Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01043/14.2BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/08/2016
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Esperança Mealha
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL DO TITULAR OU AGENTE
Sumário:A alegação de que o titular do órgão ou agente agiu com dolo é um facto essencial da causa de pedir, indispensável à responsabilização do demandado pelo pagamento da indemnização peticionada, uma vez que só perante uma atuação dolosa haverá responsabilidade solidária do titular do órgão ou agente e da Administração (artigos 2.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 48051 e artigo 8.º/1 do atual Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas)*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:MJPSL
Recorrido 1:JCR e Outro(s)...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Sumária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, salientando que no caso estavam verificados os pressupostos legais e doutrinais que permitiam e, ademais, impunham ao tribunal recorrido concluir nesta fase processual pela total improcedência da pretensão formulada pela Recorrente, face à inverificação dos requisitos a que se subordina a responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entes públicos e, nomeadamente, à falta de alegação de factos essenciais à procedência da ação.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte
1. Relatório
MJPSL interpõe recurso jurisdicional do despacho saneador-sentença do TAF do Porto que julgou improcedente a ação administrativa comum intentada pela Recorrente contra JCR e o LABORATÓRIO PROF. EM e, como interveniente acessória, COMPANHIA DE SEGUROS A... PORTUGAL, SA, na qual, após desistência do pedido quanto ao Réu Laboratório, homologada por sentença transitada em julgado, pede a condenação do 1.º a pagar-lhe uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente sofridos em consequência de, em face dos resultados de uma análise, lhe ter sido prescrita penicilina que lhe causou uma reação anafilática.

A Recorrente alegou, apresentando conclusões, não numeradas, nos seguintes termos que delimitam o objeto do recurso:

O Tribunal “ a quo” decidiu sobre a materialidade do processo, sobre o seu entendimento da negligência invocada.

O princípio do Estado de Direito concretiza-se através de elementos retirados de outros princípios, designadamente, o da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos.

Tal princípio encontra-se expressamente consagrado no artigo 2º da CRP e deve ser tido como um princípio politicamente conformado que explicita as valorações fundamentadas do legislador constituinte.

Os citados princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado.

O tribunal “ a quo”, necessariamente e, sobre as denominadas exceções dilatórias, teria que consultar as partes e a estas, conceder-lhes um prazo para apresentar peça processual aperfeiçoada.

A negligência, o dolo, ou outra adjetivação do tipo de ilícito, apenas com a prova produzida poderia ter sido classificada.

A Recorrente não procurava a criminalização do ato ou omissão deste pelo Recorrido, mas sim, até por causa do Arquivamento do procedimento crime, o direito legitimo e justo a indemnização pelos danos por esta sofridos.

A competência e o mérito do Tribunal, afere-se, entre outras, pela questão da matéria e nesta, não existem sub-espécies.

Mais grave e, que provoca a Nulidade “tout court” da decisão, é materialmente estar o Tribunal em condições de proferir uma Decisão e, mau grado entender não ser materialmente competente, porquanto não especificou a Recorrente, o “titulo” pelo qual pretendia ser ressarcida.

Em causa não está a competência material, mas a simples adjetivação pelo qual o Tribunal “a quo” entende dever ou ter legitimidade de julgar o mesmo processo jurisdicional

Ora tendo competência material para julgar o processo, teria que proceder ao julgamento e, concluir pela negligência ou dolo ou outra qualquer adjetivação, fundamentos que apenas relevam não o mérito da causa, mas o “quantum indemnizatório”.

Desde logo por violação destes dos diversos princípios Constitucionais invocados, o Tribunal “a quo” não poderia ter decidido como decidiu.

Tal Decisão é Nula, o que se Requer

V. Ex.as Venerandos Desembargadores, revogando a Decisão recorrida, como sempre farão inteira e Sã Justiça, que se Requer

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A Recorrida A... contra-alegou, concluindo o seguinte:

1) O douto despacho saneador que julgou improcedente a ação por falta de concretização da factualidade necessária à procedência do pedido, isto é, a alegação de que as lesões que deram origem aos prejuízos cujo ressarcimento é peticionado foram provocados com dolo, procedeu à correta interpretação do direito aplicável

2) Em causa não está o julgamento de qualquer exceção dilatória que, a proceder, daria lugar à absolvição da instância e não à absolvição do pedido.

3) A parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efetivamente o seu titular – acórdão do STJ de 14/10/2004, P: 04B2212, http://www.stj.pt/jurisprudencia/basedados

4) Tal como resulta da douta decisão injustamente posta em causa, não está em causa a posição do médico recorrido na relação jurídica controvertida tal como a descreve a recorrente, mas antes, a apreciação do pedido formulado contra o médico.

5) O que, desde logo, obriga ao conhecimento do mérito da ação, traduzindo uma exceção perentória.

6) Razão pela qual o tribunal não pôde deixar de julgar improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade processual.

7) A ilegitimidades das partes, constituindo uma exceção dilatória, ou seja, uma deficiência do processo que obsta a que o tribunal conheça do mérito, determinando a absolvição da instância (art. 278.º e 576.º do CPC), deve ser conhecida o mais cedo possível, a fim de evitar atos inúteis, processualmente proibidos (art. 130.º do CPC), e sempre necessariamente antes do conhecimento do fundo da causa – acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/01/2008, processo n.º 3722/2007, http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/

8) Razão pela qual se impõe o dever de o juiz providenciar pelo suprimento das exceções dilatórias.

9) Só a omissão de tal poder/dever, de forma a permitir que o processo possa prosseguir com regularidade e possibilitar uma decisão de mérito sobre a pretensão das partes, constitui nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil.

10) O que não acontece na decisão objeto do presente recurso.

11) A presente ação respeita à responsabilidade civil dos titulares dos órgãos e dos agentes administrativos, sendo a esta aplicável o artigo 3.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 48051, o qual introduz uma nota restritiva exigindo, para a sua responsabilização pessoal, que, na prática do ato ilícito, tenham «excedido os limites das suas funções» ou que, «no desempenho destas e por sua causa», tenham «procedido dolosamente».

12) Constitui pressuposto da responsabilidade civil do médico recorrido a sua atuação dolosa.

13) Caberia assim à aqui recorrente o ónus de alegar e provar o comportamento doloso como elemento constitutivo do seu direito à indemnização.

14) A recorrente teria que alegar factos que permitissem a prova de que o médico ao prescrever a penicilina à recorrente o fez sabendo que esta era alérgica a tal substância e que com essa prescrição causaria danos à sua saúde.

15) Os factos que a recorrente alega, a provar-se, apenas permitiriam demonstrar um comportamento menos zeloso ou negligente na prescrição do tratamento.

16) A petição inicial constitui o ato fundamental do processo, uma vez que é através dela que alguém – o autor – solicita ao Tribunal a concessão de um determinado meio de tutela do direito subjetivo invocado ou de interesse juridicamente relevante que sustenta determinada pretensão – Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, pág. 118.

17) Para que se possa pôr termo ao conflito de interesses que subjaz à lide, terá o autor que formular a sua pretensão, invocando os fundamentos de facto e de direito que a sustentam.

18) E esse ónus de alegação tem que ser cumprido na petição inicial, articulado que conforma toda a ação, não sendo lícito ao autor, em articulado posterior, trazer factos novos, constitutivos do seu direito, que antes não havia alegado (tanto mais que a omissão de tal alegação não poderia ser suprida com um convite ao aperfeiçoamento, pois que o Tribunal não pode transpor a fronteira entre o convite a concretizar os facto alegados e convite a trazer ao processo factos não alegados, subvertendo o ónus de alegação e substituindo-se às partes).

19) Em face do exposto, deve o tribunal conhecer do mérito da causa e proferir despacho julgando a presente ação improcedente por falta de concretização dos factos consubstanciadores do direito invocado – acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 2 de fevereiro de 2006, Processo 653/05-2, sendo Relator MARIA ALEXANDRA SANTOS.

20) Os princípios constitucionais da segurança jurídica, da proteção da confiança e o direito constitucional de acesso à Justiça não foram postos em causa com a presente decisão.

21) Foi assegurado o contraditório, tendo o recorrente apresentado resposta às exceções pois, conforme resulta do douto despacho injustamente posto em crise com o presente recurso, a fase dos articulados decorreu na vigência do Código de Processo Civil revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de agosto.

22) Assim quer por tratar-se de uma decisão de mérito quer por a recorrente ter-se pronunciado expressamente quanto às exceções invocadas inexiste a inconstitucionalidade apontada, não constituindo a decisão qualquer surpresa para o recorrente, nem tão pouco se poderá afirmar que a mesma coata o direito de acesso à justiça e as garantias de um processo justo e equitativo.

23) Sendo manifestamente inviável a petição inicial por falta de concretização da necessária factualidade à procedência do pedido formulado, bem andou o Exmo. Juiz ao julgar a ação improcedente.


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O tribunal recorrido pronunciou-se no sentido de não se verificar a arguida nulidade do despacho saneador-sentença.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, salientando que no caso estavam verificados os pressupostos legais e doutrinais que permitiam e, ademais, impunham ao tribunal recorrido concluir nesta fase processual pela total improcedência da pretensão formulada pela Recorrente, face à inverificação dos requisitos a que se subordina a responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entes públicos e, nomeadamente, à falta de alegação de factos essenciais à procedência da ação.

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2. Direito

Na presente ação administrativa comum a Autora, ora Recorrente, visa ser indemnizada por danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente sofridos em consequência de prescrição de penicilina, efetuada pelo 1.º R. (médico) com base nas análises colhidas no 2.º Réu (laboratório), que lhe terá causado uma reação anafilática.

O despacho saneador-sentença recorrido na parte aqui relevante – depois de lembrar que a autora/Recorrente desistiu do pedido formulado contra o R. Laboratório Prof. EM, tendo a desistência sido homologada por sentença transitada em julgado –, julgou improcedente a exceção de ilegitimidade passiva do réu médico e de seguida considerou ser já possível o conhecimento do mérito da ação, concluindo que este réu só podia ser coresponsabilizado pelo pagamento da indemnização se tivesse sido alegado que agiu com dolo (e citando acórdão do STA em apoio desta posição), e tendo considerado que tal não foi feito porque em parte nenhuma da petição inicial vem alegado que aquele réu agiu com dolo ou sequer com negligência grosseira.

A Recorrente insurge-se contra esta decisão, invocando os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança; defendendo, no que respeita às exceções dilatórias, que o tribunal recorrido devia ter “consultado” as partes e concedido-lhes prazo para apresentar peça processual aperfeiçoada; sustentando que a negligência, o dolo, ou outra adjetivação do tipo de ilícito, apenas com a prova produzida poderia ter sido classificado e que tal negligência ou dolo apenas relevaria para o “quantum” indemnizatório e não para o mérito da causa; e, ainda, arguindo a nulidade da decisão, por o tribunal ter considerado que estar materialmente em condições de proferir uma decisão em sede de saneador e simultaneamente entender que não era materialmente competente, por a recorrente não ter “especificado o título pelo qual pretendia ser ressarcida”.

Adiante-se desde já que não assiste qualquer razão à Recorrente, cujas alegações revelam, em boa parte, errónea compreensão da decisão recorrida e do quadro legal aplicável.

Como bem salienta o Ministério Público no seu parecer, o despacho saneador-sentença recorrido não se limitou a decidir matéria de exceção (que, aliás, julgou improcedente), mas também apreciou o mérito da causa, concluindo pela sua improcedência por falta de alegação de factos essenciais à procedência da ação, por não vir alegado que o réu médico (o único réu na ação, na sequência da desistência do pedido formulado contra o réu laboratório) tenha agido com dolo ou sequer negligência grosseira, alegação indispensável à sua responsabilização pelo pagamento da indemnização peticionada.

Na verdade, como tem sido reiteradamente salientado na jurisprudência administrativa (cfr., por todos, o Acórdão do STA, de , P. 0295/05, citado na decisão recorrida e, no mesmo sentido, nomeadamente, o Acórdão do TCAN, de 17.01.2008, P. 00425/06.8BEBRG), “nos termos dos artigos 2.º e 3.º do DL 48.051, de 21/11/67, a ação proposta contra o Estado ou pessoa colectiva pública para efetivação de responsabilidade civil por facto ilícito praticado por agente seu, no exercício das suas funções e por causa dele, só pode ser dirigida contra este último quando as lesões que deram origem aos prejuízos peticionados tiverem sido provocadas com dolo.”

Do mesmo modo, o atual artigo 8.º/1 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (aprovado pela Lei n.º 67/2007), estipula que “os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, por eles cometidas com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo”. Ou seja, apenas perante uma atuação dolosa haverá responsabilidade solidária do titular do órgão ou agente e da Administração, sendo que no caso de atuação negligente a responsabilidade será exclusiva da Administração, embora com direito de regresso perante o titular do órgão ou agente no caso de ter havido diligência e zelo manifestamente inferiores aos que eram devidos em razão do cargo.

No caso em apreço, a autora, ora Recorrente, em momento algum da petição inicial alegou que o réu médico tenha agido com dolo ou sequer negligência grosseira, alegação indispensável à sua responsabilização pelo pagamento da indemnização peticionada, falha que, aliás, a própria Recorrente reconhece.

Além disso, contrariamente ao alegado, tal falha de alegação não era suscetível de ser suprida através de um convite ao aperfeiçoamento, pois traduz uma omissão de alegação de factos essenciais, estruturantes da causa de pedir, e não uma situação de simples insuficiência ou imprecisão dos factos alegados, estando vedado ao tribunal substituir-se à parte no cumprimento daquele ónus de alegação, sob pena de violação dos princípios da imparcialidade e da igualdade entre as partes. Como já salientámos no Acórdão TCAN, de 05.06.2015, P. 00482/05.4BEBRG, “O convite ao aperfeiçoamento da exposição da matéria de facto só deve ter lugar em situações de insuficiência ou imprecisão dos factos alegados, o que pressupõe que tenham sido suficientemente alegados os factos essenciais que consubstanciem a causa de pedir do pedido formulado (cfr. artigo 508.º do CPC, na versão anterior à Lei n.º 41/2013, correspondente ao atual artigo 590.º).”
Pelo que não se vislumbra qualquer nulidade da decisão recorrida e, como bem salienta o Ministério Público no seu parecer, impunha-se ao tribunal recorrido concluir, como concluiu, pela improcedência da pretensão formulada pela Recorrente, face à não verificação dos requisitos a que se subordina a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos e, nomeadamente, à total omissão de alegação de factos essenciais e indispensáveis à procedência da ação contra o citado réu.

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4. Decisão

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.

Porto, 08.04.2016
Ass.: Esperança Mealha
Ass.: Rogério Martins
Ass.: Luís Migueis Garcia