Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
208/13.9TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
MINISTÉRIO PÚBLICO
PRAZO
NÃO-CUMPRIMENTO
ACTO ADMINISTRATIVO
NULIDADE
Data do Acordão: 10/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 133.º, N.º 2, AL. B) E 134.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO; ARTIGO 3.º, N.º 1, DO REGULAMENTO DE SINALIZAÇÃO DO TRÂNSITO, APROVADO PELO DECRETO REGULAMENTAR N.º 22-A/98, DE 01-10; ARTIGO 13.º DO REGULAMENTO DO CÓDIGO DA ESTRADA, APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 190/94, DE 18-07; ARTIGO 53.º, N.º 2, ALÍNEA A), DA LEI N.º 169/99, DE 18-09 (REGIME JURÍDICO DO FUNCIONAMENTO DOS ÓRGÃOS DOS MUNICÍPIOS E DAS FREGUESIAS), NA VERSÃO INTRODUZIDA PELA LEI N.º 5-A/2002, DE 11-01 .
Sumário: I - O prazo de 5 dias estabelecido no art. 62.º, n.º 1, do RGCO, é um prazo meramente ordenador, cuja inobservância não invalida o acto previsto na referida norma.
II - Traduzindo-se a incompetência (em razão da matéria) numa ilegalidade orgânica sancionada com a nulidade do acto administrativo praticado, padece desse vício - nos termos das disposições conjugadas dos artigos 133.º, n.º 2, al. b) e 134.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo, 3.º, n.º 1, do Regulamento de Sinalização do Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 01-10, 13.º do Regulamento do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 190/94, de 18-07, e 53.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 169/99, de 18-09 (regime jurídico do funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias), na versão introduzida pela Lei n.º 5-A/2002, de 11-01 - a colocação, em estradas, ruas e caminhos municipais, de um sinal de trânsito, de carácter permanente, aprovado por Câmara Municipal, e não pelo órgão deliberativo do município (assembleia municipal).
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


I - HISTÓRICO DO PROCESSO
            1.         Pela Polícia de Segurança Pública foi levantado auto de contra-ordenação contra A..., por infracção ao art. 69º nº 1 do Regulamento de Sinalização de Trânsito (RST), aprovado pelo Decreto-Regulamentar nº 22-A/98, de 01.10, consubstanciada em desrespeito da obrigação de parar imposta pela luz vermelha de regulação de trânsito, ocorrida em 06.10.2010.
            O arguido efectuou o pagamento voluntário da multa e deduziu impugnação junto da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), com fundamento em não ter sido ele quem conduzia o veículo em questão, mas sim um dos seus empregados, não conseguindo identificar qual deles.
            A ANSR proferiu decisão, sancionando-o com inibição de conduzir pelo período de 30 dias.
            Inconformado, o arguido deduziu impugnação judicial.
            A M.mª Juíza julgou improcedentes os fundamentos invocados e manteve a decisão proferida pela ANSR.

            2.         Ainda inconformado, recorre agora o arguido para esta Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
                «I. Pela sentença de que ora se recorre foi o arguido condenado em coima e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, pela prática de uma contra-ordenação, prevista e punida pelos arts". 69.°/1 e 76.0/al a). Para tanto, o Tribunal deu como provado que:
"1) No dia 06.10.2010 e na Av. a Monsenhor Mendes do Carmo, na comarca da Guarda, mediante a condução do veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula X..., foi desrespeitada a obrigação de parar imposta pela luz vermelha de regulação de trânsito.
5) A colocação do sinal luminoso referido em 1) foi aprovada pela Câmara Municipal da Guarda. "
                II. Antes de mais e em bom rigor se diga que os presentes autos são nulos por violação do disposto no nº 1 do art. 62.° do Dec. Lei n.º 433/82, pois que a ANSR recebeu a impugnação judicial deduzida pelo arguido em 25/07/2011 e só remeteu os autos ao Tribunal competente mais de um ano e meio depois. Pelo que,
                III. Não tendo a autoridade administrativa respeitado o prazo legal de 5 dias previsto naquele normativo, é nulo todo o processado posterior ao dia 1 de Agosto de 2011. Sendo que, in casu, é legalmente impossível a repetição dos actos inválidos (prevista no disposto no art. 122.°, nº 1, do C. P. Penal, aplicável aos presentes autos "ex vi" do art." 4l.° do Dec.-Lei n.º 433/82) pois que o processo já se encontra na fase judicial, não podendo agora o juiz remetê-lo à entidade administrativa. Pelo que,
                IV. Se requer que seja declarada a nulidade do processado posterior a 1 de Agosto de 2011, mais se devendo ordenar o arquivamento dos presentes autos nos termos do disposto no artigo 64.º, nº 3, pois que sendo inválida a decisão porque ferida de nulidade, fica sem objecto o presente processo.
                V. Sem prescindir do que se acabou de dizer, nos termos conjugados do disposto nos arts. 3.º e 5.º do Regulamento de Sinalização de Trânsito, no art. 13.º do D.L. n.º 190/94, de 18/07, no art. 64, nº 7, al. a) da Lei n. 169/99, de 18.09 e no art. 2.°, nº 2, al. a) do Regimento da Assembleia Municipal da Guarda, é à Assembleia Municipal da Guarda que compete, em matéria regulamentar e de organização e funcionamento, sob proposta da Câmara, aprovar as posturas e regulamentos do município com eficácia externa.
                VI. No caso em apreço, a colocação do sinal em causa nos autos não foi objecto de discussão e deliberação pela Assembleia Municipal da Guarda. Ora,
                VII. É pressuposto do dever de obediência aos sinais de trânsito que os mesmos sejam legítimos, ou seja, que tenham sido colocados nas vias públicas, pelas entidades competentes para o efeito e não existido, no local a que se reportam os presentes autos, nenhum sinal luminoso de regulação de trânsito ali colocado pela entidade competente - Câmara Municipal da Guarda mediante deliberação do órgão da Assembleia Municipal, aprovado por maioria - não se encontram reunidos os pressupostos do tipo pelos quais vem o arguido condenado. Pelo que,
                VIII. Deve a sentença de que se recorre ser declarada nula e de nenhum efeito, por violação do disposto nos arts. 3.° e 5.° do Regulamento de Sinalização de Trânsito, no art. 13.° do D.L. n. 190/94, de 18/07, no art. 64, nº 7, al. a) da Lei nº 169/99, de 18.09 e no art. 2.°, nº 2, al. a) do Regimento da Assembleia Municipal da Guarda e, em consequência, deve o arguido ser absolvido da sanção acessória de inibição de conduzir em que foi condenado, arquivando-se os presentes autos.»

3.         O Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº) em 1ª instância respondeu pugnando pela improcedência do recurso, e CONCLUINDO que:
                «1 - Nos autos de contra ordenação n.0379548828, ao recorrente foi aplicada a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, pela prática de uma contra-ordenação, prevista e punida pelos artigos 69° n,01 e 760 alínea a), ambos do Regulamento de Sinalização de Trânsito, na coima de € 78,82 e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias.
                2 - O recorrente alega em sua defesa a doutrina do Acórdão da Relação de Lisboa de 14,01.2004 proferido no Processo nº 8504/2003-4, publicado no site da dgsi.pt, que ali defende que "a consequência da não remessa a juizo, no prazo previsto no artigo 62°, nº 1, do Dec.Lei nO433/82, de 27/10, da impugnação judicial é a da nulidade insanável, qual deve ser oficiosamente declarada".
                3 - A situação ali retratada não é idêntica à dos presentes autos.
                4 - É nosso parecer que o prazo previsto no artigo 62° nº 1, do Decreto de lei nº 433/82, de 27/10 é um prazo meramente ordenatório ou indicativo, cujo não cumprimento poderá apenas acarretar consequências disciplinares, para o responsável pelo serviço na autoridade administrativa (ANSR) e em termos processuais, afectar o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional.
                5 - A autoridade administrativa - ANSR, ao não remeter o recurso tempestivamente interposto no prazo previsto no artigo 62° nº l do Dec.lei nº 433/82, de 27/10, não cometeu uma nulidade insanável, mas mera irregularidade.
                6 - Analisada a decisão recorrida é patente que se mostram enumerados os factos provados e não provados.
                7 - E também foram indicados de forma que até se afigura detalhada, os meios de prova que determinaram a decisão sobre a matéria de facto.
                8 - Não se vislumbra que, no caso em apreço, do texto da decisão recorrida quer por si, quer conjugado com as regras da experiência comum, resulte qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, bem como erro notório da apreciação da prova.
                9 - Apenas em síntese, no que tange à matéria dos pontos 1) e 5) a mesma resultou provada em face dos elementos juntos aos autos, conjugados com as regras da experiência comum.
                Nestes termos e nos melhores de Direito deve ser declarado improcedente o recurso apresentado pela arguida, confirmando-se, em consequência a Douta Decisão recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA.»

4.         Já neste Tribunal da Relação, o Ex.mº Sr. Procurador-Geral Adjunto considerou ser de dar provimento ao recurso, de acordo com o seguinte PARECER:
                «Vistos os autos, sou de parecer que o recurso merece provimento, devendo ser revogada a douta sentença dos autos, e, em consequência, declarar-se nula a decisão administrativa, com a absolvição do arguido recorrente, por invalidade do ato de instalação do semáforo de sinalização rodoviária a que se refere o auto de notícia de fls. 5, instalado na Av. Monsenhor Mendes do Carmo, na cidade da Guarda, dada a incompetência da Câmara Municipal da Guarda para aprovar as posturas e regulamentos do município com eficácia externa, competência que cabe, em exclusivo, à respectiva Assembleia Municipal, nos termos do art. 53°, nº 2, al. a), da Lei nº 166/99, de 18/09 (Lei das Autarquias Locais), na redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 5-A/2002, de 11/01), e art. 2°, nº 2, do Regimento da Assembleia Municipal da Guarda.
                Com efeito, dado que a regulação de sinalização rodoviária tem sempre eficácia externa, a competência para a sua aprovação pertence exclusivamente ao órgão assembleia municipal, mediante proposta da respectiva câmara, de acordo com o art. 53°, nº 2 al. a), da citada Lei nº 166/99, que estipula que a assembleia municipal tem competência própria e exclusiva para "Aprovar as posturas e regulamentos do município, com eficácia externa".
                A câmara municipal só tem competência regulamentar própria, por força do disposto na alínea a), do nº 7, do artigo 64°, da Lei nº 169/99, onde se estabelece que "Compete ainda à Câmara Municipal: a) Elaborar e aprovar posturas e regulamentos em matérias da sua competência exclusiva".
                Daqui resulta que: em primeiro lugar, quer o órgão assembleia municipal, quer o órgão câmara municipal têm ambos (diversamente do que acontecia na versão da anterior - Lei nº 100/84, de 29/03) poderes regulamentares; e, em segundo lugar, a câmara só tem competência regulamentar para aprovar os regulamentos que tenham eficácia interna.»
Cumprido o art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal (de futuro, CPP), o arguido nada disse.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
5.         OS FACTOS [[1]]
São os seguintes os factos considerados na douta sentença:
                1) No dia 06.10.2010 e na Av.ª Monsenhor Mendes do Carmo, na comarca da Guarda, mediante a condução do veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula X..., foi desrespeitada a obrigação de parar imposta pela luz vermelha de regulação de trânsito.
                2) Não foi possível identificar o autor da contra-ordenação, sendo o arguido o titular do documento de identificação do veículo referido em 1).
                3) O arguido actuou com falta de cuidado.
                4) O arguido pagou voluntariamente o montante correspondente à coima aplicada.
                5) A colocação do sinal luminoso referido em 1) foi aprovada pela Câmara Municipal da Guarda.
                6) Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
                7) Não constam averbadas quaisquer infracções no registo individual de condutor do arguido.
           
            6.            O MÉRITO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 412º nº 1 do CPP. [[2]]

            QUESTÕES A RESOLVER:
  • Se deve ser decretada a nulidade da tramitação dos autos posterior a 01.08.2011
  • Se ocorre inexigibilidade do dever de obediência ao sinal

6.1.         NULIDADE
            Determina o art. 62.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (de futuro, apenas RGCO) [[3]] : “Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação”.
            Contudo, em ponto algum o RGCO refere qual a sanção ou consequência da inobservância desse prazo de 5 dias para o envio do processo ao Mº Pº.
            Nessa medida, há que atender aos preceitos do CPP, enquanto direito subsidiário, com as devidas adaptações: art. 41º do RGCO.
            O referido prazo de 5 dias foi aqui manifestamente excedido.
            Considera então o Recorrente que tal situação deve ser equiparada à prevista no art. 119º al. b) do CPP, integrando por isso uma nulidade insanável.
            Salvo o devido respeito, não concordamos com a argumentação de que a falta de envio ao Mº Pº, por parte da autoridade administrativa, do recurso/impugnação judicial, para além dos 5 dias consignados no art. 62º nº 1 do RGCO, constitua nulidade insanável, por equiparação à falta de promoção do processo por parte do Mº Pº e ao estatuído no art.119º al. b) e art. 48º do CPP.
            Em primeiro lugar, consideramos não ser de chamar à colação o art. 48º do CPP que, como aí se consigna expressamente, regula para a “legitimidade para promover o processo penal”.
            A legitimidade é pressuposto processual e reporta-se à relação que a parte deve ter para que possa promover um processo.
            Por isso, que o art. 48º do CPP, refere que o Mº Pº tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º, ou seja, dos casos de crimes particulares e dos semipúblicos, em que a lei confere a legitimidade aos titulares dos interesses lesados.
            Ora, a falta de legitimidade não pode ser confundida com a inobservância de um prazo.
            Por outro lado, como é sabido, no caso de contra-ordenações não estamos no âmbito de um processo penal, pois ao ilícito de mera ordenação social não é conferida dignidade penal. [[4]]
            Em consonância, a legitimidade para promover processo contra-ordenacional é conferida a autoridades administrativas consoante o ilícito em apreço; em questões rodoviárias e infracções ao Código da Estrada (e respectivo Regulamento), a aplicação de coimas e sanções acessórias é da competência da ANSR: cf. art. 169º do CE.
            O prazo dos 5 dias situa-se antes do envio dos autos ao Mº Pº, vinculando apenas a autoridade administrativa.
            Portanto, se bem o entendemos, só após o envio dos autos ao Mº Pº, em obediência ao art. 62º nº 1 do RGCO é que o Mº Pº tem conhecimento do processo e só a partir daqui ele fica no âmbito da sua legitimidade, seja para acusar (o que acontece ao tornar os autos presentes ao juiz, como refere esse art. 62º), seja para retirar a acusação (cf. Art. 65º-A do RGCO).
            Daqui resulta que, a existir a dita nulidade, ela só poderia ocorrer após a recepção dos autos pelo Mº Pº, pois só nessa altura lhe é conferida legitimidade para a promoção do processo.
            Concluindo, o prazo de 5 dias estabelecido no art. 62º nº 1 do RGCO é um prazo meramente ordenador -_ à semelhança, por exemplo, do prazo de duração do inquérito (art. 276º do CPP) -, cuja inobservância não torna os actos inválidos.

6.2.         DA INEXISTÊNCIA DO DEVER DE OBEDIÊNCIA AO SINAL
            De acordo com o art. 3º nº 1 do Regulamento de Sinalização do Trânsito (RST), aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 01.10: a instalação de sinais de trânsito nas vias públicas só pode ser efectuada pelas entidades competentes para a sua sinalização ou mediante autorização destas entidades.
            Por sua vez, o art. 13º do Regulamento do Código da Estrada (RCE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 190/94, de 18.07, prescreve que a sinalização de carácter permanente a que se refere o nº 1 do artigo 5º do Código da Estrada compete à Junta Autónoma das Estradas, nas estradas nacionais, e às câmaras municipais, nas estradas, ruas e caminhos municipais, por iniciativa própria ou a solicitação da Direcção Geral de Viação.
            E, nos termos do art. 53º nº 2 al. a) da Lei nº 169/99, de 18.09 (regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias), na versão introduzida pela Lei nº 5-A/2002, de 11.01 (vigente à data da infracção aqui em causa, 06.10.2010), compete à assembleia municipal, em matéria regulamentar e de organização e funcionamento, sob proposta da câmara, aprovar as posturas e regulamentos do município com eficácia externa.
            No mesmo sentido dispõe o art. 2.° nº 2 al. a) do Regimento da Assembleia Municipal da Guarda.
            Como é sabido, a Assembleia Municipal - o órgão deliberativo do município -, não se confunde com a Câmara Municipal, que é o órgão executivo colegial do município.
            A infracção imputada ao Recorrente consistia no desrespeito da obrigação de parar, imposta pela luz vermelha de regulação de trânsito que se encontrava na Av.ª Monsenhor Mendes do Carmo, na cidade da Guarda.
            Mais se provou que a colocação desse sinal luminoso foi aprovada pela Câmara Municipal da Guarda.
            Ora, a colocação de um sinal de trânsito, porque destinado a todos os utentes da via pública, constitui um acto administrativo [[5]] de eficácia externa.
            A ser assim, o dito sinal foi colocado por quem não tinha competência para o efeito, pois esta cabia exclusivamente à Assembleia Municipal.
            Uma das condições de validade do acto administrativo (no caso, a colocação de sinais de trânsito) é que o mesmo provenha de entidade com competência para o efeito. [[6]]
                «Há incompetência em razão da matéria quando forem excedidas as atribuições da pessoa colectiva ou violados os limites impostos a cada serviço administrativo relativamente à natureza dos assuntos que lhe estão confiados.». [[7]]
            A incompetência traduz-se numa ilegalidade orgânica, que a lei sanciona com a nulidade: art. 133º nº 2 al. b) do Código de Procedimento Administrativo (CPA).
            O acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade: art. 134º nº 1 do CPA.
            Daqui decorre, como refere Marcelo Caetano, que «os particulares não devem obediência ao pretenso acto e podem legitimamente opor resistência passiva à respectiva execução, mesmo sem ele ter sido declarado nulo por qualquer autoridade ou tribunal». [[8]]
            Consequentemente, o Recorrente não devia obediência ao dito sinal de regulação de trânsito, pelo que se impõe a procedência da impugnação.

            III.           DECISÃO
7.         Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção da Relação de Coimbra em dar provimento ao recurso, revogando-se a sentença impugnada e, em consequência, absolvendo-se o arguido A... da contra-ordenação que aqui lhe é imputada.
Sem custas, atento o provimento.
                                                                                  Coimbra, 30.10.2013            
                                              
 (Relatora, Isabel Silva)

 (Adjunta, Cacilda Sena)

[[1]] São os factos constantes da decisão proferida pela primeira instância e que __ por não impugnados e por não se verificar qualquer uma das circunstâncias referidas nas diversas alíneas do art. 431º do CPP __, aqui cumpre manter.
      [[2]] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 12.09.2007 (processo 07P2583), disponível em http://www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «III - Como decorre do art. 412.º do CPP, é à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o cerne e o limite de todas de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso estão contidos nas conclusões, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.
                IV - As possibilidades de cognição oficiosa por parte deste Tribunal verificam-se por duas vias: uma primeira, que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP, e uma outra, que poderá verificar-se em virtude de nulidade da decisão, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.».
      [[3]] Diploma aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27.10, com várias alterações, a última das quais pela Lei nº 109/2001, de 24.12.
      [[4]] No preâmbulo do Decreto-Lei nº 433/82, de 27.10, ponto 2., 3º parágrafo, diz-se expressamente que com o direito de mera ordenação social pretende regular as condutas que, «(...) apesar de socialmente intoleráveis, não atingem a dignidade penal.». E, no ponto 3., 3º parágrafo, «Manteve-se, outrossim, a fidelidade à ideia de fundo que preside à distinção entre crime e contra-ordenação. Uma distinção que não esquece que aquelas duas categorias de ilícito tendem a extremar-se, quer pela natureza dos respectivos bens jurídicos quer pela desigual ressonância ética.».
      [[5]] É sabido que uma das características do acto administrativo é a de produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta (cf. art. 120º do CPA).
      Portanto, destinando-se um sinal de trânsito a todas as pessoas que passem no local, poder-se-ia ser levado a crer que não seria um acto administrativo.
      Contudo, como refere Diogo Freitas do Amaral, “Direito Administrativo”, vol. III, Lições, Lisboa, 1989, pág. 92, não deixam de ser actos administrativos os ditos actos gerais __ «actos que se aplicam de imediato a um grupo inorgânico de cidadãos, todos eles bem determinados, ou determináveis no local.» __, situação em que se insere a colocação do sinal de trânsito pois apesar de vincular todos os cidadãos que com ele se deparem, estamos sempre perante pessoas que podem ser individualizadas pelas entidades fiscalizadoras do trânsito.
      [[6]] A competência é «O complexo de poderes funcionais conferido por lei a cada órgão para o desempenho das atribuições da pessoa colectiva em que esteja integrado.» __ Marcelo Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, vol. I, Almedina, 10ª edição, pág. 223.
      [[7]] Marcelo Caetano, obra citada, pág. 500.
      [[8]] Obra citada, pág. 516.