Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:769/22.1 BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:02/15/2024
Relator:MARIA CARDOSO
Descritores:CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
NULIDADE
ANULABILIDADE
Sumário:I - A impugnação judicial pode ser feita a todo o tempo, se o acto impugnado enfermar de vício para o qual esteja prevista a sanção da nulidade, tal como decorre do disposto no artigo 102.º, n.º 3 do CPPT, à semelhança do preceituado no artigo 162.º, n.º 2 do CPA.
II - Os vícios do acto, regra geral, constituem fundamento da sua anulabilidade, só implicando a nulidade quando a lei comine expressamente essa forma de invalidade (cfr. artigos 161.º, n.º 1 e 163.º do CPA).
III - O acto de liquidação que aplique normas inconstitucionais (ainda não declaradas com força obrigatória geral) e/ou padeça de violação da lei, não é nulo, mas meramente anulável.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Subsecção Tributária Comum do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO

1. D….. – T…., S.A, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, proferida em 21/12/2022, que, concluindo pela manifesta intempestividade da impugnação judicial apresentada contra o ato de liquidação da taxa anual devida pelo exercício da atividade de prestação de serviços postais relativa ao ano de 2017 emitida pelo ICP – ANACOM Autoridade Nacional de Comunicações através da fatura/nota de liquidação n.º .........99, julgou procedente a exceção de caducidade do direito de impugnação respetivo e, em consequência, absolveu a Fazenda Pública do pedido.

2. A Recorrente apresenta as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

«1.ª A petição inicial foi apresentada tempestivamente porque, resulta da mesma que, os vícios que assaca ao acto impugnado, geram a nulidade dos mesmos, o que significa que a impugnação judicial poderia ser deduzida a todo o tempo, nos termos do artigo 102.º, n.º 3 do CPPT;

2.ª A douta sentença recorrida enferma de erro de julgamento de direito, por errada interpretação e por violação de lei pois estão causa vícios geradores de nulidade da liquidação objecto dos presentes autos, pois a sentença recorrida deveria ter realizado a qualificação dos vícios que a Recorrente assacou ao acto impugnado, o que não foi considerado na decisão ora recorrida, tendo assim violado o disposto nos artigos 102.º n.º 3 do CPPT, 161.º e 162.º do CPA.»

3. A Entidade Recorrida apresentou contra-alegações, onde formulou as seguintes conclusões:

«1.ª Ao contrário do que pretende a Impugnante, ora Recorrente, a sentença recorrida avaliou cuidadosamente a questão de saber se os vícios imputados pela Impugnante aos atos impugnados poderiam ser sancionados com nulidade, tendo concluído, em linha com a jurisprudência e a doutrina nela citada, que «inexiste fundamento para assacar nulidade ao ato tributário contestado», pelo que «o vício que lhe pode ser imputado é a mera anulabilidade, o que implica a sujeição a prazos legais de impugnação contenciosa»;

2.ª Tendo presente a forma enviesada com a questão da nulidade foi suscitada na petição inicial, não pode deixar de se concluir que a sentença recorrida apreendeu corretamente a questão, tendo equacionado esse alegado desvalor do ato impugnado no quadro dos vícios de violação de lei constitucional imputados pela Impugnante o ato impugnado;

3.ª A sentença recorrida, em linha com as exigências decorrentes da jurisprudência do STA, nomeadamente a constante do acórdão de 17.01.2018, proferido no processo n.º 01317/16, citado nas alegações de recurso, procedeu à análise e à qualificação das formas de invalidade aplicáveis ao ato impugnado, de acordo com os vícios invocados pela Impugnante, tendo deixado expresso o seu entendimento quando a essa matéria, como passo prévio e anterior à apreciação da questão da caducidade do direito de impugnação judicial;

4.ª O Tribunal a quo considerou expressamente que «inexiste fundamento para assacar nulidade ao ato tributário contestado» e que «o vício que lhe pode ser imputado é a mera anulabilidade, o que implica a sujeição a prazos legais de impugnação contenciosa», pelo que não pode a Recorrente afirmar que a sentença recorrida não procedeu a uma qualificação diversa dos vícios que assacou ao ato impugnado (cf. n.º 4 da alegação recursiva);

5.ª A sentença recorrida procedeu à qualificação (diversa) das consequências jurídicas a extrair dos vícios que a Recorrente imputou ao ato impugnado, não tendo sido violado o disposto nos artigos 102.º n.º 3 do CPPT e 161.º e 162.º do CPA;

6.ª Os contornos do caso concreto não se reconduzem à previsão da alínea k) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA, dado que não está em causa uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nem tão pouco a declaração de invalidade da Portaria n.º 1473-B/2008, na redação dada pela Portaria n.º 296-A/2013, mas apenas e tão só a privação de eficácia da norma habilitante, num determinado caso concreto;

7.ª Atendendo ao facto de as decisões de inconstitucionalidade terem sido proferidas em processo de fiscalização concreta, o Tribunal a quo não poderia ter declarado a nulidade da liquidação impugnada, o que impede o exercício do direito prosseguido pela Impugnante, ora Recorrente, e importa a absolvição total da Impugnada do pedido (cf. artigo 576.º, nºs 1 e 3, do CPC aplicável ex vi artigo 2.º alínea e) do CPPT) como veio a ser decidido – e bem – pela sentença recorrida, ao julgar verificada a exceção perentória de caducidade do direito de impugnação da Taxa de Regulação de Serviços Postais de 2017.».

4. Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo Sul, e dada vista ao Exmo. Procurador–Geral Adjunto, emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso apresentado.

5. Colhidos os vistos legais, vem o processo à Conferência para julgamento.


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II – QUESTÕES A DECIDIR:

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir se a sentença enferma de erro de julgamento de direito por ter julgado procedente a excepção da caducidade do direito de acção.


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III - FUNDAMENTAÇÃO

1. DE FACTO

A sentença recorrida proferiu a seguinte decisão relativa à matéria de facto:

«1. Em 24.11.2017, foi emitida e remetida pela ANACOM em nome da C…… – T……., S.A., posteriormente incorporada pela Impugnante, a liquidação de taxa anual de exercício da atividade de prestador de serviços postais titulada pela fatura/nota de liquidação nº ……99, no valor a pagar de € 76.040,92, até à data limite de 26-12-2017 – cfr. doc. 1, junto aos autos com a p.i., fls. 126 e 127 do processo administrativo e não controvertido;

2. Em 27.04.2022, a p.i. da presente impugnação judicial foi apresentada neste Tribunal, através do SITAF – cfr. respetivo comprovativo de entrega.

Matéria de facto não provada:

Inexistem factos com relevância para a decisão da causa que importe destacar como não provados.

Motivação da decisão sobre a matéria de facto:

A convicção do tribunal sobre a matéria de facto formou-se com base na análise crítica dos documentos constantes dos autos e do processo administrativo tributário apenso, bem como na posição assumida pelas partes nos procedimentos administrativos e no processo, conforme referido a propósito de cada número do probatório.»


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2. DE DIREITO

A única questão que importa apreciar e decidir é a de saber se a sentença recorrida errou ao ter julgado procedente a excepção da caducidade do direito de acção, suscitada na contestação pela Fazenda Pública.

A sentença do Tribunal Tribuário do Lisboa julgou extemporânea a impugnação judicial instaurada pela ora Recorrente, contra a identificada liquidação de taxa anual de exercício da actividade de prestador de serviços postais, do ano de 2017, emitida pela ANACOM, por considerar que os vícios invocados eram geradores de mera anulabilidade e quando a presente impugnação judicial foi apresentada tinha já decorrido mais de 4 anos após o término do prazo legalmente previsto, encontrando-se caducado o respectivo direito de acção.

A Recorrente insurge-se contra esta decisão, sustentando, no essencial, que os vícios invocados determinam a nulidade do acto, o que significa que a impugnação pode ser deduzida a todo o tempo, nos termos do artigo 102.º, n.º 3 do CPPT.

Vejamos.

O artigo 102.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (na redacção aplicável) estatuem o seguinte:

1 – A impugnação será apresentada no prazo de 3meses contados a partir dos factos seguintes:

a) Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias igualmente notificadas;

(…)

3 – Se o fundamento for a nulidade, a impugnação pode ser deduzida a todo o tempo.

(…)

Das normas acabadas de transcrever resulta que nos casos em que os vícios imputados ao acto de liquidação sejam geradores de anulabilidade, a impugnação judicial que assente na invocação desses vícios deve ser apresentada no prazo de 3 meses, contando-se esse prazo, na situação dos autos, a partir do termo do prazo para pagamento voluntário da prestação em causa legalmente notificada ao sujeito passivo.

A impugnação judicial pode ser feita a todo o tempo, se o acto impugnado enfermar de vício para o qual esteja prevista a sanção da nulidade, tal como decorre do disposto no artigo 102.º, n.º 3 do CPPT, à semelhança do preceituado no artigo 162.º, n.º 2 do CPA.

Os vícios do acto, regra geral, constituem fundamento da sua anulabilidade, só implicando a nulidade quando a lei comine expressamente essa forma de invalidade (cfr. artigos 161.º, n.º 1 e 163.º do CPA).

Sobre esta matéria pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 25/05/2011, proferido no processo n.º 091/11, cujo discurso fundamentador sufragamos, do qual se transcreve a seguinte passagem:

«(…) em regra, os vícios dos actos administrativos e tributários implicam a sua mera anulabilidade, só ocorrendo nulidade quando falte qualquer elemento essencial (a inidentificabilidade orgânica e material mínima, nas palavras de MARCELO REBELO DE SOUSA) (in “Inexistência Jurídica” DJAP, volume V, página 242.), quando a lei expressamente o determine, ou quando se verifiquem as circunstâncias expressamente referidas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 133.º do CPA, designadamente quando ocorra ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental.
E, assim sendo, nem todos os actos que ferem princípios constitucionais são nulos, só o sendo aqueles que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental, isto é, que brigam com direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, e já não aqueles que brigam com o principio da legalidade tributária. Os actos violadores do princípio da legalidade tributária são anuláveis, e não nulos.» (no mesmo sentido veja-se, entre outos, Acs. do STA de 10/01/2007, processo n.º 0459/06 e de 10/02/2014, processo n.º 0628/14; disponíveis em
www.dgsi.pt/).

Para saber se a sentença recorrida fez um correcto julgamento ao julgar verificada a caducidade do direito a deduzir impugnação judicial, importa aferir se os vícios invocados pela Recorrente são geradores de nulidade ou anulabilidade.

A Recorrente não questiona que o prazo de 3 meses para deduzir impugnação se mostrava ultrapassado como ficou expresso na sentença recorrida, mas que invocou a nulidade do acto de liquidação da taxa anual devida pelo exercício da actividade de prestação de serviços postais, relativa ao ano de 2017 – sem, contudo, identificar nas alegações de recurso os vícios que assacou ao acto impugnado– e, daqui, conclui que a impugnação judicial pode ser deduzida a todo o tempo.

Na verdade, a Recorrente limita-se a alegar que invocou vícios que geram a nulidade do acto, sem atacar os fundamentos do já decidido pela primeira instância.

Lida a petição inicial constata-se que a Recorrente invoca como vícios do acto de liquidação: vicio de violação da lei constitucional e da lei ordinária (cfr. ponto 8 da p.i.).

Tais vícios foram assinalados na sentença recorrida, que se socorrendo de doutrina e jurisprudência avalizada enquadrou os mesmos no vício de anulabilidade.

E nós não encontramos razões para discordar desse entendimento que, diga-se, desde já, aqui acolhemos.

Vejamos o que se diz na sentença recorrida:

«Há a considerar a respeito que a Impugnante deduz pedido de declaração de invalidade da liquidação impugnada e que, nos termos do disposto no nº 3 do citado art. 102º do CPPT, se o fundamento for a nulidade, a impugnação pode ser deduzida a todo o tempo.

Todavia, na petição inicial são invocados vícios de violação de lei, constitucional e ordinária e ainda do Direito da União Europeia, não sendo os fundamentos invocados reconduzíveis a vício passível de ser sancionado com aquela forma mais grave de invalidade.

(…)

No nosso ordenamento jurídico, a nulidade é a forma de invalidade excecional sendo o regime regra o da anulabilidade – v., exemplificativamente, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (daqui em diante, STA) de 9-10-2019, proc. 0125/12.0BECTB 0782/17.

É também pacífico na doutrina que a nulidade só deve ser assacada àqueles vícios especialmente graves e, em princípio, evidentes, em resultado de uma avaliação em concreto em função das características essenciais de cada tipo de ato.

Freitas do Amaral, ob. cit., pp. 366 e ss. por exemplo, ensina que o caráter excecional da nulidade se justifica por “razões de certeza e segurança da ordem jurídica. Não se poderia admitir que, dado o regime da nulidade – e, designadamente, a possibilidade de ela ser declarada a todo o tempo – pairasse indefinidamente a dúvida sobre se os atos da Administração são legais ou são ilegais, são válidos ou inválidos. É preciso que ao fim de algum tempo, razoavelmente curto, cessem as dúvidas e os atos da Administração possam claramente ser definidos como válidos ou como inválidos. […] A orientação genérica do nosso Direito Administrativo é no sentido de que «o legislador escolha com toda a cautela os casos em que tão severa sanção (a da nulidade) se aplica, limitando-se a um pequeno número de ilegalidades graves e evidentes»”

No mesmo sentido, v. Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, Almedina, 4ª ed., 2017, pp. 274-276.

E a tal não obsta estar em causa a invocação de inconstitucionalidade, mesmo que por imputação de violação do princípio da legalidade.

Como decidido na Jurisprudência tirada no Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 16-12-2010, processo 0396/10, que se subscreve, “I – O acto tributário praticado ao abrigo de norma inconstitucional padece de vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito e gera mera anulabilidade, salvo se ocorrer ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental - alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA.

II – Deste modo, a impugnação judicial do referido acto tributário terá de ser deduzida no prazo referido no artº 102º, nº 2 do CPPT, e não a todo o tempo, tal como a lei prevê para o caso da nulidade do acto.”

A respeito da questão da possível ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, a fundamentação do aresto refere:

“Conforme numerosa jurisprudência referida no parecer do MºPº e na sentença de 1ª instância, a questão objecto dos autos tem sido decidida no sentido do acórdão recorrido, ou seja, ainda que o acto tributário se baseie em norma inconstitucional, sempre o vício de que aquele padece é a anulabilidade e não a nulidade.

Este entendimento está claramente expresso o Acórdão de 27.01.2010 – Recurso nº 948/09), no qual ficou escrito:

“Na verdade, é sabido que no domínio do contencioso tributário a inexistência de norma em que se baseie um acto de liquidação não implica a nulidade deste, gerando apenas uma situação de ilegalidade abstracta de liquidação nos termos do n.º 1 alínea a) do artigo 204.º do CPTT, invocável, nos casos de cobrança coerciva, até ao termo do prazo de oposição à execução fiscal, mesmo que posteriormente ao de impugnação de actos anuláveis, mas nunca a todo o tempo.

De todo o modo sempre se dirá que nem o n.º 1 do artigo 88.º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março, nem o n.º 4 do artigo 1.º da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro, aplicáveis ao caso, estabelecem a nulidade dos actos de liquidação dos tributos aí mencionados, mas, antes, a nulidade das deliberações que determinaram o respectivo lançamento por estranhas ás suas atribuições ou não previstas na lei.

Certo é ainda que mesmo nos casos de actos que apliquem normas inconstitucionais, o correspondente vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito gera mera anulabilidade, salvo se ocorrer ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental - alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA, o que não sucede no caso do princípio da legalidade, da protecção da boa fé ou do direito à propriedade privada que não é absoluto ou ilimitado, como repetidamente o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar - cfr. jurisprudência firme e reiterada deste STA nos acórdãos de 30/01/01, 15/01/03, 25/05/04, 16/11/05, 10/01/07, 5/07/07 e 7/05/08, nos processos n.ºs 26.392, 1629/02, 208/04, 1108/03 (Plenário), 736/05, 496/06, 479/06 (Pleno) e 1034/07, respectivamente.

De facto, as imposições tributárias não podem ser vistas como restrições ao direito de propriedade mas antes como limites implícitos deste direito, “consubstanciando uma agressão da esfera patrimonial dos contribuintes em termos limitados” (acórdão do Plenário acima citado), ainda que se considere o direito de propriedade como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias.

A este propósito escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República, em anotação ao artigo 62.° -“o direito de propriedade a que se refere a rubrica do artigo parece consistir, pois e apenas, na garantia do direito à propriedade, isto é, no direito de não ser expropriado ou esbulhado pelo Estado ou por terceiros, salvo por utilidade pública e mediante indemnização. O direito à propriedade que a Constituição garante está assim longe do conceito amplo do direito de propriedade que inclui tradicionalmente não só o direito de não ser expropriado do título ou posse, mas também à liberdade de uso, de fruição, de disposição, sem limites ou intromissões de terceiros e, desde logo, do Estado.

Não existem razões para seguir agora entendimento diferente daquele que tem vindo a ser seguido com uniformidade por este Tribunal.

Acrescentaremos, apenas que, tal como se escreveu acórdão desta secção de 12.01.2005, Recurso nº 019/04, os efeitos da nulidade da norma atingem apenas esta, não se projectando tal e qual nos actos tributários a que serve de fonte de direito regulamentar, atentas as razões de certeza e segurança jurídicas que estão na base da perduração de efeitos jurídicos a “situações de facto decorrentes de actos nulos” considerados no regime da nulidade dos actos administrativos previstos no artigo 134° do CPA."

Isto porque uma coisa é o vício da norma, outra, diversa, é o vício do acto.” (sublinhados da signatária).

Veja-se ainda, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3-05-2017, proc. 0924/16, de cuja fundamentação se cita:

“Como se sabe, nem o Código de Procedimento e de Processo Tributário nem a Lei Geral Tributária contém a noção do que sejam actos tributários nulos, impondo-se, por isso, recorrer ao Código de Procedimento Administrativo, em conformidade com o disposto nos artigos 2º, alínea d), do CPPT e 2º, alínea c), da LGT. E como ensinam AROSO DE ALMEIDA e FERNANDES CADILHA (“Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, vol. I, pag. 247.,) «a nulidade constitui o regime de excepção, ao passo que a anulabilidade é o regime-regra. É o que se depreende do disposto no artigo 135º do CPA, segundo o qual são anuláveis os “actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção.” (...)

A anulabilidade constitui uma forma de invalidade do acto administrativo que se reconduz à violação de uma regra ou de um princípio jurídico de natureza formal (de competência, de forma ou de trâmite) ou substantiva. No primeiro grupo, incluem-se: (a) a violação de regras relativas à competência do autor do acto, quando não envolvam as situações extremas de falta de atribuições, geradoras de nulidade (incompetência relativa); (b) vícios de forma, que poderão consistir na preterição de formalidades no âmbito do procedimento administrativo (arts. 54° e segs. do CPA), na omissão ou deficiência respeitante à forma do acto (art. 120º do CPA), desde que não se reconduza à carência absoluta da forma legal, ou na omissão ou deficiência atinente à enunciação do objecto e dos elementos do acto (art. 123º do CPA)».

Por conseguinte, só serão nulos os actos (administrativos e tributários) a que falte algum dos seus elementos essenciais, e os actos indicados no nº 2 do artigo 133º do CPA, entre os quais constam os que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental e os que ofendam os casos julgados.

Ora, se por um lado, os direitos fundamentais se podem definir como sendo os que «conferem posições jurídicas subjectivas individuais e permanentes, com a finalidade principal de proteger a liberdade e a dignidade das pessoas» (Vieira de Andrade, in “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, pág. 87, citado no Acórdão deste STA, de 8/01/2006, no processo nº 0901/05) e se, por outro lado, a liquidação ilegal de um imposto acarreta a ofensa do direito de propriedade (que é um direito fundamentais), o certo é que, como muito bem frisa JORGE LOPES DE SOUSA (“Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado”, volume I, 5ª ed., anotação 7ª ao art. 124º, pags. 881/882), «nem todas as liquidações ilegais se podem considerarferidas de nulidade, já que a lei expressamente prevê para elas a sanção da anulabilidade, como se depreende do facto de prever um prazo para a sua impugnação (art. 102º deste Código). Não é qualquer ofensa de um direito fundamental que a alínea d) do nº 2 do art. 133º do Código do Procedimento Administrativo, mas apenas as ofensas do seu conteúdo essencial. Uma ofensa deste tipo só ocorrerá quando perante ela o direito fundamental afectado fique sem expressão prática apreciável, o que não é o caso de uma liquidação ilegal, que apenas atinge limitadamente o direito de propriedade dos seus destinatários. Por outro lado, entre as violações possíveis de direitos por normas tributárias, a sanção mais grave da nulidade, por razões de proporcionalidade, terá de ser reservada para os actos que representam mais graves violações dos direitos tributários.» (novamente, o sublinhado é da signatária).

Por outro lado, o art. 161º do CPA, na redação vigente à data dos factos, prevê que são nulos, designadamente, os atos que criem obrigações pecuniárias não previstas na lei.

Porém, a circunstância de uma dada norma - invocada como fundamento de um ato de liquidação - ter sido julgada inconstitucional em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade não pode ser subsumida à hipótese acabada de referir, isto é, não pode considerar-se que se trata de ato que cria obrigações pecuniárias não previstas na lei.

Como decorre linearmente dos autos, no caso em análise, a obrigação está prevista no ordenamento jurídico, sendo invocado que a norma que prevê a obrigação pecuniária o faz em termos que padecem de desconformidade com a Constituição, já tendo sido assim decidido por tribunais da jurisdição administrativa e pelo próprio Tribunal Constitucional.

Recorrendo ao ensinamento do antes citado acórdão do Pleno, uma coisa é o vício da norma, outra, diversa, é o vício do ato.

Como mencionado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 6-12-2017 proferido no processo 01115/16, a decisão do Tribunal Constitucional tomada em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade não tem força obrigatória geral, antes só tem força obrigatória dentro do processo em que foi proferida.

É evidente que a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, ao qual a CRP cometeu competência específica de «administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional» (cfr. art. 221.º), goza de autoridade acrescida e os tribunais tributários tenderão a proferir as decisões que lhes competem tendo em conta o ali decidido, ademais atendendo ao disposto no art. 8.º, n.º 3, do Código Civil.

De facto, a inconstitucionalidade deve ser apreciada por todos os tribunais, os quais têm a obrigação de não aplicar as normas sobre as quais façam um juízo de violação da Constituição ou dos princípios nela consignados (art. 204.º da CRP).

Ou seja, o juiz tem o poder-dever de “desaplicar” a norma que entenda ser inconstitucional (aplicando, então, o direito que remanesça como se a norma desaplicada não existisse), ficando reservado ao Tribunal Constitucional “declarar” a norma inconstitucional, já que a fiscalização abstrata compete em exclusivo ao Tribunal Constitucional (cfr. art. 281.º da CRP).

Porém, para que o Tribunal possa (e deva) aferir da possível inconstitucionalidade da norma que fundamenta a liquidação sindicada, tem de a Impugnante estar em condições de exercer o seu direito a pedir esta apreciação jurisdicional.

Ora, como explica a doutrina constitucionalista (v. Blanco de Morais, Justiça Constitucional, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2006, pp. 227 e ss.) sem uma declaração de inconstitucional da norma com força obrigatória geral, caso em existe consenso sobre a nulidade da norma, quando apenas existe a recusa de aplicação de norma inconstitucional por parte dos tribunais, nos termos do art. 280.º da CRP, ou quando uma decisão do Tribunal Constitucional julgue inconstitucional uma dada norma, o efeito circunscreve-se ao processo onde a questão de constitucionalidade foi suscitada, com eficácia inter partes, continuando a norma julgada inconstitucional e como tal desaplicada num determinado processo a produzir efeitos nas restantes situações jurídicas, podendo inclusivamente ser julgada conforme à Constituição por outras jurisdições ou mesmo pelo Tribunal Constitucional, em caso de alteração de posição.

Subscrevendo-se a Jurisprudência e a doutrina citadas, inexiste fundamento para assacar nulidade ao ato tributário contestado.

Assim sendo, o vício que lhe pode ser imputado é a mera anulabilidade, o que implica a sujeição a prazos legais de impugnação contenciosa.»

Prosseguindo.

Acolhemos a bem fundamentada apreciação da qualificação dos vícios assacados ao acto impugnado feita na sentença sob censura.

Não desconhecemos a jurisprudência do Tribunal Constitucional na sequência dos acórdãos proferidos por este TCAS sobre a desaplicação das normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008, na redacção dada pela Portaria n.º 296-A/2013 (vide por todos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 429/2023 e 430/2023, ambos de 04/07/2023 e do Tribunal Central Administrativo Sul de 02/11/2023, processo n.º 28/15.6BELRS, disponíveis em www.dgsi.pt/).

Contudo, tais decisões não invalidam a qualificação dos vícios invocados na petição inicial, como flui da fundamentação da sentença recorrida.

A inconstitucionalidade, sem uma declaração com força obrigatória geral, e a violação de lei ordinária são vícios geradores de mera anulabilidade, se a lei não cominar expressamente com o vício de nulidade (artigo 161.º do CPA).

Daí que a violação de norma ordinária ou aplicação de norma julgada inconstitucional, mas circunscrita a determinado processo, possa ter como consequência a ilegalidade do próprio acto final e a sua consequente anulabilidade, mas não a nulidade.

O acto de liquidação que aplique normas inconstitucionais (ainda não declaradas com força obrigatória geral) e/ou padeça de violação da lei, não é nulo, mas meramente anulável.

Donde resulta que, a Recorrente apenas invocou factos integráveis em ilegalidades com o desvalor jurídico da anulabilidade.

Assim, não sendo os vícios alegados pela Recorrente susceptíveis de gerar a nulidade do acto impugnado não é aplicável o disposto no n.º 3, do artigo 102.º do CPPT, estando, pois, a impugnação judicial sujeita ao prazo legal de 3 meses a contar do termo do prazo para pagamento voluntário da prestação.

Como resulta da matéria de fato provada, e que não vem posta em causa no presente recurso, a Recorrente foi notificada da liquidação de taxa anual de serviços postais, com termo de prazo de pagamento voluntário em 26/12/2017 (cfr. ponto 1 do probatório), pelo que na data em que a impugnação foi apresentada, em 27/04/2022 (cfr. ponto 2 do probatório), há muito havia expirado o prazo de 3 meses legalmente previsto para a apresentação da impugnação judicial.

O que vale por dizer que improcedem in totum as conclusões recursórias.

Pelo exposto, o recurso não merece provimento, devendo confirmar-se a sentença que julgou verificada a excepção de caducidade do direito de acção.


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Conclusões/Sumário:

I - A impugnação judicial pode ser feita a todo o tempo, se o acto impugnado enfermar de vício para o qual esteja prevista a sanção da nulidade, tal como decorre do disposto no artigo 102.º, n.º 3 do CPPT, à semelhança do preceituado no artigo 162.º, n.º 2 do CPA.

II - Os vícios do acto, regra geral, constituem fundamento da sua anulabilidade, só implicando a nulidade quando a lei comine expressamente essa forma de invalidade (cfr. artigos 161.º, n.º 1 e 163.º do CPA).

III - O acto de liquidação que aplique normas inconstitucionais (ainda não declaradas com força obrigatória geral) e/ou padeça de violação da lei, não é nulo, mas meramente anulável.


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IV – DECISÃO

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Notifique.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2024.


Maria Cardoso - Relatora
Tânia Meireles da Cunha – 1.ª Adjunta
Luísa Soares – 2.ª Adjunta
(assinaturas digitais)