Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00821/20.8BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/28/2022
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO-DECISÃO SURPRESA- EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário:1-O princípio do contraditório é um princípio estruturante do Código de Processo Civil, com o qual se visa assegurar às partes um tratamento igual obstando a que o Tribunal emita decisões surpresa.

2-O princípio do contraditório, no plano das questões de direito, exige que antes da sentença, seja facultada às partes a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie, mas dependerá sempre da verificação de uma nova abordagem jurídica da questão, que não fosse perspetivada pelas partes, mesmo usando da diligência devida.

3-As decisões surpresa são apenas aquelas com que as partes sejam confrontadas, com sentido de novidade relativamente às questões que haviam suscitado, e que não poderiam prever ou antecipar face ao conjunto do sistema jurídico na parte aplicável, sendo que só quanto a estas a violação do princípio do contraditório do artigo 3º, nº 3 do CPC dá origem a uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 615º nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO

1.1. J., residente na Calçada (…), intentou a presente ação administrativa contra o FUNDO DE GARANTIA SALARIAL, com sede na Avenida (…), pedindo que a ação seja julgada procedente, e em consequência, que seja revogado o despacho de deferimento parcial, substituindo-o por outro que defira totalmente o pagamento dos montantes reclamados pelo A. ao R. até ao montante máximo legalmente permitido, incluindo a indemnização em virtude do despedimento ilícito.
Para tanto alega, em síntese, que foi admitido ao serviço da sociedade comercial “V., Lda.” em fevereiro de 2000 e exerceu funções até 26 de junho de 2019, data em que foi despedido sem que previamente tenha sido instaurado processo disciplinar, auferindo à data da cessação do contrato de trabalho, a retribuição base mensal de € 600,00, acrescida de € 3,20/dia referente a subsídio de alimentação;
Em 12/09/2019 requereu a insolvência da sua ex-entidade empregadora, a qual foi julgada procedente e reclamou aí os seus créditos laborais no valor global de € 15.702,24, os quais foram reconhecidos pelo Administrador de Insolvência e não foram objeto de impugnação;
Posteriormente, requereu o pagamento pelo Fundo de Garantia Salarial dos seus créditos laborais do qual constava, entre outros, o crédito no valor de € 11.600,00, a título de indemnização pela cessação ilícita do contrato de trabalho, mas a Entidade Demandada indeferiu tal pretensão, com os seguintes fundamentos:
“- Os créditos requeridos foram recalculados com base na informação constante no Sistema de Informação da Segurança Social (qualificação na EE insolvente de 01/03/2000 a 30/06/2019).
- Não foi assegurada a Indemnização por se tratar de despedimento com justa causa promovido pela entidade empregadora.
- Os proporcionais foram recalculados tendo em consideração a duração do contrato de trabalho.
- Parte dos créditos requeridos encontra-se vencida em data anterior ao período de referência, Ou seja, nos seis meses que antecedem a data da propositura da ação (Insolvência, Falência, Revitalização, ou Procedimento extrajudicial de recuperação de empresas) previsto no nº.4 do artigo 20 do Dec-Lei 59/2015, de 21 de abril.
- No que concerne à indemnização por justa causa de resolução do contrato por iniciativa do trabalhador, o nº 1 do artigo 396º Código do Trabalho determina que o mesmo tem direito a indemnização cujo montante não é quantificável por simples cálculo aritmético, variando entre 15 e 45 dias de retribuição base mais diuturnidades, havendo ainda que atender, nessa determinação, ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude do comportamento do empregador.
- Importa ademais ressaltar o nº 4 do artigo 394º do Código do Trabalho, que determina que a justa causa é apreciada nos termos do nº 3 do artigo 351º com as devidas adaptações, i.e., deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
Destarte, entende o Fundo de Garantia Salarial não assegurar a indemnização por justa causa, enquanto a obrigação não se tornar líquida, conforme determina o nº 3 do artigo 805.º do Código Civil, devendo o montante indemnizatório ser fixado judicialmente”;
Considera que tem direito a que lhe seja reconhecido e pago o valor referente à indemnização pela cessação ilícita do contrato de trabalho no valor de € 11.600,00, uma vez que tal crédito está reconhecido pelo Administrador de Insolvência, não foi impugnado e está inserido no plano de insolvência aprovado no referido processo.
1.2. Citada, a Entidade Demandada apresentou contestação, na qual pugnou pela total improcedência da ação, alegando, em síntese, que o ato impugnado obedeceu ao disposto no D.L. n.º 59/2015, de 21/04.
1.3. Proferiu-se despacho saneador tabelar, fixou-se o valor da causa em € 11.600,00 (onze mil e seiscentos euros), ordenou-se o desentranhamento do articulado que o Autor denominou de “Réplica” com fundamento na sua inadmissibilidade legal, por não terem sido deduzidas exceções na contestação, dispensou-se a produção de prova testemunhal, por desnecessária e, bem assim, a realização de audiência prévia, e conheceu-se do mérito da ação em saneador-sentença, sendo o respetivo segmento decisório do seguinte teor:
«Pelas razões e fundamentos expostos, julgo a presente ação administrativa parcialmente procedente e, em consequência, condeno a Entidade Demandada a praticar novo ato que reconheça como devido o crédito que consta do requerimento apresentado pelo Autor para pagamento de créditos emergentes de contrato de trabalho, respeitante à indemnização pela cessação ilícita do contrato de trabalho e, consequentemente, lhe pague a quantia de € 167,47, observando as deduções e retenções legais, se a elas houver lugar.
Condeno o Autor no pagamento das custas processuais, na proporção do respetivo decaimento, sem prejuízo da concessão do benefício do apoio judiciário de que beneficia.
Sem custas quanto à Entidade Demandada.
Registe e notifique
1.4. Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs o presente recurso de apelação, no qual apresenta as seguintes Conclusões:
«A. O FGS, na decisão impugnada, entendia apenas que não devia assegurar “a indemnização por justa causa, enquanto a obrigação não se tornar líquida, conforme determina o n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, devendo o montante indemnizatório ser, fixado judicialmente”.
B. Era apenas e só esta a questão em crise nos autos, mais nenhuma.
C. O A. entendia que a indemnização por despedimento ilícito no valor de 11.600,00€ se encontrava devidamente reconhecido e fixado judicialmente e por isso se encontrava líquida a obrigação, devendo ser paga pelo FGS até ao limite máximo fixado por lei.
D. A R. entendia por seu lado que a indemnização não se encontrava judicialmente fixada.
E. O Tribunal a quo pronunciou-se para lá do que lhe era pedido, fazendo recair a sua decisão sobre o montante máximo que o FGS estaria obrigado a suportar no caso concreto, tendo fixado esse montante em 3.600,00€, o que constitui nulidade da sentença por excesso de pronúncia, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 615.º, n.º1, alínea d) do CPC e artigo 1.º do CPTA.
F. Veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 16/02/2017, processo n.º 10126/13, disponível para consulta em www.dgsi.pt que: “Diz-se que há excesso de pronúncia quando o Tribunal conhece de questões de que não pode conhecer por utilizar um fundamento que excede a causa de pedir, ou quando vai além do elenco legal de conhecimento oficioso, ou, ainda, por conhecer em quantidade superior ou objecto diverso do pedido vazado na petição”.
G. A decisão recorrida constitui ainda decisão surpresa, que nunca foi sequer discutida nos presentes autos, nem sequer alegada pelo R./Recorrido, não sendo objecto da impugnação.
H. Da fundamentação da decisão do FGS resulta que este apenas não aceita o valor reclamado a título de indemnização pelo facto de entender que não está judicialmente reconhecido e não com fundamento no facto da quantia reclamada estar acima do limite legalmente estabelecido.
I. A sentença recorrida deve assim ser declarada nula por excesso de pronúncia nos termos e com os efeitos previstos no artigo 615.º, n.º1, alínea d) do CPC, aplicável por força do artigo 1.º do CPTA, devendo ser proferida nova sentença que se limite a conhecer somente da questão controvertida.
TERMOS EM QUE, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência ser declarada nula a sentença recorrida por excesso de pronúncia nos termos dos artigos 615.º, n.º1, alínea d) do CPC e artigo 1.º do CPTA. E, consequentemente, ser proferida nova sentença que se limite a conhecer da questão controvertida.»
1.5. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.6. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto e em que se pronunciou sobre a nulidade da sentença com fundamento em excesso de pronúncia, considerando não se verificar o invocado vício.
1.7. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146º, n.º 1 do CPTA, o Ministério Público não emitiu parecer.
1.8. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1 Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas enunciadas premissas, as questões que se encontram submetidas pela Apelante à apreciação deste TCAN resumem-se a saber se a sentença sob sindicância é nula, por excesso de pronúncia, por nela o tribunal a quo ter conhecido para além do que lhe era permitido, constituindo uma decisão surpresa, proferida sem que tivesse sido respeitado o princípio do contraditório.
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III- FUNDAMENTAÇÃO
A- DE FACTO
3.1. A 1.ª Instância deu como assentes os seguintes factos (não objeto de sindicância por parte da apelante, que limitou o seu recurso à interpretação e aplicação do direito, como resulta nomeadamente da falta de qualquer referência - e cumprimento - ao ónus de impugnação do julgamento da matéria de facto, previstos no art.º 640.º, nºs 1 e 2, al. a) do CPC):
«A) O Autor exerceu funções na sociedade comercial “V., Lda.” desde 01/03/2000 a 26/06/2019 e auferia, à data da cessação do contrato de trabalho, a retribuição base mensal de € 600,00 – cfr. fls. 39 e 40 do P.A.;
B) No dia 12/09/2019, o Autor deu entrada no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo de Comércio de Amarante, petição a requerer a insolvência da sociedade comercial “V., Lda.”, processo que correu termos sob o n.º 1284/19.6T8AMT – cfr. documento n.º 1 junto com a petição inicial e ainda https://www.citius.mj.pt/portal/consultas/consultascire.aspx;
E) No dia 18/10/2019, foi proferida sentença a decretar a insolvência da sociedade comercial “V., Lda.” – cfr. documento n.º 2 junto com a petição inicial;
F) O Autor apresentou reclamação de créditos no processo de insolvência no valor global de € 15.702,24, nos quais se inclui a quantia de € 11.600,00 a título de indemnização pela cessação ilícita do contrato de trabalho, os quais foram reconhecidos pelo Administrador de Insolvência - cfr. documentos n.ºs 3 e 4 juntos com a petição inicial;
G) No dia 23/03/2020 foi proferida sentença a homologar o plano de insolvência da sociedade comercial “V., Lda.” – cfr. documento n.º 6 junto com a petição inicial;
H) O Autor dirigiu à Entidade Demandada um requerimento para pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho, no valor global de € 15.702,24, nos quais se inclui a quantia de € 11.600,00 a título de indemnização pela cessação ilícita do contrato de trabalho – cfr. documento n.º 7 junto com a petição inicial;
I) O Presidente do Conselho de Gestão da Entidade Demandada deferiu parcialmente o requerimento referido na alínea antecedente, entre outros, com o seguinte fundamento:
“No que concerne à indemnização por justa causa de resolução do contrato por iniciativa do trabalhador, o nº 1 do artigo 396º Código do Trabalho determina que o mesmo tem direito a indemnização cujo montante não é quantificável por simples cálculo aritmético, variando entre 15 e 45 dias de retribuição base mais diuturnidades, havendo ainda que atender, nessa determinação, ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude do comportamento do empregador.
- Importa ademais ressaltar o nº 4 do artigo 394º do Código do Trabalho, que determina que a justa causa é apreciada nos termos do nº 3 do artigo 351º com as devidas adaptações, i.e., deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
Destarte, entende o Fundo de Garantia Salarial não assegurar a indemnização por justa causa, enquanto a obrigação não se tornar líquida, conforme determina o nº 3 do artigo 805.º do Código
Civil, devendo o montante indemnizatório ser fixado judicialmente” – facto admitido por acordo e fls. 232 a 236 do P.A.;
J) A decisão de deferimento parcial referida na alínea antecedente consubstanciou-se no reconhecimento e pagamento ao Autor da quantia ilíquida de € 3.432,43 – cfr. fls. 51 do P.A.
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Não se apuraram quaisquer outros factos com relevância para a decisão a proferir que
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III.B. DE DIREITO
b.1- Nulidade da sentença por excesso de pronúncia e por violação do princípio do contraditório (decisão surpresa).
3.2.O apelante imputa ao saneador-sentença o vício da nulidade, por excesso de pronúncia, com fundamento na circunstância de nela a 1ª Instância ter-se pronunciado para lá do que lhe era pedido, fazendo recair a sua decisão sobre o montante máximo que o Fundo de Garantia Salarial estaria obrigado a suportar no caso concreto, tendo fixado esse montante em 3.600,00€ , quando a única questão que estava em causa decidir na ação era a de saber se aquela entidade podia recusar o pagamento da indemnização devida pela cessação ilícita do contrato de trabalho, no valor de 11.600,00€, com fundamento em que essa indemnização não se encontrava judicialmente fixada, quando na perspetiva do autor a mesma se encontrava devidamente reconhecida e fixada judicialmente e por isso se encontrava líquida a obrigação.
Ademais, sustenta que a decisão recorrida constitui ainda decisão surpresa, que nunca foi sequer discutida nos presentes autos, nem sequer alegada pelo R./Recorrido, não sendo objeto da impugnação.
3.3.Em suma, o Apelante advoga que a única questão a decidir nos presentes autos era a de saber se a indemnização por si reclamada estava ou não devidamente fixada e liquidada, pelo que o Tribunal não poderia ter decidido sobre o montante máximo que o FGS estaria obrigado a suportar no caso concreto.
Vejamos.
3.4.É entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que as decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas causas distintas, obstando qualquer delas à sua eficácia ou validade: a) por se ter errado no julgamento dos factos e/ou do direito, sendo então a respetiva consequência a sua revogação; e b) como atos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e/ou estruturação, ou as que balizam o conteúdo e/ou os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do CPC Ac. STA. de 09/07/2014, Proc.00858/14, in base de dados da DGSI..
As causas determinativas de nulidade das decisões judiciais encontram-se taxativamente enunciadas no n.º 1 do art. 615º do CPC, e tal como decorre da análise das diversas alíneas deste preceito, reportam-se a vícios formais da sentença (despacho – n.º 3 do art. 613º -, ou acórdão – n.º 1 do art. 666º) em si mesma considerada, decorrentes de na sua elaboração e/ou estruturação não terem sido respeitadas as normas processuais que regulam essa sua elaboração e/ou estruturação e/ou as que balizam os limites da decisão nela proferida (o campo de cognição do tribunal fixado pelas partes e de que era lícito ao último conhecer oficiosamente não foi respeitado, ficando a decisão aquém ou indo além desse campo de cognição, em sede de fundamentos – causa de pedir - e/ou de pretensão - pedido), tratando-se, por isso, de defeitos de atividade ou de construção da própria decisão judicial em si mesma considerada, ou seja, reafirma-se, está-se na presença de vícios formais que afetam essa decisão de per se e/ou os limites à sombra dos quais é proferida.
Neste sentido pondera Abílio Neto que os vícios determinativos de nulidade da decisão judicial “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734..
Diferentes desses vícios são os erros de julgamento (error in judicando), os quais contendem com vícios em que incorre o tribunal em sede de julgamento da matéria de facto e/ou em sede de julgamento da matéria de direito, decorrentes de, respetivamente, o juiz ter incorrido numa distorção da realidade factual que julgou como provada e/ou não provada na sentença, acórdão ou despacho, em virtude da prova produzida impor julgamento de facto diverso do que realizou (error facti) e/ou por ter incorrido em erro na identificação das normas aplicáveis ao caso, na interpretação dessas mesmas normas jurídicas, e/ou na aplicação destas à facticidade que se quedou como provada e não provada no caso concreto (error juris).
Nos erros de julgamento assiste-se assim, ou a uma deficiente análise crítica da prova produzida e/ou a uma deficiente enunciação, interpretação e/ou aplicação das normas e institutos jurídicos aplicáveis aos factos provados e não provados, sendo que esses erros, por já não respeitarem a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença em si mesma considerada (vícios formais) ou aos limites à sombra dos quais aquela é proferida, não a inquinam de invalidade, mas sim de error in judicando Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI..
Entre as causas taxativas de nulidade da decisão judicial previstas no art. 615º, n.º 1, contam-se a omissão e o excesso de pronúncia (al. d)).
Trata-se de nulidades que se relacionam com o disposto no art. 608º, n.º 2 do CPC, que impõe ao juiz a obrigação de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e que lhe veda a possibilidade de conhecer questões não suscitadas pelas partes, exceto se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso pelo tribunal.
Com efeito, devendo o tribunal conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos pelas partes com fundamento em todas as causas de pedir por elas invocadas para ancorar esses pedidos e de todas as exceções e contra exceções invocadas pelas mesmas com vista a impedir, modificar ou extinguir o direito invocado pela sua contraparte e, bem assim de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou de exceção (desde que suscitada/arguida pelas partes, pelo que não integra nulidade da sentença a omissão de pronúncia quanto a exceção de conhecimento oficioso do tribunal, mas não arguida pelas partes e de que este não tomou conhecimento – o que já consubstancia erro de direito, posto que o tribunal errou ao não conhecer da exceção, apesar desta ser do seu conhecimento oficioso), cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade por omissão de pronúncia, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica diferentes da sentença, que as partes hajam invocado, uma vez que o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, n.º 3 do CPC) Neste sentido Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., págs. 142 e 143, onde pondera: “Esta nulidade está em correspondência direta com o 1º período da 2ª alínea do art. 660º. Impõe-se aí ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” e onde aponta como exemplo de nulidade por omissão de pronúncia, o seguinte caso retirado da prática judiciária: “Deduzidos embargos a posse judicial com o fundamente de posse baseada em usufruto, se o embargado alegar que este não podia produzir efeitos em relação a ele por não estar registado à data em que adquiriu o prédio e a sentença ou acórdão deixar de conhecer desta questão, verifica-se a nulidade (…). O embargado baseara a sua defesa na falta de registo do usufruto; pusera, portanto, ao tribunal esta questão de direito: se a falta de registo do usufruto tinha como consequência a ineficácia, quanto a ele, da posse do usufrutuário, o tribunal estava obrigado, pelo art. 660º, a apreciar e decidir esta questão; desde que a não decidiu, a sentença era nula”.
Ac. RC. de 22/07/2010, Proc. 202/08.1TBACN-B.C1, in base de dados da DGSI: “…O juiz deve, antes de tudo, tomar em consideração as conclusões expressas nos articulados, já que a função específica destes é a de fornecer a delimitação nítida da controvérsia. Mas não só; é necessário atender, também aos fundamentos em que essas conclusões assentam, ou, dito de outro modo, às razões e causas de pedir invocadas (…). Em última análise, questão será, pois, tudo o que respeite ao litígio existente entre as partes, no quadro, tanto do pedido e da causa de pedir, como no da defesa por exceção”..
Inversamente, o conhecimento de pedido, causa de pedir ou de exceção ou contra exceção não invocados pelas partes e que não era lícito ao tribunal conhecer oficiosamente, configura nulidade por excesso de pronúncia.
Enuncie-se que a nulidade da decisão por omissão ou por excesso de pronúncia é uma decorrência do princípio do dispositivo, uma vez que cabendo às partes instaurar a ação e, através do pedido, causa de pedir e da defesa, circunscreverem o thema decidendum Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 373 e 374., mas também do princípio do contraditório, o qual, na sua atual dimensão positiva, proíbe a prolação de decisões surpresa (art. 3º, n.º 3 do CPC), ao postergar a indefesa e ao reconhecer às partes o direito de conduzirem ativamente o processo e de contribuírem positivamente para a decisão a ser nele proferida, o conhecimento de questão não submetida pelas mesmas à apreciação e decisão do tribunal e que não seja do conhecimento oficioso (excesso de pronúncia), ou a não apreciação e decisão quanto a todas as questões que estas lhe submeteram e cujo conhecimento não tenha ficado prejudicado por decisão proferida pelo tribunal quanto a outra questão (omissão de pronúncia), consubstancia violação dos identificados princípios do dispositivo e do contraditório.
Note-se que “questões” não se confundem como “razões ou argumentos”, posto que, conforme já advertia Alberto dos Reis Alberto dos Reis, in ob. cit., 5º vol., págs. 55 e 143., “Uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões”.
Apenas a não pronúncia pelo tribunal quanto a questões que lhe são submetidas determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, mas já não a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões No mesmo sentido Ferreira de Almeida, “Direito de Processo Civil”, vol. II, Almedina, 2015, pág. 371, em que reafirma que “questões” são todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas, integrando “esta causa de nulidade a omissão do conhecimento (total ou parcial) do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não a fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes). Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vigar as suas posições (jurídico processuais); só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de qualquer elemento de retórica argumentativa produzida pelas partes”. .
Do mesmo modo, apenas o conhecimento pelo tribunal de questões não suscitadas pelas partes nos seus articulados e de que aquele não possa conhecer oficiosamente, determina a invalidade da sentença por excesso de pronúncia.
“Questões” são os pontos de facto e/ou de direito centrais, nucleares, relevantes ou importantes submetidos pelas partes ao escrutínio do tribunal para dirimir a controvérsia entre elas existentes e cuja resolução lhe submetem, atentos os sujeitos, os pedidos, causas de pedir e exceções por elas deduzidas, e não os simples argumentos, opiniões, motivos, razões, pareceres ou doutrinas expendidos no esgrimir as teses em presença Acs. STJ. 30/10/2003, Proc. 03B3024; 04/03/2004, Proc. 04B522; 31/05/2005, Proc. 05B1730; 11/10/2005, Proc. 05B2666; 15/12/2005, Proc. 05B3974, todos in base de dados da DGSI. .
Revertendo aos ensinamentos de Alberto dos Reis, “…assim como a ação se identifica pelos seus elementos essenciais (sujeitos, pedido e causa de pedir (…), também as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objeto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)” Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 5º vol., pág. 54. .
Acresce precisar que apenas ocorre nulidade por omissão de pronúncia quando o tribunal, na decisão, silencie, total e absolutamente, qualquer pronúncia quanto à questão colocada pelas partes e não quando aprecie a mesma, mas fá-lo de forma sintética e escassamente fundamentada Acs. STJ. de 20/06/2006, Proc. 06A1443; 13/07/2007; Proc. 07A091, in base de dados da DGSI. .
Também não existe nulidade por omissão de pronúncia quando o juiz erroneamente considere que o conhecimento de uma outra questão de que conheceu e decidiu, prejudicou a apreciação daquela outra, suscitada pelas partes e em relação à qual se acusa a falta de pronúncia. Nesse caso, o que existe é uma situação de erro de julgamento (uma decisão que do ponto de vista jurídico é errónea), atacável em via de recurso, onde esse erro, a verificar-se, terá de ser corrigido pelo tribunal ad quem Ac. STJ. de 28/10/2008, Proc. 08A3005; 21/05/2209, na mesma base de dados..
E também não há nulidade da decisão por omissão de pronúncia quando o tribunal não conheça de uma determinada questão, não suscitada pelas partes, mas que era do seu conhecimento oficioso, porquanto, nesse caso, as partes não colocaram essa concreta questão à apreciação e decisão do tribunal, pelo que, quanto a essa concreta questão, não se verifica o vício da nulidade por omissão de pronúncia, mas o que acontece é que sendo essa questão do conhecimento oficioso do tribunal, ao dela não conhecer, o tribunal errou, incorrendo em erro de direito Ac. STJ. de 20/03/2014, Proc. 1052/08.0TVPRT.P.S1, in base de dados da DGSI..
3.4. Por outro lado, o artigo 3.º, n.º3 do CPC determina expressamente que: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”. Outrossim, estabelece-se no artigo 4.º do mesmo CPC que «[o] tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais”.
O princípio do contraditório é um princípio estruturante do Código de Processo Civil, com o qual se visa assegurar às partes um tratamento igual obstando a que o Tribunal emita decisões surpresa.
Como bem observa LEBRE DE FREITAS (cfr. Introdução ao Processo Civil- Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, outubro de 2013, pag. 124): “a consagração do princípio da proibição das decisões surpresa, resulta de uma conceção moderna e mais ampla do princípio do contraditório,“[…] com origem na garantia constitucional do Rechtiches Gehör germânico, entendido com uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.
Deste modo, o princípio do contraditório no plano das questões de direito exige que antes da sentença, seja facultada às partes a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie (cfr. ob. cit. pág. 133).
Impõe-se ao juiz o dever de fazer cumprir o princípio do contraditório em relação às questões de direito, mesmo de conhecimento oficioso, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade, evitando-se a formação de decisões sobre questões de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente sem que tenham sido previamente consideradas pelas partes.
Logo, apenas se poderá dispensar a audição da parte contrária nos casos de manifesta desnecessidade. Tais casos serão aqueles em que:
(i)”as partes embora não a tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente a tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica, não contrariada, que manifestamente não consentia outra qualificação;
(ii) quando a questão seja decidida favoravelmente à parte não ouvida; ou
(iii)quando seja proferido despacho que convide uma das partes a sanar a irregularidade ou uma insuficiência expositiva”
Assinale-se que na interpretação do conceito de “decisão-surpresa” o Supremo Tribunal de Justiça tem defendido que “o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão surpresa, não determina ao tribunal de recurso que, antes de decidir a questão proposta pelo recorrente e/ou recorrido, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado, desde que as normas concretamente aplicadas não exorbitem da esfera da alegação jurídica efetuada” (Ac. STJ 11 de fevereiro de 2015, Proc. 877/12.7TVLSB.L1-A.S1,www.dgsi.pt). Por outro lado, considera-se que o cumprimento do contraditório não significa “que o tribunal «discuta com as partes o que quer que seja» e que alivie as mesmas «de usarem a diligência devida para preverem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão»” (Ac. STJ 09 novembro de 2017, Proc. 26399/09.5T2SNT.L1.S1, Ac STJ 17 de junho de 2014, Proc. 233/2000.C2.S1www.dgsi.pt). Considera-se, ainda, que: “[h]á decisão surpresa se o Juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta e atinada decisão do litígio. Ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever” (Ac. STJ 19 de maio de 2016, Proc. 6473/03.2TVPRT.P1.S1,www.dgsi.pt).
Com interesse, LOPES DO REGO ( in Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 1999, pag.25) sustenta que «(…)na audição excecional e complementar das partes, fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela” .
3.5. Em conclusão, o exercício do contraditório dependerá sempre da verificação de uma nova abordagem jurídica da questão, que não fosse perspetivada pelas partes, mesmo usando da diligência devida.
Conforme bem se aflorou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/07/2019, proferido no processo nº 5774/17.7T8FNC-A.L1, o respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjetivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que lhe especialmente incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante.
Nesta linha de entendimento, a omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa, configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia.
Neste sentido, veja-se ainda Teixeira de Sousa, para quem a prolação de uma decisão surpresa “é um vício que afeta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual)”. Com efeito, como o mesmo refere, até esse momento, “não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir”, e que “o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria” ( cfr. blogippc.blogspot.pt, em escrito datado de 23-3-15).
No mesmo sentido, veja-se também Abrantes Geraldes, in Recursos no NCPC, 3ª ed., pág. 25, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 52).
3.6. Concordamos com esta posição, posto que, em tais casos a parte é confrontada com uma decisão, sem que lhe tivesse sido proporcionada a oportunidade de exercer o contraditório e sem que tivesse disposto da possibilidade de arguir qualquer nulidade processual por omissão de um ato legalmente devido.
E sendo assim, esse vício de nulidade, deve ser configurado como nulidade do acórdão, nos termos do disposto no art.º 615º, n.º 1, al. d) do Cód. Proc. Civil, na medida em que em tais situações estará em causa uma questão de que o Tribunal a quo não podia tomar conhecimento.
Nesse sentido, tome-se em consideração a jurisprudência veiculada no Acórdão do STJ de 17/03/2016, proferido no processo n.º 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1, onde se afirma que “a decisão-surpresa alegada e verificada quanto ao acórdão da Relação constitui um vício intrínseco da decisão e não do iter procedimental, acarretando a nulidade do acórdão que assentou a sua decisão em dois fundamentos que não foram previamente considerados pela recorrente, que foram decisivos para a decisão e sobre os quais, antes, deveriam ter sido ouvidos recorrente e recorridos”.
Com interesse, atente-se também no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/12/2019, proferido no processo n.º 14227/19.8T8PRT.P1, no qual se escreve: «I - Existe, presentemente, uma conceção ampla do princípio do contraditório, a qual teve origem em garantia constitucional da República Federal Alemã, tendo a doutrina e jurisprudência começando a ligar ao princípio do contraditório de ideias de participação efetiva \das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão, passando o processo visto como um sistema, dinâmico, de comunicações entre as partes e o Tribunal.
II - Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.
III - Decisão - surpresa é a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.
IV - Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.
V - Contudo, o dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito, mesmo que meramente adjetivas, suscetíveis de virem a integrar a base de decisão, situação presente.
VI - Constitui decisão-surpresa a decisão tomada pelo tribunal relativamente à notada ilegitimidade passiva não discutida pelas partes e que esteve na base da decisão de forma proferida.
VII - A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico, mesmo que adjetivo.»
3.7. Trata-se de um interpretação coerente com a atual conceção do princípio do contraditório, entendido como garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O direito de influir no êxito da ação, mais não será do que mais uma emanação do princípio da tutela jurisdicional efetiva previsto no art. 20º CRP.
3.8. Assentes nas premissas que se acabam de explanar, e revertendo ao caso em análise, importa começar por recordar que mediante a instauração da presente ação administrativa o autor (apelante) formulou o seguinte pedido:
“(…) deve a presente acção ser julgada procedente e, em consequência, ser revogado o despacho de deferimento parcial, substituindo-o por outro que defira totalmente o pagamento dos montantes reclamados pelo A. ao R. até ao montante máximo legalmente permitido, incluindo a indemnização em virtude do despedimento ilícito.”

3.9. E para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que requereu o pagamento pelo Fundo de Garantia Salarial dos seus créditos laborais do qual constava, entre outros, o crédito no valor de € 11.600,00, a título de indemnização pela cessação ilícita do contrato de trabalho, mas a Entidade Demandada indeferiu tal pretensão, por entender que (...) o n° 1 do artigo 396° Código do Trabalho determina que o mesmo tem direito a indemnização cujo montante não é quantificável por simples cálculo aritmético, variando entre 15 e 45 dias de retribuição base mais diuturnidades, havendo ainda que atender, nessa determinação, ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude do comportamento do empregador.
- Importa ademais ressaltar o n° 4 do artigo 394° do Código do Trabalho, que determina que a justa causa é apreciada nos termos do n° 3 do artigo 351° com as devidas adaptações, i.e., deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
Destarte, entende o Fundo de Garantia Salarial não assegurar a indemnização por justa causa, enquanto a obrigação não se tornar líquida, conforme determina o n° 3 do artigo 805.° do Código Civil, devendo o montante indemnizatório ser fixado judicialmente”.
Mais alegou ter direito a que lhe seja reconhecido e pago o valor referente à indemnização pela cessação ilícita do contrato de trabalho no valor de € 11.600,00, uma vez que tal crédito está reconhecido pelo Administrador de Insolvência, não foi impugnado e está inserido no plano de insolvência aprovado no referido processo.
3.10. Assim, na presente ação administrativa, o Autor impugnou o ato administrativo proferido pela Entidade Demandada que deferiu parcialmente o seu requerimento de pagamento de créditos emergentes de contrato de trabalho e peticionou a condenação desta na prolação de ato administrativo que defira totalmente o pagamento dos montantes reclamados pelo Autor até ao máximo legalmente permitido.” (sublinhado nosso).

3.11.Sendo este o objeto da ação, a questão de mérito que ao Tribunal a quo cumpria apreciar e decidir era a de saber se o Autor tinha direito a lhe ser reconhecido, para efeitos de pagamento pela Entidade Demandada, os valores que reclamou emergentes da cessação do seu contrato de trabalho, pelo que tendo verificado que os créditos reclamados pelo Autor ultrapassavam o montante máximo legalmente previsto – cfr. art.º 3.º do RFGS – se impunha que tivesse decidido como fez, ou seja, julgando a pretensão do autor como não integralmente procedente.
No despacho de sustentação, a 1.ª Instância considerou que «No caso, não pode considerar-se estar em presença de uma questão jurídica inesperada ou surpreendente, desde logo, porque estando em causa apreciar e decidir se o Autor tinha direito a ser-lhe reconhecido, para efeitos de pagamento pela Entidade Demandada, os valores que reclamou emergentes da cessação do seu contrato de trabalho, e que no pedido formulado o próprio Autor pediu a condenação do FGS a proferir uma decisão administrativa que defira totalmente o pagamento dos montantes reclamados pelo Autor até ao máximo legalmente permitido.”, a condenação do FGS nos termos decididos não traduz nenhuma decisão surpresa para o Autor, que conforme resulta do teor do pedido que formulou na p.i.. bem sabia que a lei estabelece limites quanto aos montantes a suportar pelo FGS, tratando-se de uma questão já abordada pelo autor no referido articulado.
Dai que “ tal questão não surge, neste contexto, como uma nova questão jurídica que justifique uma prévia intervenção jurisdicional de observância do disposto no nº 3 do art. 3º do Cód. Processo Civil, não consubstanciando, pois, a decisão recorrida uma decisão-surpresa (a propósito do conceito de decisão-surpresa (também denominada de decisão solitária do juiz), a jurisprudência tem considerado que a mesma ocorre se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, surgindo, pois, a sua imprevisibilidade como marca definidora – cfr., por todos, acórdãos do STJ de 27.09.2011 (processo nº 2005/03.0TVLSB.L1.S1) e de 4.06.2009 (processo nº 09B0523), acessíveis em www.dgsi.pt]”, conforme se refere no Acórdão do TRG, processo n.º 15335/17.5T8PRT.P1
3.12. Partindo da consideração de que as decisões surpresa são apenas aquelas com que as partes sejam confrontadas, com sentido de novidade relativamente às questões que haviam suscitado, e que não poderiam prever ou antecipar face ao conjunto do sistema jurídico na parte aplicável, sendo que só quanto a estas a violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem a uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 615º nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma, tem de concluir-se que a questão em relação à qual o Apelante sustenta que o Tribunal a quo proferiu uma decisão surpresa, era do seu conhecimento, conforme resulta da consideração do teor do pedido que formulou na p.i no qual expressamente pede a condenação do apelado até ao máximo legalmente previsto.
3.13.O teor do pedido formulado pelo Autor na p.i., no qual o próprio refere expressamente pedir a condenação do FGS no pagamento da indemnização no respeito pelos limites legais -“(…) deve a presente acção ser julgada procedente e, em consequência, ser revogado o despacho de deferimento parcial, substituindo-o por outro que defira totalmente o pagamento dos montantes reclamados pelo A. ao R. até ao montante máximo legalmente permitido, incluindo a indemnização em virtude do despedimento ilícito.” )-, é prova inequívoca do seu conhecimento quanto à existência de limites legais aos montantes a assegurar pelo FGS neste tipo de ações destinadas ao pagamento de créditos salariais aos trabalhadores de entidades empregadoras insolventes.
3.14. Tendo o Tribunal a quo condenado o FGS até ao montante máximo legalmente permitido, essa decisão não pode ser considerada como uma decisão surpresa que reclamasse, em momento prévio à sua prolação, o exercício de um novo contraditório. Na situação em apreço, não se pode de todo afirmar que a decisão recorrida se desvinculou totalmente do alegado, no caso, pelo autor, tendo a mesma respeitado o teor do pedido deduzido pelo autor, de modo que, não pode sustentar-se que a mesma não tenha um mínimo de relação com o que tenha sido alegado e sufragado pelo autor na p.i..
3.15. As partes (autor e réu) não podiam, por conseguinte, deixar de perspetivar como solução plausível do litígio a condenação do FGS com sujeição aos limites legalmente estabelecidos, uma vez que o respeito por esses limites fazia parte do pedido de condenação deduzido pelo autor, sendo parte do objeto direto do mérito da causa.
Assim sendo, improcedem as conclusões de recurso, nas quais o Apelante sustenta que o tribunal conheceu de matéria de que não podia conhecer ou que não teve oportunidade de se pronunciar.
*
IV-DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo do Norte, em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.
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Porto, 28 de janeiro de 2022

Helena Ribeiro
Nuno Coutinho
Ricardo de Oliveira e Sousa
_________________________________________________
i) Ac. STA. de 09/07/2014, Proc.00858/14, in base de dados da DGSI.

ii) Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.

iii) Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI.

iv) Neste sentido Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., págs. 142 e 143, onde pondera: “Esta nulidade está em correspondência direta com o 1º período da 2ª alínea do art. 660º. Impõe-se aí ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” e onde aponta como exemplo de nulidade por omissão de pronúncia, o seguinte caso retirado da prática judiciária: “Deduzidos embargos a posse judicial com o fundamente de posse baseada em usufruto, se o embargado alegar que este não podia produzir efeitos em relação a ele por não estar registado à data em que adquiriu o prédio e a sentença ou acórdão deixar de conhecer desta questão, verifica-se a nulidade (…). O embargado baseara a sua defesa na falta de registo do usufruto; pusera, portanto, ao tribunal esta questão de direito: se a falta de registo do usufruto tinha como consequência a ineficácia, quanto a ele, da posse do usufrutuário, o tribunal estava obrigado, pelo art. 660º, a apreciar e decidir esta questão; desde que a não decidiu, a sentença era nula”.
Ac. RC. de 22/07/2010, Proc. 202/08.1TBACN-B.C1, in base de dados da DGSI: “…O juiz deve, antes de tudo, tomar em consideração as conclusões expressas nos articulados, já que a função específica destes é a de fornecer a delimitação nítida da controvérsia. Mas não só; é necessário atender, também aos fundamentos em que essas conclusões assentam, ou, dito de outro modo, às razões e causas de pedir invocadas (…). Em última análise, questão será, pois, tudo o que respeite ao litígio existente entre as partes, no quadro, tanto do pedido e da causa de pedir, como no da defesa por exceção”.

vi) Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 373 e 374.

vii) Alberto dos Reis, in ob. cit., 5º vol., págs. 55 e 143.

viii) No mesmo sentido Ferreira de Almeida, “Direito de Processo Civil”, vol. II, Almedina, 2015, pág. 371, em que reafirma que “questões” são todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas, integrando “esta causa de nulidade a omissão do conhecimento (total ou parcial) do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não a fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes). Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vigar as suas posições (jurídico processuais); só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de qualquer elemento de retórica argumentativa produzida pelas partes”.

ix) Acs. STJ. 30/10/2003, Proc. 03B3024; 04/03/2004, Proc. 04B522; 31/05/2005, Proc. 05B1730; 11/10/2005, Proc. 05B2666; 15/12/2005, Proc. 05B3974, todos in base de dados da DGSI.

x) Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 5º vol., pág. 54.

xi) Acs. STJ. de 20/06/2006, Proc. 06A1443; 13/07/2007; Proc. 07A091, in base de dados da DGSI.

xii) Ac. STJ. de 28/10/2008, Proc. 08A3005; 21/05/2209, na mesma base de dados.

xiii) Ac. STJ. de 20/03/2014, Proc. 1052/08.0TVPRT.P.S1, in base de dados da DGSI.