Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:160/22.0BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/26/2023
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:TAD; ARBITRAGEM; INFRAÇÃO DISCIPLINAR; ART. 112.º DO RDLPFP 2021; LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Sumário:i) O comentário técnico do jogo e das decisões de arbitragem nele praticadas, sempre que se limite a apontar erros técnicos, não consubstancia uma violação das normas regulamentares que protegem o direito à honra dos agentes desportivos.

ii) O ilícito disciplinar, previsto e punido pelo art. 112.º do RDLPFP 2021, terá de consubstanciar-se numa afirmação de que os erros técnicos de arbitragem se fundaram numa intencionalidade dolosa dos agentes desportivos com o intuito de favorecer ou prejudicar alguma das equipas.

iii) A liberdade de expressão se não permitir a insensatez de pouco vale, havendo que ser justo e cuidadoso na necessária conformação deste direito fundamental com outros direitos fundamentais.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

A R., Federação Portuguesa de Futebol, veio interpor recurso jurisdicional do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral de Desporto, em 12.09.2022, no âmbito do processo n.º47/2021 que julgou procedente a ação arbitral deduzida pela F. – F. SAD e J. C., sendo ali Contrainteressada a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, revogando a decisão proferida pelo seu Conselho de Disciplina, em 17.08.2021, no âmbito do processo disciplinar n.° 66 - 2020/2021, que os havia condenado, pela prática das infrações disciplinares por «declarações injuriosas, difamatórias ou grosseiras», p. e p. no n.º 1 do art. 112.º e no n.º 1 do art. 136.º do RDLPFP,(1)respetivamente, em pena de multa no valor de € 8.570,00, e penas de suspensão por um período de 35 e multa no valor de € 5.610,00.

A Recorrente concluiu, em sede de alegações de recurso, como se segue - cfr. fls. 44 e ss., do SITAF:

«(…)

1. O presente recurso tem por objeto o proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado em 13 de setembro de 2022, que julgou procedente o recurso apresentado pelos ora Recorridos, que correu termos sob o n.º 47/2021. A decisão que ora se impugna é passível de censura porquanto existe um erro de julgamento na interpretação e aplicação do Direito invocado, conforme se passa a demonstrar.

2. O valor protegido pelos ilícitos disciplinares em causa nos autos, à semelhança do que é previsto nos artigos 180.º e 181.º, do Código Penal, é o direito “ao bom nome e reputação”, cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; mas tais artigos do RD da LPFP visam, ao mesmo tempo, a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play.

3. A nível disciplinar os valores protegidos com estas normas são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.

4. Em concreto, as normas em causa visam prevenir e sancionar a prática de condutas desrespeitosas entre agentes desportivos, visando tutelar a ética desportiva, a urbanidade, a probidade e a lealdade, enquanto princípios e valores que norteiam a prática de desporto em contexto de competição, sob um eixo de ética desportiva, associada, naturalmente, à necessária tutela da reputação, bom nome, consideração, credibilidade e profissionalismo dos diversos agentes desportivos e outros intervenientes, que, sob qualquer veste e independentemente do tipo de intervenção concreta, participam nas competições, em particular dos elementos que integram a equipa de arbitragem.

5. As normas em crise, impõem aos dirigentes de clubes, o escrupuloso cumprimento de deveres de correção e de urbanidade nas suas relações desportivas, nomeadamente quando tecem considerações e juízos e/ou formulam e dirigem imputações aos elementos da equipa de arbitragem que são suscetíveis de abalar e ofender a reputação, o bom nome e a credibilidade dos visados, bem como quanto a juízos e/ou imputações dirigidos contra órgãos sociais da FPF, nomeadamente o Conselho de Arbitragem.

6. O que se verificou foi que, sem qualquer base factual concreta e real, os Recorrentes formularam juízos de valor lesivos da honra dos agentes de arbitragem em questão, colocando em causa o interesse público e privado da preservação das competições de futebol.

7. Com efeito, como Presidente do Conselho de Administração de uma das maiores instituições desportivas nacionais, o Recorrido J. C. sabe que as declarações que profere são aptas as influenciar a comunidade e a imagem que a mesma tem das competições e dos agentes desportivos nelas envolvidos. Pelo que, impende sobre si, um dever de zelo para prevenir fenómenos de violência e intolerância no desporto.

8. Tomando a opção de proferir declarações que proferiu, olvidando propositada e voluntariamente os deveres regulamentares a que está adstrito, designadamente, o de cuidar de não proferir declarações que possam potenciar fenómenos de intolerância, desrespeito e violência no desporto, ou lesivas da honra e bom nome dos visados, ou ainda que coloquem em causa a estabilidade e a imagem das competições.

9. Os Recorridos sabiam ser o conteúdo das declarações proferidas adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos elementos da equipa de arbitragem e órgãos federativos, na medida em que indiciam uma atuação dos mesmos a que não presidiram critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.

10. Lançar suspeitas, manifestamente infundadas, de que a atuação de determinado agente de arbitragem não é pautada ao abrigo dos valores da imparcialidade e da isenção, não podem deixar de ser atentatórias da honra e bom nome do respetivo elemento de arbitragem, consubstanciando um comportamento que não pode ser tolerado e que não está justificado pelo exercício lícito da sua liberdade de expressão.

11. O Recorrido imputa a um terceiro não identificado, mas que seria uma pessoa responsável do futebol português, as alegações de existência de complôs da Federação e da APAF para que o F. B descesse de divisão, de modo a os jogos passarem para o Canal ... O Recorrido não assume a autoria das referidas informações, bem como refere não acreditar nas mesmas. Contudo, não podemos deixar de interpretar a utilização deste tipo de discurso como uma ferramenta para expor ideias a respeito da existência de complôs, suscitando no ouvinte a dúvida sobre a sua existência e permitindo fomentar especulações sobre vícios na arbitragem.

12. O Recorrido coloca em dúvida determinadas atuações dos árbitros e, assim, faz uma crítica ao Conselho de Arbitragem e ao desempenho da arbitragem no jogo em questão, fazendo especulações sobre a origem e fundamentos dos referidos erros de arbitragem ocorridos, lançando, assim, uma crítica a uma conduta, mas também à própria instituição e às pessoas, acabando por atingir a honra e consideração dos visados.

13. O Recorrido insinua que as decisões em causa foram tomadas de forma premeditada tendo em vista o favorecimento de um clube em concreto, inculcando na comunidade em geral a ideia de um agir parcial por parte de uma entidade que tem a sua essência vital assente na imparcialidade e a isenção.

14. É certo que no âmbito do futebol não pode haver uma exigência desmedida e desmesurada na análise do que se inclui ou não dentro do direito à liberdade de expressão.

15. Com efeito, sem prejuízo de a liberdade de expressão ser um valor e princípio protegido pela referida norma, haverá que atentar no que dispõe o n.º 2 do referido artigo 10.º da CEDH. Com efeito, ali se refere que certas pessoas ou grupos, pela natureza das suas funções e responsabilidades, poderão ver a sua liberdade de expressão limitada.

16. Com o devido respeito, a posição perfilhada pelo Tribunal a quo, a ser levada em conta por este Tribunal – o que se admite por dever de patrocínio - levará a uma crescente desresponsabilização por este tipo de atos, até porque, “bastará” alegar o exercício da liberdade de expressão como causa de exclusão da ilicitude, para a partir daí, tecer considerações como as em crise nestes autos, para que se coloque em crise a tutela disciplinar, entendimento que não se pode acompanhar.

17. Reitera-se nesta sede que andou bem o CD ao sancionar o Recorrido e andou mal o TAD ao revogar o Acórdão do Conselho de Disciplina da Recorrente, pelo que deve ser revogado o Acórdão recorrido. (…)

O Recorrido F. – F. SAD (F._SAD) contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões - cfr. fls. 74 e ss., do SITAF:

«(…)


– I –

A. Inconformada com o douto acórdão do Tribunal Arbitral datado de 12/09/2022, o qual julgou procedente o pedido de arbitragem apresentado aos autos, assim revogando a decisão condenatória proferida no âmbito do processo disciplinar n.º 66-2020/2021, veio agora a Demandada interpor recurso dessa decisão, considerando, em suma, que “a decisão que ora se impugna é passivel de censura porquanto existe um erro de julgamento na interpretação e aplicação do direito invocado.”

B. Afigura-se, porém, que nenhuma razão assiste à Demandada, ora Recorrente, devendo improceder na íntegra o recurso apresentado aos autos, porquanto nenhuma censura ou reparo merece o acórdão recorrido na parte em que decidiu afastar a aplicação, in casu, dos normativos ínsitos nos arts. 112.º-1 e 136- 1 e 3.º do RDLPFP, assim concluindo pela ausência de responsabilização disciplinar dos Demandantes, ora Recorridos.


– II –

C. Ao contrário do que pretende fazer valer a Recorrente, nunca foi propósito dos Recorridos atentar contra a honra e consideração dos agentes de arbitragem visados, nem, muito menos, atingir as suas “qualidades morais”. Mas, tão só, criticar o seu desempenho profissional – chamando à atenção para aquilo que se consideram ser erros crassos e falta de qualidade profissional.

D. Face a uma concreta arbitragem que esteve longe de ser isenta de censura, o Recorrido mais não fez do que expressar publicamente a sua indignação (e saturação) face a falhas da arbitragem nacional que considera como inadmissíveis, e que, evidentemente, alteram/ condicionam directamente o resultado dos jogos, influindo assim no são funcionamento da competição desportiva.

E. Não se compreende como pode a Recorrente advogar que o apontar de erros, grosseiros ou não, tem total arrimo na crítica objectiva, mas concluir depois, em sentido totalmente antagónico, que o mesmo já não sucede quando se apelida o profissional que cometeu esses erros de “incapaz” ou “incompetente”.

F. Salvo o devido respeito, se um determinado árbitro comete erros que entram pelos olhos dentro de qualquer cidadão médio, e se o apontar desses erros se reputa por admissível, então não há como censurar disciplinarmente a conclusão (lógica) que daí deriva no sentido da incompetência e/ou incapacidade para o exercício das funções do profissional de arbitragem que incorre nesses mesmos erros!

G. E nem se diga que adjectivar o árbitro como “incapaz” e/ou “incompetente” equivale a emitir um juízo global de carácter que atinge as suas qualidades morais enquanto pessoa, pois que, como é evidente, a censura inerente à qualificação utilizada dirige-se, única e exclusivamente, à actuação profissional do visado!

H. Bastará atentar na subjectividade dialéctica inerente às afirmações propaladas, e bem assim no concreto contextualismo que as envolve, para forçosamente concluir não serem as mesmas susceptíveis de atingir o âmago do mínimo de respeito e correcção indispensável ao espírito desportivo, revelando-se, pois, como disciplinarmente atípicas.

I. Jamais foi propósito de J. C. pôr em causa a honra e bom nome pessoal dos elementos da equipa de arbitragem e observadores designados para os jogos em referência, até porque as declarações aqui em sindicância não foram sequer propaladas de forma gratuita ou inopinada.

J. Tudo o que o Recorrido fez foi expressar – em resposta às concretas perguntas que lhe foram dirigidas – o seu ponto de vista técnico e pessoal acerca da actuação (generalizada) das equipas de arbitragem na II Liga e do contributo da ausência do VAR para a perpetuação de erros que o mesmo tem por injustificáveis.

K. Não pode a denúncia de erros crassos, e por essa via, da falta de competência para o desempenho da actividade profissional de determinados elementos da arbitragem ser confundida – como o faz erradamente a Recorrente – com a afirmação da existência de actuações prejudiciais dolosas e intencionais ou com uma qualquer cabala montada contra a F. SAD!

L. Uma análise objectiva do propalado leva, pois, à necessária conclusão de que conduta do Recorrido se circunscreve à censura, directa e frontal, da actuação do árbitro assistente R. L. no que diz respeito a um concreto lance ocorrido no jogo de 1../../2021 disputado entre a C. C. – F., SAD e a equipa B da F. – F., SAD, nomeadamente por considerar que a anulação do golo que daria a vitória à equipa (por alegado fora de jogo) é um erro crasso que salta à vista de qualquer cidadão médio – o que o levou assim a pôr em causa a capacidade do visado para o cumprimento das suas funções (ao menos com o rigor e exigência que se impõe a qualquer profissional da área).

M. Sendo certo, sublinhe-se!, que o Recorrido não questiona sequer a imparcialidade ou honestidade do árbitro visado, mas sim a sua incapacidade e/ou incompetência – o que é perfeitamente natural, e legitimo, em face das falhas técnicas constatadas.

N. Nada, porém, que detenha sequer revelo jurídico suficiente para se poder considerar como disciplinarmente censurável!

O. A “dualidade de critérios” empregue pela equipa de arbitragem no decurso de um jogo – ainda que de forma perfeitamente inadvertida – nunca poderá deixar de ser um facto objectivo e concretizável cuja inevitável consequência lógica é uma equipa ser beneficiada em detrimento da outra.

P. O que não pode admitir-se é que, da mera denúncia de factos que se têm por inteiramente lógicos e notórios, pretenda a Recorrente retirar a imputação de quaisquer juizos de parcialidade subjectiva pré-existente!

Q. Objectivamente consideradas, as afirmações aqui em apreço não comportam uma grosseria intrínseca que represente um atentado (sério e relevante!) contra o direito à reputação ou honra dos elementos das equipas de arbitragem visados; tampouco podem considerar-se de tal modo difamatórias ou injuriosas que justifiquem a intervenção do direito sancionatório disciplinar.

R. Pelo que, sempre haverá de se concluir que as afirmações em apreço não são sequer aptas a preencher os ilícitos disciplinares previstos nos arts. 136.º-1 e 112.º do RDLPFP, nenhuma censura merecendo por isso o acórdão absolutório proferido pelo Tribunal a quo – o qual deve manter-se in totum.


– III –

S. Acresce que, ainda que contrariando o douto juízo formulado pelo Tribunal Arbitral, se viesse a considerar a conduta em apreço como típica à luz das normas consagradas nos arts 112.º e 136.º do RDLPFP – o que não se consente e apenas por mero dever de patrocínio se equaciona – certo é que a sua ilicitude sempre estará excluída por ser o facto praticado no legítimo exercício de um direito, concretamente o direito à liberdade de expressão (art. 31.º-1 e 2, al. b) do CP e art. 37.º da CRP).

T. A tese sufragada pela Recorrente contraria aquilo que vem sendo entendido pelo TEDH quanto à prevalência do direito fundamental à liberdade de expressão face ao bom-nome e à honra de terceiros, sempre que exista uma base factual mínima que suporte as afirmações propaladas.

U. Basta atentar nos Relatórios técnicos de observação dos árbitros juntos pela Demandada/ Recorrente aos presentes autos para facilmente constatar que as afirmações veiculadas (referentes às falhas da equipa de arbitragem, ao menos, no jogo disputado a 1./../2021 entre a C. C. – F., SAD e a equipa B da F. – F., SAD) são providas de factos que as suportam.

V. A verdade é que, independentemente do desagrado que as afirmações propaladas possam ter causado, a actuação dos Recorridos enquadra-se, e não extrapola, o âmbito do direito à sua liberdade de expressão, na sua vertente de direito de crítica.

W. Face a todo o exposto, outra não poderá ser a conclusão senão a de que a conduta dos Recorridos não consubstanciou a prática de qualquer ilícito disciplinar, seja porque nem sequer assumiu relevo típico, seja porque (embora típica) não chegou a ser ilícita uma vez que realizada no exercício legítimo do direito fundamental à liberdade de expressão.

X. Por nenhuma responsabilidade disciplinar poder ser assacada aos aqui Recorridos, impõe-se, assim, manter na íntegra o teor e sentido do acórdão recorrido. (…)».


Por requerimento de 14.12.2022, a fls. 107, ref. SITAF, veio o Recorrido F._SAD expor e requerer o seguinte:
«(…)
4. Estão assim em causa as declarações sobre a arbitragem proferidas por J. C. no dia 1./../2021, em entrevista ao “P. C.”, transmitida em directo, no âmbito do programa denominado “N. I.”, na sequência do jogo disputado a 1./../2021, entre a C. C. – F., SAD e a equipa B da F. – F., SAD.

5. Declarações essas que - por a A. A. – S., SA (NIPC 507…) ser a sociedade comercial que tem por objecto a exploração do serviço de programas televisivo por cabo denominado “P. C.”, e estar integrada no grupo de empresas “F.”, sendo 81,42% do respectivo capital social detido pela F. – F., SAD - determinaram a condenação da F. – F., SAD pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 112.°-1, 3 e 4 do RDLPFP20.
(…)
14. Ora, tendo as declarações descritas nos factos dados como provados pelo Conselho de Disciplina da FPF sido proferidas em programa televisivo da P. C. por pessoa devidamente identificada (J.C.),
15. e não constituindo incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual, ou à prática de um crime,
16. resulta indubitável que, de acordo com o disposto no art. 112.°, n.° 4, do RDLPFP actualmente em vigor, não pode a F. – F., SAD ser pelas mesmas responsabilizada.
17. Dito de outro modo, embora a Demandante/ Recorrida ao abrigo da norma em vigor em 2021 possa ter praticado uma infração disciplinar nos termos do art. 112.° n.°s 1, 3 e 4, do RDLPFP 2020 [ou seja, por as declarações proferidas pelo Presidente da SAD e transmitidas no P. C. lhe serem imputáveis dado que as mesmas foram reproduzidas e divulgadas pela sua imprensa privada],
18. a referida conduta deixou de ser punível uma vez que, face ao prescrito no art. 112.° n.° (1, 3 e) 4, do RDLPFP 2021 (aplicável aquando da prolação do acórdão recorrido) e RDLPFP 2022 (ora aplicável), a respectiva conduta já não constitui infração disciplinar.
19. Neste sentido, vai o recente Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo datado de 20 de outubro de 2022, tirado no âmbito do Proc. n.° 074/22.3BCLSB, disponivel para consulta em http://www.dgsi.pt/ no qual nos louvamos.
20. Tudo o que vem de se dizer desagua, portanto, na conclusão de que, caso venha a proceder o recurso interposto pela Federação Portuguesa de Futebol, revogando- se o douto acórdão arbitral proferido - o que não se consente e apenas por mero dever de patrocínio se equaciona -, não poderá este Tribunal ad quem deixar de aplicar retroactivamente aos factos sub judice o regime legal previsto no actual Regulamento Disciplinar,
21. assim concluindo pela impossibilidade de responsabilização disciplinar da Recorrida F. – F. SAD (…)».

O DMMP junto deste tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art. 146.º e do n.º 2 do art. 147.º, ambos do CPTA, pronunciou-se no sentido de que se «defira o requerido pelo F.- F., SAD sobre a sua não responsabilidade em matéria de infração disciplinar, prevista no artigo 112.° do RDLPFP», atualmente em vigor.


Com dispensa dos vistos, atenta a natureza urgente dos autos, vem o processo à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

As questões suscitadas pela Recorrente Federação Portuguesa de Futebol (FPF), delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, reconduzem-se, essencialmente, à verificação da correta ou incorreta qualificação das declarações do Recorrido dirigente desportivo e, consequentemente, a respetiva subsunção ao ilícito disciplinar previsto e punido nos citados art.s 112.º e 136.º do RDLPFP 2021.

II. Fundamentação

II.1. De Facto

A matéria de facto constante da decisão recorrida é aqui transcrita ipsis verbis - cfr. fls. 4 e ss., do SITAF:

«(…)

1. No dia .. de .. de 2021, pelas 1.h00, realizou-se o jogo oficialmente identificado com o n.º 2.. disputado entre a G. C. – F., SAD e a F. – F. SAD (F., doravante), equipa B desta, no Estádio T.., a contar para a Liga Portugal SABSEG (II Liga);

2. No dia .. de . de 2021, em entrevista ao “P. C.”, por este transmitida em direto, no âmbito do seu programa denominado “N. I.”, o Demandante J. C., Presidente do Conselho de Administração da F., questionado sobre a situação da Equipa B da F., sobre o risco de despromoção, e sobre a sua avaliação da situação, respondeu e declarou o seguinte:

3. «Eu hoje falei com um responsável do futebol português, e falámos disso, porque disseram-nos (disseram-nos, e eu tenho a certeza, até pela garantia que ele me deu e, também, porque não acreditava nisso) que havia vários complôs para que o F. B descesse de divisão. Um deles, que até foi dito em C., a um dos responsáveis do F., que a Federação tinha interesse em que o F. descesse para, indo para a terceira divisão, os jogos passarem para o canal ... E o outro é que haveria um complô da APAF, em relação àqueles árbitros menos conhecidos e de menos categoria, que são os que a APAF dominaria, e que havia um complô. Eu não acredito nem numa coisa nem noutra, até porque a Federação tem os jogos do F., estão no, também passam, da B, também passam, quando são em casa é no P. C., mas quando são fora, os que quiser, passa no canal ... (…) O que eu disse à pessoa com quem falei, aliás, falei deste tema com vários responsáveis, e disse “eu não acredito em nenhum”. Agora, o que é certo é que, domingo após domingo, jornada após jornada, o F. perde pontos por, unicamente, erros dos árbitros. E as pessoas concordam! E eu disse “bem, se não é pelo canal .., que é um absurdo, se não é pelo complô da APAF, que é outro absurdo, então diga-me porque é! Eu em bruxas não acredito. Em milagres, só em Fátima e não são muito frequentes. Como é que no O. e onde o F. se desloca, há sempre um milagre de, no último minuto (…)?”. Olhe! O último jogo em C. o F. faz o golo da vitória, faltam três minutos. Dito pelos responsáveis, o jogador estava mais de meio metro atrás do defesa, e o Senhor L., que era o fiscal de linha, levantou a bandeira! Pronto! Foi a pensar no canal ..? Não. Foi a pensar no complô da APAF, mesmo sendo o seu chefe presidente da mesa da Assembleia Geral da APAF? Também não. Foi por incapacidade? Se calhar, foi. Foi por incompetência? Se calhar, foi. Mas o que é certo: seja incapaz ou incompetente ele está lá! Agora, milagre, não foi. Bruxas, também não acredito. Em C. não é terra de bruxas, portanto, não acredito. Agora, que é assim, é. E que os responsáveis bem que é assim e também não te encontram solução… Eu acho que uma das maneiras (…), acreditando na seriedade, e não tenho dúvida na boa intenção do Conselho de Arbitragem, em que as coisas corram bem, acho que muitos destes erros, por exemplo, este golo anulado pelo Senhor L., foi tão flagrante, tão escandaloso… é a falta do VAR. É fundamental que na B, na segunda Liga, haja VAR! Porque, se houvesse VAR, são tão flagrantes os erros, são tão incompreensíveis. Como é que o Senhor L. levanta a bandeira, depois da bola entrar?! É que os jogadores vêm de trás, adianta-se, faz golo, e só depois do golo é que o Senhor L.» (neste momento, gesticula em jeito de erguer uma bandeira) «(…) Evidente que o VAR, numa situação dessas, de certeza absoluta que o golo era considerado e o F. tinha mais dois pontos.»

4. As declarações transcritas no ponto 2 foram objeto de várias notícias na imprensa;

5. A A. A. – S., SA (NIPC 507 …), é uma sociedade comercial que tem por objeto a exploração do serviço de programas televisivo por cabo denominado “P. C.”, e está integrada no grupo de empresas “F.”, sendo 81,42% do respetivo capital social detido pela Demandante F. – F., SAD;

6. Os Arguidos agiram de forma livre, consciente e voluntária;

7. À data dos factos, a Arguida FCP tinha os antecedentes disciplinares constantes do registo disciplinar, verificando-se que foi anteriormente punida, várias vezes, pela mesma infração de que vem acusada nos autos, por decisões transitadas em julgado, desde a terceira época desportiva anterior à dos factos;

8. À data dos factos, o Demandante J. C. tinha os antecedentes disciplinares constantes do registo disciplinar, verificando-se que foi anteriormente punido, várias vezes, pela mesma infração de que vem acusado nos autos, por decisões transitadas em julgado, desde a terceira época desportiva anterior à dos factos.

Nada mais foi considerado provado relativamente à matéria relevante para a decisão.


FUNDAMENTOS DA DECISÃO DE FACTO
Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 94.º do CPTA, aplicável ex vi artigo 61.º da LTAD, o tribunal aprecia livremente as provas produzidas, decidindo segundo a convicção que forme sobre cada facto em discussão.
A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto considerada provada assentou, assim, na análise crítica dos documentos constantes dos autos, conjugadamente com a posição assumida pelas Partes.
Concretizando, e em especial:
(i) O facto 1 encontra-se documentalmente provado (cfr. documentos contantes nas fls. 76 ss do Processo Disciplinar n.º 66-20/21);
(ii) O facto 2 encontra-se documentalmente provado, para além de ter sido confessado pelos Demandantes (cfr. documentos contantes nas fls. 3 do Processo Disciplinar n.º 66-20/21);
(iii) O facto 3 encontra-se documentalmente provado (cfr. documentos contantes nas fls. 4-5, 60-67 e 90-91 do Processo Disciplinar n.º 66-20/21);
(iv) O facto 4 encontra-se documentalmente provado (cfr. documentos contantes nas fls. 74 do Processo Disciplinar n.º 66-20/21, assim como o Relatório de Contas Consolidado de 2020/2021, 1.º semestre, disponível para consulta em https://web3.cmvm.pt/sdi/emitentes/docs/PCS78208.pdf);
(v) O facto 5 encontra-se provado por presunção judicial;
(vi) O facto 6 encontra-se documentalmente provado (cfr. documentos contantes nas fls. 29 e 30 a 59 do Processo Disciplinar n.º 66-20/21);
(vii) O facto 7 encontra-se documentalmente provado (cfr. documentos contantes nas fls. 29 e 30 a 59 do Processo Disciplinar n.º 66-20/21) (…).»

II.2. De Direito
O Supremo Tribunal Administrativo (STA) em recente acórdão, de 10.11.2022, P.092/22.1BCLSB, teve oportunidade de levar a cabo a seguinte recensão de jurisprudência daquele Colendo Tribunal sobre esta matéria e que se revela da maior utilidade para a solução a dar, também, ao caso em apreço.
Assim:
No acórdão do STA de 26.02.2019, P. 066/18.7BCLSB, concluiu-se que as declarações — «Golo limpo anulado ao B………. que nem o vídeo árbitro viu. Esta é a jornada da vergonha» e «Não se via uma jornada com uma arbitragem assim desde o Apito Dourado: falta nítida de (…) antes do penalty a favor do C (…), dois penalties limpos contra o D (…) não assinalados e golo limpo mal anulado à B (…). É um escândalo, esta é a jornada da vergonha» — atingiam não apenas os árbitros envolvidos, mas que assumiam, também «potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, é o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desporto, já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa (nº 1 do art. 112º, 17º e 19º do RDLPFP)».

No acórdão de 04.06.2020, P. 0154/19.2BCLSB, concluiu também aquele Colendo Tribunal que: «I – Preenche o tipo de infração disciplinar previsto e punido nos artigos 19.º e 112.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP) a publicação de um artigo, na imprensa privada de um clube de futebol, onde se afirma que os árbitros atuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso. II – Aquelas normas não restringem desproporcionalmente a liberdade de expressão e de informação garantidas pelo artigo 37.º da CRP, que neste caso cedem para assegurar a salvaguarda de outros direitos e valores constitucionais, nomeadamente os direitos de personalidade inerentes à honra e à reputação dos árbitros (artigo 26º/1 da CRP), e a prevenção da violência no desporto (artigo 79.º/2 da CRP)”; estavam em causa declarações com o seguinte teor: “Por uma Liga com verdade desportiva O balanço da primeira volta da Liga 2018/19 fica marcado por um conjunto de erros de arbitragem de uma dimensão que há muitos anos não se via. Muitos deles inexplicáveis e incompreensíveis. O que habitualmente se verifica é que, entre eventuais benefícios e perdas, acaba por haver um equilíbrio no final das contas, entre equipas que lutam pelos mesmos objetivos. Na atual temporada isso não acontece. Pelo contrário: desta vez existe um clube que tem beneficiado sistematicamente de erros a seu favor. Situação reconhecida pela esmagadora maioria dos analistas e que coloca em causa a verdade desportiva desta competição. Outra evidência é que, no confronto direto entre os principais candidatos ao título, não se tem afirmado a superioridade de quem surge destacado na liderança. Bem pelo contrário. Trata-se, pois, de uma liderança muito alicerçada em erros sucessivos em momentos decisivos de jogos, a que não será alheio todo o clima de pressão, ameaças e coação dirigidos a diferentes agentes desportivos. Neste quadro, mais se torna urgente que, de forma transparente, se faça um balanço e se tornem públicos os 9 erros que recentemente foram assumidos. Ao nível do VAR, assistiram-se inclusive às mais incríveis decisões, onde mesmo com a ajuda de diversos ângulos e imagens, houve quem não visse o que toda a gente viu. Esperamos que, na segunda volta, esta dualidade de critérios e proteção absurda a um clube termine para que todos estejam em igualdade de circunstâncias e assim, com verdade desportiva, possam lutar pelos seus objetivos. O Sport Lisboa e Benfica também assume os seus erros quando eles existem. E não nos custa reconhecer o mérito dos adversários. Demonstrámos isso mesmo já esta época, nos jogos que não conseguimos vencer».

No acórdão de 02.07.2020, P. 0139/19.9BCLSB, concluiu-se também que: «I – Preenche a infracção disciplinar prevista e punida pelos artºs. 19.º e 112.º do RDLPFP a publicação de um artigo na “newsletter” de um clube desportivo onde se imputa ao VAR uma actuação deliberada de erro com o objectivo de favorecer um clube em detrimento de outro, colocando em causa a sua idoneidade para o exercício das funções que desempenha. II – Os citados preceitos do RDLPFP não podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e reputação de todos aqueles que intervêm nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional.”.
Em causa estava um comunicado com o seguinte teor: “A (…) teve uma carreira de árbitro recheada de decisões insustentáveis e, agora como VAR, segue a mesma lamentável tradição. Ontem, na feira, assinalou um penálti a favor do Benfica depois de um toque tão levezinho que fez G (…) cair em câmera (sic) lenta, mas fez vista grossa a dois lances na área do Benfica, um deles uma pisadela clara. Já no ano passado, também na Feira, o mesmo VAR deixou passar um penálti claríssimo sobre H (…). Definitivamente, A (…) parece ter um problema com a imparcialidade, o que pode e deve afastá-lo dos jogos que vão decidir o campeonato».

No acórdão de 09.09.2021, P.050/20.0BCLSB, sufragando a tese de que no caso não se verificaram factos, condutas, ofensivas da honra de agentes desportivos, sumariou-se o seguinte: «Questão diferente [da mera referência a erros de apreciação técnica] é o clube perdedor extravasar do plano objectivo dos erros técnicos implicados no resultado desfavorável e passar para o plano subjectivo, afirmando que os erros técnicos nas faltas assinaladas e omitidas foram levados à prática pela equipa de arbitragem por esta prever e querer o resultado desfavorável que veio a verificar-se, ou seja, imputando aos árbitros um agir claramente pré-ordenado e ilícito à luz do princípio da verdade desportiva, dirigido ao cometimento dos erros técnicos assinalados tendo por finalidade o resultado verificado».
Neste caso estava em apreço um comunicado com o seguinte teor: «Campeonato Desvirtuado - Mais uma jornada, mais uma demonstração da falência da arbitragem em Portugal, da incoerência dos seus critérios e da sua clara interferência na classificação em prol do "status quo" vigente. Este domingo, contra o SL Benfica, assistimos a mais um rol de decisões inacreditáveis em prejuízo do SC Braga. Desde logo, um penálti por assinalar por jogo perigoso com contacto sobre (…) (17’). Aos 57’, porém, seria indevidamente marcada grande penalidade a favor do SL Benfica, apesar de não existir falta de (…). Tão instável como o critério técnico foi o critério disciplinar, com (…) (61') e (…) (78' e 79') a escaparem a claras infrações merecedoras de segundo cartão amarelo (...)».

Assim como no acórdão de 03.11.2022, P. 041/22.7BCLSB, se qualificou como não violador do art. 112.º n.º 1 do RDLPFP 2020 o uso das seguintes expressões por um dirigente desportivo num órgão de comunicação social do clube: «(…) A APAF está a ser coerente com ela própria... Quando o Sporting fala, a APAF reage, quando os outros falam, a APAF fica em silêncio... Uma dualidade de critérios de que nos queixamos fora e dentro do campo. Em 9 jogos realizados, o Sporting apenas perdeu pontos em 2 jogos. Curiosamente teve o mesmo árbitro e curiosamente ambas as atuações foram contestadas [...]. Não queremos regras diferentes para o Sporting, não queremos fazer nomeações cirúrgicas dentro do Sistema para as coisas correrem melhor para nós. Nós queremos regras iguais para todos. Eu acho que isto assusta muita gente, assusta o poder instalado. O verdadeiro poder instalado assusta-se com a transparência e com as regras iguais para todos. Não queremos nomear este árbitro para aqui, aquele árbitro para ali, como já o disseram outros clubes e até com orgulho...... não apitou bem nos 2 jogos com o Sporting... [...] Se me pergunta se eu quero ver o ….. a apitar mais jogos do Sporting... Não, não quero... E não quero até para o proteger a ele próprio... [...] mais uma vez provou-se que seria útil ouvir as comunicações entre árbitro e VAR ...Gostaria de ouvir a conversa entre …. e …, perceber qual foi o critério. Quem é competente não teme a transparência...(…)».

Aqui chegados, e fazendo apelo à doutrina que decorre do citado aresto do STA de 10.11.2022, podemos dizer que «[d]a jurisprudência antes referenciada resulta um padrão claro de decisão deste STA que assenta no pressuposto de que o comentário técnico do jogo e das decisões de arbitragem nele praticadas, sempre que se limite a apontar erros técnicos, não consubstancia o ilícito previsto e punido pelo artigo 112.º, n.º 1 do RDLPFP 2020.
Tal violação terá de consubstanciar-se numa afirmação de que os erros se fundaram numa intencionalidade dolosa para favorecer ou prejudicar alguma das equipas.» e que «[o] critério de decisão antes mencionado, que consubstancia um parâmetro decisório conforme com as regras constitucionais e da CEDH e com a jurisprudência do TC e do TEDH em matéria de harmonização em abstracto da colisão potencial entre o direito à honra e ao bom nome e a liberdade de expressão, deve igualmente prevalecer no caso sub judice, para assim se assegurar uma interpretação e aplicação uniforme do direito (artigo 8.º, n.º 3 do CC).»

Neste pressuposto, e retomando agora o caso em apreço, atentemos, tal como a decisão recorrida que as visadas declarações do dirigente desportivo Recorrido – cfr. factos n.º 2 e 3 da matéria de facto supra – comportam, em si, vários segmentos, a saber:

Uma primeira parte em que este afirma que «um responsável do futebol português» lhe comunicou que «havia vários complôs para que o F. B descesse de divisão» e que «a Federação tinha interesse em que o F. descesse para, indo para a terceira divisão, os jogos passarem para o canal ..», conjugado com a afirmação de que ele próprio não acreditava no que lhe foi comunicado, «até porque a Federação tem os jogos do F.» - (10 - “não acreditava nisso”, “Eu não acredito nem numa coisa nem noutra, até porque a Federação tem os jogos do F., estão no, também passam, da B, também passam, quando são em casa é no P. C., mas quando são fora, os que quiser, passa no canal B (…)».

O que se pode e deve ler, e reter, como mera questão de estilo, o dizer que alguém lhe disse, que em nada diminuiria a culpa e a ilicitude da conduta do agente.

E, uma segunda parte em que, aquele mesmo dirigente desportivo afirma que, «domingo após domingo, jornada após jornada, o F. perde pontos por, unicamente, erros dos árbitros. E as pessoas concordam!», seguido de afirmações de «milagres de último minuto»; de conjeturas e especulações sobre possíveis fundamentos para os referidos erros «(11 - (bem, se não é pelo canal .., que é um absurdo, se não é pelo complô da APAF, que é outro absurdo, então diga-me porque é! Eu em bruxas não acredito. Em milagres, só em Fátima e não são muito frequentes. Como é que no O. e onde o F. se desloca, há sempre um milagre de, no último minuto (…)?», de críticas ao desempenho de arbitragem no jogo entre o F. B e o D. C., «(12 - “(…) o jogador estava mais de meio metro atrás do defesa, e o Senhor L., que era o fiscal de linha, levantou a bandeira! Pronto! Foi a pensar no canal ..? Não. Foi a pensar no complô da APAF, mesmo sendo o seu chefe presidente da mesa da Assembleia Geral da APAF? Também não. Foi por incapacidade? Se calhar, foi. Foi por incompetência? Se calhar, foi. Mas o que é certo: seja incapaz ou incompetente ele está lá! Agora, milagre, não foi. Bruxas, também não acredito. Em C. não é terra de bruxas, portanto, não acredito. Agora, que é assim, é.», assim como a promoção declarada da adoção do VAR na segunda Liga, «(13 - “os responsáveis bem que é assim e também não te encontram solução… Eu acho que uma das maneiras (…), acreditando na seriedade, e não tenho dúvida na boa intenção do Conselho de Arbitragem, em que as coisas corram bem, acho que muitos destes erros, por exemplo, este golo anulado pelo Senhor L., foi tão flagrante, tão escandaloso… é a falta do VAR. É fundamental que na B, na segunda Liga, haja VAR! Porque, se houvesse VAR, são tão flagrantes os erros, são tão incompreensíveis. Como é que o Senhor L. levanta a bandeira, depois da bola entrar?! É que os jogadores vêm de trás, adianta-se, faz golo, e só depois do golo é que o Senhor L.» (neste momento, gesticula em jeito de erguer uma bandeira) «(…) Evidente que o VAR, numa situação dessas, de certeza absoluta que o golo era considerado e o F. tinha mais dois pontos.».

Em face do que, e transpondo a aplicação do parâmetro normativo de decisão que resulta da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo supra enunciado e transcrito, para a factualidade descrita, não se pode concluir que o elemento intencional, de favorecer ou de prejudicar alguma das equipas, esteja presente nas declarações em causa, para além das críticas que foram genericamente dirigidas a desempenhos da arbitragem, tais como «domingo após domingo, jornada após jornada, o F. perde pontos por, unicamente, erros dos árbitros. E as pessoas concordam!» claramente a coberto do seu direito de liberdade de expressão.

Mas também quando usou outras expressões mais sugestivas, tais como, como: «[f]oi por incapacidade? Se calhar, foi. Foi por incompetência? Se calhar, foi. Mas o que é certo: seja incapaz ou incompetente ele está lá! Agora, milagre, não foi. Bruxas, também não acredito. Em C. não é terra de bruxas, portanto, não acredito», pois que se traduzem mais num juízo especulativo sobre o fundamento do alegado carácter sistemático dos erros de arbitragem, do que numa clara afirmação de que tais erros se haviam fundado numa intencionalidade dolosa para favorecer ou prejudicar qualquer equipa, isto mesmo valendo para a parte em que o declarante afirma ainda que «são tão flagrantes os erros, são tão incompreensíveis. Como é que o Senhor L. levanta a bandeira, depois da bola entrar?! É que os jogadores vêm de trás, adianta-se, faz golo, e só depois do golo é que o Senhor L.» (neste momento, gesticula em jeito de erguer uma bandeira) «(…) Evidente que o VAR, numa situação dessas, de certeza absoluta que o golo era considerado e o F. tinha mais dois pontos.», ou mesmo quando afirma «que é assim, é. E que os responsáveis bem que é assim e também não te encontram solução… Eu acho que uma das maneiras (…), acreditando na seriedade, e não tenho dúvida na boa intenção do Conselho de Arbitragem, em que as coisas corram bem, acho que muitos destes erros, por exemplo, este golo anulado pelo Senhor L., foi tão flagrante, tão escandaloso… é a falta do VAR.»

Com isto não estamos a dizer que se trata de afirmações sensatas, mas a liberdade de expressão se não permitir a insensatez de pouco vale, havendo que ser justo e cuidadoso na necessária conformação deste direito fundamental com outros direitos fundamentais, no caso, com o direito à honra e ao bom nome do Conselho de Arbitragem e dos árbitros, nos termos do n.º 2 do art. 18.º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, considera este tribunal de recurso ser de manter a decisão recorrida, que considerou as declarações proferidas como mero discurso desportivo, com fundamento em erros técnicos da arbitragem, potencialmente prejudiciais para o seu clube, o que não se subsume ao ilícito do n.º 1 do art. 112.º e art. 136.º do RDLPFP 2021, por não se poder qualificar tais declarações como injuriosas, difamatórias ou grosseiras, e nem como sendo incitadoras da prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recuso e em manter a decisão arbitral recorrida.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 26.01.2023

Dora Lucas Neto

Pedro Nuno Figueiredo

Ana Cristina Lameira










1)Regulamento das competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional aprovado na Assembleia Geral Extraordinária de 27 de junho de 2011, com as alterações aprovadas nas Assembleias Gerais Extraordinárias de 14 de dezembro de 2011, 21 de maio de 2012, 6 e 28 de junho de 2012, 27 de junho de 2013, 19 e 29 de junho de 2015, 8 de junho de 2016, 15 de junho de 2016 e 29 de maio, 13 de junho de 2017, 29 de dezembro de 2017, 13 de junho de 2018, 29 de junho de 2018, 22 de maio de 2019, 28 de julho de 2020 e 2 de junho de 2021.