Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
501/14.3TBCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: AVALISTA
PACTO DE PREENCHIMENTO
TÍTULO CAMBIÁRIO
RELAÇÕES IMEDIATAS
EXCESSO NO PRENCHIMENTO
VALOR
TÍTULO
Data do Acordão: 01/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 10º DA LULL.
Sumário: I – Apesar da obrigação do avalista ser autónoma, relativamente à obrigação do avalizado, tendo aquele intervindo no contrato que dá origem à emissão da livrança, do qual resultou a dívida cambiária avalizada, o avalista não é terceiro, mas sim parte nesse contrato, pelo que pode invocar uma situação de incumprimento do pacto de preenchimento da livrança, como meio de “escapar” ao seu pagamento, uma vez que ele também interveio nesse pacto.

II - Se no momento do preenchimento da livrança ainda não eram devidas quaisquer valores respeitantes a despesas judiciais, porque estas ainda nem sequer tinham sido efectuadas, nessa parte o preenchimento é abusivo, o que não determina a nulidade total do título cambiário, mas apenas uma nulidade que afecta o valor preenchido em excesso do pactuado.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que a Exequente lhe moveu vieram os dois primeiros Executados deduzir embargos, invocando o abusivo preenchi­mento da livrança exequenda, a ilegalidade dos juros moratórios peticionados relativos aos montantes inscritos na livrança, e a falta de título executivo quanto à quantia de €3.665,77 e respectivos juros vincendos.

Concluíram pela procedência dos embargos e consequente redução da quantia exequenda no montante de €13.655,77 e fixação da taxa dos juros vincendos em 4%.

A Exequente contestou, alegando em síntese que o título dado à execução é a escritura pública que tem de ser conjugada com os documentos complementares que foram juntos, e não só aquela individualmente, ou qualquer um dos demais documentos juntos.

Concluiu pela improcedência dos embargos.

Teve lugar a audiência prévia na qual por acordo das partes a instância foi suspensa por 10 dias com a finalidade de chegarem a um acordo.

Posteriormente veio a ser proferido despacho saneador em que se conheceu do mérito dos embargos julgando-se os mesmos improcedentes.

Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que a anulou por decisão singular proferida a 2.2.2016.

Com observância do determinado foi em 4.5.2016 proferida decisão que, voltando a julgar os embargos totalmente improcedentes, determinou o prosseguimento da execução.

Os embargantes interpuseram recurso formulando as seguintes conclusões:

...

A Exequente apresentou resposta, pugnando pela confirmação da decisão proferida.

1. O objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes cumpre apreciar as seguintes questões:

a) A sentença recorrida é nula, por falta de fundamentação da prova da matéria de facto e por omissão de pronúncia?

b) Os factos sob os n.º 19.º, 20.º e 23.º não podem ser considerados provados?

c) A livrança dada à execução foi abusivamente preenchida, relativamente ao montante de €10.000,00 de despesas judiciais?

Os Recorrentes, nas suas alegações de recurso, também suscitam a questão da falta de título para a reclamação do pagamento da quantia de €3.665,77 e respectivos juros vincendos.

A decisão recorrida, na sua fundamentação, sustentou que o pagamento deste valor não foi reclamado aos Executados-Embargantes, mas sim à co-Executada E..., Limitada.

É certo que após essa leitura escreveu-se na decisão recorrida: “já quanto à falta de título executivo para a cobrança desse montante, estando accionado o contrato de abertura de crédito com a abrangência da hipoteca para quaisquer valores que venham a ser devidos, cremos que os mesmos encontram respaldos nessa escritura”. Até pela forma como está escrita – cremos – esta frase mais não é que um obiter dictum, sem qualquer valor vinculativo.

Daí que deva considerar-se que a decisão recorrida não apreciou a questão da falta de título relativamente àquele montante, uma vez que não sendo o mesmo reclamado aos Executados-Embargantes, tal questão não podia ser apreciada nos embargos por estes deduzidos.

No recurso interposto, a leitura do requerimento executivo efectuada pela decisão recorrida não é contestada, pelo que não deve ser aqui apreciada a questão da falta de título relativamente à reclamação do pagamento de €3.665,77 e respectivos juros vincendos, uma vez que a mesma não foi objecto de decisão pela sentença recorrida, devendo apenas a apreciação recair sobre a necessidade de redução da quantia exequenda.

Assim, cumpre apenas apreciar mais a seguinte questão:

d) A quantia exequenda deve ser reduzida em €3.665,77 e juros vincendos?

2. Da nulidade da decisão recorrida

Os Recorrentes alegam, em primeiro lugar, que a decisão sobre a matéria de facto provada não se encontra suficientemente fundamentada, não tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 607º, n.º 4, do C. P. Civil, o que determinaria a anulação da sentença, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, c) e d), e 662º, n.º 2, c), do C. P. Civil.

A falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto por incumprimento do disposto no artigo 607º, n.º 4, do C. P. Civil, não conduz à anulação da sentença, devendo apenas o tribunal de recurso determinar que o tribunal da 1.ª instância proceda à fundamentação em falta, conforme resulta do disposto no artigo 662º, n.º 2, d), do C. P. Civil.

Contudo, da leitura da decisão recorrida, a qual constitui um saneador-sentença, verifica-se que foram considerados provados factos, atenta a prova documental junta e o acordo das partes manifestado nos articulados, encontrando-se descriminados os documentos que justificaram a prova de alguns factos.

Atenta a fase processual em que foi proferida a decisão, tal é suficiente para identificar o que motivou o tribunal a considerar provado cada um dos factos, permitindo às partes impugnar tal opção e ao tribunal de recurso controlar a correcção da decisão.

Por estas razões se considera que se encontra suficientemente fundamentada a decisão sobre os factos que se consideraram provados.

Mas os Recorrentes também alegam que a decisão recorrida sofre de omissão de pronúncia, uma vez que a decisão recorrida não se pronunciou sobre a inexistência de título executivo relativo à reclamação do pagamento da quantia de € 3.665,77 e respectivos juros vincendos.

Sobre este aspecto, como já acima se referiu, a decisão recorrida entendeu que na execução o pagamento de tal quantia não era reclamado aos Executados-Embargantes, mas sim à co-Executada E..., Limitada, donde resulta que ficou prejudicado o conhecimento da defesa apresentada por aqueles, devendo ser encarado como um obiter dictum o último parágrafo da fundamentação da decisão recorrida.

Atenta a posição da decisão recorrida, não há, pois, qualquer omissão de pronúncia, não se verificando o vício previsto no artigo 615.º, n.º 1, d), do C. P. Civil.

3. Os factos

3.1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

...

3.3. Factos provados

...

4. O direito aplicável

4.1. Do preenchimento abusivo da livrança

Os Recorrentes alegam que a livrança dada à execução, por eles avalizada em branco, foi preenchida abusivamente quanto ao montante de €10.000,00 respeitante a despesas judiciais.

Está provado que em 3.10.2012 as partes outorgaram um documento denominado de Contrato de Mútuo com Aval e Hipoteca Autónoma e por força do acordo nele inserto a Exequente concedeu um empréstimo à 1ª Executada no montante de €92.200,00, com utilização em 3.10.2012, pelo prazo de 241 meses, reembolsável em prestações mensais de capital e juros, sucessivas e constantes, vencendo-se a 1ª prestação em 15.10.2012, à taxa nominal de 8,50%, mensais e postecipados.

Na cláusula “QUINTA 7. a) deste contrato, que também foi subscrito pelos Executados-Embargantes, na qualidade de avalistas, ficou estabelecido que os mutuários e os avalistas também se obrigam ao seguinte: Pagar os impostos e os encargos relativos a este contrato, à livrança, às garantias e registos, bem como as despesas, judiciais ou extrajudiciais relativos a este contrato.

E na cláusula SÉTIMA do mesmo contrato ficou estabelecido que “1. os Mutuários entregam uma livrança por si subscrita em branco, com o aval a seguir previsto, à C..., para titular as obrigações emergentes deste contrato e de eventuais alterações e para assegurar o seu pagamento, sem que tal constitua novação, e desde já autorizam a C... a preencher essa livrança, em qualquer momento, inclusive através de representante, e nela inscrever as quantias que lhe sejam devidas (…)

2. Os avalistas dão o seu aval nessa livrança e autorizam o seu preenchimento, nas condições referidas no número anterior, e para nela ser inscrita a cláusula “bom para aval”, vinculando-se solidariamente com a Mutuária, pelo pagamento de todas as sobreditas responsabilidades, por qualquer prazo, prorrogação ou renovação; bem como declaram a sua expressa renúncia a qualquer oposição ou benefício previsto por lei”

A 1ª Executada não liquidou a prestação vencida em 15.12.2012, entrando em mora, pelo que a Exequente preencheu a livrança subscrita pela 1ª Executada e avalizada pelos 2º e 3º Executados com o valor de €115.651,72, com data de vencimento de 2014-03-05.

Apesar da obrigação do avalista ser autónoma, relativamente à obrigação do avalizado, tendo aquele intervindo no contrato que dá origem à emissão da livrança, do qual resultou a dívida cambiária avalizada, o avalista não é terceiro, mas sim parte nesse contrato, pelo que pode invocar uma situação de incumprimento do pacto de preenchimento da livrança, como meio de “escapar” ao seu pagamento, uma vez que ele também interveio nesse pacto.

Provou-se que no contrato que deu origem à subscrição da livrança avalizada pelos Executados-Embargantes se acordou os Mutuários entregam uma livrança por si subscrita em branco, com o aval a seguir previsto, à C..., para titular as obrigações emergentes deste contrato e de eventuais alterações e para assegurar o seu pagamento, sem que tal constitua novação, e desde já autorizam a C... a preencher essa livrança, em qualquer momento, inclusive através de representante, e nela inscrever as quantias que lhe sejam devidas.

Entre essas quantias contam-se, conforme o contratado, as despesas judiciais relativas ao contrato.

A Exequente na resposta por si apresentada aos embargos esclareceu nos seus artigos 12º a 14º:

“O pagamento das despesas judiciais estavam previstas quer na escritura, quer no contrato, e por isso podia, e devia, a exequente inscrever tal quantia na livrança.

Tais despesas foram computadas para efeitos de registo no valor de € 10.000,00, quantia que a Exequente peticionou, podendo até ser superiores;

Pelo que só a final se poderá calcular o seu real e efectivo quantitativo e a presentar conta/nota, o que fará obviamente e como é jurisprudência uniformes”.

Se no momento do preenchimento da livrança ainda não eram devidas quaisquer valores respeitantes a despesas judiciais, porque estas ainda nem sequer tinham sido efectuadas, nessa parte o preenchimento foi abusivo[1], o que não determina a nulidade total do título cambiário, mas apenas uma nulidade que afecta o valor preenchido em excesso do pactuado.

Como se escreveu no acórdão de 24 de Maio de 2005 deste Supremo Tribunal [2], no domínio das relações imediatas o preenchimento duma livrança feito pelo tomador por valor superior ao resultante do contrato de preenchimento não torna a livrança nula; esta mantém a sua validade relativamente ao montante resultante do mesmo contrato, quer quanto ao tomador, quer quanto ao subscritor e respectivo avalista. A excepção de preenchimento abusivo, por conseguinte, não interfere na totalidade da dívida, confinando-se aos limites desse preenchimento. Por isso, se o subscritor inicial entregou a livrança em branco de quantia e o detentor imediato a preencher por quantia superior ao convencionado, a livrança vale segundo a quantia inferior, aproveitando-se os actos jurídicos praticados. Isto porque, no âmbito das relações imediatas, a obrigação cartular está sujeita ao regime comum das obrigações e, nos termos do art.º 292º do CC, a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada”, o que não está demonstrado.

Assim, a livrança dada à execução apenas é válida, relativamente ao valor de €105.651,72 (€115.651,72 – €10.000,00), pelo que o recurso deve ser julgado procedente nesta parte, julgando-se parcialmente procedentes os embargos e determinando-se a correspondente redução da quantia exequenda, quanto ao capital em dívida e respectivos juros.

4.2. Do pedido de pagamento € 3.665,77

Conforme já acima se esclareceu a sentença recorrida considerou que o pedido de pagamento desta quantia foi só dirigido à 1.ª Executada.

Os Recorrentes não contestaram esta leitura, tendo-se limitado a pedir que fosse reduzida a quantia exequenda em conformidade e nessa medida a procedência dos embargos quanto aos embargantes.

A decisão recorrida não decidiu que o pagamento de tal quantia tinha sido peticionada aos Executados-Embargantes sem ser devida, tendo apenas constado que o seu pagamento não tinha sido sequer exigido a estes, pelo que não há lugar a qualquer redução da quantia exequenda, nem à procedência dos embargos nesta parte.

O facto da Senhora Agente de Execução, certamente por lapso, ter feito constar das citações remetidas aos Executados-Embargantes tal quantia, não é susceptível de alterar o conteúdo do requerimento executivo, pelo que nesta parte deve o recurso interposto ser julgado improcedente.

Decisão:

Pelo exposto, julga-se o presente recurso parcialmente procedente e, em consequência, altera-se a decisão recorrida, julgando-se:

- parcialmente procedentes os embargos deduzidos pelos executados C... e V...;

- reduzindo-se a quantia exequenda em €10.000,00 de capital e respectivos juros de mora.

- confirmando-se no demais a sentença recorrida.

Custas do recurso na proporção de 73% pela Exequente e de 27% pelos Executados-Embargantes.

Coimbra, 24 de Janeiro de 2017.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Jorge Manuel Loureiro

 Maria Domingas Simões


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[1] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 18.7.2007, relatado por Hélder Roque, em www.dgsi.pt.

[2] Decidindo em igual sentido e citando este aresto, o Acórdão do S.T.J. de 12.2.2009, relatado por Maria dos Prazeres Beleza, em www.dgsi.pt.