Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00662/13.9BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/25/2022
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:OMISSÃO DE PRONUNCIA QUANTO A FACTOS-UTILIZAÇÃO DE SÓTÃO PARA FINS HABITACIONAIS:
- LICENÇA DE UTILIZAÇÃO- AMPLIAÇÃO DE FRAÇÃO- DEMOLIÇÃO- ABUSO DE DIREITO -SUPRESSIO- AUDIÊNCIA PREVIA- APROVEITAMENTO DO ATO
Sumário:I- Sempre que o tribunal ad quem detete uma efetiva situação de omissão de pronúncia da 1ª Instância, em sede de julgamento da matéria de facto quanto a factos essenciais ou complementares, como tribunal de substituição que é, deverá, mesmo oficiosamente, realizar esse julgamento de facto, sempre que disponha de elementos de prova que, com a necessária segurança, lho permitam fazer, considerando provada ou não provada essa facticidade e motivando o julgamento que realize. De contrário, deverá anular a sentença e determinar a baixa do processo à 1ª Instância para que amplie o julgamento em relação a essa facticidade cujo julgamento de facto omitiu (art. 662º, n.ºs 1 e 2, al. c) do CPC).

II- Embora possa ser consentido o uso habitacional dos sótãos de fração autónoma, quando os respetivos compartimentos tenham o pé-direito mínimo regulamentar só em metade da sua área, não podendo, contudo, em qualquer ponto afastado mais de 30 centímetros do perímetro do compartimento, o pé-direito ser inferior a 2 metros, desde que estejam devidamente asseguradas boas condições de isolamento térmico, tal utilização tem de ser expressa e previamente requerida e licenciada, ao abrigo de diplomas que preveem o controlo prévio das operações urbanísticas e do RGEU.

III- Através da licença de utilização, a entidade pública administrativa competente para a concessão dessa licença, após verificação, certifica em como a fração cumpre com as normas administrativas necessárias para que seja dado a esta determinado uso, estando em causa preponderantemente interesses de ordem pública.

IV- O comportamento reiteradamente omissivo por parte de quem poderia exercer o direito, seguido, ao fim de um largo período temporal, de um ato comissivo com que a contraparte legitimamente já não contava, constitui abuso de direito na modalidade de supressio.

V- O Município, ao ordenar a reposição da sala comum da fração “D”, que foi ampliada em mais 8m2 de área coberta, para a conformar com o projeto aprovado e licenciado, agiu sem cometer nenhum excesso, não tendo exercido nenhum direito em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante, mas antes cumprido um dever que se lhe impunha, e sem que daí resultasse a violação de qualquer legítima expectativa dos apelantes na manutenção da situação urbanística ilegal.

VI- Estando em causa a intenção de proferir um ato ordenador de uma reposição/demolição em imóvel- sala comum da fração “D”- propriedade de ambos os cônjuges, impunha-se ao Município/ apelado que tivesse notificado, para além do autor marido, a autora mulher, para igualmente exercer o respetivo direito de audiência prévia, uma vez que, sendo a mesma também proprietária dessa fração onde se integra a referida sala, é também diretamente interessada nesse procedimento.

VII- A possibilidade de aplicar ao caso a teoria do aproveitamento de atos ilegais, depende da evidência de que o vício traduzido na preterição da audiência prévia da Autora em nada influenciou o conteúdo da decisão e que, por conseguinte, repetindo o ato sem reincidir na ilegalidade administrativa anteriormente cometida, o resultado final seria idêntico.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO
1.1.D... e I..., casados, residentes na Rua (…), moveram a presente ação administrativa especial contra o Município (...), indicando como contrainteressados: (i) R..., casado com I... ( 1.ºs CI), residentes na Praceta (…); (ii) P...., casada com P--- ( 2.ºs CI), residentes da Rua (…); (iii) M…, casado com M--- ( 3.ºs CI), residente da Rua (…), e (iv) A…, casado com C… ( 4.ºs CI), residentes na Rua (…). Constitui objeto da presente ação a impugnação do despacho do Senhor Vereador do Pelouro das Obras Particulares da Câmara Municipal (...), de 08/05/2013, notificado em 15/05/2013, que determinou a cessação da utilização do sótão para fins habitacionais e a reposição da sala comum em relação à fração “D” de que os Autores são proprietários.
Como fundamento da sua pretensão, alegam, em síntese, que compraram a fração designada pela letra “D” ao construtor do prédio, em 05/03/1985, e que o direito de propriedade se encontra inscrito a seu favor na CRP de (...);
A referida fração destina-se a habitação, situa-se no 1.º andar, lado esquerdo, e no sótão do prédio; no 1.º andar é composta por hall de entrada, hall interior, sala comum, três quartos, dois quartos de banho, despensa, cozinha e marquise, com a área de 124 m2, e terraço com 149 m2; no sótão é composta por arrumos, com a área de 189 m2.
Mais alegam que a fração em causa tem composição e configuração exatamente igual à que tinha em 1979, quando acabou de ser construído o prédio e sujeito ao regime de propriedade horizontal, e a que tinha quando por eles foi adquirida em 1985.
Os Autores não lhe fizeram nenhuma alteração, supondo que o que aconteceu é que o proprietário e morador da fração “F”, correspondente ao 2.º andar esquerdo, andou a fazer medições e chegou à conclusão que a sala comum da fração “D” dos Autores tinha cerca de 8m2 a mais, ocupando uma parcela equivalente do terraço da mesma fração, para o lado da lavandaria, e que o filho dos Autores pernoitava no espaço do sótão, que estava destinado a arrumos, tendo denunciado essas situações à CM.
E foi nessa sequência, que o Senhor Vereador das Obras Particulares da CM_, proferiu o despacho impugnado ordenando a cessação da utilização do sótão para fim habitacional e a reposição da sala comum, sendo que, não é pelo facto de o filho de ambos ter pernoitado no sótão da fração “D” que o destino da mesma foi alterado, para além de que na data do dito despacho já o seu filho ali não dormia nem pernoitava, tendo emigrado para França.
No que concerne à reposição da sala, consideram que a mesma tem as dimensões com que inicialmente foi construída, designadamente, tem a configuração e as dimensões que tinha no momento em que adquiriram a fração “D”.
Observam que em 05/07/1979 a fração em causa foi sujeita a vistoria pelos serviços da CM_, e nenhum reparo foi efetuado, pelo que agora será abusivo (supretio) exigir a reposição pretendida, tanto mais que, também os condóminos sempre aceitaram, pacificamente, a situação existente sem qualquer reparo, continuando a maioria a aceitar, com exceção apenas do proprietário da fração “F”, a que corresponde a permilagem de 0,114.
Sustentam que as situações em causa são legalmente permitidas pelo artigo 1425.º do CPC, e o cumprimento do despacho impugnado ocasionaria obras de demolição das paredes e pisos da sala da fração dos autores, cuja despesa excederia 5.000,00€, sem daí resultar nenhum benefício para ninguém, sendo a demolição, nos termos do art.º 106.º do RJEU a última ratio, e no caso as obras sempre seriam legalizáveis.
Por fim, afirmam que o despacho impugnado não lhes foi notificado para efeitos de audiência prévia, pelo que o mesmo é nulo.
Concluem pedindo que o despacho seja julgado nulo ou, subsidiariamente, anulado.
1.2. Citado, o Réu contestou a presente ação, defendendo-se por impugnação, alegando, em síntese, que nas plantas de projeto que instruíram o pedido de licenciamento do prédio em causa e que traduzem o projeto aprovado e licenciado, resulta a inexistência do avanço das salas comuns das frações “C” e “D” ( direito e esquerdo do 1.º andar) sobre o terraço a tardoz, cuja parede sul passou a ser contígua com a parede sul da lavandaria.
Também não resultam das ditas plantas a existência de casas de banho, cozinhas ou dependências diversas no sótão, destinadas a habitação, não tendo sido atribuída ao sótão utilização habitacional mas somente para arrumos.
O imóvel em crise foi visitado por cinco técnicos diferentes, em duas datas distintas e todos atestaram a composição das frações conforme o projeto aprovado.
Independentemente da data da execução das obras, as mesmas permanecem ilegais enquanto não forem legalizadas.
Já em 06/08/1990, o réu enviara ao autor um ofício onde se reportava que o sótão estava a ser utilizado como habitação, e que essa utilização deveria cessar, no prazo de 30 dias sob pena de aplicação das sanções legais, que o autor acatou, pelo que o réu não foi complacente com esta situação.
Entretanto, a 04/09/2012 o Réu recebeu uma outra denúncia do morador no 2.º andar esquerdo do mesmo prédio, e após deslocação da polícia municipal ao local, foi elaborado auto de notícia, por se ter verificado que: (i) ao nível do 1.º andar, fração “D”, houve ampliação, em aproximadamente 8m2, da sala comum contígua à lavandaria, no alçado posterior ( terraço); (ii) e ao nível do sótão, utilizado como habitação e com um maior número de compartimentos, encontrando-se em desacordo com o projeto, nomeadamente, por ter dois WC, duas cozinhas e sete arrumos.
O autor foi notificado para se pronunciar em sede de audiência previa, da intenção do Réu ordenar a cessação da utilização do sótão como habitação e a reposição da sala comum, o que também foi efetuado em relação à fração “C”.
O autor exerceu esse direito de audiência prévia.
Considerando que as medidas de tutela da legalidade urbanística previstas no art.º 102.º e ss do RJUE não estão sujeitas a prazo de prescrição e que a obra só não será demolida se for legalizável, o autor foi notificado por ofício do Réu de 09/01/2013 para no prazo de 60 dias apresentar pedido de licenciamento das alterações levadas a cabo em desconformidade com o projeto.
A essa notificação, o autor contrapôs que nada podia fazer e que o processo deveria ser arquivado.
O Réu entende que foi cumprida a audiência de interessados prevista no art.º 100.º do CPA, sendo irrelevante que a autora não tenha sido expressamente identificada na notificação, uma vez que nos termos do n.º 3 do art.º 1678.º o autor marido, só por si, pode aceitar o ato.
A utilização do sótão para fins habitacionais não depende do consentimento dos condóminos, uma vez que essa utilização autónoma na prática traduz uma alteração da natureza do sótão, destinado a arrumos, sem a devida licença.
O Réu entende que não se verifica o abuso de direito, na modalidade de supressio, não tendo pactuado com a situação, estando-se perante medidas que são adequadas e proporcionais ao fim visado, as quais não contendem com o direito de habitação dos autores.
Conclui pela improcedência da ação.
1.3. A Contrainteressada C.... contestou por impugnação, subscrevendo a contestação apresentada pelo Réu. Acrescentou, porém, ter constatado que os Autores, a partir de certa data, encetaram obras na fração D, alterando o sótão e constituindo uma fração, que chegou a ser dada de arrendamento a terceiros.
Refere que o ramal de distribuição de água foi construído à vista, em plena caixa de escada, a partir do contador da fração propriedade dos Autores e que fizeram outras obras clandestinas nos terraços posteriores, com a colocação de coberturas com chapas metálicas e fibrocimento que alteraram a fachada original do prédio, provocando forte depreciação estética e económica.
Afirma ainda que em consequência das dessas obras, resultaram danos na sua fração.
Conclui pugnando pela manutenção do despacho impugnado.
1.4. Proferiu-se despacho saneador de fls. 226 do SITAF, em que se fixou o valor da causa, dispensou-se a realização de diligências de prova, por a decisão da causa se dirigir a questões de direito e notificaram-se as partes para alegarem, querendo.
1.5. Os Autores e a Contrainteressada apresentaram alegações escritas, mantendo a posição assumida nos respetivos articulados. O Réu não apresentou alegações.
1.6. Proferiu-se sentença, que julgou a presente ação improcedente, constando essa sentença da seguinte parte dispositiva:
«Com base nos fundamentos que antecedem, julgo improcedente a presente ação e em consequência absolvo a Entidade Demandada do pedido.
Custas pelos AA. (artigo 527.º, n.º 1 e 2 do CPC).
Registe e notifique.»

1.7. Inconformados, com o assim decidido, os Autores interpuseram o presente recurso de apelação, em que formulam as seguintes Conclusões:
«i – Os artºs. 79º e 80º do RGEU estabelecem que os sótãos não possam constituir frações isoladas e independentes ou locais de utilização autónoma para habitação; daí que só os sótãos com as condições de habitabilidade previstas no mesmo diploma possam ter acesso pela escada principal do edifício ou por ascensor – Cf. artº 80º, citado.
II- O sótão em causa é apenas um compartimento integrado na fração pertencente aos Autores, destinada a habitação, pelo que não está abrangido pelas citadas normas, que assim, foram erradamente interpretadas e aplicadas ao caso da presente ação;
III- Os factos alegados em 24. e 25. da petição inicial (“24....a sala tem a dimensões com que inicialmente foi construída” e “25. Sobretudo, tem a configuração e as medidas que tinha no momento em que os autores compraram a fração” são relevantes e essenciais para o apreço e decisão questão do abuso de direito invocado na ação e a douta sentença não se pronuncia, especificadamente, se os considera provados ou não provados, o que constitui omissão de pronúncia, tornando a sentença nula, de conformidade com o art.º 615º, nº 1, al. d) do C.P.C
IV– No vertente caso, o procedimento pelo menos tolerante, durante longos anos (entre 1979 e 2012) relativamente à composição da fração imobiliária pertencente aos autores, induziu, neles e nos demais condóminos, a ideia de confiança na estabilidade da situação, pelo que, é flagrante a contrariedade do despacho em causa com o princípio da confiança a que a alínea a) do nº 2 do art.º 6º-A do anterior CPA, então vigor.
V- Mas, poderia tal acontecer e, não obstante, o despacho ser justo, desde que para acorrer a regularizar um interesse legítimo prevalecente, tendo em conta o disposto na alínea b) do mesmo nº 2 do artº 6º-A, o que não acontece no caso dos autos.
VI - O despacho não surge em abono de qualquer interesse relevante ou prevalecente, que importe sobremaneira acautelar; o despacho surge, tão só e apenas, porque um condómino do edifício, se levanta da sua duradoura quietude e reclama sem apresentar objetivo que compense os inconvenientes e o prejuízo que os autores sofreriam com as obras que o cumprimento do despacho implicariam.
VII - Vale dizer, em nome de nada, social ou economicamente relevante, e sem vantagem para ninguém, os Autores, cumprindo o despacho em crise, seriam arrastados para a necessidade de realização de obras de demolição e reconstrução da sala da sua fração.
VIII – O despacho impugnado enferma do vício de abuso de direito, por violação dos princípios da boa fé, da confiança e da proporcionalidade, ofensivo do preceituado no artº 6ºA do CPA revogado e nos artºs 8º e 10º do novo CPA,
IX- Ao decidir a ação improcedente, a douta sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente ao caso o preceituado nos artºs. 6A do CPA revogado e nos artºs. 8º e 10º do novo CPA.
X - A falta de notificação da autora mulher para o exercício do direito de audição relativamente à intenção da prática do ato que consta do despacho impugnado é suscetível de influenciar a decisão e, por isso, de conformidade com o disposto nos artºs. 100º e 135º do anterior CPA, então em vigor, devendo o despacho ser anulado; ao não o fazer, a douta sentença interpretou e aplicou erradamente o disposto nos citados artºs 100º e 135º do CPA revogado.
Deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a a acção procedente e revogue o despacho impugnado da Entidade Demandada.
Assim se fazendo Justiça,»

1.8. O Réu contra-alegou, formulando as seguintes Conclusões:
«1) Além das alegações de recurso deverem ser articuladas e conclusivas – art.º 637.º do CPC ex vi art.º 1.º e n.º 3 do art.º 140.º do CPA – de forma a permitir delimitar o alvo da impugnação recursiva, as conclusões que as acompanham delimitam os fundamentos, objeto e âmbito do recurso, em obediência ao art.º 639.º do CPC;
2) O Recorrente limita-se a arguir que os factos alegados nos artigos 24.º e 25.º da PI não foram apreciados pela sentença, quando a mesma deu tais factos por não provados ao não valorar a prova documental carreada pelo Recorrente aos autos para o efeito (pontos 24 e 25 do segmento IV da sentença) ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova previsto no n.º 5 do art.º 607 do CPC e explicitado a pág. 18 da sentença que concluiu que “Quanto ao alegado pelos AA de terem adquirido a fracção D já com o sótão compartimentado e a sala contígua ao terraço até à lavandaria, tal asserção não resulta plenamente demonstrada.”, inexistindo omissão de pronúncia;
3) Não especificando os concretos meios de prova que impunham decisão diversa, em violação da alínea b) do n.º 1 do art.º 640, em incumprimento do ónus processual que lhe incumbe;
4) O art.º 79.º e art.º 80.º do RGEU definem algumas condições para o uso habitacional dos sótãos, sendo que tal destinação tem se ser previamente requerida e licenciada, ao abrigo do controlo prévio das operações urbanísticas e do RGEU, o que não sucedeu nos autos, porquanto tal uso não foi requerido no projeto aprovado, nem em sede de legalização, mantendo por isso e por uso a sua utilização para arrumos;
5) O direito de propriedade do Recorrente sobre a fração não permite o gozo da coisa em desrespeito pela Lei e das restrições por ela impostas (cfr. art.º 1305.º do CC), não comportando a utilização do bem para fins distintos dos licenciados;
6) Não existe erro na aplicação do direito na interpretação do art.º 100.º e 135.º do CPA vigente à data, porquanto, a audiência dos interessados foi cumprida pelo Recorrente marido, que se pronunciou expressamente, com poderes para o efeito nos termos do n.º 3 do art.º 1678.º do CC;
7) Mas se tal não se entendesse, não se verifica sequer a invalidade atendendo a que tal degrada em formalidade não essencial, incapaz de determinar a anulação do ato, tanto mais que a Recorrente mulher nada poderia carrear aos autos que pudesse alterar o sentido da decisão impugnada, considerando que a aplicação das medidas de tutela urbanísticas previstas no Decreto-lei n.º 555/99, de 16/12, é vinculativa, ao abrigo do princípio da legalidade previsto no art.º 3.º do CPA, pelo que o ato seria praticado com o mesmo conteúdo;
8) A ordem de reposição e cessação constante do ofício impugnado é justa, legal e proporcional, atendendo que apenas surgiu após inércia do Recorrente em proceder à legalização nos termos do art.º 106.º e 109.º do RJUE, ordem à qual o Município (...) está vinculado, bem esclarecida na atual redação do art.º 102.º do mesmo diploma;
9) Pelo que a aplicação do princípio da legalidade extravasa a esfera do Recorrente com “vantagens” para todos aqueles que confiam na aplicação do direito, traduzidas na existência efetiva de um Estado de Direito.
10) Termos em que inexiste erro de julgamento de direito na aplicação do art.º 6.º-A do então CPA, uma vez que o abuso de direito (na vertente “supressio” alegada) apenas existe quando (e se) as medidas de tutela não tivessem sido aplicadas aquando da deteção da irregularidade da ocupação e edificação, e pelo decurso do tempo se criasse no Recorrente tal boa-fé circunstancialmente provada, que induzisse a inexistência da ilegalidade, o que não ocorreu nos autos;
11) Aliás,” Os princípios da justiça, da imparcialidade e da boa-fé apenas relevam no âmbito da atividade discricionária da Administração. Tais princípios são inoperantes quando a Administração põe fim a uma situação ilegal que já durava há algum tempo”. – in Ac. do TCAN proferido no âmbito do processo 03050/12.0BEPRT a 17/6/2016, disponível em http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/-/16D495EF8EEE53C680257FFD00629C97.
Por estes motivos e pelos demais de Direito que venham a ser supridos, deve ser:
a) rejeitado o recurso na impugnação da matéria de facto, por falta de especificação dos meios probatórios que impõem conclusão diversa, nos termos do n.º 1 do art.º 640.º do CPC;
b) julgado improcedente o presente recurso mantendo-se a sentença recorrida, mas que Vossas Excelências melhor avaliarão no Vosso Douto juízo.»
*

II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.

2. Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.

Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.

2.1. Assentes nas enunciadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste TCAN resumem-se ao seguinte:
a. saber se a recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;
b. saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento sobre a matéria de direito decorrente da errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 79.º e 80.º do RGEU;
c. saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de direito ao determinar a “reposição da sala comum, conforme previsto no art.º 106.º, n.º3, do mesmo RJUE”, por desconsiderar que o exercício do direito à demolição no caso configura uma situação de abuso de direito nas vertentes doutrinárias da supressio e da ofensa ao princípio da proporcionalidade perante o resultado a obter, por violar o disposto no art.º 6.º-A do CPA e por ofensa ao disposto no art.º 106.º, n.º2 do RGEU, uma vez que sempre essa obra seria legalizável;
d. saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento sobre a matéria de direito decorrente da errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 100.º e 135.º do CPA.
*

III- FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO.

3.1. A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade:
«1. Em 17 de dezembro de 1972, no âmbito do processo de obras n.º 92/62, o Presidente da Câmara Municipal (...) deferiu o pedido de F... para a construção de imóvel para habitação e comércio, sito Rua (…) (fls. 218 do PA apenso aos autos em suporte em papel).
2. Em 05 de janeiro de 1978, foi aprovado o projeto sobre a instalação de saneamento do prédio acima identificado, junto ao qual foram entregues em 12.05.1977 desenhos à escala 1/50, designadamente «planta sótão corte AB» e «corte CD» nos quais inexistem secções desenhadas nem canalização projetada para o sótão (fls. 241, 248, 249, 250 e 251 do PA apenso aos autos em suporte em papel)
3. Por requerimento de 30 de março de 1979, F... requereu a realização de vistoria comprovativa de que “...as frações que constituem [o prédio] são suficientemente isoladas e independentes entre si para que nele possa ser constituído o regime jurídico da constituição da propriedade horizontal” (fls. 205 do PA apenso aos autos em suporte em papel).
4. Junto ao requerimento atrás mencionado, foram entregues plantas do projeto, à escala de 1/50, «rés-do-chão, 1.º e 2.º andares»; e «estudo de aproveitamento do sótão». Na planta do 1.º andar, a sala comum confronta para o terraço, com a inscrição de uma área de 17,5m2, em que parte da secção da cozinha e toda a secção da lavandaria se encontram a jusante da parede confinante ao terraço (fls. 206 e 207 do PA apenso aos autos em suporte em papel).
5. No «estudo de aproveitamento do sótão» não consta o desenho de secções ou compartimentos (fls. 207 do PA apenso aos autos em suporte em papel).
6. Em 05 de junho de 1979, foi efetuada a vistoria requerida em 3, “para a satisfação do disposto no artigo quarto...” do Decreto-Lei n.º 4333, de 14.10.1955, com o seguinte conteúdo (fls. 204 do PA apenso aos autos em suporte de papel):
(...)
Frações “C e D” – respetivamente, 1.º andar direito e 1.º andar esquerdo, para habitação, cada uma delas com a área de 124m2 e constituídas por hall de entrada, hall interior, sala comum, três quartos, dois quartos de banho, despensa, cozinha e marquise, e ainda, a primeira com um terraço com 106 m2 e uma dependência no sótão com 12 m2 e a segunda com um terraço com 149 m2 e três arrumos no sótão com a área total de 189 m2, atribuindo-lhes, respetivamente, as permilagens de 0,114 e 0,261.
(...)
A Comissão por unanimidade, emitiu parecer que as frações referidas são suficientemente autónomas para o prédio se poder constituir em propriedade horizontal.
(...)
7. Em 07 de junho de 1979, o Presidente da Câmara Municipal (...), na sequência de auto de vistoria atrás identificada, deferiu o requerimento identificado em 3 (fls. 205 do PA apenso aos autos em suporte em papel).
8. Em 05 de dezembro de 1979, foi requerido por F... “...vistoria sanitária do referido imóvel para efeitos de obtenção de habitação e ocupação. O prédio a vistoriar tem 4 fogos e 1 estabelecimento...” (fls. 201 do PA apenso aos autos em suporte em papel).
9. Em 06 de dezembro de 1979, foi exarado o «auto de vistoria sanitária», no qual se conclui que o prédio estava “...conforme requerimento e projeto aprovados, pelo que lhe pode ser concedida a respetiva licença de habitação e ocupação” (fls. 200 do PA apenso aos autos em suporte em papel).
10. Em 06 de dezembro de 1979, no âmbito do processo de obras n.º 92/62, o Presidente da Câmara Municipal (...) deferiu o projeto definitivo do imóvel referido em 1 a 3, no qual constam peças desenhadas à escala 1/50, nomeadamente planta «rés-do-chão e 1.º e 2.º andares»; «corte CD»; «alçados, sul e norte»; «alçado oeste»; e «alçado este» (fls. 190, 192 a 196 do PA apenso aos autos em suporte em papel).
11. Nos desenhos «rés-do-chão e 1.º e 2.º andares» e «corte CD», a sala comum do 1.º andar confronta para o terraço, com a inscrição de uma área de 17,5m2, em que parte do compartimento da cozinha e toda a secção da lavandaria se encontram a jusante da parede contígua ao terraço (fls. 192 do PA apenso aos autos em suporte em papel).
12. No desenho «alçado este», junto ao terraço, no 1.º andar, não se encontra desenhada qualquer secção saliente à fachada exterior do prédio contígua ao terraço (fls. 196 do PA apenso aos autos em suporte em papel).
13. Em 20 de dezembro de 1979, foi inscrita a Ap. n.º 30 na Conservatória de Registo Predial (...), que aqui se dá por integralmente reproduzida, com a seguinte descrição (fls. 174 e 175 do PA. apenso fls. 21 dos autos em suporte em papel):
(...)
Fração D constituído pelo 1.º andar esquerdo, com área de 124m2, um terraço com área de 149 m2 e três arrumos no sótão com a área total de 189 m2 destinada a habitação (...)
14. Em 5 de março de 1985, os AA. outorgaram com F... e mulher D.... o documento denominado «permuta», em que os primeiros declararam dar aos segundos um terreno para construção urbana, e os segundos dar aos primeiros “a fração autónoma designada pela letra D, correspondente ao primeiro andar esquerdo, com área de cento e vinte e quatro metros quadrados, terraço com cento e quarenta e nova e nove metros quadrados e três arrumos no sótão com área total de cento e oitenta e nova metros quadrados, do prédio urbano sito na Rua (…), número centro e quarenta e quatro (...) (fls. 33 do PA. apenso aos autos em suporte em papel).
15. Por carta de 06 de agosto de 1990, do Serviço de Fiscalização, o Vereador da Câmara Municipal (...) comunicou ao A. D... o conteúdo abaixo reproduzido (fls. 130 do PA apenso aos autos em suporte em papel):
Aproveitamento das águas furtadas para habitação
Chegou ao conhecimento deste Serviço de Fiscalização, que o sótão para arrumos que V. Exa. possui no prédio situado na Rua (…), está a ser utilizado como habitação.
Tal afetação, contraria o projeto aprovado por esta Câmara Municipal (...), para além da obrigação de repor o sótão, o estado inicial e destiná-lo apenas para arrumos.
Em conformidade, fica V. Exa. por este meio notificado, a no prazo de 30 dias a contar da data do aviso de receção, suspender a utilização das citadas águas furtadas como habitação, afetando-as apenas para arrumos da fração que possui, sob pena de se não o fizer lhe serem aplicadas as sanções legais que ao caso couberem (...)
16. Em 10 de Março de 1994, D...., esposa de F..., enviou uma carta ao Presidente da Câmara Municipal, que se dá aqui por integralmente reproduzida, destacando-se o seguinte teor (fls. 128 e 129 do PA apenso aos autos em suporte em papel):
(...)
Em agosto de 1990 a Câmara Municipal (...) mandou uma notificação ao Sr. D..., morador na Rua (...), proprietário da fração que habita. A esta fração está agregado umas dependências situadas no 3.º andar que sempre estiveram habitadas desde o início da ocupação de todo o edifício, ou seja, desde 1980, as dependências não têm licença de habitação, daí o motivo da notificação, a Câmara deu 30 dias ao proprietário para que as dependências fossem desocupadas. (...) conseguiu-se remediar o alojamento ao fim de 60 dias com a ajuda de alguns amigos.”
(...).”
17. Em 23 de novembro de 2012, com despacho de concordância de 28.11.2012, foi elaborada a informação interna n.º 5522, do Departamento de Polícia Municipal e Proteção Civil, que se dá aqui por integralmente reproduzida, da qual se destaca o seguinte conteúdo (fls. 43 do PA apenso aos autos em suporte em papel:
(...)
Após receção do processo de obras n.º 92/62, a 13 de Novembro de 2012, proveniente da Divisão Administrativa do D.G.U.O.P (...), deslocaram-se estes serviços, no dia 14 de Novembro, pelas 16h50, à Rua (…), onde se contactou o proprietário, D... (...) verificando-se que:
1. Ao nível do primeiro andar esquerdo – fração D
Ampliação, em aproximadamente 8m2, da sala contígua à lavandaria, no alçado posterior (terraço)
2. Ao nível do sótão – fração D
Utilizado como habitação (segundo o proprietário, para o filho) e com um maior número de compartimentos, encontrando-se em desacordo com o projecto, nomeadamente:
a) Dois WC
b) Duas cozinhas
c) Sete arrumos
Segundo indicação dos proprietários da referida fração, todas as obras em epígrafe, já haviam sido realizadas no momento de aquisição do imóvel, há aproximadamente 30 anos.
(...)
18. Por ofício de 30 de novembro de 2012, n.º 13672, e que se dá aqui por integralmente reproduzido, o Vice-Presidente da Câmara Municipal (...) comunicou ao A. D... o conteúdo que abaixo se reproduz (fls. 39 do PA apenso aos autos em suporte de papel):
(...)
Na qualidade de proprietário do prédio (...) fração D e sótão (...) fica notificado para que no prazo de quinze dias se pronuncie quanto à intenção desta Câmara Municipal vir a ordenar:
(...) a cessação de utilização do sótão, em virtude de estar a ser afeto a fim diverso do previsto no respetivo alvará de autorização de utilização, emitido por esta Autarquia
(...)
A reposição da sala comum, conforme projeto de arquitetura aprovado e licenciado, em virtude de ter procedido à sua ampliação, aproximadamente em 8m2, sem o competente licenciamento (...)
19. Em 11 de dezembro de 2012, deu entrada no Município (...) a comunicação de A. D..., cujo conteúdo abaixo se reproduz (fls. 30 e 31 do PA. apenso aos autos em suporte em papel):
(...)
b) Tal fração [letra D] foi adquirida pelo ora exponente no dia 5 de Março de 1985, como consta na escritura pública respetiva (...)
c) Na altura da aquisição, as ditas dependências (sótão e sala comum) tinham a configuração atual e o exponente crê mesmo que a mesma existe desde a data da construção que terá remontado a 1980, segundo informação do próprio construtor, prestada já após a receção do ditado ofício; na verdade, a sala comum tinha as dimensões atuais e o sótão já então não era amplo, mas com divisões, e utilizado como dependência habitada, inclusivamente com contadores de eletricidade e água instalados, separados da outra parte da fração.
d) Ignora o respondente se as mesmas dependências não têm a configuração física que o projeto de arquitetura previa;
e) Sabe, no entanto, que a Câmara Municipal (...) concedeu oportunamente e sem qualquer reparo que seja do conhecimento do respondente a licença de utilização do imóvel e da mencionada fração.
f) A mesma Câmara e os seus Serviços nenhuma iniciativa tomaram, que seja do conhecimento do exponente, relativa à suposta e alegada desconformidade.
g) Outrossim, também os proprietários das demais frações do prédio, em contacto com a mencionada realidade desde há trinta anos, nunca manifestaram, por qualquer forma, sobre a situação em apreço, alguma discordância, por mínima que fosse.
h) Coligindo toda a sobredita factualidade e outra, decerto no mesmo sentido e com igual significado, que o exponente agora não ocorre lembrar-se, vale dizer que prescreveu o exercício a qualquer direito que tivesse por fim alterar a situação existente que, como foi dito, perdura com estabilidade desde há mais de trinta anos, dada a conhecida influência do tempo sobre a estabilização dos direitos.
i) E, se prescrição não houvesse, sempre se estaria (...) em presença de exercício de direito abusivo, porquanto a Administração e os Condóminos, não deviam ter silenciado, por todas as formas, a mesma situação durante tão largo tempo e agora, sem mais, virem suprimir aquilo que estavelmente, tacitamente consentiram.
(...)
20. Por ofício de 09 de janeiro de 2013, a Entidade Demandada enviou ao A. D... o ofício n.º 226, comunicando que por despacho de 07 de janeiro de 2013 do Vereador do Pelouro, foi concedido um prazo de 60 dias “para apresentação do pedido de licenciamento das alterações efetuadas em desconformidade com o projeto de arquitetura licenciado.” (fls. 27 e 28 do PA. apenso aos autos em suporte em papel).
21. Em 05 de fevereiro de 2013, deu entrada no Município (...) uma carta do A. D..., cujo teor abaixo se transcreve (fls. 19 do PA apenso aos autos em suporte de papel):
(...)
Dá aqui por transcrita toda a argumentação que dirigiu a V. Exa. pelo anterior requerimento.
Não obstante, procurando encontrar a viabilidade do que consta do ofício acima referido, contactou um desenhador, que lhe deu a conhecer a necessidade de todos os condóminos do prédio autorizarem a legalização que o citado ofício refere.
Ora, isso é impossível, porquanto o condómino que dirigiu a essa Câmara a denúncia decerto não estará de acordo. Por isso, nada adiantam diligências que o requerente agora faça no sentido que o ofício indica.
Continuo, porém, a sublinhar o seguinte:
A obra que se pretende legalizada existe há mais de 30 anos;
O ora requerente já comprou o apartamento em causa com a configuração atual e com a sala comum e o sótão tal como agora se encontram;
Nunca, até agora, alguém se opôs a que tal acontecesse;
A Câmara Municipal (...) concedeu a licença de utilização da fração com a configuração que esta tem.
(...)
22. Por ofício de 15 de maio de 2013, referência n.º 5728, o A. D... foi informado do despacho de 08 de maio de 2013, do Vereador do Pelouro da Câmara Municipal (...), para que procedesse “...no prazo de 15 dias a contar da data de receção da presente notificação, proceder à cessação da utilização do sótão para fins habitacionais (ao abrigo do disposto no artigo 109.º do RJUE – Regime Jurídico da Urbanização e Edificação) e à reposição da sala comum (conforme previsto no n.º 3 do artigo 106.º do RJUE).
23. O filho dos AA. dormiu e pernoitou durante anos no sótão da fração D, mas que já não ocorria à data do despacho atrás identificado (por acordo, artigos 18.º e 22 da pá. e 44.º da contestação da Entidade Demandada).
24. Em 28 de maio de 2013, foi outorgada a declaração abaixo reproduzida (fls. 25 dos aos autos em suporte de papel):
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

25. Em 28 de junho de 2013, a Presidente da Junta de Freguesia de (...) exarou declaração no qual referiu que “...o edifício situado na Rua (…), com o n.º 144, nomeadamente o 1.º andar esquerdo, pertencente a I... (...) se encontra no mesmo estado desde 1980” (fls. 25 dos aos autos em suporte de papel).
Não há factos a dar como não provados com interesse para a presente decisão.»
*
III.B.DE DIREITO
b.1. Da nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia: alínea d) do n.º1 do artigo 615.º do CPC.

3.2.Os apelantes assacam vício de nulidade à sentença recorrida por omissão de pronúncia nos termos da alínea d) do n.º1 do artigo 615.º do CPC, com fundamento no facto de o Tribunal a quo, em relação aos factos alegados nos artigos 24.º e 25.º da p.i., não se ter pronunciado sobre se considerava os mesmos como provados ou não provados.
Vejamos.
É entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que as decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas causas distintas, obstando qualquer delas à sua eficácia ou validade: a) por se ter errado no julgamento dos factos e/ou do direito, sendo então a respetiva consequência a sua revogação; e b) como atos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e/ou estruturação, ou as que balizam o conteúdo e/ou os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art.º 615.º do CPC ( cfr. Ac. STA. de 09/07/2014, Proc.00858/14, in base de dados da dgsi).
As causas determinativas de nulidade das decisões judiciais encontram-se taxativamente enunciadas no n.º 1 do art.º 615º do CPC, e tal como decorre da análise das diversas alíneas deste preceito, reportam-se a vícios formais da sentença (despacho – n.º 3 do art.º 613º -, ou acórdão – n.º 1 do art.º 666º) em si mesma considerada, decorrentes de na sua elaboração e/ou estruturação não terem sido respeitadas as normas processuais que regulam essa sua elaboração e/ou estruturação e/ou as que balizam os limites da decisão nela proferida (o campo de cognição do tribunal fixado pelas partes e de que era lícito ao último conhecer oficiosamente não foi respeitado, ficando a decisão aquém ou indo além desse campo de cognição, em sede de fundamentos – causa de pedir - e/ou de pretensão - pedido), tratando-se, por isso, de defeitos de atividade ou de construção da própria decisão judicial em si mesma considerada, ou seja, reafirma-se, está-se na presença de vícios formais que afetam essa decisão de per se e/ou os limites à sombra dos quais é proferida.
Neste sentido pondera Abílio Neto que os vícios determinativos de nulidade da decisão judicial “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” – ( cfr. Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734).
Diferentes desses vícios são os erros de julgamento (error in judicando), os quais contendem com vícios em que incorre o tribunal em sede de julgamento da matéria de facto e/ou em sede de julgamento da matéria de direito, decorrentes de, respetivamente, o juiz ter incorrido numa distorção da realidade factual que julgou como provada e/ou não provada na sentença, acórdão ou despacho, em virtude da prova produzida impor julgamento de facto diverso do que realizou (error facti) e/ou por ter incorrido em erro na identificação das normas aplicáveis ao caso, na interpretação dessas mesmas normas jurídicas, e/ou na aplicação destas à facticidade que se quedou como provada e não provada no caso concreto (error juris).
Nos erros de julgamento assiste-se assim, ou a uma deficiente análise crítica da prova produzida e/ou a uma deficiente enunciação, interpretação e/ou aplicação das normas e institutos jurídicos aplicáveis aos factos provados e não provados, sendo que esses erros, por já não respeitarem a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença em si mesma considerada (vícios formais) ou aos limites à sombra dos quais aquela é proferida, não a inquinam de invalidade, mas sim de error in judicando (cfr. Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da dgsi.)
No caso em análise, não estamos perante uma situação de nulidade da sentença por omissão de pronuncia, a qual se relaciona com o disposto no art.º 608º, n.º 2 do CPC, que impõe ao juiz a obrigação de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e que lhe veda a possibilidade de conhecer questões não suscitadas pelas partes, exceto se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso pelo tribunal.
Com efeito, devendo o tribunal conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos pelas partes com fundamento em todas as causas de pedir por elas invocadas para ancorar esses pedidos e de todas as exceções e contra exceções invocadas pelas mesmas com vista a impedir, modificar ou extinguir o direito invocado pela sua contraparte e, bem assim de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou de exceção (desde que suscitada/arguida pelas partes, pelo que não integra nulidade da sentença a omissão de pronúncia quanto a exceção de conhecimento oficioso do tribunal, mas não arguida pelas partes e de que este não tomou conhecimento – o que já consubstancia erro de direito, posto que o tribunal errou ao não conhecer da exceção, apesar desta ser do seu conhecimento oficioso), cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade por omissão de pronúncia, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica diferentes da sentença, que as partes hajam invocado, uma vez que o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, n.º 3 do CPC).
No caso, a confirmar-se que o Tribunal a quo não decidiu sobre se considerava provados ou não provados os factos alegados nos artigos 24.º e 25.º da p.i., estar-se-á perante uma deficiência na análise da prova, o que constitui erro de julgamento sobre a matéria de facto.
Nos casos em que ocorra “omissão de pronúncia” verificada ao nível do julgamento de facto, decorrente da 1ª Instância não ter considerado provados, sequer como não provados, factos essenciais que constituam a causa de pedir alegada pela demandante, em sede de petição inicial, para suportar o pedido que aí deduz (arts. 5º, n.º 1, 552º, n.º 1, al. d))- [ou integrativos das exceções invocadas pela demandada na contestação (arts. 5º, n.º 1, 571º, n.º 1, 572º, al. c) e 573º do CPC) ou das contraexceções invocadas pela demandante em sede de réplica, ou quando não tenha sido deduzida reconvenção (em que não é admissível a réplica), na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final, às exceções invocadas pela demandada (arts. 5º, 584º ex vi 3º, n.º 4 do CPC)]- violando o juiz os comandos legais enunciados nos artigos. 5º e 607º, n.ºs 3 e 4 do CPC, que lhe impõem o ónus de, na sentença, declarar quais os factos que julga como provados e quais os que julga não provados, devendo discriminar, isto é, autonomizar, individualizando-os, os que julga como provados, ónus estes que se lhe impõem quanto aos factos essenciais alegados pelas partes nos termos atrás referidos (art. 5º, n.º 1 do CPC), mas também quanto aos complementares, ainda que não alegados, desde que se se encontrem preenchidos os requisitos da al. b) do n.º 2 do art. 5º do CPC (resultem da instrução da causa e tenha sido observado, quanto a eles, o princípio do contraditório), é pacifico o entendimento de que sempre que o tribunal ad quem detete uma efetiva situação de omissão de pronúncia da 1ª Instância, em sede de julgamento da matéria de facto quanto aos enunciados factos essenciais ou complementares, a 2.ª Instância, como tribunal de substituição que é, deverá, mesmo oficiosamente, realizar esse julgamento de facto, sempre que disponha de elementos de prova que, com a necessária segurança, lho permita fazer, considerando provada ou não provada essa facticidade e motivando o julgamento que realize. De contrário, deverá anular a sentença e determinar a baixa do processo à 1ª Instância para que amplie o julgamento em relação a essa facticidade cujo julgamento de facto omitiu (art. 662º, n.ºs 1 e 2, al. c) do CPC).
Assente nestas premissas, verifica-se, na situação vertente, que a facticidade que os apelantes alegaram no ponto 24 ( “…a sala tem a dimensão com que inicialmente foi construída”), resulta apurada quando considerados os factos dados como provados. Na verdade, tendo o Tribunal a quo dado como assente que em 06 de dezembro de 1979, no âmbito do processo de obras n.º 92/62, o Presidente da Câmara Municipal (...) deferiu o projeto definitivo do prédio em que se integra a fração “D”, no qual constam peças desenhadas à escala 1/50, nomeadamente planta «rés-do-chão e 1.º e 2.º andares»; «corte CD»; «alçados, sul e norte»; «alçado oeste»; e «alçado este, e que nos desenhos relativos ao «rés-do-chão e 1.º e 2.º andares» e «corte CD», a sala comum do 1.º andar confronta para o terraço, com a inscrição de uma área de 17,5m2, em que parte do compartimento da cozinha e toda a secção da lavandaria se encontram a jusante da parede contígua ao terraço, bem como que no desenho «alçado este», junto ao terraço, no 1.º andar, não se encontra desenhada qualquer secção saliente à fachada exterior do prédio contígua ao terraço ( vide factos constantes dos pontos 10.º a 12.º do elenco dos factos assentes), e que posteriormente, na sequência de uma visita ao local pelos serviços de fiscalização da CM_, se constatou que a referida sala foi ampliada em 8 m2, e não tendo os apelantes impugnado esta concreta facticidade, a qual, por conseguinte se tem como definitivamente assente, daqui resulta necessariamente sob pena de contradição, que a dita sala não teve sempre a configuração que ora apresenta mas que essa configuração resulta de uma ampliação entretanto levada a cabo na dita sala daquela fração.
Assim sendo, não ocorre o invocado vício da deficiência que os apelantes imputam ao julgamento da matéria de facto realizado pelo Tribunal a quo, improcedendo este fundamento de recurso.
No que tange à matéria do ponto 25 ( “Sobretudo, tem a configuração e as medidas que tinha no momento em que os autores compraram a fração”), trata-se de matéria que não tem relevância para a decisão a proferir, uma vez que, de nada releva para a decisão da causa saber se quando os autores adquiriram a propriedade da dita fração a mesma já tinha a configuração que agora tem, apenas relevando saber se a mesma passou a ter ou não uma configuração diferente da que tinha quando foi licenciada, ou seja, desconforme em relação ao projeto aprovado e licenciado, sendo totalmente inócua a questão de saber se essa alteração foi efetuada antes ou depois dos autores terem adquirido a propriedade sobre a fração “D”.
Como tal, não pode senão considerar-se que se trata de matéria que não integra factos essenciais para a decisão da causa, pelo que, não se impunha ao Tribunal a quo que tivesse julgado essa matéria como provada ou não provada.
Termos em que improcede o invocado fundamento de recurso.

b.2. Do mérito

3.3.Os Apelantes insurgem-se contra a sentença recorrida que julgou a ação que moveram contra o Município Réu totalmente improcedente, mantendo na ordem jurídica o despacho proferido pelo Senhor Vereador do Pelouro das Obras Particulares da Câmara Municipal (...) em 08/05/2013, que lhes foi notificado em 15/05/2013, que determinou a cessação da utilização do sótão para fins habitacionais e a reposição da sala comum em relação à fração “D” de que os Autores são proprietários.
Os apelantes entendem que a sentença recorrida enferma de erro de julgamento sobre a matéria se direito, por considerarem que a mesma: (i) errou na interpretação e aplicação que fez do disposto nos artigos 79.º e 80.º do RGEU, quanto à questão da utilização do sótão da fração para fins habitacionais; (iii) errou ao determinar a “reposição da sala comum, conforme previsto no art.º 106.º, n.º3, do mesmo RJUE”, por desconsiderar que o exercício do direito à demolição no caso configura uma situação de abuso de direito nas vertentes doutrinárias da supressio e da ofensa ao princípio da proporcionalidade perante o resultado a obter, por violar o disposto no art.º 6.º-A do CPA e por ofensa ao disposto no art.º 106.º, n.º2 do RGEU, uma vez que sempre essa obra seria legalizável; (iii) errou ao considerar que a notificação ao autor para efeitos de audiência previa relativamente à intenção de proferir o despacho impugnado é suficiente, uma vez que esse direito e o interesse em participar no processo de formação também pertence à Autora mulher, situação que determina a anulação do despacho impugnado por violação do disposto nos artigos 100.º e 135.º do CPA.
Pretendem a revogação da decisão proferida pela 1.ª Instância e que o Tribunal ad quem a substitua por outra que julgue a ação procedente, e em consequência, anule o despacho impugnado.
Antes de iniciarmos a análise de cada um dos apontados fundamentos de recurso, importa recordar os factos que foram dados como provados na sentença recorrida e que precederam a prática do ato impugnado, para melhor contextualizarmos as questões a decidir, designadamente a tramitação do processo administrativo de licenciamento n.º 92/62.
Na sequência do licenciamento concedido a F... para a construção de imóvel para habitação e comércio, sito Rua (…), e terminada a sua construção, o mesmo, por requerimento de 30/03/1979, solicitou a realização de vistoria comprovativa de que “...as frações que constituem [o prédio] são suficientemente isoladas e independentes entre si para que nele possa ser constituído o regime jurídico da constituição da propriedade horizontal” , tendo então junto plantas do projeto, à escala de 1/50, relativas ao «rés-do-chão, 1.º e 2.º andares» e, ainda, «estudo de aproveitamento do sótão». Na planta do 1.º andar, a sala comum confronta para o terraço, com a inscrição de uma área de 17,5m2, em que parte da secção da cozinha e toda a secção da lavandaria se encontram a jusante da parede confinante ao terraço. No «estudo de aproveitamento do sótão» não consta o desenho de secções ou compartimentos (vide factos 1.º a 5.º do elenco dos factos assentes).
A vistoria foi realizada no dia 05/06/1979 “para a satisfação do disposto no artigo quarto...” do Decreto-Lei n.º 4333, de 14.10.1955, constando da mesma que o prédio era constituído pelas frações A a F, sendo que as frações «“C e D” – respetivamente, 1.º andar direito e 1.º andar esquerdo, para habitação, cada uma delas com a área de 124m2 e constituídas por hall de entrada, hall interior, sala comum, três quartos, dois quartos de banho, despensa, cozinha e marquise, e ainda, a primeira com um terraço com 106 m2 e uma dependência no sótão com 12 m2 e a segunda com um terraço com 149 m2 e três arrumos no sótão com a área total de 189 m2, atribuindo-lhes, respetivamente, as permilagens de 0,114 e 0,261.»
Lê-se ainda no auto de vistoria que «A Comissão por unanimidade, emitiu parecer que as frações referidas são suficientemente autónomas para o prédio se poder constituir em propriedade horizontal.»
Na sequência do auto de vistoria, em 07//06/1979, o Presidente da Câmara Municipal (...), deferiu o requerimento para a constituição de propriedade horizontal, e em 05/12/1979, F... requereu a realização de “...vistoria sanitária do referido imóvel para efeitos de obtenção de habitação e ocupação. O prédio a vistoriar tem 4 fogos e 1 estabelecimento...”.
Em 06/12/1979, foi exarado o «auto de vistoria sanitária», no qual se conclui que o prédio estava “...conforme requerimento e projeto aprovados, pelo que lhe pode ser concedida a respetiva licença de habitação e ocupação” , sendo que nessa mesma data, o Presidente da Câmara Municipal (...) deferiu o projeto definitivo do identificado prédio, no qual constam peças desenhadas à escala 1/50, nomeadamente planta «rés-do-chão e 1.º e 2.º andares»; «corte CD»; «alçados, sul e norte»; «alçado oeste»; e «alçado este» ( vide pontos 6.º a 10.º do elenco dos factos provados).
Nos desenhos «rés-do-chão e 1.º e 2.º andares» e «corte CD», a sala comum do 1.º andar confronta para o terraço, com a inscrição de uma área de 17,5m2, em que parte do compartimento da cozinha e toda a secção da lavandaria se encontram a jusante da parede contígua ao terraço. E no desenho «alçado este», junto ao terraço, no 1.º andar, não se encontra desenhada qualquer secção saliente à fachada exterior do prédio contígua ao terraço ( vide factos 11.º e 12.º do elenco dos factos assentes).
Entretanto, em 20/12/1979, a fração “D” foi inscrita na Conservatória de Registo Predial (...), através da a Ap. n.º 30, com a seguinte descrição: ”(...) Fração D constituído pelo 1.º andar esquerdo, com área de 124m2, um terraço com área de 149 m2 e três arrumos no sótão com a área total de 189 m2 destinada a habitação (...)- (vide facto 13.º do elenco dos factos provados).
Em 5 de março de 1985, os Autores outorgaram com F... e mulher D.... o documento denominado «permuta», em que os primeiros declararam dar aos segundos um terreno para construção urbana, e os segundos dar aos primeiros “a fração autónoma designada pela letra D, correspondente ao primeiro andar esquerdo, com área de cento e vinte e quatro metros quadrados, terraço com cento e quarenta e nova e nove metros quadrados e três arrumos no sótão com área total de cento e oitenta e nove metros quadrados, do prédio urbano sito na Rua José Luciano de Castro, número centro e quarenta e quatro (...) ( vide ponto 14.º do elenco dos factos provados).
Entretanto, a 06.08.1990, os serviços de fiscalização do Réu enviaram ao autor um ofício, na sequência de ter chegado ao conhecimento dos mesmos que o sótão da fração “D”, destinado a arrumos, estava ser utilizado como habitação, e tendo em conta que tal afetação contrariava o RGEU, notificaram-no para, no prazo de 30 dias, suspender a sua utilização como habitação, afetando-o apenas a arrumos da fração, sob pena de aplicação das sanções legais, tendo a ordem de cessação sido então acatada ( vide pontos 15.º a 16.º dos factos provados).
Acontece que, na sequência de uma nova reclamação, foi realizada uma fiscalização ao local, que teve lugar no dia 14/11/2012, tendo os serviços de fiscalização, conforme consta do auto de notícia, concluído que:
«Após receção do processo de obras n.º 92/62, a 13 de Novembro de 2012, proveniente da Divisão Administrativa do D.G.U.O.P (...), deslocaram-se estes serviços, no dia 14 de Novembro, pelas 16h50, à Rua (…), freguesia de (...), onde se contactou o proprietário, D... (...) verificando-se que:
1. Ao nível do primeiro andar esquerdo – fração D
Ampliação, em aproximadamente 8m2, da sala contígua à lavandaria, no alçado posterior (terraço)
2. Ao nível do sótão – fração D
Utilizado como habitação (segundo o proprietário, para o filho) e com um maior número de compartimentos, encontrando-se em desacordo com o projecto, nomeadamente:
a) Dois WC
b) Duas cozinhas
c) Sete arrumos
Segundo indicação dos proprietários da referida fração, todas as obras em epígrafe, já haviam sido realizadas no momento de aquisição do imóvel, há aproximadamente 30 anos.
(...).”
Perante estes factos, por ofício de 30/11/2012, o Senhor Vice-Presidente da Câmara Municipal (...) notificou o Autor D..., na qualidade de proprietário da fração “D” e sótão, para se pronunciar no prazo de 15 dias, quanto à intenção da Câmara Municipal vir a ordenar a cessação de utilização do sótão, em virtude de estar a ser afeto a fim diverso do previsto no respetivo alvará de autorização de utilização, emitido pela autarquia, nos termos do n.º1 do artigo 109.º do RJUE e à reposição da sala comum, conforme projeto de arquitetura aprovado e licenciado, em virtude de ter procedido à sua ampliação, aproximadamente em 8m2, sem o competente licenciamento, nos termos do n.º3 do artigo 106.º do RJUE- ( vide pontos 17.º e 18.º dos factos assentes).
O Autor respondeu em 11/12/2012, limitando-se a informar que quando adquiriu a fração “D”, em 05/03/1985, a sala comum e o sótão já tinham as configurações atuais, as quais datam, aliás, da data de construção do prédio, conforme informação dada pelo construtor, desconhecendo se as dependências têm a configuração projetada, entendendo que, já prescreveu o exercício de qualquer direito que tivesse por fim alterar a situação existente que perdurava com estabilidade há mais de 30 anos-(vide ponto 19 dos factos assentes).
A 09/01/2013, através do oficio n.º 226, o autor foi notificado que por despacho de 07/01/2013 do Senhor Vereador do Pelouro, lhe foi concedido um prazo de 60 dias “para apresentação do pedido de licenciamento das alterações efetuadas em desconformidade com o projeto de arquitetura licenciado”, o qual, em resposta datada de 05/02/2013, reiterou as razões que já anteriormente tinha exposto, comunicando que teve conhecimento da necessidade de todos os condóminos autorizarem a “legalização”, e que por isso “ nada adiantam diligências que o requerente faça agora no sentido que o ofício indica”-( vide pontos 20.º e 21.º do elenco dos factos provados).
Perante este quadro, o Senhor Vereador, por despacho datado de 08/05/2013, notificado por ofício de 15/05/2013, ordenou ao Autor que no prazo de 15 dias cessasse a utilização do sótão para fins habitacionais e procedesse à reposição da sala comum, conforme projeto aprovado- ( vide ponto 22.º do elenco dos factos provados).
Apurou-se ainda que na data deste despacho- 08/05/2013- o filho dos autores já não pernoitava no sótão da fração “D”.
São estes os factos em relação aos quais há que verificar se a subsunção jurídica dos mesmos ao direito efetuada pelo Tribunal a quo nos termos que constam da sentença recorrida merece a censura que os apelantes lhe dirigem.
b.2.1. da ordem de cessação da utilização do sótão da fração “D” para fins habitacionais: errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 79.º e 80.º do REGEU.
3.4.Os apelantes sustentam que a sentença recorrida errou na interpretação e aplicação que fez do disposto nos artigos 79.º e 80.º do RGEU quanto ao sótão que integra a fração “D”, sua propriedade, quando nela se refere que não figurando o sótão nos projetos de construção do prédio como local habitacional, mas apenas como local de arrumos, se conclui que o mesmo não poderia ser usado como habitação. Entendem que, pese embora seja verdade que o sótão tem como fim que é para “arrumos”, também não é menos verdade que o mesmo constitui um compartimento da fração “D”, a qual é, no seu todo, destinada a habitação, pelo que, sendo assim, nada deve impedir que um elemento do agregado familiar dos autores o utilize para pernoitar, como nada impediria que utilizasse para o mesmo efeito a sala de estar ou a despensa.
Advogam que aquilo que o RGEU estabelece e aquilo que o legislador pretendeu, é que os sótãos não possam constituir frações autónomas, isoladas e independentes, ou locais de utilização autónoma para habitação, mas que no caso o sótão faz parte da fração, não sendo dela separado, autónomo ou independente, sendo antes um compartimento da fração, pelo que o agregado pode fazer dessa dependência a utilização que entender desde que no contexto habitacional a que a fração se destina. E acrescentam que tratando-se de fração sujeita ao regime da propriedade horizontal, o que a lei proíbe, designadamente no artigo 1422.º, n.º2, al.c) do CC é que à fração seja dado destino diferente daquele que conste do título.
Lê-se na sentença recorrida a este respeito que: «Começando a descer aos autos, é certo que, quanto à ocupação do sótão pelo filho dos AA., verifica-se que o despacho impugnado já havia sido acatado à data da impugnação do despacho (ponto 23 dos factos provados). Tal não é impeditivo, porém, de se apurar se o ordenado pela Entidade Demandada, em relação à cessação de utilização do sótão para habitação e à reposição da sala comum, padece de algum erro nos seus pressupostos.
Diga-se, desde já, que a resposta se afigura negativa.
Quanto aos pressupostos de direito, e no que respeita à utilização do sótão para habitação, o artigo 79.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382, de 7 de Agosto de 1951 (na redacção promovida pelo Decreto-Lei n.º 44 258, de 31 de Março de 1962) estabelecia o seguinte:
Os sótãos, águas-furtadas e mansardas só poderão ser utilizados para fins de habitação quando satisfaçam a todas as condições de salubridade previstas neste regulamento para os andares de habitação. Será, no entanto, permitido que os respectivos compartimentos tenham o pé-direito mínimo regulamentar só em metade da sua área, não podendo, porém, em qualquer ponto afastado mais de 30 centímetros do perímetro do compartimento, o pé-direito ser inferior a 2 metros. Em todos os casos deverão ficar devidamente asseguradas boas condições de isolamento térmico.
Segundo o artigo 80.º do mesmo diploma,
As caves, sótãos, águas-furtadas e mansardas só poderão ter acesso pela escada principal da edificação ou por elevador quando satisfaçam as condições mínimas de habitabilidade fixadas neste regulamento. É interdita a construção de cozinhas ou retretes nestes locais quando não reúnam as demais condições de habitabilidade.
Pelo que improcede o alegado pelos AA. de que a licença de habitação permite darem o uso que livremente entenderem aos compartimentos da fracção. É certo, conforme alegam os AA., que qualquer pessoa poderá pernoitar nos compartimentos da fracção, nomeadamente no sótão, na sala comum ou na dispensa. Mas não podem é os AA. confundir um acto pessoal, integrado na autonomia da vontade, com o incumprimento de uma decisão que definiu uma situação jurídica, individual e concreta, em obediência a actos legislativos incidentes sobre as condições de habitabilidade dos fogos a licenciar. Caso contrário, a normatividade dos actos legislativos poderia ser afastada a partir de puros actos de vontade.
O alegado pelos AA. confunde a área útil com a área habitável da fracção: a primeira, “é a soma das áreas de todos os compartimentos da habitação, incluindo vestíbulos, circulações interiores, instalações sanitárias, arrumos, outros compartimentos de função similar e armários nas paredes, e mede-se pelo perímetro interior das paredes que limitam o fogo...”; a segunda “é a soma das áreas dos compartimentos da habitação, com excepção de vestíbulos, circulações interiores, instalações sanitárias, arrumos e outros compartimentos de função similar, e mede-se pelo perímetro interior das paredes que limitam o fogo...” (artigo 67.º, n.º 2 alíneas b) e c) do RGUE – sublinhados nossos.
A etimologia (subtulum, cognato de subtus, “o que está debaixo”, debaixo do telhado, da cobertura da casa, subentende-se) e a definição do termo «sótão», correspondente a “compartimento entre o telhado e o último andar de um edifício, geralmente com tectos inclinados” (cf. “sótão”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/s%C3%B3t%C3%A3o [consultado em 19-10-2020]), informam que este compartimento não é, em regra, adequado para ser habitado, sem prejuízo, como se disse, de a própria lei facultar essa possibilidade desde que assegurados os requisitos normativamente exigidos (artigo 79.º do RGEU).
Improcede deste modo o alegado pelos AA. de que poderiam habitar o sótão por tal se encontrar abrangido pela licença de habitabilidade.
Quanto aos pressupostos de facto, resulta da factualidade provada que aquando da entrega das peças desenhadas do projecto para a instalação de saneamento, inexistia canalização projectada para o sótão, nem compartimentos autónomos, nem saliências à fachada contígua ao terraço junto à sala comum (ponto 2, 4, 5 dos factos provados). Sendo certo que, a existir qualquer compartimentação, teriam de respeitar as áreas mínimas previstas no RGEU e o previsto no projecto (cf. artigos 8.º, §1, 68.º e 79.º do RGUE).»
Os fundamentos de recurso expendidos pelos Apelantes não são de molde a infirmar a correção do julgamento que foi realizado pela 1.ª Instância nos termos que se acabaram de transcrever razão pela qual subscrevemos integralmente o que foi decidido pela 1.ª Instância.
Resulta de forma inequívoca da factualidade que foi apurada, como vimos, que o sótão da fração “D”, em termos de licença de utilização foi destinado a arrumos e que em momento algum foi solicitada ou licenciada pela CM_ a sua utilização para fim habitacional, sendo de sublinhar que já em 1990 o autor fora notificado para proceder à cessação da utilização do sótão para fins habitacionais, tendo então cumprido essa ordem.
O RGEU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382, de 07/08/1951 dispunha e continua a dispor que « Os sótãos, águas furtadas e mansardas dó poderão ser utilizadas para fins de habitação quando satisfaçam a todas as condições de salubridade previstas neste regulamento para os andares de habitação”, sendo “interdita a construção de cozinhas ou retretes nestes locais quando não reúnam as demais condições de habitabilidade»- (cfr. artigos 79.º e 80.º do RGEU).
Logo, pese embora possa ser consentido o uso habitacional dos sótãos quando os respetivos compartimentos tenham o pé-direito mínimo regulamentar só em metade da sua área, não podendo, contudo, em qualquer ponto afastado mais de 30 centímetros do perímetro do compartimento, o pé-direito ser inferior a 2 metros, desde que estejam devidamente asseguradas boas condições de isolamento térmico, tal utilização tem de ser expressa e previamente requerida e licenciada, ao abrigo de diplomas que preveem o controlo prévio das operações urbanísticas e do RGEU.
Como bem nota o apelado, in casu, o uso do aludido sótão para fins habitacionais não foi previsto no projeto, nem requerido posterior e autonomamente, sequer em sede de legalização, donde forçoso é concluir que o sótão apenas pode ter por uso a sua utilização para arrumos, não podendo de forma alguma aquiescer-se que o sótão possa ser livremente utilizado para qualquer fim, designadamente, para fim habitacional, pela razão de ser esse o uso destinado à fração em que se integra. O facto de a fração “D” ser destinada a habitação não permite que o sótão, que está destinado a arrumos, possa legalmente ser utilizado para fins habitacionais.
Uma coisa é o destino das edificações, outro a utilização prevista para os diferentes compartimentos (art.º 6.º do RGEU), os quais não podem ser em número e área diferente da prevista no artigo 66.º do RGEU. Ademais como bem nota o apelado, o direito de propriedade sobre a fração não permite o gozo da coisa em desrespeito pela Lei e das restrições por ela impostas ( art.º 1305.º do CC), sendo evidente que a utilização reiterada do sótão para fins habitacionais autónomos da fração, comprovada pela presença de sanitários e cozinhas, altera a própria natureza de arrumos a que estava condicionado, traduzindo-se numa real autonomização de uma fração, cujo espaço passa a ser suscetível de utilização autónoma, independente da fração “D” do prédio, alterando a sua natureza sem a devida licença.
Acresce referir que Câmara Municipal, é a entidade competente para verificar e certificar se a construção do edifício, respetiva composição e destino de cada fração ou parte comum está de acordo com o projeto de construção aprovado.
Através da licença de utilização, a entidade pública administrativa competente para a concessão dessa licença, após verificação, certifica em como a fração cumpre com as normas administrativas necessárias para que seja dado a esta determinado uso, estando em causa preponderantemente interesses de ordem pública.
A «licença de utilização, da responsabilidade do Município, visa aferir da possibilidade de uma determinada ocupação ser efetivada em espaço concreto, previamente licenciada, seja habitacional, comercial ou industrial»- ( cfr. Ac. TCAN. De 30/11/2017, Proc. 02151/14.4BEPRT, in base de dados da DGSI ).
Não resta dúvida, que do direito de propriedade dos Autores sobre a identificada fração não faz parte o direito de utilização da mesma para fins distintos dos licenciados, pelo que, tendo o sótão sido destinado a ser utilizado como arrumos, não podiam os apelantes dar-lhe outra destinação, designadamente, utilizá-lo para fins habitacionais, sem previamente terem requerido à CM_ a alteração da licença de utilização, e obtido a aprovação da CM_ para a utilização desse espaço para fins habitacionais, para além das demais autorizações que teriam de obter dos condóminos no plano das relações civilísticas tendo em conta o regime legal da propriedade horizontal.
Termos em que improcedem os invocados fundamentos de recurso.

b.2.2. do erro de julgamento da sentença recorrida ao determinar a “reposição da sala comum, conforme previsto no art.º 106.º, n.º3, do mesmo RJUE”.

3.5. Os Apelantes impetram à sentença recorrida erro de julgamento sobre a matéria de direito ao decidir manter a validade do despacho impugnado no segmento em lhes ordenou a “reposição da sala comum, conforme previsto no art.º 106.º, n.º3 do mesmo RJUE”, por ao assim decidir, desconsiderar que o exercício do direito à demolição no caso configura uma situação de abuso de direito nas vertentes doutrinárias da supressio e da ofensa ao princípio da proporcionalidade perante o resultado a obter, violando o disposto no art.º 6.º-A do CPA e artigo 106.º, n.º2 do RJUE.
Na ação que intentaram, os ora apelantes alegaram que a fração “D” sua propriedade, supostamente com mais 8 m2 de área do que a resultante da medição das linhas porque é demarcada no projeto de arquitetura aprovado, sempre teve a configuração e medidas que hoje tem, e assim, já as tinha aquando da vistoria efetuada ao prédio para efeito de constituição do prédio em regime de propriedade horizontal, pelo que, ou a referida sala tem a dimensão projetada, ou não a tendo, a Câmara Municipal deu o seu acordo tácito a essa eventual desconformidade, pois de contrário, não teria dado a autorização para a sujeição do prédio ao regime de propriedade horizontal, mediante a dita vistoria, que aconteceu em 05/06/1979. Donde, o facto de durante mais de 30 anos, sem a mínima reação adversa da Câmara Municipal, a sala se ter mantido com a essa configuração e medidas, não pode deixar de constituir autorização, ainda que tácita, para essa eventual desconformidade. E como tal, a supressio, agora, dessa autorização constitui o exercício abusivo do correspondente direito, por ofensa dos princípios da boa-fé e da confiança. Ademais constitui ainda abuso de direito por violação do princípio da proporcionalidade, uma vez que o cumprimento desse despacho acarretaria a demolição das paredes e piso da sala da fração dos autores e a sua reconstrução, ocasionando despesas superiores a 5.000,00€, sem que daí resultasse qualquer beneficio para quem quer que fosse, num claro excesso de sacrifício dos autores sem contrapartida útil para ninguém, sendo como tal abusivo o exercício do direito à ordem de demolição.
Dai que, na sua perspetiva, a sentença recorrida ao confirmar a legalidade da ordem de reposição da sala comum nas condições que constam do projeto aprovado pela Câmara Municipal no âmbito do respetivo processo de licenciamento, incorreu em erro de julgamento, não tendo reconhecido que a prolação do referido despacho consubstancia uma atuação em abuso de direito na modalidade de supressio, decorrente da violação dos princípios da boa-fé, da confiança e da proporcionalidade.
Dito isto, vejamos se assiste razão aos apelantes para as críticas que assacam, neste segmento, à sentença sob sindicância.
O instituto do abuso de direito encontra-se previsto em termos amplos pelo legislador português no artigo 334º do CC e visa obtemperar a situações em que a concreta aplicação de um preceito legal que confere um direito subjetivo a uma determinada pessoa perante um determinado devedor, na normalidade das situações seria ajustada, mas numa específica situação da relação jurídica estabelecida entre credor/devedor, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante- (cfr. Ac. STJ. de 15/03/2013, Proc. 600/06.5TCGMR.G1.S1, in base de dados da DGSI).
O instituto em apreço configura, por isso, uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais, com que o legislador visa obstar à injustiça chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, isto é, em que almeja remediar à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante que seria o exercício de um direito por lei conferido a uma determinada pessoa, numa particular situação em que esse direito fosse exercido de forma patentemente intolerável e excessiva- (cfr. Manuel de Andrade, “Teoria Geral das Obrigações”, 1958, pág. 63).
No abuso de direito não se trata da violação de um direito de outrem, ou da ofensa a uma norma tuteladora de um interesse alheio, mas do exercício anormal do direito por parte do titular desse direito, que o exerce em termos reprovados pela ordem jurídica, na medida em que embora o exerça respeitando a estrutura formal do direito, atentas as situações particulares do caso concreto em que o exerce, viola a afetação substancial, funcional ou teleológica desse direito, de modo que se impõe considerar que esse exercício, por referência ao quadro concreto em que o mesmo é exercido, é ilegítimo-(cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., Almedina, pág. 563).
É assim que o artigo 334º do CC estabelece em termos amplos que “é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Este normativo é expresso no sentido que os titulares do direito se encontram condicionados, no respetivo exercício, aos limites decorrentes da boa fé, dos bons costumes e do fim social e económico desse direito, de modo que quando esses limites são ultrapassados, o exercício de determinado direito, ainda que formal e aparentemente legítimo, não o é materialmente, porque contraria os valores estruturantes do sistema jurídico, devendo em tais casos neutralizar-se a conduta do titular do direito em causa, declarando-a ilícita, com as consequências de todo o ato ilegítimo, maxime, em sede indemnizatória.
No plano jurídico, diremos que o abuso de direito configura uma exceção perentória, que se comporta como uma exceção de facto, também dita como exceção em sentido impróprio, na medida em que impede o exercício do direito por parte do respetivo titular contra a outra parte.
Tratando-se de uma exceção de facto, e não se encontrando o tribunal da 1ª Instância, sequer o de recurso, sujeito ao enquadramento jurídico dos factos alegados pelas partes e que se quedaram como provados (sequer as Instâncias Superiores ao enquadramento jurídico que desses mesmos factos foi feito pela 1ª Instância), é indiscutível que quando os factos provados permitam concluir pela verificação de abuso de direito, o tribunal da 1ª Instância ou o de recurso, podem, e devem, conhecer dessa exceção oficiosamente, isto é, independentemente desta ter sido ou não invocada pela parte a quem aproveita (arts. 573º, n.º 2, parte final, e 579º do CPC)- (cfr. Ac. STJ. de 01/07/2004, Proc. 04B4671, RL. de 26/06/2014, Proc. 1524/10.7TBCSC.L1, ambos in base de dados).
Pese embora se trate de um instituto previsto para as relações jurídico-privativas, a sua aplicação nas relações jurídico-administrativas, enquanto corolário do princípio geral da boa fé, que deve nortear a atividade administrativa, conforme decorre do disposto nos artigos 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e 6.º-A do CPA/1991, tem sido aceite pela doutrina e pela jurisprudência sem qualquer objeção. (cfr. nesse sentido, na doutrina, LUÍS CABRAL DA MONCADA, «Boa fé e tutela da confiança no Direito Administrativo» in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, vol. II, 2010, pp. 574 e ss.; PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, 2013, pp.920 e ss.; idem, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 2013, p. 374; PEDRO MONIZ LOPES, O Princípio da Boa fé e Decisão Administrativa, 2011, pp. 207 e ss. MARCELO REBELO DE SOUSA, ANDRÉ SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, tomo I, 2004, pp. 213 e ss.; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 4.ª ed., 2018, pp. 117-121; ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3.ª ed., 2011, pp. 404 e ss. e idem, I, Parte Geral, tomo IV, 2007, pp. 239 e ss.; na jurisprudência, inter alia, cf. Acórdãos do STA, de 06.05-2003, proc. n.º 046188; de 18.01.2005, proc. n.º 060/04; de 05.03.2005, proc. n.º 0170/03; de 21.06.2007, proc. n.º 0126/07.).
Precise-se que a boa-fé, nos termos consagrados no artigo 6.º-A do CPA, na versão aplicável aos autos, é fundamentalmente a consideração razoável e equilibrada dos valores fundamentais do direito, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela atuação em causa e o objetivo a alcançar com a atuação empreendida.
A boa-fé configura, assim, um conceito indeterminado que cabe ao intérprete preencher casuisticamente, de acordo com as circunstâncias específicas do caso e as convicções historicamente dominantes em cada momento histórico- (cfr. Ana Prata, “Dicionário Jurídico”, vol. I, 5ª ed., Almedina, pág. 214).
Como é entendimento pacífico, agir de boa-fé significa atuar com lealdade, correção, e sem reservas na relação com outrem, agindo de forma honesta e conscienciosa, a fim de não prejudicar os legítimos interesses ou expectativas criadas no destinatário, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.
Nos termos do artigo 6.º -A do CPA (artigo 10.º do novo CPA) “a boa-fé deve ser predicado não apenas da Administração, mas também dos particulares no seu relacionamento recíproco. Quer isto dizer que as consequências de um comportamento conforme com a boa-fé podem favorecer qualquer uma das partes na relação. Ao mesmo tempo e pelo que toca agora à Administração, a boa-fé deve nortear toda a sua atividade, incluindo a de direito privado, e estar presente em qualquer fase da mesma desde a inicial à final.
(…) A boa-fé tem dupla natureza: é subjetiva e objetiva. A primeira corresponde a um estado de espírito de quem atua e a segunda a uma conduta marcada por critérios axiológicos normativizados. Ambas relevam no direito administrativo. (…)
A boa-fé obriga.»-( cfr. Luiz S. Cabral de Moncada, in Código do Procedimento Administrativo, Anotado, 3.ª Edição, pág. 105). E obriga a Administração não apenas no plano procedimental mas também num plano substancial «erradicando decisões manifestamente incompreensíveis e inaceitáveis pelos seus destinatários para além de imprevisíveis e inesperadas (…).
Analisa-se, entre outros aspetos a referir, na vedação do abuso de direito e do desvio de poder, do estoppel ou adoção de condutas contraditórias (também conhecido pela proibição do venire contra factum proprium), na proteção da confiança legitima do destinatário dos atos e condutas administrativas»- (cfr. ob. citada, pág. 105).
Saliente-se que no abuso de direito, tratando-se de uma situação em que existe efetivamente o direito por parte de quem o exerce, ao menos do ponto de vista formal, conforme decorre do enunciado artigo 344º do CC, a neutralização do exercício desse direito com fundamento na cláusula geral do abuso de direito apenas será legitimada quando o excesso cometido pelo titular do direito em causa no respetivo exercício seja “manifesto” ou, dito por outras palavras, seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.
Acrescente-se que para haver abuso de direito não é necessário que exista da parte do titular do direito a consciência de que no exercício deste se encontra a exceder os limites impostos pela boa fé, uma vez que a conceção adotada pelo legislador nacional de abuso de direito é a objetiva, não dependendo, por isso, dessa consciência, mas antes das circunstâncias concretas e objetivas em que o titular o exerce, pelo que se estará perante uma situação de abuso de direito sempre que o exercício do mesmo ofenda objetivamente, segundo o padrão de referência de um cidadão médio, que se encontrasse nas situações especificas em que o titular do direito o exerce, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico que subjazem a esse direito.
Note-se que do que se acaba de dizer não decorre que na apreciação desse abuso se deva prescindir de fatores subjetivos, como seja a intenção com que o titular do direito o exerce, posto que se é certo, que à afirmação do abuso não é necessária a consciência do abuso por parte do agente, essa consciência, quando exista, não deixará de ser fator relevantíssimo para se concluir pela existência do abuso do direito e para extrair as inerentes consequências, máxime, indemnizatórias, onde, conforme decorre do artigo 483º, n.º 1 do CC, em que não se prescinde do requisito da culpa.
O instituto do abuso de direito pressupõe assim, que o direito exista e que dele seja titular quem o exerce e assenta essencialmente, no princípio geral de que “as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” –cfr. Coutinho de Abreu, in “Do Abuso de Direito”, pág. 55.
Na tipologia do abuso de direito sobressai o denominado venire contra factum proprium.
Nessa tipologia existirá abuso de direito de um modo geral, quando o titular de um direito visa, mediante o exercício do direito de que é titular “extinguir certa relação subjetiva, recorrendo ao direito de anular, resolver, revogar ou denunciar o negócio que lhe serviu de fonte, depois de fazer ver à parte contrária (…) que não exerceria tal direito”-
(cfr. Antunes Varela, “ Centros Comerciais “, pág. 90.)
O venire contra factum proprium traduz, assim, por parte do titular do direito, uma traição à confiança depositada por aquele contra quem o direito é exercido, decorrente de uma conduta anterior do titular do direito, geradora da confiança legítima em como esse direito jamais seria por ele exercido. Esta modalidade de abuso de direito baseia-se, por isso, na tutela da confiança e exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele (o titular do direito) que assume comportamentos contraditórios, resumindo-se à ideia de que a ninguém é permitido agir contra o seu próprio ato/comportamento, assentando, por isso, o abuso numa estrutura que pressupõe duas condutas da parte do titular do direito, ambas lícitas, ainda que assumidas em momentos temporais distintos, em que a primeira conduta (factum proprium) é contrariada pela segunda (venire contra)- (cfr. Ac. STJ. de 05/06/2018, Proc. 1085/15.9TCBR-A.C1.S1, in base de dados da DGSI).
Segundo Batista Machado, são pressupostos do abuso de direito na modalidade de
venire contra factum proprium: a- a verificação de uma situação objetiva de confiança: a conduta de alguém que possa ser entendida como vinculante em relação a uma situação futura; b- o investimento na confiança e irreversibilidade desse investimento: a outra parte, com base na situação criada, organiza planos de vida de que surgirão danos se a sua confiança legítima lhe vier a ser frustrada; e a c- boa fé da contraparte que confiou: nos casos de divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, a contraparte só é merecedora de proteção jurídica se estiver de boa fé (por desconhecer aquela divergência) e tenha agido com cuidado e precaução usuais ao tráfico jurídico”- (cfr. Batista Machado, “Obra Dispersa”, vol. I, págs. 416 e segs).

Diversa desta modalidade de abuso de direito é a variante do abuso de direito conhecida por “supressio”. Esta modalidade assenta no decurso de um período do tempo significativo em que o direito não é exercido, suficientemente ampla de modo a ser suscetível de criar à contraparte a legítima e fundada expectativa de que o direito não mais será exercido pelo respetivo titular.
O que distingue a “supressio” da modalidade “venire contra factum proprium” é a ausência de “factum”, isto é, do comportamento anterior por parte do titular do direito, bastando o decurso de tempo significativo sem que o direito seja exercido para face às circunstâncias específicas do caso concreto, ser criada à contraparte a fundada expectativa de que o direito não mais será exercido.
Deste modo, o comportamento reiteradamente omissivo por parte de quem poderia exercer o direito, seguido, ao fim de um largo período temporal, de um ato comissivo com que a contraparte legitimamente já não contava, constitui abuso de direito na modalidade de supressio.
Nesta modalidade de abuso de direito, protege-se a legítima confiança do devedor que, ao fim de largo período de tempo de silêncio do seu credor, é surpreendido com a demanda que já não esperava- (cfr. Ac. STJ. de 12/06/2012, Proc. 1267/03.8TBBGC.P1.S1; Ac. TRP, de 15/12/2005, Proc. 0535984; Ac. do TRC de 12/09/2017, Proc. 7471/15.9T8CBR.C1, todos disponíveis in base de dados da DGSI).

Especifique-se, no entanto, que embora a doutrina e a jurisprudência sejam uniformes em admitir esta modalidade do abuso de direito, fundada no comportamento omissivo do titular do direito ao longo de um extenso período temporal, suscetível de gerar a legítima confiança na contraparte de que esse direito já não seria exercido e que se vê confrontado com uma situação de rutura abrupta dessas suas expectativas de continuidade de não “exercício do direito” pelo respetivo titular , quando subitamente se vê confrontado com o exercício desse direito por parte do último, é entendimento maioritário da jurisprudência que para que exista abuso de direito na modalidade de supressio, não basta o simples decurso do tempo sem o exercício do direito por parte do titular do mesmo, mas é imprescindível o apuramento de circunstâncias objetivas e concretas que justifiquem da parte daquele contra quem o direito acaba por ser exercido, a legitima confiança de que o direito já não seria exercido por parte do respetivo titular, uma vez decorrido esse longo período de tempo de inação.

Deste modo, para que se afirme abuso de direito na modalidade de “supressio”, exige-se, para além do não exercício do direito por parte do respetivo titular durante um longo período de tempo significativo, eminentemente variável, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, é necessário que se verifiquem razões concretas e objetivas por parte de quem é objeto do exercício desse direito que justifiquem a sua expectativa de que o direito não mais será exercido, ou seja, torna-se necessário que do conjunto das circunstâncias presentes no caso concreto se conclua que o titular do direito deu à contraparte a impressão de que não mais faria valer o direito em causa.
Assentes nestas premissas, revertendo ao caso dos autos, neles está em causa uma ordem de reposição da sala comum da fração “D” de que os apelantes são proprietários, que foi alterada em relação ao projeto aprovado e licenciado, passando a ter uma área superior em 8m2, encurtando o terraço, e aumentando a área coberta da fração.
Ora, como bem se refere na sentença recorrida «dos factos provados não é possível concluir que deve ser imputada à Entidade Demandada uma situação apta a justificar um investimento de confiança dos AA., merecedor de tutela jurídica».
E isso porque, não «só as licenças emitidas pelo Município suportaram-se nos projetos aprovados» como porque «a conduta da Entidade Demandada foi no sentido de os AA. corrigirem as situações detetadas sempre que o Município delas teve conhecimento».
Logo, não «se pode assim afirmar que os AA. tinham expectativas legítimas ou suficientemente justificadas, pois não demonstraram que desconheciam, sem culpa, as alterações introduzidas na fração (boa fé subjetiva), independentemente da sua autoria. Pelo contrário, os factos provados afirmam o contrário».
Acresce, por outro lado que « não se vislumbra sequer um não exercício das competências do Município, muito menos que o atual exercício resulte de um excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé ( artigo 334.º do CC). Trata-se apenas de exercer as competências atribuídas no quadro da tutela da legalidade urbanística(…)».
Sublinhe-se que o apelado, no exercício das competências legais que lhe estão atribuídas em ordem a manter um urbanismo ordenado, não é livre de agir ou não agir, conquanto atua no exercício de um dever de prossecução da legalidade urbanística (art. 3º do CPA) e no exercício de um poder de conteúdo vinculado. A emissão de uma ordem de reposição/ demolição de edificado em desconformidade com o que foi aprovado e licenciado, não está condicionada a qualquer prazo de prescrição, porquanto não está aqui em causa nenhum direito privado que pudesse ser subsumível aos preceitos legais do Código Civil reguladores da prescrição.
É inquestionável que as normas legais ao abrigo dos quais foi proferido o ato impugnado, são normas de direito público, ou seja, são normas que regulam as relações que se estabelecem entre o Estado ou outros entes públicos, investidos nos seus poderes de autoridade, e os particulares.
E no caso, importa frisar que o apelado atuou, não no exercício de um direito dependente da sua vontade, mas antes no exercício de um dever de prossecução da legalidade urbanística e no exercício de um poder de conteúdo vinculado, atendendo a que, se determinada obra não é legalizável ou, sendo-o, o interessado não promover a sua legalização, a entidade pública tem de ordenar a demolição, independentemente do período de tempo que tenha decorrido desde a sua construção. No caso, o apelado agiu em cumprimento do disposto no artigo 102.º, n.º1, alínea c) do RJUE, onde se estatui expressamente que:
«1- Os órgãos administrativos competentes estão obrigados a adotar as medidas adequadas de tutela e restauração da legalidade urbanística quando sejam realizadas operações urbanísticas: a) Sem os necessários atos administrativos de controlo prévio (…).
e) Em desconformidade com as normas legais ou regulamentares aplicáveis»
Por outro lado, recorde-se, e conforme bem sintetizou o STA, no seu acórdão de 18/06/2003, proferido no processo n.º 01188/02, citado pela sentença recorrida, embora « Um dos corolários do princípio da boa-fé consiste no princípio da proteção da confiança legítima, incorporando a boa-fé o valor ético da confiança», a verdade é que « a aplicação do princípio da confiança está dependente de vários pressupostos, desde logo, o que se prende com a necessidade de se ter de estar em face de uma confiança “legítima” o que passa, em especial, pela sua adequação ao Direito, não podendo invocar-se a violação do princípio da confiança quando este radique num ato anterior claramente ilegal, sendo tal ilegalidade percetível por aquele que pretende invocar a seu favor o referido princípio», observando-se que « as meras expectativas fáticas não são juridicamente tuteladas».
Assim, claro está que assentando o abuso de direito, na modalidade de supressio, no decurso de um período de tempo suficientemente amplo, sem que o direito seja exercido, e que perante as circunstâncias específicas e concretas em que ocorre esse não exercício, seja suscetível de criar àquele em relação ao qual o direito é exercido, a legitima e fundada expectativa de que esse direito não mais seria exercido, no caso, forçosamente tem de se concluir que o apelado ao ordenar a reposição da sala da fração “D” em conformidade com o projeto aprovado e licenciado, agiu sem cometer nenhum excesso, não tendo exercido nenhum direito em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante, mas antes cumprido um dever que se lhe impunha, sem que daí resulte a violação de qualquer legítima expectativa dos apelantes na manutenção da situação urbanística ilegal, tanto quanto é certo que já em 06/08/1990, o réu enviara ao autor um ofício onde se reportava que o sótão estava a ser utilizado como habitação, e que essa utilização deveria cessar, no prazo de 30 dias sob pena de aplicação das sanções legais, injunção que o autor acatou, pelo que o réu não foi complacente com esta situação, que não tolerou.
No que tange à alegada violação do princípio da proporcionalidade, acresce precisar que a atuação do apelado de forma alguma pode ser tida como desproporcional ou excessiva, como propugnam os apelantes, uma vez que, perante a constatada ilegalidade da ampliação da sala comum da fração “D”, propriedade dos Autores, cuja área foi aumentada em mais 8m2 em relação ao projeto que fora aprovado e licenciado, ocupando parte do terraço, o apelado adotou as medidas que se impunham, tendo para o efeito, previamente à ordem de reposição, notificado o autor para requerer a legalização das alterações verificadas, dando cumprimento ao disposto no artigo 106.º, n.º2 do RJUE. E só depois do autor informar que não iria requerer a legalização dessas obras, é que o apelado proferiu a decisão impugnada, que constitui a “ultima ratio” no domínio das medidas de controlo da legalidade urbanística como uniformemente é considerado pela doutrina e pela jurisprudência, sendo que nenhuma outra medida menos gravosa se antolha como possível para repor a legalidade urbanística violada que não a ordem de reposição/demolição proferida pelo apelado.
A jurisprudência vem sustentando de modo consistente a este respeito que :“I - O poder de escolha entre a demolição e a legalização de obras levadas a cabo sem o necessário licenciamento prévio, por parte da Câmara Municipal ou do seu Presidente, ao abrigo das disposições conjugadas dos art. 165.º e 167.º do RGEU (…), é discricionário quanto ao tempo da decisão, pois que a mesma pode em tal matéria ser tomada a todo o tempo. II – O apontado poder de escolha funciona porém na base de um pressuposto vinculado, já que a demolição só pode ter lugar se a autoridade houver previamente concluído pela inviabilidade da legalização das obras, por estas poderem satisfazer os requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade. III – Nesta última hipótese, a decisão no sentido da demolição surge como vinculada “– ( cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 19.05.1998, 1.ª secção, P. 43433)
É consensual o entendimento de que “o Presidente da Câmara, uma vez confrontado com a edificação não licenciada, além de acionar um procedimento sancionatório, de acordo com o n.º 10 do art. 98.º do DL n.º 555/99 – o qual não tem como fim a reposição da legalidade, mas sim a punição de uma atividade ilícita - , e de embargar a obra, deverá desencadear um procedimento de legalização da mesma (…)” – (cfr. Carla Amado Gomes, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 19, Janeiro/Fevereiro 2000, Embargos e demolições: entre a vinculação e a discricionariedade, p. 47).
Efetivamente, nos termos do disposto no artigo 106.º do RJUE a demolição de obra de construção não pode ser ordenada se for suscetível de ser licenciada ou autorizada ou se for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis mediante a realização de trabalhos de correção ou de alteração, o que constitui uma manifestação dos princípios da necessidade, adequação, indispensabilidade ou menor ingerência possível, decorrentes do princípio da proporcionalidade –( cfr. Ac de 7/10/2009 do STA.)
Como defende a jurisprudência, “a ponderação da possibilidade de legalização de obra ilegal constitui pressuposto da decisão de ordenar a sua demolição, e que tal ponderação deverá ser feita atendendo às características da obra concreta, para ver se ela, apesar de ilegalmente realizada, satisfaz os requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade, ou é suscetível de os vir a satisfazer mediante algumas alterações, pois é isso que decorre dos princípios da necessidade, adequação, indispensabilidade ou menor ingerência possível, corolários do princípio da proporcionalidade” – ( cfr. acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 08/07/2010, proferido no âmbito do processo nº 1656/06.6BEVIS, entre muitos outros.)
Ora, no caso, como vimos e insistimos, a decisão que ordenou aos apelantes a reposição/demolição da sala comum da fração “D” nas condições que constam do projeto aprovado, foi precedida da notificação ao autor para que procedesse à sua legalização, e só depois de o mesmo comunicar que não iria requerer a respetiva legalização é que o apelado emanou o ato impugnado por via do qual ordenou ao apelante que procedesse à reposição da sala no estado correspondente ao que constava do projeto aprovado e licenciado.
É que, na linha do que bem se decidiu em Acórdão deste TCAN, de 05/06/2015, proferido no processo nº 63/12.6BEBRG, se é certo que nos termos do art.º 106°, n° 2 do RJUE «a demolição não pode ser ordenada se a obra for suscetível de ser licenciada ou autorizada ou se for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis mediante a realização de trabalhos de correção ou de alteração», mostrando-se ser a demolição a ultima ratio que apenas deve ser utilizada quando se revele o único meio possível de repor a legalidade urbanística, atento o princípio da proporcionalidade, em qualquer caso, a situação de ilicitude não se poderá eternizar, devendo os interessados, promover a legalização da operação em prazo razoável, tanto mais que a legalização de obras corresponde a um ónus dos interessados. Logo, caso os interessados não realizem os trabalhos de correção ou alteração devidos, nos termos do artº 105° do RJUE, ou não promovam a legalização da operação em prazo razoável concedido para o efeito, é legítima a emanação da ordem de demolição, de modo a fazer cessar a situação de ilegalidade verificada, sob pena de se eternizar uma situação de impunidade permissiva.
Em face de tudo quanto se expendeu, é assim muito claro que não assiste nenhum razão aos apelantes no que tange aos invocados fundamentos de recurso, não tendo o apelado agido em abuso de direito ao prolatar o despacho impugnado, mas antes no exercício de poderes vinculados em ordem a garantir um urbanismo disciplinado e ordenado.
Termos em que improcedem os invocados fundamentos de recurso.
b.2.3. Da violação do disposto nos artigos 100.º e 135.º do CPA- Preterição do direito de audiência prévia da autora mulher.
Por fim, os apelantes impetram à sentença recorrida erro de julgamento em matéria de direito por naquela o Tribunal a quo ter decidido que a notificação ao autor marido para efeitos de audiência previa relativamente à intenção de proferir o despacho impugnado é suficiente, não tomando em consideração que esse direito e o interesse em participar no processo de formação também pertence à Autora mulher, situação que determina a anulação do despacho impugnado por violação do disposto nos artigos 100.º e 135.º do CPA.
Vejamos, antes de mais, a decisão proferida pela 1.ª Instância quanto a esta questão e que foi a seguinte:
«(…) A audiência prévia consubstancia um direito procedimental, de natureza instrumental, inserido na estrutura organizatória da Administração, previsto no artigo 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, enquanto manifestação da ancianidade do princípio audiatur et altera pars. O procedimento administrativo deve, assim, revestir a forma de um debate dialógico entre a Administração e o interessado, e não meros monólogos sobrepostos, constituindo a audiência prévia o estádio final da fase preparatória do procedimento.
Segundo o artigo 100.º, n.º 1 do CPA/1991, “concluída a instrução (...) os interessados têm o direito a ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta.”
Trata-se de concretizar o princípio da participação dos interessados, previsto no artigo e 8.º do CPA/1991, no sentido de “assegurar a participação dos particulares (...) na formação das decisões que lhes disserem respeito, designadamente através da respetiva audiência, nos termos deste Código”.
A violação deste direito, atenta a sua natureza instrumental, não conduz, por regra, à nulidade do ato, mas à mera anulabilidade (artigo 133.º e 135.º do CPA/1991; Acórdãos STA, de 11.09.2008, proc. n.º 0112/07, TCA Sul, 24.11.2016, proc. n.º 05079/09).
O artigo 106.º, n.º 1 do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, determina que as medidas de tutela de legalidade urbanística são notificadas “ao responsável pela direção técnica da obra, bem como ao titular do alvará de licença ou apresentante da comunicação prévia e, quando possível, ao proprietário do imóvel no qual estejam a ser executadas as obras ou seu representante, sendo suficiente para obrigar à suspensão dos trabalhos qualquer dessas notificações ou a de quem se encontre a executar a obra no local.”
Descendo aos autos, verifica-se que o A. D..., proprietário da fração, foi notificado do projeto de decisão, tendo exercido o direito de audiência dos interessados, sem que em tal momento tenha alegado qualquer ilegitimidade e sendo o único interveniente no procedimento (pontos 14, 18 e 19 dos factos provados).
Foi assim integralmente cumprido o direito de audiência, não podendo os AA. virem agora alegar qualquer decisão-surpresa, quando foi exercido o respetivo contraditório no sentido de alterar o projeto de decisão. Conforme referido no Acórdão do TCA Norte, de 03.05.2013, proc. n.º 00217/08.0BEVIS, o direito de audiência dos interessados “...constitui uma manifestação em sede do ordenamento procedimental administrativo do princípio do contraditório mediante a consagração da possibilidade não só do confronto dos critérios da Administração com os dos administrados de modo a poderem ser obtidas plataformas de entendimento, mas, também, da possibilidade de estes apontarem razões e fundamentos, quer de facto quer de direito, que invalidem o caminho que a Administração intenta percorrer e levem a que outro seja o sentido decisório.
Por outro lado, a regra comum é a de que qualquer dos cônjuges, desacompanhado do outro, tem legitimidade para a prática de atos de administração ordinária sobre os bens comuns, isto é, para a prática de atos de gestão normal dos bens, incluindo os atos de conservação (artigo 1678.º, n.º 3 do CC). Com efeito, a direção da família pertence a ambos os cônjuges que devem “acordar sobre a orientação da vida em comum tendo em conta o bem da família e os interesses um do outro (artigo 1671.º, n.º 2 do CC – sublinhado nosso).
A que acresce que a falta de notificação para a audiência dos interessados não é pressuposto da validade do ato, mas apenas da sua eficácia (artigo 66.º e 127.º do CPA/1991; Acórdãos do STA, de 06.04.2000, proc. n.º 043522; de 28.01.2003, proc. n.º 048363; de 01.07.2004, proc. n.º 058/03; e de 26.10.2004, proc. n.º 0498/03).
Em suma, improcede a alegada invalidade do ato impugnado, por violação do direito à audiência de I..., cônjuge do A. D....»
Será assim?
Está em questão saber se estando em causa a intenção da Entidade Demandada de ordenar a reposição da sala comum da fração “D”, propriedade de ambos os autores, casados entre si, no estado correspondente ao projeto que foi aprovado e licenciado pela Câmara Municipal aquando da construção do prédio constituído em regime de propriedade horizontal em que se integra a referida fração, a autora mulher devia ter sido notificada para exercer o direito de audiência prévia relativamente a essa intenção de decisão ou se para cumprimento da audiência prévia dos interessados, bastava que tivesse sido notificado o autor marido, assim se assegurando plenamente o referido direito de defesa dos administrados perante as decisões desfavoráveis que a Administração tem intenção de praticar.
O Tribunal a quo considerou que era bastante para cumprir esse desiderato da audiência prévia dos interessados que no caso em analise tivesse sido notificado o autor marido, invocando ainda para essa conclusão o regime previsto no artigo 1678.º, n.º3 do CC.
A respeito da necessidade da notificação da cônjuge mulher embora de uma ordem de demolição, já o STA foi chamado a pronunciar-se, em termos que consideramos relevantes para o conhecimento da questão ora em análise, no Acórdão proferido em 15/06/2016, processo n.º 01636/15.
Lê-se nesse douto acórdão do Venerando STA que: «O conceito de interessado no procedimento administrativo não nos é dado diretamente pelo anterior CPA - aqui aplicável por vigorar à data dos factos – pelo que terá de ser através da análise das suas normas que poderemos identificar quem gozará dessa qualidade. Ora, dessa análise resulta que interessado no procedimento administrativo é, desde logo, todo aquele que, sendo titular de um determinado direito subjetivo ou de um interesse legalmente protegido, pode desencadear aquele processo podendo, por isso, vir a ser lesado nos seus direitos ou interesses pelos atos que vierem a ser praticados e que, por isso, se configura como o destinatário desses atos. Mas também gozará dessa qualidade aquele que, não tendo sido interveniente direto nesse procedimento, pode vir a ser afetado, direta e imediatamente, pelas decisões nele proferidas (vd., entre outros, seus art.ºs 53.º/1, 55.º/1, 59.º, 66.º art.º 117.º e 132.º/1).
Por essa razão, é que
o citado art.º 66.º impõe que sejam notificados aos interessados todos os atos praticados no procedimento sempre que estes (1) decidam as pretensões que haviam sido formulas ou (2) lhes imponham deveres, sujeições ou sanções ou lhes causem prejuízos (seu art.º 66.º).
Todavia, nem todos os que podem vir a ser atingidos pelas decisões proferidas no procedimento podem ser considerados interessados para os efeitos do disposto naquele art.º 66.º uma vez que a notificação só obrigatória em relação àqueles cujas suas posições são diretamente afetadas pelo ato e não aqueles cujos direitos ou interesses sejam (ou possam vir a ser) afetados de forma longínqua ou reflexa uma vez que, se assim não fosse, poder-se-ia estar a tornar as condições do procedimento verdadeiramente impraticáveis por se forçar a Administração a proceder a incontáveis notificações. É o que resulta claramente do art.º 61.º/1 do mesmo Código onde se restringe o direito à informação bem como o direito a conhecer as resoluções definitivas aos que “sejam diretamente interessados, isto é, àqueles a quem o ato administrativo se repercute direta e imediatamente na sua esfera jurídica.
Como, por outro lado, também gozam dessa qualidade aqueles que, apesar de não terem tido intervenção no procedimento, vêm, no entanto, a ser diretamente prejudicados pelos atos nele praticados, isto é, aqueles a quem o ato administrativo “cause prejuízos” (al.ª b) do art.º 66.º do CPA). Daí que também a estes essas decisões devem ser notificadas.
“Interessado para efeitos de notificação não é, portanto, a mesma coisa que «interessado» para efeitos de legitimidade procedimental: esse interesse afere-se, agora, em função dos interesses e concretos da decisão, não dos efeitos indiretos ou potenciais do procedimento.” - M. Esteves de Oliveira, P. Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, in CPA Anotado, 2.ª ed., pg. 350.
3. No caso, estão em causa os atos praticados pelo Sr. Vereador do Pelouro dos Assuntos Jurídicos e do Contencioso da Câmara Municipal (…) que ordenaram a demolição de uma obra ilegal – um anexo da casa dos Autores – num procedimento onde só o Autor marido teve intervenção.
Será que a Autora mulher gozava da qualidade de interessada por o anexo a demolir ser um bem comum do casal e, por essa razão, ser prejudicada pela execução da ordem de demolição? Será que, por essa razão, tinha de ser notificada dos atos impugnados? E será que, não o tendo sido, o seu direito de ação ainda não tinha caducado quando intentou esta ação?
(…) muito embora seja certo que a Autora mulher não participou nesse processo, também o é ela tinha interesse direto e imediato no seu desfecho uma vez que a ordem de demolição do anexo que nele foi proferido também iria atingir direta e negativamente a sua esfera jurídica, visto aquela obra estar integrada num prédio que fazia parte dos bens comuns do casal. Ou seja, independentemente da sua ausência nesse procedimento certo é que poderia ser prejudicada pelas ordens de demolição nele proferidas.
Sendo assim, sendo que a al.ª b) do citado art.º 66.º do CPA estende a qualidade de interessado para efeitos de notificação a todos aqueles a quem o ato cause prejuízos diretos e sendo, ainda, que, pelas apontadas razões, aquela ordem de demolição prejudicaria a Autora mulher importará concluir que a mesma gozava da qualidade de interessada e, nessa qualidade, deveria ter sido notificada. Conclusão a que também se chega através do que se estatui no art.º 55.º/1 do CPA uma vez que, se este obriga a que o início oficioso do procedimento seja comunicado às pessoas que possam ser lesadas pelos atos que nele poderão ser praticados, por maioria de razão lhe deverão ser comunicados os atos finais que sejam efetivamente lesivos.
É, assim, seguro que a circunstância de ter sido o Autor marido a desencadear o procedimento da legalização do anexo e dele ter sido o único interveniente nesse processo não é, por si só, motivo de exclusão da qualidade de interessada da Autora mulher nesse procedimento e, portanto, motivo para se sustentar que a mesma não tinha de ser notificada da sua decisão final
se esta tiver sido uma ordem de demolição de um bem comum do casal.
Daí que se não acompanhe o Acórdão recorrido quando nele se sustentou que, “tendo a legalização das obras sido requerida pelo Autor a notificação do despacho a indeferir o pedido teria que ser feito na sua pessoa, uma vez que era ele o interessado. Nesta sequência o despacho de demolição das obras não legalizáveis também teria que ser feito ao recorrente Autor, não sendo obrigatório que fosse feito também à sua esposa.” Poderia ser assim se o desfecho do processo administrativo se tivesse quedado por um mero indeferimento do pedido de legalização do anexo pois, nessas circunstâncias, poderia sustentar-se que esse indeferimento não tinha reflexos diretos na esfera jurídica da Autora mulher e, porque não o tinha, não lhe causava prejuízos pelo que não necessitava de lhe ser notificado.
Mas a verdade é que aquele procedimento teve um outro desfecho já que nele foram proferidas duas ordens de demolição de um bem comum do casal (pontos 1 e 3 do probatório), isto é, duas decisões altamente gravosas para os interesses da Autora mulher e são estas que se impugnaram e se querem ver anuladas (al.ª a) do pedido). E se assim foi não se suscitam dúvidas de que a mesma deveria ter sido notificada das mesmas para que delas se pudesse defender.».
Á luz desta jurisprudência, que perfilhamos, também no caso em análise, estando em causa a intenção de proferir um ato ordenador de uma reposição/demolição em imóvel- sala comum da fração “D”- propriedade de ambos os cônjuges, impunha-se ao Município/ apelado que tivesse notificado, para além do autor marido, a autora mulher, para igualmente exercer o respetivo direito de audiência prévia, uma vez que, sendo a mesma também proprietária dessa fração onde se integra a referida sala, é também diretamente interessada nesse procedimento, sendo inegável que por esse ato pode vir a ser prejudicada. conquanto está em causa a prática de uma decisão que afeta o seu direito de propriedade sobre a referida fração. E igualmente se impunha que tivesse sido notificada para requerer a legalização de tais obras.
E não se diga que numa situação como esta, se está perante um ato de mera administração ordinária subsumível ao disposto na primeira parte do n.º3 do artigo 1678.º do C, onde se estabelece que «cada um dos cônjuges tem legitimidade para a prática de atos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal; os restantes atos de administração só podem ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges».
Estando em causa, como está, a reposição de uma sala comum da fração “D” nos termos que constam do projeto aprovado e licenciado, o que desde logo implica que se proceda a trabalhos de demolição e reconstrução, está-se perante um ato que atinge a substância da fração, e por conseguinte, que fere o direito de propriedade da Autora mulher, cujas consequências também se repercutem na sua esfera jurídica, e não apenas na esfera jurídica do autor marido.
O cumprimento da referida ordem de reposição não se traduz num ato de mera administração ordinária da fração, antes contendendo com a substância da propriedade dessa fração.
Dentro dos poderes de administração ordinária do autor marido, não cabem os poderes de disposição da propriedade que incide sobre aquela fração, não podendo, por isso, jamais atingir a sua substância, não podendo demolir uma construção que integre a fração da qual não é exclusivo proprietário e daí que, por este ângulo, também se tenha de concluir que o mesmo não tem legitimidade, se desacompanhado da autora mulher para ser o destinatário único de uma ordem de demolição quando são ambos os cônjuges que detêm os poderes de transformação ou alteração da substância dessa fração. Daí que, para a autora mulher não seja indiferente se a fração que é objeto de um procedimento administrativo que tem em vista a alteração da respetiva substância, no caso, a demolição de uma ampliação da sala comum, a qual poderá afetar o valor económico mas também as vantagens de fruição e gozo que essa fração proporciona a quem nele habita, tendo também ela interesse direto em contradizer essa ordem de reposição/demolição proferida nesse processo administrativo, e como tal, em esgrimir argumentos em sede de audiência prévia destinados a convencer a entidade publica a alterar o sentido anunciado da decisão a proferir.
Conforme se expendeu no parecer do Conselho Técnico da DGRN, de 10/09/1989, in Revista de Notariado, 1989, 3.º-449 e segts: “I-A distinção entre atos de disposição e de administração ordinária, e, dentro desta, entre ordinária e extraordinária não assenta na natureza jurídica dos atos, mas nos riscos e na importância patrimonial dos mesmos. II-Assim, o ato de constituição da propriedade horizontal, atendendo á sua importância patrimonial, da qual resultam efeitos jurídicos imediatos, alguns que podem ser prejudiciais para o casal, deve ser considerado como ato de administração extraordinária, sendo por isso necessário o consentimento de ambos os cônjuges para a sua realização em prédio comum do casal ( als. c) e d) do n.º 2, do art. 1678).III- Como a celebração dos atos de administração extraordinária por um só dos cônjuges sem o consentimento do outro, tem como sanção a anulabilidade ( art.1687.º, n.º 1, do Cód.Civil), o notário não pode recusar a celebração da escritura, mas deve nela consignar a advertência de ser o ato anulável, cumprindo assim o disposto no art. 191.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Notariado»
Com interesse, veja-se também o Acórdão do TRL, de 28/09/1995: BMJ, 449.º-420, citado por Abílio Neto, no Código Civil Anotado, no qual se considerou que: «I- São atos de administração extraordinária os praticados por um dos cônjuges em bem imóvel do casal e consistentes em desaterros e movimentações de terras, demolição de um muro e edificação de um barracão coberto com chapa de zinco, com a finalidade de preparar aquele, até aí destinado a vinha e terra, para a construção de um parque de estacionamento. II- Como tal, só podem ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges».
Tomando em consideração estes contributos, no caso vertente seguramente que se está perante uma decisão cuja notificação teria de ser também dirigida à autora mulher, conquanto a ordem de demolição, a efetivar-se, traz consequências imediatas na fração que é também sua propriedade, atingindo a substância do respetivo direito de propriedade.
Como tal, é inegável que no procedimento administrativo teriam necessariamente de figurar como interessados, quer o autor marido, quer a autora mulher, uma vez que só assim se salvaguardam os direitos fundamentais e constitucionais de ambos ao contraditório e à defesa.
Resta agora saber se conforme preconizado pelo apelado, se pode concluir que a preterição desta formalidade se degradou em mera irregularidade procedimental incapaz de determinar a anulação do ato.
No caso, resulta da factualidade apurada, que o autor marido, após ter sido notificado para proceder à legalização da situação verificada na fração “D”, propriedade de ambos os autores, para o que lhe foi concedido o prazo de 60 dias, em 05 de fevereiro de 2013, deu entrada no Município (...) de uma carta na qual refere o seguinte: (...) Dá aqui por transcrita toda a argumentação que dirigiu a V. Exa. pelo anterior requerimento.
Não obstante, procurando encontrar a viabilidade do que consta do ofício acima referido, contactou um desenhador, que lhe deu a conhecer a necessidade de todos os condóminos do prédio autorizarem a legalização que o citado ofício refere.
Ora, isso é impossível, porquanto o condómino que dirigiu a essa Câmara a denúncia decerto não estará de acordo. Por isso, nada adiantam diligências que o requerente agora faça no sentido que o ofício indica.
Continuo, porém, a sublinhar o seguinte:
A obra que se pretende legalizada existe há mais de 30 anos;
O ora requerente já comprou o apartamento em causa com a configuração atual e com a sala comum e o sótão tal como agora se encontram;
Nunca, até agora, alguém se opôs a que tal acontecesse;
A Câmara Municipal (...) concedeu a licença de utilização da fração com a configuração que esta tem.
(...)
A questão está em saber se, perante as razões apresentadas pelo Autor naquela missiva, e caso a autora mulher tivesse sido chamada a participar neste procedimento, como se impunha, a mesma não teria, diferentemente do autor marido, providenciado pela apresentação de pedido de legalização e quiçá, obtido as necessárias autorizações dos condóminos para que as ditas obras, pudessem ser legalizadas pela CM_.
Ou seja, a possibilidade de aplicar ao caso a teoria do aproveitamento de atos ilegais, porque é disso que se trata, depende da evidência de que o vício traduzido na preterição da audiência prévia da Autora em nada influenciou o conteúdo da decisão e que, por conseguinte, repetindo o ato sem reincidir na ilegalidade administrativa anteriormente cometida, o resultado final seria idêntico.
Sendo assim, importa recordar que no caso estava em causa a legalização das obras traduzidas no aumento da área da sala comum da fração “D” em 8 m2, o que se traduz, inelutavelmente, no aumento da área coberta da fração “D”.
A esse propósito, cumpre referir ser pacífico na doutrina e na jurisprudência administrativa o entendimento de que a administração municipal, competente para a apreciação dos projetos e para concessão das licenças e autorizações urbanísticas ou pela admissão de comunicações prévias, deve apreciar os referidos projetos exclusivamente à luz das normas de direito público e não à luz das normas de direito privado relativas à realização destas operações, designadamente, as normas do Código Civil aplicáveis à construção, cuja aplicação não lhe incumbe assegurar, tanto mais que a violação destas não pode constituir fundamento válido de indeferimento de pedidos de licenciamento.
No entanto, a circunstância dos atos de gestão urbanística se encontrarem subordinados exclusivamente a normas de direito do urbanismo e da sua emissão ocorrer sob reserva dos direitos de terceiros, tal não significa que a administração possa ignorar as regras de direito privado, como efetivamente não pode, sob pena de violar o princípio da unidade do sistema jurídico.
Acresce que o artigo 9º, n.º 1 do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16/12, e a Portaria n.º 232/2008, de 11/03, exige não só que o requerente ou comunicante invoque, mas também faça prova, aquando da apresentação do pedido, da titularidade de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística a que se refere a sua pretensão, de onde decorre recair sobre a Administração o ónus de, na fase de apreciação liminar do processo e antes de apreciar o pedido que lhe é apresentado, verificar da existência efetiva do pressuposto da legitimidade do requerente para requerer e realizar a operação urbanística que pretende lhe seja deferida pela Administração.
Logo, é dever dos órgãos municipais competentes averiguar se o particular tem, à luz do ordenamento jurídico que o define – o civil – legitimidade para iniciar o procedimento que intenta.
Trata-se de uma mera apreciação formal, que se limita a verificar se o requerente apresentou o documento comprovativo que lhe confere legitimidade para realizar a operação urbanística que pretende lhe seja deferida, sem que a Administração possa ou tenha de efetuar quaisquer outras diligências no sentido de apurar se, de facto, o requerente é ou não titular da qualidade que invoca.
Neste sentido, lê-se no Acórdão do STA de 09/11/2017, proferido no processo n.º 087/13 que: «No procedimento de licenciamento ou de legalização de obras, embora a autoridade administrativa não possa imiscuir-se em litígios de ordem privada, suscetíveis de ocorrerem entre particulares, cuja resolução cabe aos tribunais, tem de analisar a titularidade do direito que confere ao requerente a faculdade de realizar a operação urbanística em causa por, antes de apreciar o mérito do pedido, lhe competir verificar a existência do pressuposto procedimental da legitimidade em face da documentação por ele apresentada (cf. artºs. 83.º, do CPA, 16.º, n.º 1, do DL n.º 445/91, de 20/11 e 2.º, n.º 2, al. b), da Portaria n.º 1115-B/94, de 15/12). Por isso, a Administração poderá ter de analisar se ocorreu o cumprimento de determinadas normas de direito privado que conferiam ao requerente legitimidade para formular o pedido.»
Isto para significar que no caso, a CM_ apenas poderia conhecer do mérito do pedido de legalização que viesse a ser apresentado pela Autora caso a mesma demonstrasse a necessária legitimidade, o que tendo em conta que se trata de legalizar obras levadas a cabo numa fração, as quais se traduziram no aumento da área coberta dessa fração, em consequência da alteração da área da sala comum em mais 8m2, sempre seria necessário instruir o pedido de legalização com o documento de autorização por parte dos condóminos.
E no caso, essa autorização não se bastaria com a maioria qualificada de 2/3, antes reclamando a unanimidade de todos os condóminos.
Como é sabido, o objeto sobre o qual incide o direito de propriedade horizontal é misto, uma vez que é constituído por uma habitação exclusiva, e por coisas comuns, que são acessórias e que estão necessariamente afetas a todas as habitações autónomas em que se subdivide o edifício, em relação à qual os condóminos assumem a posição de comproprietários-( cfr. Abílio Neto, “Propriedade Horizontal”, 2ª ed., 1992, Ediforum, pág. 10).
Esse todo incindível entre frações autónomas e partes comuns gera naturalmente fortes laços de interdependência entre os diversos condóminos, que cerceiam e condicionam os direitos de propriedade singular daqueles sobre as frações de que são proprietários, ao gerarem relações de especial e acentuada proximidade e de vizinhança, em que o comportamento de uns se reflete necessariamente no direito dos restantes, que importa regular, a que acresce a necessidade de regulamentação do direito de compropriedade dos condóminos sobre as partes comuns do edifício.
Compreende-se, por isso, que se estabeleça no artigo 1422.º, n.º 1 do CC que os «condóminos, nas relações entre si, estão sujeitos, de um modo geral, quanto às frações que exclusivamente lhes pertencem e quanto às partes comuns, às limitações impostas aos proprietários e aos comproprietários de coisas imóveis».
No caso, tendo em conta que as obras a legalizar se traduziram num aumento da área coberta da fração “D”, atento o disposto no artigo 1419.º do Cód. Civil, as mesmas só poderiam ser realizadas ou, no caso, legalizadas, caso todos os condóminos dessem a sua anuência ( trata-se de uma situação que implica uma alteração do título constitutivo da propriedade horizontal). Como tal, ainda que a autora mulher tivesse sido notificada para exercer o direito de audiência prévia em relação ao ato impugnado, quaisquer que fossem os argumentos que viesse a expender em ordem a induzir a CM_ a não proferir a decisão de reposição da sala no estado primitivo que constava do projeto aprovado e licenciado, só perante a instrução do pedido de legalização com documento comprovativo do consentimento de todos os condóminos para a realização/manutenção desse aumento da sala comum da fração “D” em mais 8m2, poderia equacionar-se a possibilidade de vir a ser outra a decisão final da CM_.
E sendo assim, afigura-se-nos resultar dos autos, tendo em consideração a posição manifestada pela Contrainteressada, ser seguro concluir que também a autora mulher não lograria obter o consentimento de todos os condóminos, como confessadamente admitiu o autor marido suceder quanto a si.
Como tal, o vício que afetou o ato impugnado, traduzido na preterição da autora do procedimento, máxime, a sua privação do exercício do direito de audiência prévia, caso não ocorresse, por s éter garantido à autora mulher esse direito de defesa, seguramente, em face dos contornos fáticos que rodeiam este caso, o ato final seria o mesmo.
E sendo assim, considerando a teoria do aproveitamento dos atos ilegais, que reconhece relevância dogmática e força diversificadora à eficiência e economia dos atos públicos, considerando que a “ economia de meios é também, em si, um valor jurídico, correspondendo a uma das dimensões do interesse público” podendo-se acrescentar que ele constitui também, e em primeira linha, um dos princípios retores que a CRP ( art. 267.º, n.º5) impõe à atuação administrativa, no caso, é mandatório que se negue relevância invalidante à preterição da audiência prévia da autora, mantendo-se o ato impugnado.

Termos em que improcede o invocado fundamento de recurso.

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IV- DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo do Norte, em negar provimento ao recurso e, em consequência, com a presente fundamentação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelos Apelantes (art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Porto, 25 de março de 2022

Helena Ribeiro
Nuno Coutinho)
Ricardo de Oliveira e Sousa