo, sem interrupções (pelo menos nos casos em que a ausência temporária dos sinais torne equívoco o seu significado), por forma a gerar e manter a ideia de que se trata de uma situação estável e duradoura e, ao mesmo tempo, afastar a hipótese de se tratar de uma situação precária, podendo tais sinais, no entanto, ser alterados ao longo do tempo ou substituídos por outros.

Provou-se que o acesso para os prédios dos Réus e seus antecessores, a pé, se fez pelo pátio dos Autores durante mais de 20 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, designadamente dos Autores e seus antecessores, sempre no convencimento de usarem direitos próprios, o que seria suficiente para a prova da aquisição do direito de servidão de passagem, por usucapião.

Contudo, era também necessário demonstrar que essa servidão era uma servidão aparente, pois só tendo essas características podia ser objecto dessa forma de aquisição.

Defendem os Recorrentes que se provaram sinais exteriores dessa passagem, nomeadamente a existência de um portão em ferro do lado sul e uma entrada do lado norte do referido pátio (espaço aberto no muro de vedação do pátio).

Efectivamente provou-se que o pátio da casa dos Autores através do qual os Réus e seus antecessores acederam aos seus prédios durante um período de 20 anos se encontra vedado de ambos os lados por um portão em ferro do seu lado sul e, parcialmente, por um muro em pedra seu lado norte, admitindo-se que estando a norte apenas parcialmente vedada por um muro exista um espaço aberto que permite a entrada no referido pátio.

Uma servidão de passagem pode ser revelada por sinais exteriores que não tem que ser necessariamente o traçado do caminho por onde se passa, podendo integrar esses sinais outros elementos, como a existência de um portão ou de uma “entrada” que sinalize, com evidência, uma passagem do prédio dominante para o prédio serviente [5]. Para esse efeito, tal portão ou entrada terão que se situar na linha divisória que separa o prédio serviente do dominante, destinando-se a assegurar uma comunicação entre os dois prédios. 

Já um portão que separa o prédio serviente da via pública ou de outro prédio que não o dominante, ou uma qualquer obra de entrada no prédio serviente que não deite para o prédio dominante, como sucede no presente caso, em nada revela a existência de uma qualquer passagem através do prédio serviente para o prédio dominante, pois, tais construções, atenta a sua localização, são apenas meios de vedação ou de acesso ao prédio serviente, sem evidenciarem qualquer forma de comunicação entre prédio dominante e serviente.

Daí que os pretensos elementos indicados pelos Réus como sinais visíveis e permanentes da servidão de passagem que alegam ter-se constituído por usucapião não tenham esse significado, pelo que inexistindo prova de outros elementos não é possível qualificar a servidão invocada pelos Réus como aparente, não se podendo, por isso, considerar que os Réus tenham adquirido, por usucapião, uma servidão de passagem pelo prédio dos Autores, revelando-se correcta a decisão recorrida.

Por estas razões deve o recurso ser julgado improcedente.

Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas do recurso pelos Recorrentes.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Maria Domingas Simões

                  Jaime Ferreira


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[1] Coelho da Rocha, em Instituições de direito civil português, Tomo II, pág. 461, 6.ª ed., Imprensa da Universidade, e Borges Carneiro, em Direito Civil de Portugal, tomo IV,  pág. 242, ed. 1858, Lisboa.

[2] Coelho da Rocha, ob. cit. pág. 470, Correia Telles, em Digesto Português, tomo III, pág. 76, ed. de 1836, da Imprensa da Universidade.

[3] Em Código Civil anotado, vol. III, pág. 629, 2.ª ed., Coimbra Editora.

[4] Relatado por Alberto Ruço, acessível em www.dgsi.pt.

[5] Nesse sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. cit., e José Luís Santos, em Servidões prediais, pág. 32, ed. de 1983, Coimbra Editora.

   No Acórdão do T. R. P. de 12.3.2009, relatado por José Ferraz, acessível em www.dgsi.pt, entendeu-se que constituíam sinais um portão aberto entre o prédio serviente e dominante e vestígios de um caminho entre esse portão e outro portão do prédio serviente para a via pública.

  No Acórdão do T. R. C., citado na nota 5, entendeu-se que a existência de um portão entre o prédio dominante e serviente não é suficiente para caracterizar uma servidão aparente.

 No Acórdão do T. R. C. de 27.2.2007, relatado por Freitas Neto, acessível em www.dgsi.pt, entendeu-se que um portão aberto no prédio serviente para a via pública não é um sinal da existência de uma servidão de passagem.