Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00732/06.0BEBRG
Secção:
Data do Acordão:11/19/2009
Relator:Moisés Rodrigues
Descritores:RECURSO APLICAÇÃO COIMA – ARTIGO 45º RGIT – DISPENSA DE PENA – PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
Sumário:I - Nos termos do artigo 45.º do RGIT, «sendo arquivado o inquérito ou não deduzida a acusação, a decisão é comunicada à administração tributária ou da segurança social para efeitos de procedimento por contra-ordenação, se for caso disso.».
II - A dispensa de pena, implicando uma prévia apreciação e verificação da culpa do arguido, não é equiparável à não acusação ou falta de punição deste, tratando-se, antes, de uma sanção especial do direito penal, cuja peculiaridade consiste na condenação do arguido pelo delito cometido, sem que se lhe imponha uma pena, embora se verificando todos os pressupostos da punibilidade.
III - Arquivado o processo crime de abuso de confiança fiscal, com dispensa de pena do arguido, não pode a AT prosseguir o procedimento por contra-ordenação contra este, ao abrigo do disposto no artigo 45.º do RGIT, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, constitucionalmente consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da CRP e aplicável a todos os procedimentos de natureza sancionatória.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I
AMBARO , Ldª, (adiante Recorrente) com os demais sinais dos autos, não se conformando com a sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que julgou improcedente o presente recurso judicial que interpusera da decisão que lhe aplicou uma coima pela prática de uma infracção prevista e punida pelos arts 26º nº 1 e 40º nº 1 al. a) do C.I.V.A. e nº 2 do art. 114º do RGIT, veio dela recorrer, concluindo, em sede de alegações:
1. Decorre da matéria de facto que a douta sentença recorrida deu como provada que, relativamente à mesma infracção que deu lugar à aplicação de coima que a douta sentença recorrida confirmou, já havia sido concluída a prática do crime de abuso de confiança fiscal.
2. Sendo assim, como é, não pode a recorrente voltar a ser condenada com a aplicação de coima, por contra-ordenação, sob pena de ser violado o princípio non bis in idem, o que representaria inconstitucionalidade por violação do disposto no n° 5 do art. 29° da CRP, inconstitucionalidade que, desde já, se invoca.
3. Concluindo que a ora recorrente não pode voltar a ser condenada com a aplicação de coima, por contra-ordenação, sob pena de ser violado o princípio non bis in idem, foram proferidas, em casos idênticos ao destes autos, doutas decisões da Meritíssima Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, já transitadas em julgado, nos seguintes processos, todos da Unidade Orgânica 3:
- n°s. 401/06.6BEBRG, 403/06.7BEBRG, 410/06.0BEBRG, 725/06.7BEBRG, 727/06.3BEBRG e 729/06.0BEBRG.
4. Face ao exposto, a douta sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que conceda provimento ao recurso de contra-ordenação e revogue a decisão de aplicação de coima que foi proferida pelo Chefe do Serviço de Finanças.
5. A douta sentença recorrida violou, entre outros, o disposto no art. 379°, n° 1, c), do CPP, e no art. 29°, n° 5, da CRP.
Nestes termos,
Deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, a douta sentença recorrida deve ser revogada, substituindo-se por outra que, concedendo provimento ao recurso de contra-ordenação, revogue a decisão de aplicação de coima, proferida pelo Senhor Chefe do Serviço de Finanças.

Por decisão sumária proferida a fls. 149 a 151, o Supremo Tribunal Administrativo declarou-se incompetente, em razão da hierarquia, para o conhecimento do recurso, na consideração de que este não versava exclusivamente matéria de direito, declarando competente para o efeito este TCA Norte.

Remetidos os autos a este Tribunal, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, a fls. 158 e verso, no sentido de o recurso merecer provimento, em concordância, aliás, com anteriores decisões do TAF de Braga.

Com dispensa de vistos legais, nos termos do artº 707º do CPC, importa apreciar e decidir.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada na 1ª instância, que ora deixamos reproduzida ipsis verbis:
«Pelos documentos juntos aos autos com relevância para o caso, considero provados os seguintes factos:
1. A recorrente deu entrada da declaração periódica de IVA relativa a Novembro de 2003 sem o correspondente meio de pagamento do imposto, autoliquidado pela importância de 5 091.97 €, tendo por data limite de cumprimento da obrigação em 12.01.2004.
2. O auto de notícia foi exarado a 01.05.2003.
3. Contra a Recorrente foi instaurado o processo inquérito n° 89/05.6 IDBRG, por crime de abuso de confiança fiscal, tendo o Ministério Público proposto o seu arquivamento, o que mereceu a concordância da Meritíssima Juíza do JIC, nos termos do art. 22° e 44° do RGIT, por despacho de 01.06.2005 (fls. 122 a 124) ( Lapso manifesto, pois se trata de fls. 103 a 105, desculpável atento o elevado número de processos instaurados.).
4. Em 23.09.2008, foi proferida decisão pelo Chefe de Finanças na qual a Recorrente foi condenada na coima de 1 180.39 €, decisão de que ora recorre (fls. 81 e 82 dos autos).
*
Os factos em apreço relativos à decisão recorrida são de conhecimento oficioso face aos elementos constante(s) dos autos e resultaram da análise dos documentos neles constantes.
Não resultam provados ou não provados quaisquer outros factos com interesse para a decisão.»

III
O presente recurso jurisdicional vem interposto da decisão proferida pela Juiz do tribunal a quo que, julgando improcedente o recurso interposto pela ora Recorrente, da decisão do chefe do Serviço de Finanças Braga 2, que a condenou em coima, por ter apresentado a declaração de IVA relativa ao mês de Novembro de 2003 sem meio de pagamento, manteve a decisão recorrida.
Alega a ora Recorrente que, como decorre da matéria de facto fixada na decisão recorrida, relativamente à mesma infracção que deu lugar à aplicação de coima que a sentença recorrida confirmou, já havia sido concluída a prática do crime de abuso de confiança fiscal, pelo que, sendo assim, não pode a Recorrente voltar a ser condenada por contra-ordenação, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, consagrado no nº 5, do arigo 29º da CRP.
Vejamos.
Mostra-se provado que contra a ora Recorrente foi instaurado o processo de inquérito nº n° 89/05.6 IDBRG, por crime de abuso de confiança fiscal, tendo o Ministério Público proposto o seu arquivamento, o que mereceu a concordância da Meritíssima Juíza do JIC, nos termos do art. 22° e 44° do RGIT, por despacho de 01.06.2005 – item 3. do probatório.
Tal inquérito teve como base informação e extracto do sistema informático do IVA da DGCI e destinou-se a investigar um crime de abuso de confiança fiscal que teve como objecto o IVA referente aos meses de Janeiro de 2002 a Maio de 2004 não entregue nos cofres do Estado – cfr. a fls. 103 e 104 o parecer da entidade instrutora do referido inquérito ( Neste parecer, vem referenciado que os factos puníveis se relacionam com “retenções na fonte a título de IRS, sem efectuar as competentes entregas nos cofres do Estado”, mas tal é manifestamente um lapso, já que o processo de averiguações que antecede este parecer, tem ele mesmo um parecer, para onde se remete e, neste, é expresso que os factos se reportam à entrega de declarações periódicas de IVA sem se fazerem acompanhar do respectivo meio de pagamento.).
Por outro lado, tendo-se entendido que se verificavam os pressupostos da dispensa de pena relativamente a essa infracção, determinou-se o arquivamento de tais autos, nos termos dos artigos 22.º e 44.º do RGIT – cfr. fls. 105.
Dispõe, por seu turno, o artigo 45.º do RGIT que:
«Sendo arquivado o inquérito ou não deduzida a acusação, a decisão é comunicada à administração tributária ou da segurança social para efeitos de procedimento por contra-ordenação, se for caso disso.».
Que interpretação, deste preceito, fez a Juíza do tribunal “a quo”?
A de que, quando em sede de processo crime não for aplicada expressamente uma coima, o mesmo deve ser devolvido aos respectivos serviços para que seja apreciada a eventual aplicação de coima, pelo que, neste caso, como não foi aplicada qualquer sanção à recorrente no processo crime, a decisão de arquivamento deste não é impeditiva da aplicação de coima em processo de contra-ordenação.
Não cremos, porém, que essa seja a interpretação correcta do citado normativo.
E, assim, já o sentenciou o mais alto tribunal da jurisdição administrativa e tributária, em acórdão proferido no Recurso nº 0723/09, a 07 de Outubro de 2009 ( Consultável na íntegra aqui: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b3c0cc7e4af3bb748025764e0049453e?OpenDocument ), pelo que, nos termos do art. 8º, nº 3, do Código Civil, a essa interpretação aderimos e, do mesmo acórdão respigamos a fundamentação, perfeitamente ao caso sub judice aplicável:
«Com efeito, o que dele ( Do acima citado artigo 45º do RGIT) se depreende é que, arquivado o inquérito ou não deduzida a acusação, por se concluir não consubstanciarem os factos apurados a prática de qualquer crime, a administração tributária apurará se os mesmos factos consubstanciam, ainda assim, a prática de qualquer contra-ordenação e, se tal se verificar, aplicará a coima correspondente.
Não pode é passar à aplicação de uma coima, através dum procedimento contra-ordenacional, se já se tiver verificado a prática de um crime, com base na mesma factualidade.
Ora, no caso em apreço, só se ponderou a aplicação da dispensa de pena, após a verificação da prática do crime que era imputado à recorrente, ou seja, se se tivesse concluído não haver qualquer crime não havia que dispensar aquela de nenhuma pena mas antes absolvê-la da acusação que lhe era formulada.
É que a dispensa de pena implica uma prévia apreciação e verificação da culpa do arguido.
Na verdade, de acordo com o art.º 22.º, n.º 1 do RGIT, se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária e o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a três anos, a pena pode ser dispensada se: a) a ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves; b) a prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos, ou c) à dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção; sendo, ainda, a pena especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado (cfr. n.º 2 do sobredito normativo).
Com estas medidas visa-se, por conseguinte, dotar a administração da justiça penal tributária de um meio idóneo de substituição de curtas penas de prisão ou mesmo de pronúncia de curtas penas que nem a protecção da sociedade nem a recuperação do delinquente parecem seriamente exigir.
Nesta perspectiva, a dispensa de pena não é uma medida de clemência. O que acontece é que a pena se apresenta como desnecessária, face à pequena gravidade do delito. Trata-se, pois, de uma sanção especial do Direito Penal, cuja peculiaridade consiste na condenação do arguido pelo delito cometido, sem que se lhe imponha uma pena. Trata-se igualmente de uma medida alternativa à prisão e à multa, vocacionada para a resolução das bagatelas penais, quando, verificando-se embora todos os pressupostos da punibilidade, não se justifica a aplicação de uma sanção penal em termos de prevenção (cfr. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2ª edição actualizada e ampliada – 2003, Pág. 245).
Por outro lado, a atenuação especial coloca-se no domínio da determinação da moldura penal, desde que, do supra mencionado condicionalismo legal, resulte uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena.
Daí que, com rigor, se não possa dizer que nesta situação não foi aplicada qualquer sanção à recorrente no processo crime que contra ela foi movido anteriormente.
Sobre a pretensa violação do princípio “ne bis in idem” se dirá que este princípio, com assento no artigo 29.º, n.º 5 da CRP, que dispõe que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” é aplicável a todos os procedimentos de natureza sancionatória.
Trata-se de uma disposição que preenche o núcleo fundamental de um direito: o de que ninguém pode ser duplamente incriminado e punido pelos mesmos factos sob o império do mesmo ordenamento jurídico.
A expressão julgado mais do que uma vez não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger, não só a fase do julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo. É o que sucede com a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento ou por desistência de queixa, situações em que, obviamente, o respectivo beneficiário não pode ser perseguido criminalmente pelo crime ou crimes objecto da respectiva declaração de extinção da responsabilidade criminal.
Também, por outro lado, a dispensa de pena não pode ser equiparada à não acusação ou arquivamento dos autos por falta dos respectivos pressupostos de punibilidade.
A decisão recorrida que assim não entendeu não pode, por isso, ser confirmada.»

IV
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogar a decisão recorrida, julgando procedente o recurso judicial e, consequentemente, anular a decisão de aplicação de coima proferida pela Administração Tributária.
Sem custas.
Notifique e registe.
Porto, 19 de Novembro de 2009
Ass) Moisés Moura Rodrigues
Ass) Francisco António Areal Rothes
Ass) José Maria Fonseca Carvalho