Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
331/09.4TBCNF-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO LABORAL
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
BEM IMÓVEL DO EMPREGADOR
PRESTAÇÃO DA ACTIVIDADE DO TRABALHADOR
ACTIVIDADE DE CONSTRUÇÃO CIVIL
Data do Acordão: 06/01/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 333 Nº1 B) CT, 747, 748 CC
Sumário: I – Para os efeitos previstos no art. 333º, nº 1, alínea b), do Código do Trabalho e atribuição do privilégio imobiliário nele previsto, deve considerar-se que o trabalhador presta a sua actividade em todos os bens imóveis da entidade empregadora que estejam inseridos no complexo empresarial dessa entidade e afectos à actividade por ela desenvolvida e na prossecução da qual também se insere a prestação do trabalhador, independentemente da concreta localização física do seu posto de trabalho e independentemente, portanto, de esse posto de trabalho se localizar nos imóveis em questão.

II – Nessas circunstâncias e por se dever considerar, para os efeitos referidos, que presta a sua actividade nesses imóveis, o trabalhador que exerce as suas funções laborais em diversas obras e na condução de uma carrinha que transporta os trabalhadores para essas obras goza de privilégio imobiliário sobre os imóveis da respectiva entidade empregadora onde estão instalados os escritórios da empresa e onde é guardado o material utilizado nas obras, ainda que a efectiva prestação da sua actividade laboral não se desenvolva no interior dos referidos imóveis.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito do processo de insolvência referente a C (…) Ld.ª e no âmbito do apenso de verificação do passivo, foi reconhecido (além de outros créditos) um crédito de B (…), no valor global de 31.750,96€, emergente de contrato de trabalho e respectiva cessação, e foi proferida sentença – em 23/09/2010 – que graduou os créditos nos seguintes termos:

A) Quanto aos bens imóveis descritos no auto de apreensão de bens:

1. Os créditos de todos os trabalhadores que beneficiem de privilégio imobiliário especial, relativamente ao prédio ou prédios onde os mesmos prestassem a respectiva actividade – cfr. artigo 333.º do Código de Trabalho, na redacção da Lei n.º7/2009, de 12 de Fevereiro, passando a figurar como crédito comum relativamente aos restantes prédios identificados ou na parte em que o eventual valor remanescente do crédito garantido não seja integralmente pago;

2. O crédito do Banco (…), SA que beneficia de hipoteca sobre as fracções A, B, C e D do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no lugar do x... , na freguesia de Y... , concelho de z... , descrito sob o n.º801/20070525;

3. O crédito do Instituto de Segurança Social que beneficie de privilégio imobiliário geral;

4. Os créditos comuns, na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para a respectiva satisfação integral (cfr. artigo 176.º do CIRE);

5. Os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48.º do CIRE, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem na mesma alínea (cfr. artigo 177.º, n.º 1 do CIRE).

B) Quanto aos bens móveis descritos no Auto de Apreensão de Bens:

1. Os créditos dos trabalhadores, que beneficiem de privilégio mobiliário geral (cfr. artigo 333.º do Código de Trabalho, Lei n.º7/2009, de 12 de Fevereiro);

2. Os créditos do Estado que beneficiem de privilégio mobiliário geral.

3. O crédito do Instituto de Segurança Social que beneficie de privilégio mobiliário geral;

4. Os créditos comuns, na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para a respectiva satisfação integral (cfr. artigo 176.º do CIRE);

5. Os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48.º do CIRE, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem na mesma alínea (artigo 177.º, n.º 1 do CIRE).

*

As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem (cfr. artigo 172.º, n.º1 e 2 do CIRE)”.

Entretanto, no âmbito do processo principal, o Sr. Administrador da Insolvência apresentou proposta de rateio parcial e, tendo sido notificado para esclarecer se as fracções aí consideradas correspondiam ao local onde os trabalhadores prestavam a sua actividade, veio dizer que não, apresentando novo mapa corrigido do qual fez constar que os créditos laborais não gozavam de privilégio sobre os bens imóveis.

O credor B (…) veio apresentar requerimento, sustentando que os imóveis em causa estavam inseridos na actividade da Insolvente e que, como tal, devem ser considerados como locais onde também o Requerente exercia a sua actividade, apesar de, dada a especificidade das suas funções, ter desenvolvido a sua actividade maioritariamente em locais (obras) não pertencentes à entidade empregadora e situados no estrangeiro e a conduzir uma “carrinha” que transportava os trabalhadores nas deslocações entre Portugal e as obras e locais de residência em Espanha. Mais alegou que, quando se encontrava em Portugal, deslocava-se aos “escritórios” da Insolvente – correspondentes às fracções A e B do artigo matricial urbano 860 da freguesia de Y... , concelho de z... – para tratar de todos os assuntos relacionados com a relação de trabalho e, designadamente, para receber da Insolvente o dinheiro para o combustível com que abastecia a carrinha que conduzia nas deslocações para Espanha.

Produzida a prova que havia sido indicada, foi proferida decisão onde se decidiu que o crédito do credor B (…) é considerado como crédito comum em relação aos imóveis apreendidos a favor da massa insolvente.

Inconformado com essa decisão, o credor B (…) veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. A sentença de verificação e graduação de créditos nunca apreciou ou decidiu a questão que foi objeto do despacho recorrido, não se verificando, por isso, o invocado caso julgado.

2. Na verdade, tal sentença, no que respeita aos créditos laborais, limitou-se a reproduzir de forma sintética o regime resultante das normas que citou (os art. 747.º e 748.º do Código Civil e a al. b/ do n. 1 do artigo 333.º do Código do Trabalho), utilizando as expressões contidas na letra da lei para, em abstrato, declarar os privilégios de que gozavam os créditos laborais e sobre que bens.

3. Não se definiu na sentença em causa que créditos laborais em concreto gozam do privilégio imobiliário especial previsto na al. b/ do n. 1 do artigo 333.º do Código do Trabalho e se este privilégio incidia sobre todos ou apenas alguns dos imóveis apreendidos a favor da massa.

4. Por isso, nada impedia que o tribunal a quo, chamado a decidir tal questão e depois de confrontado com a especificidade das funções desempenhadas pelo Recorrente (trabalhador da construção civil que exerceu sempre atividade em obras localizadas em imóveis de clientes da Insolvente) e sobre a afetação dos imóveis apreendidos, o fizesse em conformidade com a interpretação mais acertada e justa, mantendo que o privilégio imobiliário apenas existe sobre o “local onde o trabalhador presta a atividade” (como decidido na sentença de verificação de créditos) mas adotando um sentido lato do conceito de “local onde o trabalhador presta a atividade”, decidindo, consequentemente, que as frações A e B identificadas no despacho recorrido, pela afetação que tinham, constituíam locais onde também o Recorrente prestava a sua atividade.

5. De facto, resultando demonstrado que as frações identificadas no despacho recorrido estavam afetas a escritórios e armazém de material de construção, devem tais frações considerar-se como inseridas na atividade da Insolvente, e, consequentemente, ser tidas como locais onde também o Recorrente prestava atividade, gozando o crédito deste igualmente de privilégio imobiliário sobre tais bens.

6. Outra interpretação mais literal do artigo 333º, nº 1, alínea b), do Código do Trabalho, como a que perfilha a decisão recorrida, é inconstitucional por violar o princípio da igualdade e o direito à retribuição, previstos, respetivamente, nos artigos 13.º e 59.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 da CRP, conduzindo a uma situação de desproteção injustificada e discriminatória do Recorrente em relação ao outro trabalhador da Insolvente, Rui Correia, e comprometendo o seu direito à retribuição.

Termos em que se requer a V. Exas. se dignem revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que determine que o crédito do Recorrente B... goza de privilégio imobiliário sobre as frações designadas pela letra “A” e “B” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de z... sob o n.º 801, da freguesia de Y... , do concelho de z... , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 860, apreendidas a favor da massa.

O Banco (…), S.A. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e sustentando, no essencial, que a decisão objecto de recurso não deverá ser alterada, por força do efeito de caso julgado resultante da sentença de verificação e graduação de créditos.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

● Saber se a questão colocada no recurso – saber se o crédito do Apelante goza (ou não) de privilégio imobiliário sobre as fracções “A” e “B” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de z... sob o n.º 801 –, cuja resolução se prende com a interpretação do art. artigo 333º, nº 1, alínea b), do Código do Trabalho, está (ou não) está abrangida pelo caso julgado formado pela sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 23/09/2010 com vista a saber se ela podia (ou não) ser apreciada na decisão recorrida;

● Caso se conclua pela inexistência de caso julgado, saber qual deve ser a correcta interpretação da norma supracitada com vista a saber se o crédito do Apelante goza (ou não) de privilégio imobiliário sobre os imóveis em causa nos autos.


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III.

Na 1ª instância, julgaram-se provados os seguintes factos:

1. O credor R (…) exercia as suas funções por conta e direcção da sociedade insolvente, estando ao seu cargo o departamento jurídico e de recursos humanos, desempenhando tais funções no escritório da insolvente, correspondente à fracção designada pela letra “A” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de z... sob o n.º 801, da freguesia de Y... , do concelho de z... , inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 860.

2. Na fracção mencionada no artigo anterior o credor R (…) tinha um gabinete próprio onde, com excepção das datas em que se deslocava para o exterior, se apresentava ao serviço e onde permanecia de segunda a sexta-feira e ao sábado de manhã no horário acordado com a insolvente.

3. O credor B (…) trabalha ao serviço da sociedade insolvente nas obras que esta executava em Espanha.

4. Ao credor B (…) estava também atribuída a função de conduzir a carrinha que transportava os trabalhadores da equipa que chefiava nas deslocações entre Portugal e as obras e locais de residência em Espanha.

5. Pelo menos de quinze em quinze dias, o credor B (…) e a equipa de trabalho em que se integrava vinham a Portugal passar o fim-de-semana.

6. Em regra, de quinze em quinze dias, ao sábado de manhã, o credor B (…) deslocava-se aos escritórios da insolvente, instalados na mencionada fracção “A”, para tratar de assuntos relativos à relação de trabalho e receber dinheiro para o combustível com que abastecia a carrinha que conduzia nas referidas deslocações.

7. Na fracção designada pela letra “B” do mesmo prédio era guardado material utilizado nas obras.

8. Datada de 6 de abril de 2019, o credor B (…)remeteu à agora insolvente, dirigida a x... – Y... , 4690-715 Y... , a carta cuja cópia foi junta ao requerimento de 07-11-2019 como documento 3 cujo teor se dá por reproduzido.

E não se julgaram provados os seguintes factos:

a) O credor R (…) utilizava a fracção designada pela letra “B”, onde se encontrava instalada a sala de reuniões, onde frequentemente reunia quer com os gerentes da sociedade, recebia e reunia no exercício das suas funções com todos os clientes, fornecedores e trabalhadores, de acordo com a indicação dos gerentes da sociedade e que lhe estavam contratualmente atribuídas, enquanto trabalhador da insolvente.

b) A fracção mencionada na alínea anterior encontrava-se equipada com o todo o equipamento de escritório.

c) Na fracção designada pela letra “B” a insolvente mantinha a trabalhar vários trabalhadores, que tratavam dos serviços de natureza “administrativa”, o advogado da empresa, e todos os instrumentos necessários a esse tipo de actividade.


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IV.

Coloca-se no presente recurso a questão de saber se o crédito do Apelante goza (ou não) de privilégio imobiliário sobre as fracções “A” e “B” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de z... sob o n.º 801 e cuja resolução se prende com a interpretação do art. artigo 333º, nº 1, alínea b), do Código do Trabalho, onde se determina que os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, gozam de privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.

A decisão recorrida, fazendo uma interpretação literal ou restrita da aludida expressão – e, considerando, aliás, que não poderia ser adoptada outra interpretação, sob pena de violação do caso julgado formado pela sentença de verificação e graduação e créditos e respectiva aclaração –, entendeu que, em face da matéria de facto provada, o Apelante não prestava a sua actividade nos referidos imóveis, razão pela qual não gozava de privilégio imobiliário. Consequentemente, declarou que o referido crédito era um crédito comum para efeitos de graduação relativamente ao produto da venda dos referidos imóveis.

Discordando dessa decisão, o Apelante sustenta, em primeiro lugar, que não havia qualquer caso julgado que impedisse o tribunal de apreciar a questão (uma vez que tal questão não havia sido apreciada pela sentença proferida anteriormente) e sustenta, em segundo lugar, que deve ser adoptado um sentido lato do conceito de “local onde o trabalhador presta a atividade”, considerando-se que as aludidas fracções, pelo facto de estarem afectas a escritórios e armazém de material de construção, devem considerar-se como inseridas na atividade da Insolvente, e, consequentemente, ser tidas como locais onde também o Recorrente prestava atividade, gozando o crédito deste igualmente de privilégio imobiliário sobre tais bens.

Vejamos então essas questões.

A questão suscitada prende-se – como se referiu supra – com a interpretação do art. artigo 333º, nº 1, alínea b), do Código do Trabalho e, mais concretamente, com a definição/interpretação da expressão ali utilizada de “bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade”. Ora, essa expressão não tem sido interpretada de modo uniforme e, se é certo que a sua interpretação literal aponta para o facto de o privilégio abranger apenas o imóvel concreto em que o trabalhador preste, ou tenha prestado, de facto e em termos naturalísticos, a sua actividade, não é menos certo que há quem defenda uma interpretação mais ampla, sustentando que estão aí englobados os imóveis do empregador afectos à sua actividade empresarial a que os trabalhadores estão funcionalmente ligados, independentemente de ser essa a localização física do respectivo posto de trabalho.

Ora, como é bom de ver, a sentença de verificação e graduação de créditos – proferida em 23/09/2010 – não abordou essa questão. Na verdade, tal sentença limitou-se a fazer referência à letra da lei – dizendo, como diz a lei, que os créditos laborais e respectivos juros, emergentes de contrato individual de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade – sem fazer qualquer interpretação ou apreciação acerca do que se devia entender por imóvel no qual o trabalhador presta a sua actividade e sem definir os concretos imóveis que entendia poderem ser subsumidos naquele conceito ou expressão. Refira-se, aliás, que a sentença em questão não procedeu sequer à efectiva graduação dos créditos laborais em relação a cada um dos imóveis apreendidos para a massa, limitando-se a decidir que os créditos dos trabalhadores seriam graduados em primeiro lugar relativamente ao prédio ou prédios onde prestassem a respectiva actividade (sem dizer quais eram esses prédios e sem especificar o exacto significado ou amplitude dessa expressão que era utilizada na lei) e seriam graduados como crédito comum relativamente aos restantes prédios. E a decisão que, posteriormente, veio a indeferir o pedido de aclaração daquela sentença também nada acrescentou de concreto relativamente àquela questão.

Nessas circunstâncias, é seguro concluir que tal sentença – e respectiva aclaração – não formou caso julgado no que toca à concreta definição dos prédios em relação aos quais os créditos laborais gozavam de privilégio imobiliário especial e no que toca à questão de saber como deve ser entendido e interpretado o disposto na lei quando alude ao imóvel no qual o trabalhador presta a sua actividade.

Nada obsta, portanto, à apreciação dessa questão.

Passamos então a analisar tal questão.

Conforme se disse, o artigo 333º, nº 1, alínea b), do Código do Trabalho, dispõe que os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação gozam de privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.

Uma leitura literal do aludido preceito levar-nos-ia a concluir que o privilégio em questão abrange apenas o concreto imóvel onde o trabalhador desenvolve a sua actividade laboral, ou seja, o imóvel onde está fixado o seu posto de trabalho e onde exerce, de facto e em termos físicos, a sua prestação laboral.

Sabemos, contudo, que, conforme dispõe o art. 9º do CC, a interpretação da lei não deve cingir-se à sua letra, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, devendo-se presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, ainda que – conforme dispõe o nº 2 da citada disposição – não possa ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Ora, tentando reconstituir aquele que teria sido o pensamento legislativo – que, como disposto na lei, se deve presumir corresponder ao de consagrar a solução mais acertada – não encontramos razões válidas para considerar que o legislador tivesse pretendido consagrar aquilo que resulta da leitura literal do citado preceito e que conduziria a um tratamento profunda e injustamente desigual de alguns trabalhadores relativamente a outros e potencialmente violador do princípio da igualdade constitucionalmente garantido. Com efeito, de acordo com essa interpretação da lei, alguns trabalhadores teriam os seus créditos garantidos por privilégio pelo facto de a sua actividade ser exercida dentro de um imóvel (como aconteceria, por exemplo, com o pessoal que desempenha funções administrativas) e os demais trabalhadores, apesar de terem um vínculo laboral com a mesma entidade patronal e apesar de estarem inseridos na mesma unidade empresarial e produtiva, não usufruiriam de qualquer privilégio pelo simples facto de a sua actividade laboral ser desenvolvida fora de um imóvel (como aconteceria com os motoristas que desenvolvem a sua actividade a conduzir veículos ou com o pessoal da construção civil que presta a sua actividade em diversos locais pertencentes a terceiros). O mesmo tratamento desigual seria atribuído a trabalhadores de uma mesma empresa pelo simples facto de uns exercerem a actividade em imóvel próprio da entidade patronal e outros em imóvel arrendado, ainda que as funções fossem rigorosamente idênticas; os primeiros gozariam de privilégio sobre o imóvel onde desempenhavam a actividade; os segundos não usufruiriam de qualquer garantia uma vez que o imóvel onde prestavam a sua actividade não pertencia à entidade patronal. E que razões poderiam existir para tratar de forma tão diferenciada esses trabalhadores? Na verdade, não encontramos nenhuma e, portanto, não nos parece que o legislador tivesse pretendido consagrar a solução que, aparentemente e com base numa leitura literal, resultaria da letra da lei.

Na verdade, a norma citada pretende, desde logo, assegurar uma protecção privilegiada dos créditos salariais que, além da normal função retributiva de um trabalho prestado a outrem, correspondem também, por regra, ao meio de sustento do trabalhador e respectivo agregado familiar.

Entendeu, contudo, o legislador que essa protecção não se devia estender a todo e qualquer imóvel da entidade patronal e que apenas deveria incidir sobre os imóveis que estavam relacionados com a prestação laboral que estava na origem do crédito, determinando, por isso, que o privilégio imobiliário especial concedido ao trabalhador (apenas) incidia sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua actividade, excluindo, portanto, desse privilégio os imóveis da entidade empregadora que não têm relação com a sua actividade empresarial e que se destinam a outros fins, aqui se inserindo também, de acordo com a doutrina firmada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 8/2016[1], os imóveis construídos por empresa de construção civil destinados a comercialização. Mas, pelas razões já apontadas, o legislador não terá pretendido estabelecer um tratamento diferenciado entre os vários trabalhadores da mesma entidade patronal baseado apenas na diferente localização física do seu posto de trabalho (concedendo o privilégio aos trabalhadores que têm o seu posto de trabalho no espaço físico de um imóvel da entidade empregadora e recusando-o aos demais). Ainda que a expressão utilizada (bem imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua actividade) possa não traduzir claramente essa intenção, ela apenas terá visado – na nossa perspectiva – excluir do privilégio os bens imóveis da entidade empregadora que não têm relação com a sua actividade empresarial e, consequentemente, com a actividade laboral dos seus trabalhadores, sem que se tivesse pretendido criar qualquer desigualdade – que seria injustificada – entre os vários trabalhadores baseada apenas na localização física do respectivo posto de trabalho.

Pensamos, portanto, em face do exposto, que aquela expressão deverá ser interpretada no sentido de atribuir aos trabalhadores um privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis que, por estarem inseridos no complexo empresarial da entidade patronal e afectos à actividade nela desenvolvida, apresentam uma ligação funcional aos trabalhadores cuja actividade laboral se insere no âmbito desse mesmo complexo empresarial, independentemente da concreta localização física do posto de trabalho de cada um desses trabalhadores e independentemente, portanto, de esse posto de trabalho se localizar no imóvel.

É, aliás, com esse sentido que a norma em questão tem vindo a ser interpretada pela jurisprudência, entendendo-se que aquele privilégio abrange todos os imóveis da entidade patronal que estejam afectos à sua actividade empresarial e, à qual, os trabalhadores estejam funcionalmente ligados, independentemente da localização do seu posto de trabalho, podendo ver-se nesse sentido os Acórdãos do STJ de 27/11/2019 (processo nº 7553/15.7T8VIS-G.C1.S2), de 30/05/2017 (processo nº 4118/15.7T8CBR-B.C1.S1), de 13/01/2015 (processo nº 1145/12.0TBBCL-C.G1.S1), de 13/11/2014 (processo nº 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1) e de 23/02/2016 (processo nº 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1-A), bem como os Acórdãos da Relação de Coimbra de 26-02/2019 e de 21/02/2018 (processos nºs 7553/15.7T8VIS-G.C1 e 7899/16.7T8CBR-C.C1, respectivamente, subscritos pela ora Relatora na qualidade de adjunta)[2].

Ora, à luz das considerações efectuadas e tendo em conta a matéria de facto que resultou provada, impõe-se concluir que o crédito do Apelante goza efectivamente de privilégio imobiliário sobre as fracções aqui em causa (as fracções “A” e “B” do prédio supra identificado).

É certo que o Apelante não tinha o seu posto de trabalho fixado nesses imóveis, sendo certo que não era nesse espaço físico que desenvolvia a sua actividade laboral; o Apelante trabalhava ao serviço da sociedade insolvente nas obras que esta executava em Espanha e estava-lhe também atribuída a função de conduzir a carrinha que transportava os trabalhadores da equipa que chefiava nas deslocações entre Portugal e as obras e locais de residência em Espanha.

Já vimos, no entanto, que a atribuição do privilégio imobiliário supramencionado não se baseia na localização física do posto de trabalho, mas sim na ligação funcional dos trabalhadores aos imóveis que se reconduz ao facto de estes imóveis estarem inseridos no complexo empresarial (da entidade empregadora) no âmbito do qual é desenvolvida a actividade laboral do trabalhador.

Ora, essa ligação funcional dos imóveis em causa ao Apelante, enquanto trabalhador da Insolvente, é inegável, uma vez que tais imóveis estavam afectos à actividade que por esta era desenvolvida e correspondiam ao espaço físico de apoio a essa actividade; a fracção “A” correspondia ao escritório onde funcionava o departamento de recursos humanos e onde estariam localizados os serviços administrativos a que estão ligados todos os trabalhadores, seja para o efeito de receber as respectivas remunerações, seja para o efeito de tratamento de quaisquer outros assuntos relacionados com a sua actividade laboral e o seu contrato de trabalho e a fracção “B” era utilizada para guardar material utilizado nas obras em cuja execução o Apelante laborava.

Estão em causa, portanto, imóveis que se inseriam no complexo empresarial (da entidade empregadora) e que, como tal, estavam funcionalmente ligados aos trabalhadores (designadamente ao Apelante) cuja prestação laboral era exercida na prossecução dos fins da empresa e que, como tal, se inseriam na mesma organização empresarial.

Nessas circunstâncias e conforme já dissemos, o crédito do Apelante goza efectivamente de privilégio imobiliário sobre as fracções aqui em causa (as fracções “A” e “B” do prédio supra identificado), impondo-se, por isso, julgar procedente o recurso e alterar a decisão recorrida na parte em que ela foi impugnada, ou seja, na parte em que se refere ao crédito do Apelante.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Para os efeitos previstos no art. 333º, nº 1, alínea b), do Código do Trabalho e atribuição do privilégio imobiliário nele previsto, deve considerar-se que o trabalhador presta a sua actividade em todos os bens imóveis da entidade empregadora que estejam inseridos no complexo empresarial dessa entidade e afectos à actividade por ela desenvolvida e na prossecução da qual também se insere a prestação do trabalhador, independentemente da concreta localização física do seu posto de trabalho e independentemente, portanto, de esse posto de trabalho se localizar nos imóveis em questão.

II – Nessas circunstâncias  e por se dever considerar, para os efeitos referidos, que presta a sua actividade nesses imóveis, o trabalhador que exerce as suas funções laborais em diversas obras e na condução de uma carrinha que transporta os trabalhadores para essas obras goza de privilégio imobiliário sobre os imóveis da respectiva entidade empregadora onde estão instalados os escritórios da empresa e onde é guardado o material utilizado nas obras, ainda que a efectiva prestação da sua actividade laboral não se desenvolva no interior dos referidos imóveis.


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V.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, na parte em que declarou que o crédito do Apelante B (…) é considerado como crédito comum em relação aos imóveis apreendidos a favor da massa insolvente, declarando-se, em substituição dessa decisão (ora revogada), que esse crédito beneficia de privilégio imobiliário sobre as fracções “A” e “B” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de z... sob o n.º 801, da freguesia de Y... , do concelho de z... , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 860.
Custas a cargo do Apelado.
Notifique.

Coimbra, 1 de Junho de 2020.

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora )

Maria João Areias

Freitas Neto


[1] Publicado no DR, I Série, de 15/04/2016.
[2] Todos os acórdãos citados estão disponíveis em http://www.dgsi.pt.