Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:0039/14.9BEMDL-S2
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/20/2023
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:FACTOS CONCLUSIVOS OU DE DIREITO;
ACORDO DE TRANSAÇÃO; NOVAÇÃO;
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO;
Sumário:
1-Os “factos” são acontecimentos externos ou internos suscetíveis de serem percecionados ou captados pelos sentidos. Não deve ser levado aos factos provados ou não provados matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito ( valoração jurídica de factos), e quando tal ocorra, deve essa mesma matéria ser suprimida do elenco dos factos assentes.

2-A novação “consiste na convenção pela qual as partes extinguem uma obrigação mediante a criação de uma nova obrigação em lugar dela”. A novação – que tanto pode se objetiva, como subjetiva - pressupõe a vontade das partes de extinguirem uma obrigação primitiva, através da criação de uma nova obrigação, o que deve ser feito através de uma expressa manifestação/declaração de vontade das partes nesse sentido (animus novandi).

3-A transação é um contrato típico ou nominado através do qual as partes previnem (transação extrajudicial) ou terminam um litígio (transação judicial) mediante recíprocas concessões (n.º 1 do art.º 1248º do Cód.Civil), podendo essas concessões envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido (n.º 2 do art.º 1248º do Cód.Civil). A transação, seja judicial ou extrajudicial, opera efeitos substantivos, ao resolver o conflito, definindo os direitos e as obrigações de cada um dos contraentes, nos precisos termos por eles acordados. A sua interpretação está sujeita às regras interpretativas do negócio jurídico, enquanto atividade destinada a determinar o significado juridicamente relevante do respetivo conteúdo declarativo.

4-Nos termos do art.º 236.º do C. Civil a declaração negocial deve valer com o seu sentido objetivo, o mesmo é dizer, com o sentido que lhe seria dado por um declaratário medianamente inteligente, diligente e sagaz, quando colocado na posição concreta do declaratário real, em face das circunstâncias que este efetivamente conhecia e das outras que lhe eram cognoscíveis.

5-Nos negócios formais, como é o caso, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º, nº 1 do CC), podendo, no entanto, esse sentido valer se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuseram a essa validade (n.º 2 daquele art. 238º).

6-Não resultando do Acordo de Transação que o Apelado reconheceu a obrigação de pagar a quantia titulada pela nota de débito n.º 2300000049, antes resultando que excecionou do reconhecimento a identificada nota de débito não se deu a novação da obrigação relativa a essa nota de débito, referente a “Valores mínimos garantidos nos termos da cláusula 16º do Contrato de Concessão e da cláusula 3ª dos respetivos contratos de fornecimento de água e de recolha de efluentes” outorgados entre as partes.

7- A prescrição traduz-se no “não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei” de direitos que a lei não qualifique como indisponíveis ou declare dela isentos- art.º 298.º, n.º 1 do Cód.Civil. A prescrição, não suprime nem extingue o direito prescrito mas limita-se a transformá-lo numa obrigação natural, constituindo uma exceção que permite ao devedor impedir o exercício do direito de crédito pelo credor. O prazo ordinário de prescrição é de vinte anos (artigo 309.º do CC). “ A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente”- n.º1 do artigo 323.º do Cód. Civil

8- Tendo o Réu a posição de Município utilizador, será aplicável às suas dívidas o prazo de prescrição de dois anos, contados após a emissão das faturas.

9-Estando a dívida resultante da nota de débito n.º 2300000049 expressamente excluída da aplicação do Acordo de Transação, nunca poderia o mesmo ter como efeito a aplicação do artigo 311.º do C.Civil, com a consideração do prazo ordinário de prescrição de 20 anos.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa, subsecção de Contratos Públicos, do Tribunal Central Administrativo Norte:

I.RELATÓRIO
1.1.[SCom01...], S.A., pessoa coletiva n.º 505 863 90ª, com sede na Avenida ..., ..., moveu a presente ação administrativa comum, com processo na forma ordinária, contra o Município ..., pessoa coletiva n.º ...60, com sede na Praça ..., ..., pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe “a quantia de 1.389.459,29 (um milhão, 10 trezentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e cinquenta e nove euros e vinte e nove cêntimos, valor acrescido dos competentes juros de mora, no valor de € 150.880,00 (cento e cinquenta mil oitocentos e oitenta euros), o que perfaz o total de € 1.540.339,29 (um milhão, quinhentos e quarenta mil, trezentos e trinta e nove euros e vinte e nove cêntimos), bem como nos demais que se vierem a vencer até ao efetivo e integral pagamento da dívida”.
1.2.Citado, o Réu contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Na defesa por exceção, invocou que a nota de débito nº ...49 foi emitida em 31/01/2011 e que apenas foi citado para a presente ação no dia 10/02/2014, ou seja, depois de decorridos mais de dois anos sobre a data da respetiva emissão, pelo que se encontram prescritos os créditos nela titulados.
1.3.Regularmente notificada, a autora não emitiu pronúncia contraditória quanto à matéria excetiva suscitada pelo réu.
1.4.Em 05/03/2021 o TAF de Mirandela, proferiu despacho em que dispensou a realização de audiência prévia, fixou o valor da ação em 1.540.339,29€ e julgou procedente a exceção perentória da prescrição “invocada quanto à quantia reclamada pela autora pela nota de débito n° ...49, e respetivos juros de mora, vencidos e vincendos”, e absolveu “ o réu do pedido, nesta parte”.
1.5.Dessa decisão foi interposto recurso de apelação para o TCAN, que por acórdão de 13/05/2022 decidiu « anular o despacho saneador recorrido na parte em que”(…) que decidiu julgar procedente a exceção perentória da prescrição quanto a parte do montante peticionado nos presentes autos e, consequentemente, absolver o Réu do pedido (…)”determinando-se que seja proferida nova decisão judicial sobre tal matéria excetiva- preferencialmente já contemplando os argumentos invocados pela Recorrente no presente recurso- da qual conste decisão sobre os fundamentos da matéria de facto, ou seja, na qual se elenquem/especifiquem os factos considerados como assentes/provados que justificam/suportam a decisão».
1.6.Em 11/08/2022, o TAF de Mirandela, em cumprimento do citado Acórdão do TCAN de 13/05/2022, proferiu novo despacho saneador, em que julgou procedente a referida exceção perentória, dele constando o seguinte segmento decisório:
« Em conformidade com o exposto, cumpre concluir pela verificação da exceção perentória da prescrição invocada pelo réu, quanto à quantia reclamada pela autora titulada pela nota de débito nº ...49, e respetivos juros de mora, vencidos e vincendos, e absolver o réu do pedido, nesta parte.
Vai a autora condenada no pagamento das custas, na proporção do decaimento (cfr. artigo 527º, nº 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA e artigo 6º, nº 1 do RCP).
*
Notifique. »
1.7.Inconformada com o despacho saneador que decidiu julgar procedente a exceção perentória da prescrição quanto a parte do montante peticionado na ação, e consequentemente, absolver parcialmente o Réu do pedido, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, que culmina com a apresentação das seguintes CONCLUSÕES:
«
1. Vem o presente recurso interposto do segmento decisório proferido em sede de despacho saneador, datado de 11/08/2022 (notificada à aqui Recorrente por notificação eletrónica elaborada e certificada em 12/08/2022), que absolveu o Réu de parte do pedido ao julgar procedente a alegada exceção de prescrição de parte dos montantes faturados, decidindo: “Em conformidade com o exposto, cumpre concluir pela verificação da exceção perenptória da prescrição invocada quanto à quantia reclamada pela autora pela nota de débito nº ...49, e respetivos juros de mora, vencidos e vincendos, e absolver o réu do pedido, nesta parte. Vai a autora condenada no pagamento das custas, na proporção do decaimento (cfr. artigo 527º, nº 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA e artigo 6º, nº 1 do RCP).” – Cfr. páginas 14/14 do despacho saneador.
2. Salvo o devido respeito, a Recorrente considera que a decisão proferida no despacho saneador padece de manifesto erro de julgamento quanto à matéria de facto e de direito, o que constitui os fundamentos do presente Recurso, tendo em consideração que o Tribunal a quo não qualificou como novação a inclusão do valor da nota de débito no acordo celebrado entre as partes em 12/11/2012.
3. Em 12/11/2012, Recorrente e Recorrido celebraram um Acordo de Transação (Cfr. Doc. ... junto à PI, a fls. 76 a 86 do SITAF), onde, no termos do considerando n.º B) do referido Acordo ficou estabelecido que: “Considerando que a Segunda Contraente reclama créditos não regularizados relativos aos serviços prestados ao Primeiro Contraente no montante de € 1.915.343,27 (um milhão novecentos e quinze mil trezentos e quarenta e três euros e vinte e sete cêntimos) conforme ANEXO I ao presente ACORDO, e que o Primeiro Contraente reconhece apenas o valor de € 922.855,30 (Novecentos e vinte e dois mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e trinta cêntimos) conforme ANEXO II e ANEXO III, fazendo parte ambos do presente ACORDO”.
4. Assim, e se atentarmos aos créditos que foram integrados no referido Anexo III daquele Acordo, consta expressamente a nota de débito n.º ...49, no valor total de € 406.906,86, pelo que este montante global do acordo integra o valor de € 922.855,30 que o Recorrido expressamente reconheceu como devido, nos termos do supracitado considerando B) do referido Acordo.
5. De forma expressa, consta da cláusula 5.ª do acordo de transação que o Município se compromete a pagar o valor correspondente à nota de débito até 31/12/2012, sem prejuízo da resolução dos diferendos existentes entre as partes, de acordo com a cláusula 9.ª.
6. Pelo que, é manifesto que o Recorrido (Primeiro Contraente no Acordo de Transação) se comprometeu a pagar o valor peticionado nos termos das Cláusulas 4.ª, 5.ª e 9.ª do referido Acordo.
7. Deste modo, não se compreende o entendimento do Tribunal ao excecionar o direito da autora ao pagamento da quantia titulada pela nota de débito n.º ...49.
8. O Tribunal não considerou a existência da novação objetiva da dívida (artigos 857.º e seguintes do Código Civil)!
9. Na verdade, estamos perante o regime da novação objetiva, nos termos do disposto do artigo 857.º do Código Civil, segundo o qual o Réu contraiu uma nova obrigação em substituição de uma antiga que, por sua vez, se extinguiu.
10. À data da celebração do Acordo, 12/11/2012, o crédito não havia prescrito uma vez que a data de emissão da nota de débito é 31/01/2011.
11. Considerando que a ação foi instaurada em 14/01/2014, e que a citação ocorreu em 06/02/2014, haverá que concluir que o crédito não prescreveu, porquanto se verifica a novação da obrigação ao abrigo do contrato.
12. Ou seja, à data de 12/11/2012 iniciou-se a contagem do prazo prescricional referente à obrigação que se novou – a qual apenas prescreveria volvidos 2 anos (muito depois da citação).
13. Em conclusão, a obrigação não se encontra prescrita.
14. Segue-se, neste sentido, o entendimento do Tribunal de Contas, no Acórdão n.º 25/2019, de 15/07/2019, Processo n.º 1030 e 1031/2019, 1.ª Secção, em conformidade com jurisprudência já afirmada do Tribunal de Contas, assim como, no Acórdão n.º 15/2019.
Caso assim não se entenda,
15. E, em segundo lugar, terá que se entender no sentido do referido reconhecimento do montante titulado na nota de débito, levará sempre à interrupção da prescrição da nota de débito n.º ...49, nos termos do disposto nos artigos 325.º e 326.º do CC, pelo que é um facto essencial que sempre deveria ter sido tomado em consideração pelo douto Tribunal a quo.
16. Assim, e porquanto é evidente e manifesto o erro de julgamento deste douto Tribunal a quo quanto à matéria de facto, concretamente quanto à fixação dos factos provados, tendo em consideração quer o alegado nos artigos 7.º a 11.º da Petição Inicial apresentada pela ora Recorrente, quer o alegado na Contestação apresentada pelo Recorrido (porquanto este não impugnou o referido Acordo de Transação, antes pelo contrário, considera-o válido e eficaz – vide artigo 5.º da contestação), requer-se a V.Exas. que seja aditado à decisão o seguinte facto, provado através do documento n.º ... junto à PI (Cfr. fls. 76 a 86 do SITAF): “Autora e Réu celebraram, em 12/11/2012, um Acordo de Transação, no qual o Réu reconheceu como devido, nos termos do considerando B) e do Anexo III do referido Acordo, e se comprometeu a pagar, nos termos das Cláusulas n.ºs 4.ª, 5ª e 9.ª do mesmo, o montante titulado na nota de débito n.º ...49, concretamente o valor de € 406.906,86.”.
17. Pelo que, e em terceiro lugar, considera a Recorrente que o douto Tribunal a quo comete um manifesto ERRO DE JULGAMENTO QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO, porquanto não toma em devida consideração a interrupção da prescrição dos créditos que foram reconhecidos pelo Recorrido no Acordo de Transação, concretamente o montante titulado pela nota de débito n.º ...49, violando o preceituado no Código Civil.
18. Pois que, o Acordo de Transação celebrado entre Recorrente e Recorrido, e junto aos presentes autos a fls. 76 a 86 do SITAF, não pode deixar de ser qualificado como reconhecimento expresso do direito de crédito da Recorrente, o que implica a interrupção da prescrição, inutilizando todo o tempo anteriormente decorrido, começando a correr novo prazo a partir daquele ato interruptivo, nos termos do disposto no artigo 325.º e 326.º/1 do Código Civil.
19. Porquanto, é evidente, nos termos do considerando B) e do Anexo III do referido Acordo, que o Recorrido reconheceu expressamente e inequivocamente o direito de crédito da Recorrente ao montante titulado na nota de débito ...49, ainda que venha a sujeitar o seu pagamento “à resolução dos diferendos existentes entre os Contraentes”, de acordo com a cláusula 5.ª e 9.ª do mencionado Acordo – porém, tais cláusulas não invalidam o reconhecimento daquela quantia, conforme melhor se alegou no presente recurso.
20. E nesse sentido, veja-se o sumariado pelo Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão proferido em 22/03/2007, Proc. n.º 06A3279 (disponível em: ttps://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2007:06A3279.34/), concretamente: “II – O reconhecimento do direito é uma mera declaração de ciência, quanto ao conhecimento do direito do titular. (…) IV- Mostrar-se disponível junto do credor para proceder ao pagamento da dívida ou da indemnização, fazer pedido de prorrogação do prazo ou alegar impossibilidade momentânea para o fazer, é reconhecer inequivocamente o direito do credor.”.
21. Assim, por força do disposto nos artigos 325.º/1 e 326.º/1 do CC, o prazo de prescrição interrompeu-se com a outorga daquele Acordo, pelo que, aplicando o prazo de dois anos, preceituado nas bases da concessão (Base XXIX e XXXI do DL 195/2009), aquando a citação do ora Recorrido, em 10/02/2014, tal quantia ainda não estaria prescrita, precisamente por ainda não ter decorrido tal prazo prescricional de dois anos.
22. Nestes termos, é evidente e manifesto o erro de julgamento do Tribunal a quo quanto à matéria de direito, pois que, ao considerar prescrita a quantia titulada pela nota de débito ...49, viola o preceituado no artigo 325.º e 326.º/1 do Código Civil.
23. Acresce ainda que, à data da celebração do Acordo de Transação junto aos presentes autos (ou seja, à data de 12/11/2012), o artigo 46.º do CPC (aprovado pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, na versão conferida pela Lei n.º 63/2011, de 14/12), classificava aquele Acordo de Transação outorgado entre as partes como título executivo, nos termos da alínea c) do referido normativo.
24. Pelo que, nos termos do disposto no artigo 326.º/2 e 311.º/1 do CC, o prazo de prescrição sempre seria, inclusive, o prazo ordinário de 20 anos (nos termos do disposto no artigo 309.º) – ou seja, sempre seria manifestamente impossível, à data da citação do Recorrido, tal prazo ter-se esgotado, motivo pelo qual a quantia titulada na nota de débito ...49 não se encontra prescrita.
25. Nestes termos, para além do alegado supra, a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo viola, também, o disposto nos artigos 326.º/2 e 311.º/1 do CC, existindo um claro erro de julgamento quanto à matéria de direito.
26. Por tudo quanto foi dito, requer-se a este douto Tribunal ad quem a alteração da decisão quanto à matéria de direito, por manifesto erro de julgamento, pois que sempre se deverá considerar totalmente improcedente a assacada prescrição da quantia titulada na nota de débito ...49.
27. Salvo devido respeito, a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo viola o disposto nos artigos 325.º e 326.º/1 e 857.º e sgs. do Código Civil, bem como o disposto nos artigos 326.º/2 e 311.º/1 do mesmo diploma legal.
Termos em que,
E nos melhores de Direito, com o sempre mui douto suprimento de V. Exas, deverá o presente recurso ser julgado provado e procedente, revogando-se a decisão recorrida.
Assim se fazendo justiça!»
1.8. O Réu contra-alegou, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A. Uma vez que o despacho de admissão do recurso pelo tribunal a quo não vincula o tribunal ad quem, incumbe ao relator apreciar se estão ou não verificados os pressupostos e requisitos de admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 652.º, n.º 1, do CPC.
B. A decisão recorrida faz referência expressa e clara a todos os factos essenciais que se dão como provados para efeitos de análise do efeito prescritivo.
C. Para além de fazer uma ampla e desenvolvida análise de direito quanto à relação entre as partes, procedendo à transcrição das Bases Contratuais e dos preceitos legais da lei civil aplicáveis.
D. Como o Recorrido alegou em sede de contestação e foi devida e sobejamente enquadrado no douto despacho instrutório, não obstante a nota de débito n.º ...49, no valor de €405.906,86 (quatrocentos e cinco mil, novecentos e seis euros e oitenta e seis cêntimos) se encontrar relacionada no Anexo III do Acordo de Transação, a mesma encontra-se excecionada do montante reconhecido como sendo devido pelo Recorrido à Recorrente, nos termos do disposto nas respetivas Cláusulas 4.ª e 5.ª do mesmo acordo.
E. Acresce ainda que, nos termos do disposto na Cláusula 9.ª do Acordo de Transação se reconhece expressamente que existem “diferendos existentes relativamente à dívida não reconhecida pelos Contraentes”.
Ou seja:
F. Tal como decorre do douto despacho recorrido não ocorreu qualquer causa interruptiva da prescrição para efeitos do disposto no artigo 326.º do CC, na medida em que o Recorrido apenas reconheceu, no mencionado Acordo de Transação de 12 de novembro de 2012, a existência e exigibilidade dos montantes titulados nas faturas identificadas nos Anexos II e III daquele Acordo, com expressa exceção da nota de débito n.º ...49.
G. E, por maioria de razão, na medida em que a dívida resultante da nota de crédito se encontra expressamente excluída da aplicação do Acordo de Transação, nunca poderá o mesmo ter como efeito a aplicação do artigo 311.º do CC, com a consideração do prazo ordinário de prescrição de vinte anos.
H. E nem se diga que tenha ocorrido qualquer novação da dívida para efeitos do disposto no artigo 857.º do CC.
I. Essa dívida não foi incluída na previsão do acordo celebrado, pelo que desde logo não se preenche o previsto nos artigos 859.º e 217.º, n.º 1, ambos do Código Civil, onde se estabelece que para que tenha ocorrido uma situação e novação para efeitos do previsto no artigo 857.º do mesmo Código haverá que ocorrer uma manifestação expressa da vontade de a realizar, no sentido em que credor e devedor devem declarar, de forma inequívoca, a finalidade da novação da dívida por meio idóneo - cfr. neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-03-2022, no processo 37/18.3T8GMR.G (Relatora: DESEMBARGADORA RAQUEL BAPTISTA TAVARES).
J. Isto é, o tribunal a quo nunca poderia ter reconhecido a existência de uma situação de novação objetiva para efeito do disposto no artigo 857.º do Código Civil sem a existência de uma declaração de vontades inequívoca e idónea nesse sentido.
K. Não podendo – mesmo que a exclusão dessa dívida não resultasse de forma expressa e inequívoca do acordo celebrado– presumir, inferir ou considerar a existência de uma situação de novação objetiva.
L. Termos em que, improcede o invocado erro de julgamento quanto à matéria de facto e de direito (novação da dívida).
Mas mais:
M. Reitera-se que no mencionado Acordo de Transação de 12 de novembro de 2012, o Recorrido apenas reconheceu a existência e exigibilidade dos montantes titulados nas faturas identificadas nos Anexos II e III daquele Acordo, com exceção da nota de débito n.º ...49.
N. Facto que a decisão recorrida bem soube apreciar, ao considerar tratar-se de uma situação de prescrição extintiva, submetida às regras da suspensão e interrupção indicadas nos artigos 318.º e seguintes do Código Civil, concretamente ao disposto nos artigos 323.º e 326.º, 327.º a propósito da interrupção da prescrição.
O. O mesmo despacho saneador remete para a data em que a nota de débito foi emitida (31/01/2011) e para a data em que ocorreu o evento interruptivo (10/02/2014) por referência aos documentos de fls. 174-175 e 176 do SITAF.
P. Isto é, resulta à saciedade que os factos que suportam a decisão foram corretamente apurados e enquadrados, não se impondo ao tribunal qualquer outra apreciação para além da que efetivamente já efetuou – cfr., neste sentido, Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 14/07/2017, no processo n.º 00052/13.3BEVIS (Relatora: ALEXANDRA ALENDOURO).
Q. Termos em que, improcede o invocado erro de julgamento quanto aos fundamentos de direito (interrupção da prescrição da obrigação).
NESTES TERMOS, e nos demais de Direito e Justiça que V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, suprirão, deve improceder o recurso interposto pela Recorrente [SCom01...] S.A. por manifestamente improcedente e não fundamentado, mantendo-se nos seus precisos termos a decisão recorrida.
No demais, saberão Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, fazer a costumada Justiça.»
1.9. O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º1, do artigo 146.º do CPTA, não emitiu parecer.
1.10.Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1.Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas mencionadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste TCAN resumem-se a saber:
b.1. se a decisão recorrida padece de erro de julgamento quanto á matéria de facto por não ter levado aos factos assentes a seguinte matéria, cujo aditamento a Apelante requer: “Autora e Réu celebraram, em 12/11/2012, um Acordo de Transação, no qual o Réu reconheceu como devido, nos termos do considerando B) e do Anexo III do referido Acordo, e se comprometeu a pagar, nos termos das Cláusulas n.ºs 4.ª, 5ª e 9.ª do mesmo, o montante titulado na nota de débito n.º ...49, concretamente o valor de € 406.906,86.”.
b.2. se a decisão recorrida padece de erro de julgamento em matéria de direito por o Tribunal a quo não ter qualificado como novação a inclusão do valor da nota de débito, no acordo celebrado entre as partes, em 12/11/2012.
b.3. se a decisão recorrida padece de erro de julgamento em matéria de direito decorrente de o Tribunal a quo não ter considerado a interrupção da prescrição dos créditos, que foram reconhecidos pelo Recorrido, no Acordo de Transação, violando o preceituado nos artigos 325.º e 326.º, n.º1 do Código Civil.
b.4. se a decisão recorrida padece de erro de julgamento em matéria de direito decorrente de o Tribunal a quo não ter considerado que o prazo de prescrição era de 20 anos, violando disposto nos artigos 326.º, n.º2 e 311.º, n.º1 do C.Civil.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO
3.1. A 1.ª Instância deu os seguintes factos como assentes:
«1. Através de contrato de concessão outorgado em 26/10/2001, o Estado Português atribuiu à [SCom01...], S.A. ([SCom01...]), a concessão da exploração e gestão do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento de Trás-os-Montes e Alto Douro para captação, tratamento e distribuição de água para consumo público e para recolha, tratamento e rejeição de efluentes de vários municípios, de entre os quais o Município ... (cfr. documento nº ...... junto aos autos com a petição inicial);
2. Em 26/10/2001, entre a [SCom01...] e o réu, foi outorgado um contrato de fornecimento de água, destinada ao abastecimento público, denominado “Contrato de Fornecimento entre o Município ... e a [SCom01...], S.A.” (cfr. documento nº ...... junto com a petição inicial);
3. Em 31/01/2011, a autora emitiu ao réu a nota de débito nº ...49, com a descrição “Valores mínimos garantidos nos termos da cláusula 16º do Contrato de Concessão e da cláusula 3ª dos respetivos contratos de fornecimento de água e de recolha de efluentes”, no valor global de 405.906,86 €, e com data de vencimento em 01/04/2011 (cfr. documento nº ... junto com a petição inicial);
4. Em 12/11/2012, réu e autora, respetivamente, nas qualidades de primeiro e segunda contraentes, subscreveram documento denominado “ACORDO DE TRANSACÇÃO”, do qual consta, entre o mais, o seguinte (cfr. documento nº ... junto com a petição inicial):
“(…)
B) Considerando que a Segunda Contraente reclama créditos não regularizados relativos aos serviços prestados ao Primeiro Contraente no montante de € 1.915.343,27 (Um milhão novecentos e quinze mil trezentos e quarenta e três euros e vinte e sete cêntimos) conforme ANEXO I, ao presente ACORDO, e que o Primeiro Contraente reconhece apenas o valor de € 922.855,30 (Novecentos e vinte e dois mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e trinta cêntimos) conforme ANEXO II, e ANEXO III, fazendo parte ambos do presente ACORDO;
É celebrado nos termos e para os efeitos dos artigos 1248º a 1250º do Código Civil, o acordo de transação constante das cláusulas seguintes e anexos nele mencionados.
Cláusula 1ª
Relativamente aos créditos reclamados pela Segunda Contraente e identificados no ANEXO I ao presente ACORDO, do qual faz parte integrante, perfazendo a quantia de 1.915.343,27 (Um milhão novecentos e quinze mil trezentos e quarenta e três euros e vinte e sete cêntimos), o Primeiro Contraente reconhece a obrigação de pagamento de faturas e notas de débito identificadas no ANEXO II e ANEXO III, ao presente ACORDO, do qual faz parte integrante, perfazendo a quantia de € 922.855,30 (Novecentos e vinte e dois mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e trinta cêntimos), relativas aos serviços prestados de abastecimento de água para consumo público e de saneamento de águas residuais, valor que se encontra vencido na data da celebração do presente Acordo.
Cláusula 2ª
O Primeiro Contraente compromete-se a realizar o pagamento, na parte reconhecida, das faturas emitidas pela Segunda Contraente no ano de 2012, e anos subsequentes, relativas ao serviço regularmente prestado de abastecimento de água para consumo humano e de saneamento de águas residuais, nos prazos estabelecidos no contrato de fornecimento de água e de recolha de efluentes, ou, na sua ausência, no prazo de 60 (sessenta) dias, após a sua emissão.
(…)
Cláusula 4ª
Sem prejuízo da regularização constante da cláusula anterior, o Primeiro Contraente compromete-se também a regularizar os seguintes valores:
I) O valor de € 542.963,74 (Quinhentos e quarenta e dois mil novecentos e sessenta e três euros e setenta e quatro cêntimos), constante do Anexo III, ao presente Acordo, incluído no PAEL (Plano de Apoio à Economia Local) da seguinte forma:
a) Pagamento da totalidade do valor a regularizar até 31 de Dezembro de 2012.
b) Caso o PAEL (Plano de Apoio à Economia Local), que contempla os valores constantes do Anexo III, ao presente Acordo, não venha a ser aprovado, os valores nele constantes serão acrescidos às prestações vincendas constantes do Anexo IV, ao presente Acordo, e passarão a constar do plano de pagamentos constante do Anexo V, ao presente Acordo.
Cláusula 5ª
Embora o Primeiro Contraente se tenha comprometido no âmbito do PAEL (Plano de Apoio à Economia Local) ao pagamento até ao dia 31 de dezembro/2012, da nota de débito nº ...49, no valor de €406.906,86, constante dos ANEXOS I e III ao presente Acordo, continua este a reclamar o valor da referida Nota de Débito, até à resolução dos diferendos existentes entre os Contraentes de acordo com o estipulado na Cláusula 9ª do presente Acordo.
(…)
Cláusula 9ª
No prazo máximo de 12 (doze) meses a contar da data da celebração do presente Acordo, as partes comprometem-se a encetar diligências com vista à resolução dos diferendos existentes relativamente à dívida não reconhecida pelos Contraentes, tal como vertido na alínea B) dos considerandos, e nas cláusulas 1ª e 2ª do presente Acordo.
(…) ANEXO I – Valores por regularizar
(…)
(Imagem no original da sentença)
(…) ANEXO III – Créditos reclamados pela [SCom01...], S.A., reconhecidos pelo Município ... e a regularizar nos termos do Nº 1 da cláusula 4ª
(imagem no original da sentença)
(…) ”;
5. A presente ação foi apresentada no dia 14/01/2014 no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela (cfr. fls. 1-7);
6. O réu foi citado para os presentes autos por ofício datado de 06/02/2014, rececionado em 10/02/2014 (cfr. fls. 174-175 e 176);
Com interesse para a presente decisão, mais se provou que:
7. Entre as mesmas partes, corre termos neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, a ação nº 277/13.1BEMDL, na qual a autora reclama do réu o pagamento da quantia global de 859.611,58 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, referente a faturas e notas de crédito vencidas entre 29/08/2011 e 29/08/2012, devidas pelo alegado abastecimento de água e saneamento e a título de valores mínimos garantidos, no âmbito dos contratos melhor identificados nos pontos 1 e 2 deste probatório (cfr. documento nº ... junto com a contestação; por consulta ao processo eletrónico no SITAF).
*
MOTIVAÇÃO
A convicção do Tribunal fundou-se no posicionamento das partes, assumido nos respetivos articulados, e na inexistência de desacordo ou confronto factual quanto à matéria assente, bem como, na análise crítica dos documentos juntos aos autos, não impugnados, conforme indicado em cada um dos pontos do probatório.»
**
III.B. DE DIREITO

3.2. A presente apelação tem por objeto o despacho saneador proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância que julgou procedente a exceção de prescrição relativamente à quantia reclamada pela Autora, ora Apelante, a que se reporta a nota de débito nº ...49, e respetivos juros de mora, vencidos e vincendos, e que absolveu o réu do pedido, nesta parte.
Na perspetiva da Apelante, a decisão recorrida teve por base um manifesto erro na interpretação do documento correspondente ao Acordo de Transação celebrado em 12/11/2012, na parte em que conclui que apesar de a nota de débito n.º ...49 se encontrar relacionada no Anexo III do acordo, a mesma encontra-se excecionada do montante reconhecido como sendo devido pelo Réu à autora, nos termos da cláusula 4.ª a 5.ª do acordo, tendo o reconhecimento ficado dependente da resolução dos diferendos entre os contraentes., conforme estipulado na Cláusula 9.º do citado Acordo.
A Apelante impetra à decisão recorrida erro de julgamento sobre a matéria de facto e erros de julgamento de direito.
Vejamos se lhe assiste razão.
*
b.1.do erro de julgamento sobre a matéria de facto
3.3.A respeito do erro de julgamento sobre a matéria de facto, precise-se que é jurisprudência pacífica que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.
Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» - cfr. Ac. do TRC, de 24/04/2012, processo nº ...0.
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente»- cfr- Ac. do TRC, de 27/05/2014,processo nº 1024/12.
Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» - cfr. Ac. do TRC, de 24/04/2012, processo nº ...0. No mesmo sentido, cfr. Ac. do TRC, de 14/01/2014, processo nº ...0.
3.4.Tendo presente a referida premissa, há ainda que ter em consideração que da fundamentação da sentença apenas devem constar os factos julgados provados e não provados. E os “factos” são acontecimentos externos ou internos suscetíveis de serem percecionados ou captados pelos sentidos.
Segundo Manuel Andrade, os “factos” que podem ser objeto de prova tanto podem ser: 1) estados ou acontecimentos que, direta ou indiretamente, sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis, como os factos acessórios, que tocam apenas à admissibilidade dum meio probatório (ex: à capacidade duma testemunha) ou à sua autoridade (exs.: autenticidade dum documento, a credibilidade de uma testemunha); 2) como podem ser factos do mundo exterior (factos externos: uma convenção oral ou escrita, um choque de viaturas, a morte duma pessoa, etc.), como os da vida psíquica (factos internos: o dolo, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção, etc.); 3) como podem ser os factos reais (segundo a respetiva afirmação da parte) como os chamados factos hipotéticos (lucros cessantes, vontade hipotética ou conjetural das partes, para efeitos, v.g., de redução ou conversão de negócios jurídicos, etc.); como factos nus e crus (se verdadeiramente os há) como os juízos de facto (a impossibilidade de se produzir um certo facto, etc.)- cfr. Manuel Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 194.
3.5.Tal significa que não deve ser levado aos factos provados ou não provados matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos. Quando tal ocorra, deve essa mesma matéria ser suprimida do elenco dos factos assentes.
Não obstante, importa ter em atenção que, como ensina Anselmo de Castro - in Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, página 270 -, “…a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa: o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes.
Em rigor, “torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.
Aliás, não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas”- cfr. salienta no Acórdão do STJ, de 13/11/2007, in www.dgsi.pt.
Daí que aceitemos, que os factos conclusivos possam ser ainda matéria de facto quando constituam uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum.
3.6.No caso em apreço, a Apelante pretende que seja aditado aos factos assentes, a seguinte matéria, que alega estar provada através do documento n.º... junto com a p.i, a saber:
“Autora e Réu celebraram, em 12/11/2012, um Acordo de Transação, no qual o Réu reconheceu como devido, nos termos do considerando B) e do Anexo III do referido Acordo, e se comprometeu a pagar, nos termos das Cláusulas n.ºs 4.ª, 5ª e 9.ª do mesmo, o montante titulado na nota de débito n.º ...49, concretamente o valor de € 406.906,86.”.
O ... junto à p.i. é o Acordo de Transação celebrado entre a Autora e o Réu, em 12/11/2012.
Ora, conforme se retira do elenco dos factos provados que consta da fundamentação de facto da decisão recorrida, o Tribunal a quo deu como provado que em 12/11/2011 foi celebrado entre a Autora e o Réu o Acordo de Transação materializado no referido documento, e bem assim, o que as partes acordaram, ou seja, o seu clausulado. Trata-se da matéria de facto e de factos essenciais.
Já quanto à matéria cujo aditamento ao elenco dos factos provados a Apelante pretende, á luz das considerações que antecedem, é de fácil apreensão que a mesma representa uma verdadeira valoração jurídica de factos, correspondendo, grosso modo, ao thema decidendum, razão pela qual não pode ser levada à fundamentação de facto da decisão recorrida.
Trata-se, efetivamente, de matéria que se reconduz a uma conclusão jurídica, a qual só por si encerra um juízo valorativo, qual seja, a conclusão de acordo com a qual houve a assunção pelo Réu da obrigação de pagamento do montante titulado pela referida nota de débito, ou seja, essa matéria, em bom rigor, só por si, decide a questão relativa ao thema decidendum.
Como se afirma no Acórdão do TRE, de 28/06/2018, proferido no processo n.º 170/16.6T8MMN.E1, «Sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objeto da ação, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado».
Devendo a decisão sobre a matéria de facto versar sobre factos, e não sobre afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito, a pretensão da Apelante tem de improceder.
Termos em que se indefere o requerido aditamento.
b.2. do erro de julgamento em matéria de direito por o Tribunal a quo não ter qualificado como novação a inclusão do valor da nota de débito, no acordo celebrado entre as partes, em 12/11/2012.
3.7.A Autora, aqui Apelante, na ação que moveu contra o Réu, ora Apelado, pediu, além do mais, a sua condenação no pagamento da nota de débito n.º ...49, emitida em 31/01/2011, que alegadamente se encontrava em dívida pelo montante global faturado de € 406.906,86, relativo a valores mínimos garantidos do ano de 2010, nos termos da cláusula 16.ª do Contrato de Concessão e da cláusula 3.ª dos respetivos contratos de fornecimento de água e de recolha de efluentes (Cfr. documento n.º ..., junto à PI). Mais alegou, nos artigos 7.º a 11.º da p.i. apresentada, que tal montante foi abrangido por um Acordo de Transação, celebrado entre as partes no dia 12/11/2012 (Cfr. documento n.º ..., junto à PI a fls. 76 a 86 do SITAF), tendo o Réu reconhecido, nos termos do considerando B) e Anexo III do referido Acordo, e se comprometido, nos termos da cláusula 5.ª e 9.ª do mesmo, a pagar aquela nota de débito.
O Tribunal a quo, no despacho saneador proferido em 11/08/2022, absolveu o Réu do pedido de condenação no pagamento da quantia que se reporta aquela a nota de débito n.º ...49, com fundamento na prescrição da dívida.
3.8.A Apelante discorda da decisão proferida, por entender que no Anexo III do Acordo de Transação celebrado, consta expressamente a nota de débito n.º ...49, no valor total de € 406.906,86, a qual se tem de concluir que integra o valor global de € 922.855,30, que o Recorrido expressamente reconheceu como devido, nos termos do considerando B) do referido Acordo.
Sustenta que consta de forma expressa da cláusula 5.ª do acordo de transação que o Município se compromete a pagar o valor correspondente à nota de débito até 31/12/2012, sem prejuízo da resolução dos diferendos existentes entre as partes, de acordo com a cláusula 9.ª.
Afirma que o Tribunal, ao decidir como decidiu, não considerou a existência da novação objetiva da dívida (artigos 857.º e seguintes do Código Civil), segundo o qual o Réu contraiu uma nova obrigação em substituição de uma antiga que, por sua vez, se extinguiu.
Na sua perspetiva, considerando que à data da celebração do Acordo- 12/11/2012- o crédito não tinha prescrito uma vez que a data de emissão da nota de débito é 31/01/2011 e considerando que a ação foi instaurada em 14/01/2014, tendo a citação ocorrido em 06/02/2014, só pode concluir-se que o crédito não prescreveu, uma vez que, com o referido Acordo de Transação se deu a novação da obrigação. Como tal, em 12/11/2012 iniciou-se a contagem do prazo prescricional referente à obrigação que se novou .Logo, essa obrigação apenas prescreveria volvidos 2 anos, muito depois do momento em que o Réu foi citado para a ação.
3.9.O Apelado, por seu turno, contrapõe que essa dívida não foi incluída na previsão do acordo celebrado, pelo que desde logo não se preenche o previsto nos artigos 859.º e 217.º, n.º 1, ambos do Código Civil, onde se estabelece que para que tenha ocorrido uma situação e novação para efeitos do previsto no artigo 857.º do mesmo Código haverá que ocorrer uma manifestação expressa da vontade de a realizar, no sentido em que credor e devedor devem declarar, de forma inequívoca, a finalidade da novação da dívida por meio idóneo. Como tal, assevera que o tribunal a quo nunca poderia ter reconhecido a existência de uma situação de novação objetiva para efeito do disposto no artigo 857.º do Código Civil sem a existência de uma declaração de vontades inequívoca e idónea nesse sentido, não podendo presumir, inferir ou considerar a existência de uma situação de novação objetiva.
Que dizer?
4. Começando pelo conceito de novação, a mesma representa uma das causas extintivas das obrigações, que não se traduz no seu cumprimento- cfr., Antunes Varela, in “Direito das Obrigações em Geral, Vol. II, 6ª. ed., Almedina, pág. 227
A novação encontra-se prevista nos artigos 857.º a 862.º do Cód. Civil, e pode ser objetiva ou subjetiva.
4.1.Nos termos do artigo 857.º do Cód. Civil “Dá-se a novação objetiva quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga.” Ou seja, a novação diz-se objetiva sempre que se substitui a obrigação, mantendo-se os sujeitos , isto é, ela ocorre sempre que através dela se opera a substituição de uma obrigação emergente de um certo contrato, mantendo-se, todavia, os sujeitos.
No sentido de precisarem o conceito modalidade de novação objetiva, escrevem os profs. Pires de Lima e Antunes Varela- in “Código Civil, Anotado, Vol. II, 2ª. ed. revisa e actualizada, Coimbra Editora, págs. 129/130- que para que haja novação objetiva (ou mesma subjetiva) “é necessário que uma obrigação venha substituir a antiga, e só é nova a obrigação quando haja uma alteração substancial nos seus elementos constitutivos. Não basta, para isso, que se altere, por ex., as datas do cumprimento, se aumente ou reduza a taxa e juros, se majore ou reduza o preço ou se dê por finda uma garantia, etc. É preciso que seja outra obrigação e não seja apenas modificada ou alterada a obrigação existente (cfr. Vaz Serra, Novação, nº. 3; Bol. nº. 72) (…)
Exemplo clássico da novação objetiva é do da substituição da causa debendi, embora se mantenha a mesma prestação. (…)
A diferença entre a novação e simples alteração tem muito de subjetivo, não podendo deixar de depender em larga medida da vontade das partes, que podem querer ou não querer extinguir a obrigação constituída em casos objetivamente iguais. «O que importa saber, comenta Antunes Varela, (Obrigações em geral, 3ª. ed., II, pág. 199”, a propósito dos critérios subsidiários de Larenz e de Vaz Serra, é se as partes quiseram ou não, com a modificação operada, extinguir a obrigação, designadamente as suas garantias ou acessórios. (…)
A interpretação do regime jurídico não oferece, em regra, grandes dificuldades práticas, dada a necessidade de uma manifestação expressa de vontade para que haja novação (artº. 859º). »
O Prof. Antunes Varela - in “Ob. cit., pág. 232-”, na busca de um critério de distinção entre o conceito de novação e o de modificação ou alteração da obrigação discorre a dado passo que (…) “mais firme e certeiro é o critério que procura diretamente o aliquid novi da vontade dos contraentes, como elemento decisivo da qualificação. O que importa é saber se as partes quiseram ou não, com a modificação operada, extinguir a obrigação, designadamente as suas garantias ou acessórios. É para esse alvo prático (animus novandi) que o julgador deve apontar diretamente, com os instrumentos facultados pela interpretação e integração da declaração negocial. (…).”
4.2.Nos termos do artigo 858.º do mesmo diploma “A novação por substituição do credor dá-se quando um novo credor é substituído ao antigo, vinculando-se o devedor para com ele por uma nova obrigação; e a novação por substituição do devedor, quando um novo devedor, contraindo nova obrigação, é substituído ao antigo, que é exonerado pelo credor.” (sublinhado nosso). Ou seja, a a novação dir-se-á subjetiva se a obrigação passar a ser outra, por substituição do credor ou do devedor.
4.3.Outrossim, no artigo 859º do Cód. Civil prescreve-se que “A vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada.” (sublinhado e negrito nossos).
4.4.Resulta do disposto nas referidas normas que a novação “consiste na convenção pela qual as partes extinguem uma obrigação mediante a criação de uma nova obrigação em lugar dela”-cfr. Antunes Varela, in ob. cit., pág. 228”-, ou que consiste “na extinção contratual de uma obrigação em virtude da constituição de uma nova obrigação que vem ocupar o lugar da primeira” – cfr. Mário Júlio Almeida Costa, in “Direito das Obrigações, 10ª ed. revista e reelaborada, Almedina, pág. 1111.
Efetivamente, assim deve ser, pois que, como ressalta do plasmado no acima transcrito artº. 859º, quer se trate de uma novação objetiva, quer se trate de uma novação subjetiva, exige a lei que a substituição das obrigações (da antiga pela nova) se exteriorize através de uma manifestação expressa das partes nesse sentido.
4.5.Na verdade, e como resulta do estatuído em tal normativo, o “animus novandi” tem de ser exteriorizado pelas partes de forma expressa, não podendo ser presumido e nem extraído, tacitamente, de outras declarações contratuais- cfr., entre outros, os profs. Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações, Vol. II, 10ª ed., pág. 199-200” e Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil, vol. IX, 3ª ed., pág. 1122”.
A razão de ser dessa exigência legal radica na perigosidade que é suscetível de envolver a novação, tanto para o credor, como para o devedor. É que, salvo estipulação em contrário, a novação priva o primeiro, nos termos do artº. 861º, das garantias de que beneficiava, e ao segundo retira-lhe, de acordo com o artº. 862º, os meios de defesa que podia opor à obrigação antiga. “Com a novação, tudo recomeça sem passado. A exigência do animus expresso protege ambas as partes.
4.6.E é expressa a declaração de vontade no sentido da novação, ou seja, da extinção da obrigação antiga, através da constituição de uma nova obrigação quando é “feita por palavas, escrito ou outro meio direto de manifestação de vontade.”- cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “ob. cit., pág. 131” é E não se verificando, em qualquer das aludidas modalidades, essa declaração ou manifestação expressa de vontade de que se pretende novar (animus novandi), como concluem aquele últimos Mestres (in “Ob. e pág. cits.”), a obrigação primitiva não se extingue, sendo apenas modificado ou transmitido o crédito ou a dívida para terceiro.”
Donde resulta, pois, que a novação – que tanto pode se objetiva, como subjetiva - pressupõe a vontade das partes de extinguirem uma obrigação primitiva, através da criação de uma nova obrigação, o que deve ser feito através de uma expressa manifestação/declaração de vontade das partes nesse sentido (animus novandi).
4.7.Extinta, por novação, a obrigação antiga, tal opera consequentemente, salvo declaração de reserva expressa em sentido contrário (quer pelo devedor originário, quer pelo terceiro que haja prestado garantia àquela), também a extinção das garantias que asseguravam o cumprimento daquela obrigação (artº. 861º nºs. 1 e 2).
Na verdade, a extinta a obrigação antiga, extintas devem ficar também as obrigações acessórias e, portanto, as garantias de crédito, pessoais ou reais, quer tenham sido prestadas pelo devedor originário, quer por terceiro, salvo declaração expressa em sentido contrário por estes.
No sentido da essência daquilo que se deixou expendido, vide ainda, entre outros, os Acs. do STJ de 28/06/2018, proc. 2198/12.6TBPBL-C1.S1; de 11/05/1995, proc. 086410; de 26/05/1993, proc. 083333, e de 19/12/1989, proc. 079379, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
4.8.Feita esta abordagem ao instituto da novação, e tendo presentes as considerações de cariz teórico-técnicas que se deixaram expendidas, importa agora aferir se com a celebração do Acordo de Transação em 12/11/2012, se deu a novação da obrigação relativa à nota de débito n.º ...49, como advoga a Apelante.
4.9.Como resulta do probatório, a nota de débito em causa nos presentes autos refere-se à cobrança, pela Autora, ora Apelante, de quantia referente a “Valores mínimos garantidos nos termos da cláusula 16º do Contrato de Concessão e da cláusula 3ª dos respetivos contratos de fornecimento de água e de recolha de efluentes” (cfr. facto provado nº 3). Está, portanto, em causa a cobrança de quantia que a autora faturou no âmbito do contrato de concessão, e dos contratos de fornecimento de água e recolha de efluentes que celebrou com o Município ..., nos termos do Decreto-Lei nº 270- A/2001, de 06/10, que prevê a celebração de contratos de fornecimento entre a concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento de Trás-os-Montes e Alto Douro (à qual sucedeu, a ora autora) e os municípios utilizadores, no caso, o Município ... (cfr. factos provados nº 1 e 2 ). O litígio dos autos surge, assim, nesta parte, no âmbito das relações entre a concessionária, gestora de sistema multimunicipal de águas e resíduos, e o município, seu utilizador “em alta”.
5. Conforme se deu por provado, no dia 12 de novembro de 2012, a Autora e o Réu celebraram um Acordo de Transação, por via do qual o Réu reconheceu a obrigação de pagamento das faturas e notas de débito identificadas nos Anexos II e III do referido Acordo, no total de €922.855,30 relativas aos serviços de abastecimento de água e saneamento de águas residuais.
5.1. Resulta provado que a nota de débito n.º ...49, no valor de €405.906,66 encontra-se relacionada no Anexo III do Acordo de Transação, contudo, como bem ajuizou a 1.ª Instância, a mesma encontra-se excecionada do montante reconhecido como sendo devido pelo Réu á Autora, tendo em conta o disposto na Cláusula 4.ª e 5.ª do Acordo de Transação, e o consignado na Cláusula 9.ª do referido Acordo.
Vejamos.
5.2. Antes de mais, importa ter presente que o referido Acordo de Transação celebrado entre a Autora/Apelante e o Réu/Apelado constitui um negócio jurídico.
Na verdade, a transação é um contrato típico ou nominado através do qual as partes previnem (transação extrajudicial) ou terminam um litígio (transação judicial) mediante recíprocas concessões (n.º 1 do art.º 1248º do Cód.Civil), podendo essas concessões envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido (n.º 2 do art.º 1248º do Cód.Civil).
5.3.E sendo a transação um contrato, em que os contraentes, de acordo com a sua liberdade contratual (art.º 405º do Cód. Civil), definem os termos como pretendem solucionar, e solucionam, um determinado litígio existente entre eles ainda não concretizado em ação judicial (transação extrajudicial ou preventiva), ou já concretizado em pleito (transação judicial), a transação, seja judicial ou extrajudicial, opera efeitos substantivos, ao resolver o conflito, definindo os direitos e as obrigações de cada um dos contraentes, nos precisos termos por eles acordados.
5.4.Enquanto contrato típico e nominado, a transação exige à sua válida celebração que se encontrem preenchidos todos os requisitos gerais impostos pela lei à válida celebração de qualquer negócio jurídico, nomeadamente, quanto aos sujeitos, à vontade e exteriorização desta e ao objeto negocial. Como tal, a transação encontra-se submetida aos requisitos gerais de validade dos negócios jurídicos fixados nos arts. 280º a 282º do Cód. Civil, às disposições sobre a conclusão daqueles (arts. 224º a 239º), às normas sobre a sua interpretação e integração (arts. 236º a 239º) e às que regem sobre a falta e vícios da vontade dos contratantes (arts. 240º a 257º do Cód. Civil).
5.5.Ora, sendo a transação um negócio jurídico como resulta das considerações que antecedem, a sua interpretação está sujeita às regras interpretativas do negócio jurídico, enquanto atividade destinada a determinar o significado juridicamente relevante do respetivo conteúdo declarativo.
5.6.Em matéria de interpretação do negócio jurídico, reza o artigo 236.º do Cód. Civil que:
«1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.»
5.7.Ao assim estatuir, é pacífico o entendimento segundo o qual o legislador consagrou, em sede de interpretação dos negócios jurídicos, a denominada doutrina da impressão do destinatário, de cariz objetivista, da qual decorre que, em homenagem aos princípios da proteção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, se dá prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário; não ao seu ponto de vista subjetivo, isto é, aquilo que o concreto declaratário realmente compreendeu em face da declaração negocial de que foi destinatário, mas na sua dimensão objetiva, ou seja, aquilo que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, depreenderia ou poderia depreender da declaração negocial de que foi destinatário-cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 223.
Dito por outras palavras, o princípio regra vigente em sede de interpretação das declarações de vontade é este: “(…) a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário lhe atribuiria; considera-se o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conhece efetivamente, mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável”
– cfr. Carlos Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 447.
Na mesma linha, Vaz Serra expende que: “… o declaratário não pode interpretar sem mais, a declaração pelo seu elemento literal, devendo ter em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou reconhecíveis por um declaratário normal, colocado na sua posição que possam esclarecê-lo sobre o que o declarante pretendeu significar. O declaratário deve procurar determinar o que o declarante quis significar com ela; nessa indagação não é obrigado a toda e qualquer diligência, mas à que teria um declaratário normal, colocado na posição concreta a que ele real declaratário se encontra, devendo ter, assim, em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis por um declaratário normal”- cfr. Vaz Serra, RLJ, ano 110º, pág. 351.
A declaração negocial deve valer com o seu sentido objetivo, o mesmo é dizer, com o sentido que lhe seria dado por um declaratário medianamente inteligente, diligente e sagaz, quando colocado na posição concreta do declaratário real, em face das circunstâncias que este efetivamente conhecia e das outras que lhe eram cognoscíveis.
5.8.Daí que, na busca do sentido interpretativo a dar à declaração negocial se imponha que o intérprete se socorra de vários elementos essenciais para fixar o sentido interpretativo a dar às declarações negociais dirigidas ao declaratário, como sejam: "a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a celebração ou que são contemporâneas do negócio, bem como as negociações respetivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos" – cfr.Luís Carvalho Fernandes, “Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica”, págs. 416 e 417.
Note-se que o identificado princípio regra apenas é válido quando o declaratário não conheça a vontade real do declarante. É que, conhecendo o declaratário a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração negocial emitida (n.º 2 do art. 236º do CC), uma vez que, nesse caso, não existem quaisquer interesses legítimos por parte do declaratário que se imponham acautelar, antes as exigências da boa fé reclamam que a declaração negocial valha de acordo com a vontade real do declarante, por ser conhecida do declaratário.

Nos casos em que essa vontade real do declarante não é conhecida do declaratário e, por conseguinte, se imponha recorrer à doutrina da impressão do declaratário, seguindo os parâmetros interpretativos que acima se enunciaram, caso persista a situação de dúvida sobre o sentido interpretativo a dar à declaração negocial, deverá prevalecer, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (art. 237º do CC).
5.9.Acresce que, nos negócios formais, como é o caso, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º, nº 1 do CC), podendo, no entanto, esse sentido valer se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuseram a essa validade (n.º 2 daquele art. 238º).
6.Dito isto, revertendo ao caso dos autos, a interpretação que um declaratário normal colocado na posição do declaratário real retira da leitura conjugada das Cláusulas 4.ª, 5.ª e 9.º do Contrato de Transação, foi aquela que foi extraída pelo Tribunal a quo.
6.1.No referido Acordo de Transação, depois de na Cláusula 4.ª se consignar que caso o Plano de Apoio à Economia Local fosse aprovado, os valores relacionados no Anexo III daquele contrato seriam acrescidos às prestações vincendas constantes do respetivo Anexo IV, na Cláusula 5.ª do mesmo acordo refere-se expressamente que: “Embora o Primeiro Contraente se tenha comprometido no âmbito do PAEL (Plano de Apoio à Economia Local) ao pagamento até ao dia 31 de dezembro/2012, da nota de débito nº ...49, no valor de €406.906,86, constante dos ANEXOS I e III ao presente Acordo, continua este a reclamar o valor da referida Nota de Débito, até à resolução dos diferendos existentes entre os Contraentes de acordo com o estipulado na Cláusula 9ª do presente Acordo.
(…)»
6.2.Resulta do teor literal da Cláusula 5.ª que o Réu não reconheceu a dívida a que se refere a nota de débito n.º ...49, uma vez que, em relação a esta nota de débito se faz constar dessa estipulação contratual que «continua este a reclamar o valor da referida Nota de Débito, até à resolução dos diferendos existentes entre os Contraentes de acordo com o estipulado na Cláusula 9ª do presente Acordo».
6.3.Por sua vez na Cláusula 9.ª estipulou-se que “ No prazo máximo de 12 (doze) meses a contar da data da celebração do presente Acordo, as partes comprometem-se a encetar diligências com vista à resolução dos diferendos existentes relativamente à dívida não reconhecida pelos Contraentes, tal como vertido na alínea B) dos considerandos, e nas cláusulas 1ª e 2ª do presente Acordo.
(…). »
Ou seja, na Cláusula 9.ª reconhece-se expressamente que subsistem “diferendos existentes relativamente à dívida não reconhecida pelos Contraentes”, que as partes tentarão resolver no prazo máximo de 12 meses.
6.4.Ora, a interpretação objetiva a retirar das cláusulas 4.ª e 5.ª do dito Acordo de Transação, ou seja, a interpretação que um declaratário normal retiraria, de acordo com a teoria da impressão do destinatário, leva-nos à conclusão de que pese embora a ... se encontre relacionada no Anexo III do Acordo de Transação, a mesma encontra-se excecionada do montante reconhecido como sendo devido pelo Apelado à Apelante. Acresce ainda que nos termos do disposto na Cláusula 9.ª do Acordo de Transação se reconhece que subsistem “diferendos existentes relativamente à dívida não reconhecida pelos Contraentes” ( sublinhado nosso)., o que conduz, em termos palmares, ao resultado interpretativo defendido pelo Réu/Apelado e acolhido pela decisão recorrida.
6.5.Como tal, não se pode aquiescer com a Apelante quando pretende que as partes plasmaram no clausulado do contrato a substituição de uma obrigação, por uma nova, sujeita a condições distintas da anterior, inclusive ao nível dos prazos de vencimento, tanto quanto é certo não resultar do Acordo de Transação que o Apelado reconheceu a obrigação de pagar a quantia titulada pela nota de débito n.º ...49, antes resultando que excecionou do reconhecimento a identificada nota de débito: o réu não se compromete a proceder ao respetivo pagamento até 31/12/2012.
Termos em que, sem necessidade de outras considerações, se tem o invocado fundamento de recurso como improcedente.
*
b.3. do erro de julgamento em matéria de direito decorrente de o Tribunal a quo não ter considerado a interrupção da prescrição dos créditos, que foram reconhecidos pelo Recorrido, no Acordo de Transação, violando o preceituado nos artigos 325.º e 326.º, n.º1 do Código Civil.
6.6.A Apelante considera que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento de direito ao julgar prescrita a dívida titulada pela nota de débito n.º ...49, por tal decisão violar o disposto nos artigos 325.º e 326.º, n.º1 do Cód. Civil.
Aduz que a decisão in crisis não tomou em consideração a interrupção da prescrição dos créditos que foram reconhecidos pelo Recorrido no Acordo de Transação celebrado em 12/11/2012, o qual não pode deixar de ser qualificado como reconhecimento expresso do direito de crédito da Recorrente, o que implica a interrupção da prescrição, inutilizando todo o tempo anteriormente decorrido, começando a correr novo prazo a partir daquele ato interruptivo- 12/11/2012-, nos termos do disposto no artigo 325.º e 326.º,n.º 1 do Cód. Civil.
Sustenta que dos termos do considerando B) e do Anexo III do referido Acordo, resulta que o Recorrido reconheceu expressamente e inequivocamente o direito de crédito da Recorrente ao montante titulado na nota de débito ...49, ainda que venha a sujeitar o seu pagamento “à resolução dos diferendos existentes entre os Contraentes”, de acordo com a cláusula 5.ª e 9.ª do mencionado Acordo, advogando que tais cláusulas não invalidam o reconhecimento daquela quantia.
Logo, conclui que por força do disposto nos artigos 325.º, n.º1 e 326.º, n.º1 do CC, o prazo de prescrição interrompeu-se com a outorga daquele Acordo, pelo que, aplicando o prazo de dois anos, preceituado nas bases da concessão (Base XXIX e XXXI do DL 195/2009), aquando a citação do ora Recorrido, em 10/02/2014, tal quantia ainda não estaria prescrita, precisamente por ainda não ter decorrido tal prazo prescricional de dois anos.
6.7.Sem razão, como resulta, desde logo, do que tivemos ensejo de explanar a respeito da improcedência do erro de julgamento assacado ao despacho recorrido quanto à alegada desconsideração da novação da obrigação constante da nota de débito n.º ...49.
Mas ponderemos.
6.8. O Código Civil não dá uma definição legal sobre o que entender-se por prescrição, sequer por caducidade, limitando-se a regular esses institutos jurídicos e os respetivos efeitos.
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do artigo 298.º do Cód.Civil, a prescrição traduz-se no não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei de direitos que a lei não qualifique como indisponíveis ou declare dela isentos.
Com a previsão do instituto da prescrição é objetivo do legislador salvaguardar a segurança e a estabilidade das relações jurídicas, garantindo ao beneficiário da mesma a possibilidade de, transcorrido que seja um determinado tempo fixado na lei, recusar o cumprimento que lhe venha a ser exigido.
Quanto à prescrição, lê-se com utilidade, no n.º 1 do art. 304º do CC, que uma vez “completada a prescrição, tem o beneficiário dela a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito”, acrescentando o seu n.º 2 que “não pode, contudo, ser repetida a prestação realizada espontaneamente em cumprimento de uma obrigação prescrita, ainda que feita com ignorância da prescrição; este regime é aplicável a quaisquer formas de satisfação do direito prescrito, bem como ao reconhecimento ou à prestação de garantias”.
Como refere Pais de Vasconcelos- cfr. Teoria Geral do Direito Civil, 5.ª Edição, Almedina, p. 380- “a prescrição é um efeito jurídico da inércia prolongada do titular do direito no seu exercício, e traduz-se em o direito prescrito sofrer na sua eficácia um enfraquecimento consistente em a pessoa vinculada poder recusar o cumprimento ou a conduta a que esteja adstrita. Se o credor, ou o titular do direito, deixar de o exercer durante certo tempo, fixado na lei, o devedor, ou a pessoa vinculada, pode recusar o cumprimento, invocando a prescrição”.
6.9.Uma vez invocada, a prescrição constitui um facto impeditivo do direito invocado pelo credor daquele que a invoca.
Resulta do enunciado n.º 2 do art. 304º que a prescrição, que não opera ipso jure, mas que antes carece de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público (art. 303º do CC), não opera a extinção do direito prescrito, na medida em que caso o devedor cumpra com a obrigação prescrita, conhecendo a prescrição, tal cumprimento equivale, nos termos do n.º 2 do art. 302º do CC, à renuncia tácita à prescrição; caso o devedor cumpra com a obrigação prescrita, na ignorância de que esta se encontra prescrita, não há renúncia, mas a prestação não pode ser repetida, nos termos do art. 304º, n.º 2 do CC, porque o devedor e o credor se limitaram a cumprir e a receber, respetivamente, uma obrigação devida; e se o devedor cumprir a obrigação depois de ter oposto procedentemente a prescrição, aquele cumprimento representa o cumprimento de uma obrigação natural, resultando no entanto, do nº 1 desse art. 304º, que invocada, com êxito, a prescrição, a obrigação prescrita deixa de ser judicialmente exigível.
7.Decorre do que se acaba de dizer que, conforme é entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico, a prescrição não suprime nem extingue o direito prescrito mas limita-se a transformá-lo numa obrigação natural nisto se distinguindo, aliás, o instituto da prescrição do da caducidade, uma vez que nesta, o decurso do prazo de caducidade, extingue o direito.
A prescrição constitui uma exceção que permite ao devedor impedir o exercício do direito de crédito pelo credor- cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume II, 9.ª Edição.
O prazo ordinário de prescrição é de vinte anos (artigo 309.º do CC), daí resultando que se não houver disposição legal que sujeite especificamente o crédito a um prazo de prescrição diferente, a prescrição do mesmo só ocorre uma vez ultrapassado aquele prazo.

Todavia, no artigo 310.º do Cód. Civil estabelecem-se diversos casos em que o prazo de prescrição é mais curto.
Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, p. 280), “não se trata, nestes casos, de prescrições presuntivas, sujeitas ao regime especial estabelecido nos artigos 312º e seguintes, mas de prescrições de curto prazo, destinadas essencialmente a evitar que o credor retarde demasiado a exigência de créditos periodicamente renováveis, tornando excessivamente pesada a prestação a cargo do devedor”.
7.1.No caso em discussão, tal como ajuizou a 1.ª Instância, o prazo de prescrição aplicável é de dois anos. Isso mesmo decorre do DL n.º 162/96, de 04/09, republicado pelo DL nº 195/2009, de 20/08, que contém o regime jurídico da concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de recolha, tratamento e rejeição de efluentes, e aprova as Bases da Concessão. Com efeito, prevê-se no n.º3 da “Base XXIX”, sob a epígrafe “ Medição e fatura dos efluentes”, que “ Às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais bem como um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respectivas facturas.”
7.2.Da mesma forma, o DL nº 319/94, de 24/12, republicado pelo DL nº 195/2009, de 20/08, que regula o regime jurídico da concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público, e aprova as Bases da Concessão, estabelece no n.º3 da “ “Base XXXI”, que tem como epigrafe “ Medição e faturação da água fornecida “ que “ Às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais bem como um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respectivas faturas.”.
7.3.No caso , tendo o Réu a posição de Município utilizador, obviamente que será aplicável às suas dívidas o prazo de prescrição de dois anos, contados após a emissão das faturas, previsto no nº 3 das Bases XXIX e XXXI, acabadas de transcrever.
7.4.Assim sendo, tendo em conta que a nota de débito n.º ...49 foi emitida em 31/01/2011 (cfr. facto provado nº 3), o prazo de prescrição de dois anos completa-se em 31/01/2013.
7.5.Posto isto, como se refere na sentença recorrida « tratando-se de uma situação de prescrição extintiva (cfr. neste sentido, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30/06/2016, processo nº ...5, disponível para consulta em www.dgsi.pt), não pode esta deixar de estar submetida às regras da interrupção indicadas nos artigos 323º e seguintes do Código Civil (CC).»
7.6.Nos termos do n.º1 do artigo 323.º do Cód. Civil “ A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente”. E de acordo com o n.º2 desse preceito “ Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias”, sendo que, de acordo com o n.º 4 desse artigo “ É equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do ato àquele contra quem o direito pode ser exercido.”.
Ademais, dispõe o artigo 325º do Cód. Civil, sob a epígrafe “Reconhecimento” que:
1. A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efetuado perante o respetivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido.
2. O reconhecimento tácito só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam.”
Por seu turno, o artigo 326º do CC, prescreve, quanto aos efeitos da interrupção:
1. A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo, sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 3 do artigo seguinte.
2. A nova prescrição está sujeita ao prazo da prescrição primitiva, salvo o disposto no artigo 311º”. Por fim, quanto à duração da interrupção, estabelece o artigo 327º do CC que:
1. Se a interrupção resultar de citação, notificação ou ato equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo.
2. Quando, porém, se verifique a desistência ou a absolvição da instância, ou esta seja considerada deserta, ou fique sem efeito o compromisso arbitral, o novo prazo prescricional começa a correr logo após o ato interruptivo.
3. Se, por motivo processual não imputável ao titular do direito, o réu for absolvido da instância ou ficar sem efeito o compromisso arbitral, e o prazo da prescrição tiver entretanto terminado ou terminar nos dois meses imediatos ao trânsito em julgado da decisão ou da verificação do facto que torna ineficaz o compromisso, não se considera completada a prescrição antes de findarem estes dois meses.”.
7.7.Na situação em apreço, como antecedentemente se disse, e se reafirma, não se pode retirar do Acordo de Transação celebrado em 12 de novembro de 201 entre a Apelante e o Apelado, um qualquer reconhecimento de dívida, por parte do último, relativamente ao montante titulado pela nota de débito n.º ...49, e sendo assim, não se pode ter por inutilizado todo o tempo anteriormente decorrido, nem que começou a correr novo prazo a partir daquele momento ( da data da celebração do Acordo de Transação).
É que, como dissemos, e repetimos, não obstante a nota de débito nº ...49, no valor de €405.906,86 se encontrar relacionada no Anexo III do Acordo de Transação, a mesma encontra-se excecionada do montante reconhecido como sendo devido pelo Apelado à Apelante, nos termos do disposto nas respetivas Cláusulas 4ª e 5ª do mesmo acordo e ainda da Cláusula 9.ª do Acordo de Transação onde se reconhece expressamente que existem “diferendos existentes relativamente à dívida não reconhecida pelos Contraentes”, que as partes tentarão resolver.”.
7.8.E como se refere na decisão recorrida «[…] incumbe àquele a quem aproveita, o sujeito passivo, o respetivo ónus de alegação e prova, e: “(…) em contraponto, incumbe ao credor, no momento processual próprio, o ónus de alegação e prova de factos impeditivos daquele efeito, ou seja, para o que aqui releva, do facto interruptivo da prescrição, que inutiliza, para a prescrição, todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo, em regra idêntico ao prazo da prescrição primitiva (artº 326º do Código Civil), consistente no reconhecimento do direito por aquele contra quem o direito pode ser exercido. Como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal de 17.12.2019, Procº nº 325/15.4T8SCR.L1.S1., de acordo com os princípios da preclusão e da concentração da defesa, compete ao credor, no que toca à invocação da exceção de prescrição, alegar na fase processual própria, por regra a resposta à contestação, a existência de um reconhecimento do seu direito, nos termos do artigo 325º do Código Civil, sem o que não pode o tribunal levar em linha de conta a invocação ulterior de factos impeditivos da prescrição.” - cfr. artigo 342º, nº 2 do CC e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/04/2022, processo nº 1360/17.0T8LSB.L1.S1, 4ª Secção, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Ora, no caso sub iudice, a prova dos factos extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita, ou seja, compete à autora/credora provar que a interrupção da prescrição ocorreu, por reconhecimento do réu/devedor, alegando os factos concretos que permitam tirar essa conclusão.
Pese embora nada tenha sido dito a este respeito pela autora no iter processual em 1ª instância, sustenta a mesma, nas suas alegações de recurso, que o acordo de transacção celebrado entre as partes, e junto aos autos com a petição inicial, deve ser qualificado como reconhecimento expresso do seu direito de crédito, interrompendo o decurso do prazo de prescrição e inutilizando todo o tempo anteriormente decorrido, começando a correr novo prazo a partir daquele acto interruptivo.
Não podemos, porém, aderir à tese da autora.
De facto, compulsado o teor do acordo de transacção invocado, parcialmente transcrito sob o ponto 4 do probatório, dúvidas não podem subsistir de que o devedor não reconheceu o direito da autora ao pagamento da quantia titulada pela nota de débito nº ...49.
Na verdade, pese embora aquela nota de débito se encontre relacionada no Anexo III do acordo de transacção, a mesma encontra-se excepcionada do montante reconhecido como sendo devido pelo réu à autora, nos termos do disposto nas cláusulas 4ª e 5ª do mesmo acordo e, tal como declarado por ambas as partes, naquele acordo, o reconhecimento do direito da autora ficou dependente da resolução dos diferendos existentes entre os contraentes, continuando o réu “a reclamar o valor da referida Nota de Débito” (cfr. cláusula 5ª).
E, nenhuma alegação ou prova foi produzida nos autos, pela autora, da verificação da condição estipulada na indicada cláusula 5ª, isto é, da resolução dos diferendos existentes entre os contraentes.
Pelo contrário, como decorre do probatório, mantém-se pendente, pelo menos, mais uma acção entre as partes, em que se discute o pagamento das quantias peticionadas pela autora, no âmbito dos contratos de fornecimento de água e recolha de efluentes celebrados entre a [SCom01...] (à qual sucedeu, a ora autora) e o município réu, tal como vem alegado pelo réu na sua contestação (cfr. facto provado nº 7).
Ora, competindo, como vimos, à autora a prova de que o réu reconheceu o seu direito, não se mostra cumprido tal ónus probatório por tal reconhecimento não resultar, do acordo de transacção junto aos autos.
De facto, das cláusulas inscritas naquele acordo de transacção não resulta o reconhecimento, pelo réu, do direito da autora, em termos concretos, precisos, sem qualquer margem de ambiguidade, antes pelo contrário, tal reconhecimento é contrariado pela expressa exclusão de pagamento da nota de débito nº...49. Em conformidade, concluímos pela não verificação do facto interruptivo da prescrição invocado pela autora. »
7.9. Aquiescemos com a decisão proferida pela 1.ª Instância, que julgou corretamente ao decidir que por força da celebração do Acordo de Transação não ocorreu qualquer causa interruptiva da prescrição para efeitos do disposto no artigo 326.º do CC, na medida em que o Apelado apenas reconheceu, no mencionado Acordo de Transação de 12 de novembro de 2012, a existência e exigibilidade dos montantes titulados nas faturas identificadas nos Anexos II e III daquele Acordo, com expressa exceção da nota de débito n.º ...49.
8. Ora, não tendo havido reconhecimento da divida em causa, tendo presente que nos termos do disposto no artigo 323º, nº 1 do C.C. a prescrição se interrompe pela citação, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente, restava aferir se quando o Réu foi citado para a presente ação já tinha ou não decorrido o prazo de prescrição de dois anos aplicável à presente dívida, contados após a emissão das faturas, tal como previsto no nº 3 das Bases XXIX e XXXI, supra transcritas.
8.1. A este respeito, como bem julgou a 1.ª Instância, sendo inequívoco que a ação foi proposta em 14/01/2014 e que o Réu foi citado no dia 10/02/2014, considerando que a nota de débito nº ...49 foi emitida em 31/01/2011,forçoso é concluir que à data em que ocorreu o evento interruptivo- a citação do réu- ou seja, em 10/02/2014, já há muito se tinha completado o prazo de prescrição de 2 anos, não sendo sequer de equacionar a aplicação do disposto no artigo 323º, nº 2 do CC, por a própria ação já ter sido apresentada após o decurso do indicado prazo prescricional (cfr. factos provados nº 3, 5 e 6).
Assim sendo, a sentença recorrida não merece censura, improcedendo o invocado fundamento de recurso.
*
b.4. do erro de julgamento em matéria de direito decorrente de o Tribunal a quo não ter considerado que o prazo de prescrição era de 20 anos, violando disposto nos artigos 326.º, n.º2 e 311.º, n.º1 do C.Civil.
8.2.Por fim, nas conclusões que formula sob os pontos 23.º a 27.º, a Apelante sustenta que considerando que à data da celebração do Acordo de Transação junto aos presentes autos (ou seja, à data de 12/11/2012), o artigo 46.º do CPC (aprovado pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, na versão conferida pela Lei n.º 63/2011, de 14/12), classificava aquele Acordo de Transação outorgado entre as partes como título executivo, nos termos da alínea c) do referido normativo, daí decorre que nos do disposto no artigo 326.º/2 e 311.º/1 do CC, o prazo de prescrição sempre seria, inclusive, o prazo ordinário de 20 anos (nos termos do disposto no artigo 309.º). Assim, sempre seria manifestamente impossível, à data da citação do Recorrido, tal prazo ter-se esgotado, motivo pelo qual a quantia titulada na nota de débito ...49 não se encontra prescrita, tendo a decisão recorrida violado o também, o disposto nos artigos 326.º/2 e 311.º/1 do CC, existindo um claro erro de julgamento quanto à matéria de direito.
Que dizer?
8.3.O artigo 311.º, n.º1 do Cód. Civil dispõe que: “O direito para cuja prescrição, bem que só presuntiva, a lei estabelecer um prazo mais curto do que o prazo ordinário fica sujeito a este último, se sobrevier sentença passada em julgado que o reconheça, ou outro título executivo.
8.4.Decorre desta estatuição que o legislador veio prever uma maior proteção ao credor que, nos termos daquela sentença transitada em julgado ou de outro título executivo, possui o seu direito perfeitamente consolidado, o que é igualmente do conhecimento do devedor, pelo que a lei estabelece um prazo mais alargado para que exerça coativamente tal direito, independente do prazo a que estava inicialmente subordinado.

Explicitando a razão de ser do alargamento do prazo prescricional, salientou-se no Ac. STJ de 19.02.2004, proferido no processo 04A095, que:
A conversão do prazo de prescrição explica-se pela nova certeza e estabilidade do direito derivado da sentença, e porque o seu titular se sente mais à vontade para o não exercer com a prontidão com que o faria valer antes do reconhecimento judicial.
Ademais, deixa-se de verificar um dos fundamentos do instituto: penalizar a inércia do titular do direito- cfr. Neste sentido, vide Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, Anotação aos artigos 296º a 333º do Código Civil, Coimbra Editora, 2008, pág. 88.
Por outro lado, não é pressuposto da aplicabilidade deste regime jurídico, a existência de uma sentença de condenação, cabendo aplicá-lo mesmo relativamente a sentenças de mera declaração ou apreciação- neste sentido, cfr. Vaz Serra, Prescrição extintiva e caducidade, BMJ 106, pág. 139.
Porém, quando “a sentença ou o outro título se referir a prestações ainda não devidas, a prescrição continua a ser, em relação a elas, a de curto prazo” (art. 311º, n.º 2, do C. Civil).
A este propósito, cumpre igualmente trazer à colação a anotação a este preceito legal elaborada por
Pires de Lima e Antunes Varela- cfr Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 4ª edição, pág. 281- , designadamente ao considerarem que:
A sentença, ou outro título executivo, transforma a prescrição a curto prazo, mesmo que só presuntiva, numa prescrição normal, sujeita ao prazo de vinte anos (…) Para tanto é necessário que a sentença já tenha transitado em julgado.
Pode, porém, acontecer que haja condenação em prestações ainda não vencidas, como se se condena o devedor a pagar, para futuro, certa prestação alimentar. Em relação às prestações vincendas já não vale a regra do n.º 1.
(…)
É necessário, porém, distinguir entre as prestações ainda não devidas e as prestações que são já devidas, que constituem já objeto dum direito atual, embora só devam ser efetuadas no futuro.
8.5.Volvendo ao caso em apreço, damos aqui por reproduzidas todas as considerações que se efetuaram no sentido de que o Apelado, no mencionado Acordo de Transação de 12 de novembro de 2012, apenas reconheceu a existência e a exigibilidade dos montantes titulados nas faturas identificadas nos Anexos II e III daquele Acordo, mas com expressa exceção da nota de débito n.º ...49.

Nessa decorrência, estando a dívida resultante da nota de débito em causa expressamente excluída da aplicação do Acordo de Transação, nunca poderia o mesmo ter como efeito a aplicação do artigo 311.º do CC, com a consideração do prazo ordinário de 20 anos.
Termos em que improcede o invocado fundamento de recurso.
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IV-DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo do Norte, subsecção de Contratos Públicos, em negar provimento ao recurso interposto pela apelante e, em consequência, confirmam o despacho saneador recorrido.
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Custas pela Apelante (art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Porto, 20 de outubro de 2023

Helena Ribeiro
Antero Pires Salvador
Ricardo de Oliveira e Sousa