Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:137/19.2BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2020
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IMPUGNAÇÃO ARBITRAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CONTRADIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Sumário:
I. Há nulidade por omissão de pronúncia quando uma das questões suscitadas, ainda que a título subsidiário, não tenha sido apreciada, se o seu não conhecimento não resultou prejudicado pela solução dada às demais questões.

II. Verifica-se contradição real entre os fundamentos e a decisão proferida quando o discurso argumentativo constante da decisão arbitral impugnada conduza a uma decisão distinta da que foi proferida.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante Impugnante) veio apresentar impugnação da decisão arbitral proferida a 24.10.2019, pelo Tribunal Arbitral Coletivo constituído no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), no processo a que aí foi atribuído o n.º 118/2019-T, ao abrigo dos art.ºs 27.º e 28.º do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária – RJAT).

Nesse seguimento, a Impugnante apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“1. A Sentença impugnada (do Tribunal arbitral fiscal, com o n.° 118/2019-T) é ilegal (por nulidade e/ou anulável) por (i) omissões de pronúncia e (ii) oposição dos fundamentos com a decisão (art. 28.0, n.° 1, al b) e c), do RJAT).

Omissão de pronúncia na questão da “violação do princípio da operação única”

2. A questão (resumida no princípio da operação única) foi formulada no Rl (art. 316.0 a 336.0) e a Sentença arbitral não se pronuncia sobre a mesma.

3. A questão foi exposta de forma clara no Rl (factos, argumentos, lei aplicável e jurisprudência comunitária confirmativa); foi deduzida a título subsidiário, exigindo- se pronuncia, na sequência da improcedência (como improcederam) (d)os demais argumentos expendidos.

4. Os serviços de licenciamento para inscrição de jogadores, afins e estádios é uma operação única e incindível, apesar de prestada por duas entidades (LIGA e Federação).

5. A Sentença assume que quaisquer prestações efetuadas pela Federação (prestação principal) seriam não sujeitas e/ou isentas de IVA, em face do seu estatuto de utilidade pública. O que implicaria a não incidência/isenção de IVA nessas prestações, porque o acessório (serviço da LIGA) segue o regime do principal (da Federação).

Oposição dos fundamentos com a decisão: distribuição de excedentes em associação sem fins lucrativos

6. A Sentença deu como provado que a LIGA é uma associação sem fins lucrativos; que o excedente da atividade associativa nunca é distribuído aos sócios; e o excedente (saldo positivo) da componente comercial, a existir, é imputado aos Clubes que intervieram nos campeonatos (não totalmente coincidentes com os associados).

7. A Sentença advoga que a LIGA não é um organismo sem finalidade lucrativa (e portanto estaria sujeito e não isento de IVA - art. 9.0, n.° 19, do CIVA), na medida em que os excedentes das explorações comerciais são imputados aos clubes.

8. É flagrante a oposição entre os fundamentos e a decisão arbitral: o argumento para imputar finalidade lucrativa à LIGA (e negar a isenção de IVA) é aquele que permite concluir no sentido oposto - isto é, que não tem finalidade lucrativa.

9. A LIGA não obtém (nem distribuí) lucros. Impõe-no os estatutos; se porventura tiver excendentes, os da parte comercial, são atribuídos aos participantes nos campeonatos (que não coincidem com os associados); e os da parte associativa são empregues na sua atividade.

10. A LIGA atribui os excedentes para não gerar lucros; se não atribuísse os excedentes aos associados, então sim, a LIGA geraria lucros - e aí sim, violaria, o seu fim estatutário (e não teria direito à isenção).

“Omissão de pronúncia” e “oposição dos fundamentos com a decisão”: boa-fé, complexidade da situação, interpretação plausível e inexistência de intuito evasivo

11. A Sentença fundamenta que a exigência (ou não) tributária nas situações dos autos se reveste de especial complexidade e que a LIGA efetuou uma interpretação plausível da lei, sem intuito evasivo (o que conduziu à anulação dos juros).

12. Existe omissão de pronúncia: a argumentação da LIGA arranca do pressuposto que se as liquidações de IVA não enfermarem de outras ilegalidades - podem então ser ilegais, por violação da boa-fé, com a anulação do IVA (por violação do art. 55.0 da LGT, 19.0 do CIVA e 68.°-A, n.° 2 da LGT). Ao invés, a Sentença conclui, sem explicar minimamente, que a boa-fé nunca é um vício da liquidação de imposto.

13. Existe ainda outra omissão de pronúncia: a LIGA argumentou que a procedência da boa-fé no tema do imposto [IVA] envolve a procedência da boa-fé no tema dos juros (e vice versa) - e a Sentença é omissa sobre a existência (ou não) desta relação de causalidade.

14. Há oposição entre os fundamentos e a decisão: os fundamentos da Sentença (complexidade técnica das questões dos autos, interpretação plausível da LIGA e inexistência de intuito evasivo) deveriam conduzir, num processo lógico, a uma decisão oposta ou pelo menos diferente da que foi adotada: deveriam conduzir ao reconhecimento da boa-fé da LIGA na parcela relativa ao imposto, com a anulação das liquidações impugnadas.

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas suprirão, requer-se:

a) A procedência desta impugnação (recurso);

b) Com a declaração de ilegalidade (nulidade/anulável) da Sentença recorrida (Sentença arbitral do proc. 118/2019-T, que correu termos no Centro de Arbitragem Administrativa [CAAD])

c) Com a consequente devolução do processo ao Tribunal arbitrai (CAAD), para que emita nova decisão arbitral expurgada das ilegalidades agora apontadas”.

Foi ordenada a notificação de Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante Impugnada ou AT) para alegar, nos termos consignados no art.º 144.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), ex vi art.º 27.º, n.º 2, do RJAT, não tendo sido apresentadas contra-alegações.

O Ilustre Magistrado do Ministério Público (IMMP) foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146.º, n.º 1, do CPTA.

Colhidos os vistos legais vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:
a) Há nulidade por omissão de pronúncia?
b) Há nulidade por oposição dos fundamentos com a decisão?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. Na decisão impugnada foi considerada provada a seguinte matéria de facto:

“a. A Requerente é uma associação de direito privado, sem fins lucrativos.

b. A Requerente tem personalidade jurídica e autonomia administrativa, técnica e financeira.

c. A Requerente, por delegação da Federação Portuguesa de Futebol, exerce competências na atividade do futebol profissional.

d. A Requerente, nos termos dos seus estatutos, organiza e regulamenta as competições de natureza profissional, controla e supervisiona nestas os associados, define os pressupostos desportivos, financeiros e de organização de acesso às competições, bem como fiscaliza a sua execução pelas entidades nela participantes.

e. A Requerente integra os clubes e sociedades desportivas que disputem as competições profissionais de futebol.

f. A Requerente pode ainda integrar representantes de outros agentes desportivos.

g. A Requerente tem como:

(i) associados ordinários, as sociedades desportivas que disputem competições de futebol de natureza profissional;

(ii) associados históricos, os clubes fundadores da Liga Portuguesa de Futebol e os que tenham detido a qualidade de associados ordinários independentemente de se encontrarem a disputar as competições de natureza profissional;

(iii) associados honorários, as pessoas singulares ou coletivas a quem seja reconhecido mérito na área do futebol e àquelas que tenham prestado serviços relevantes à Liga Portuguesa de Futebol ou ao desporto do Futebol.

h. A Requerente tem os seus próprios órgãos deliberativos, executivos e de controlo fiscal e disciplinar.

i. E atribuição da Requerente a exploração comercial das competições profissionais de futebol (Liga Zon, Ledman Liga Pro e Taça CTT) enquanto representante do coletivo constituído pelas sociedades desportivas que nelas participem, com angariação de receitas de publicidade e patrocínio, tais como o patrocínio da S….. (época de 2016/2017) como patrocinador oficial da Liga Portuguesa de Futebol.

j. Constituem receitas da Requerente o produto das joias de admissão e das quotizações dos associados, o produto de multas, indemnizações ou percentagens sobre estas, custas, emolumentos, preparos e cauções, as receitas que lhe couberem nos jogos em que intervenham as sociedades desportivas associadas ou que pela Requerente sejam organizados.

k. Os associados têm a obrigação de contribuir para as despesas da Requerente, pagando as quotas e outros encargos fixados.

l. São aplicadas quotas de valor fixo, quotas de valor variável para financiar o orçamento geral da Requerente ou destinadas ao Fundo de Equilíbrio Financeiro, e quotas suplementares, estas exigidas por efeito da inscrição das equipas B na Liga Ledman Pro.

m. São ainda receitas da Requerente:

(i) as quantias devidas pela inscrição e transferência de jogadores nacionais e estrangeiros e demais agentes desportivos (treinadores, preparadores, adjuntos, médicos, massagistas) e as respetivas quantias devidas pela emissão de cartões de identificação e cópias; e

(ii) as quantias devidas pelas vistorias aos estádios.

n. As quantias devidas pela inscrição e transferência de jogadores e demais agentes desportivos e respetivas emissões de cartões de identificação e cópias, remuneram a organização do processo administrativo de inscrição e transferência de jogadores e demais agentes desportivos, competindo à Federação Portuguesa de Futebol a homologação dos atos de inscrição ou transferência e licenciamento definitivo.

o. Nesta sede:

(i) o valor das quantias devidas é determinado pela Federação Portuguesa de Futebol em cada época desportiva;

(ii) as quantias recebidas são repartidas entre a Requerente e a Federação Portuguesa de Futebol. A Requerente fica com uma quantia equivalente aos encargos gerais e comuns que tem de suportar com a organização e gestão dos processos, tendo a repartição, nos anos em causa, sido de 50%.

p. As quantias devidas pelas vistorias aos estádios têm a ver com ações de controlo dos estádios, a fim de confirmar e certificar que estão aptos para a realização de jogos de futebol, com requisitos de segurança, conforto, reportagens e televisionamento.

q. O saldo positivo da prestação de contas das competições profissionais, resultante da diferença apurada em cada época desportiva entre, por um lado, os rendimentos de exploração comercial líquidos de gastos incorridos para a sua obtenção, e, por outro lado, os gastos incorridos na organização dessas provas, é, após deduções de parcelas que se destinam ao Fundo de Equilíbrio Financeiro, ao orçamento da Requerente e ao Fundo de Inffaestruturas da II Liga, imputado às sociedades desportivas que nelas tenham participado nessa mesma época, de acordo com os critérios definidos pela Assembleia-Geral da Requerente.

r. O saldo negativo apurado numa época desportiva é deduzido aos saldos positivos, havendo-os, de uma ou mais épocas desportivas posteriores.

s. O excedente da atividade de natureza associativa da Liga será alocado ao cumprimento dos fins e atribuições estatutárias.

t. Nos anos de 2013, 2017 e no período 02.2018, a Requerente não liquidou IVA sobre os valores cobrados a título de quotas associativas, inscrições e transferências de jogadores e agentes desportivos e respetivas quantias devidas pela emissão de cartões de identificação e cópias, e ainda sobre as vistorias a estádios.

u. A Requerente não deduziu o IVA suportado relativamente a estas atividades.

v. Nos mesmos anos, a Requerente liquidou IVA sobre os proveitos - publicidade e patrocínios - referentes à exploração comercial das competições profissionais de futebol, deduzindo o respetivo IVA incorrido relativamente a esta atividade.

w. Na sequência de ações inspetivas referentes aos anos de 2013, 2017 e período de 02.2018, foram efetuadas correções aritméticas em sede de IVA no montante de € 422.292,46, € 104.954,18 e € 7.051,03, respetivamente.

x. A maioria das correções efetuadas tem a ver com as quantias ligadas à inscrição e transferência de jogadores e agentes desportivos, 80% do total das liquidações de 2013, 90% do total das liquidações de 2017 e 75% do valor da liquidação de 2018.

y. A Autoridade Tributária, no indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada contra as liquidações adicionais de 2013 e 2017 e no Relatório de Inspeção Tributária relativo ao período de 02.2018, considerou que os rendimentos enumerados nos pontos 1. e m. supra consubstanciam prestações de serviços a título oneroso sujeitas e não isentas de IVA: (i) não se encontram abrangidas pela exclusão do âmbito de incidência subjetiva do imposto que consta do artigo 2.°, n.° 2, do Código do IVA na medida em que a Requerente não tem a qualidade de organismo de direito público e exerce poderes de autoridade de forma direta e (ii) não se encontram abrangidas pela isenção a que se refere o artigo 9.°, n.° 19, do Código do IVA na medida em que a Requerente não é um organismo sem finalidade lucrativa.

z. De igual modo, a Autoridade Tributária considerou que a Requerente não é um grupo autónomo de pessoas que exerce a título principal uma atividade isenta nem se limita a exigir dos seus membros o reembolso exato da parte que lhes incumbe nas despesas comuns, pelo que aos rendimentos em causa não é aplicável a isenção do artigo 9.° n.° 21 do Código do IVA.

aa. A Requerente invocou, em sede de Reclamação Graciosa contra as liquidações de 2013 e 2017, o vício de forma por infração do n.° 7 do artigo 60.° da LGT e a ilegalidade dos juros compensatórios correspondentes (cfr. ato de indeferimento da Reclamação Graciosa junto aos autos como documento 1 do PP A, ponto 3).

bb. A Requerente não exerceu direito de audição quanto ao projeto de correção da inspeção do período de tributação 02.2018 (cfr. Relatório de Inspeção junto aos autos como documento 2 do PP A, pág 18. Ponto VIII).

cc. Do Despacho do Gabinete do Secretário de Estados dos Assuntos Fiscais n.° ….., emitido à Associação ….., em 25 de Junho de 2008, a esta remetida através do Ofício n.° ….., consta o seguinte:

“Considerando que o n.°21 do artigo 9.°do Código do IVA (CFVA) estabelece a isenção de imposto nas prestações de serviços e transmissões de bens conexas efetuadas, no interesse coletivo dos seus associados, por organismos sem finalidade lucrativa que prossigam objetivos de natureza desportiva, quando a respetiva contraprestação seja uma quota fixada nos termos dos estatutos; Considerando que não é posto em causa que a Associação de ….. (…..) se constitui como um organismo sem fins lucrativos nos termos do artigo 10.° do CIVA;

Considerando que nos termos das alíneas a) e b) do artigo 58.° dos Estatutos da Associação ….. (…..) se encontra prevista a cobrança aos clubes de quotas e taxas de inscrição e transferência de jogadores;

(...)

Deve entender-se que:

- As importâncias cobradas aos clubes pela …..nos termos dos respetivos Estatutos, relativas à organização de jogos, à filiação dos clubes e sua inscrição nas provas, às inscrições e transferências de jogadores e à atribuição de cartões, se enquadram no n. ° 21 do artigo 9. ° do CIVA”.

II.B. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“18. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cff. art.° 123.°, n.° 2, do CPPT e artigo 607.°, n.° 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.°, n.° 1, alíneas a) e e), do RJAT).

19. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (cif. anterior artigo 511.°, n.° 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.°, aplicável ex vi artigo 29.°, n.° 1, alínea e), do RJAT).

20. O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e factos notórios, em particular os Estatutos e Regulamento da Requerente e estatutos da Federação Portuguesa de Futebol, e a prova testemunhal produzida.

21. Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas ou de direito, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada”.

II.C. Estão ainda provados os seguintes factos:

dd. A 21.02.2019 a ora Impugnante apresentou junto do CAAD pedido de constituição de tribunal arbitral, do qual consta, designadamente, o seguinte:

“Por último:

316. O serviço de transferência e inscrição de agentes desportivos e recintos tem ainda uma característica peculiar - que os tornas isentos de IVA (no caso de improcedência da argumentação anterior).

317.O serviço é prestado por duas entidades (LIGA e Federação) em total cooperação - e investidas em órgãos públicos em atos de autoridade.

318. A LIGA organiza os processos e obtém as informações relevantes e a LIGA toma a decisão final de homologar ou não a inscrição ou transferência (ato administrativo).

319. Este serviço, embora prestado por duas entidades, é incindível, em três sentidos: i) a LIGA e a Federação têm competências partilhadas de Autoridade Pública (estão integradas uma na outra, com poderes ope legis); ii) os consumidores só pagam um preço (que engloba todo o “serviço”), que não se consegue cindir pelas suas componentes; iii) para o consumidor apenas existe uma prestação - que é o licenciamento dos agentes e recintos (é economicamente uma operação única aos olhos do consumidor médio).

320. Ora, ainda que a prestação feita pela LIGA fosse sujeita e não isenta de imposto (hipótese académica, por dever de patrocínio), a verdade é que a prestação da LIGA não está sujeita ou é isenta de imposto (pelo reconhecido interesse público da Federação e por se tratar de uma taxa [contribuição] em sistema de monopólio).

321.Ora, para o sistema do IVA - quando uma parte do serviço é isento e a outra parte não isento, mas não se consegue cindir os termos em causa, atentas as circunstancias do caso concreto (como sucede in casu, como referido supra),

322. Então tem de se aplicar o regime de IVA a toda a prestação que corresponda à prestação principal (o acessório segue o principal).

323. A prestação principal é a da Federação (como aliás e reconhece na fundamentação): é ela que pratica o ato administrativo de homologação (a essência da contrapartida do processo de licenciamento); é ela que tem essa competência (seja para o futebol profissional ou amador); é esse o efeito externo do ato - e a sua utilidade para os clubes e agentes desportivos.

324.O trabalho da LIGA (embora fulcral) é operacional, interno e de preparação dos dossiês.

325. Logo, ainda que a parte da prestação do serviço da LIGA fosse sujeito e não isento de IVA - a verdade é que teria de estar isento, perante as circunstâncias do caso: operação não cindível, com preço global, em que a parte principal (em termos objetivos e para o consumidor médio) é da Federação - e o acessório segue o principal.

326. Se a Federação está, como está (reconhecido pela AT), não sujeita e/ou isenta de IVA para esta prestação (inscrição e transferência de agentes e recintos desportivos), então o mesmo sucede com a parte acessória da prestação da LIGA.

327. E note-se que não há aqui qualquer abuso de direito, por artificial unificação da prestação ou composição dos valores quantitativos de cada uma das pessoas coletivos em causa.

328. A prestação é una e só pode ser una - por ser uma taxa ou contribuição; o consumidor médio (agentes) olha-a como esta natureza objetiva; a parte mais relevante para o consumidor médio é a atividade da Federação; e os valores depois atribuídos a cada um dos prestadores - não é arbitrário, mas atende ao esforço financeiro de cada um para a prática desse serviço.

329. A jurisprudência do TJUE já decidiu casos deste género (por exemplo, proc. C-497/09 e C- 499/09); o caso estava em saber se a venda de pipocas num cinema era ainda um serviço acessório do filme (com menor taxa de IVA) ou se seria um autónomo serviço de restauração (com taxa superior de imposto).

330. O Tribunal entendeu que a venda de pipocas, aos olhos de um cliente de cinema médio, apenas completa a sessão de cinema, pelo que não está em causa um serviço de restauração com serviço de mesa (não existem mesas ou são insignificantes, não há empregados de mesa e a maior parte das pessoas leva as pipocas para a sala de cinema...).

331. Logo a venda de pipocas segue a taxa reduzida dos bilhetes de cinema - é um serviço acessório ao cinema (Sérgio Vasques, o imposto sobre o valor acrescentado, 2015, p. 222 e 223).

332. Estes corolários aplicam-se totalmente ao caso dos autos, pelo que as liquidações também por aqui, são ilegais por violação de lei a errónea apreensão dos factos relevantes.

Prosseguindo:

333. Em termos económicos e jurídicos, os Clubes pagam à Federação uma quantia para obterem dela uma licença de inscrição de jogadores - e a Liga funciona, por lei, como a secretaria técnica da Federação.

334. Logo, esse valor exigido pela Federação aos Clubes está sempre excluído de imposto, atenta a natureza de utilidade pública da federação (como sempre assumido no relatório).

335. Daí a ilegalidade das liquidações - que assumem que a relação fiscal é entre o Clube e a Liga, quando a mesma é entre o Clube e a Federação.

336. Fica depois, a questão da ligação fiscal entre a LIGA e a Federação (na repartição dos 50% da receita), mas isso não é matéria dos autos, porque não foi isso o tratado pela Fundamentação, sendo que o processo tributário é um contencioso de mera anulação.

VIII) Boa-fé, Interpretação plausível, juros compensatórios e neutralidade do IVA

337. Só há necessidade de abordar esta questão, na hipótese académica - apenas invocada por dever de patrocínio - de improcedência de toda (ou parte) a argumentação anterior: caso se conclua pela sujeição e não isenção das componentes associativas em discussão nestes autos.

338. Ora, nesse cenário - meramente académico, repete-se - a verdade é que os atos impugnados seriam ainda assim ilegais, por violação das regras da boa-fé, justiça, proporcionalidade e neutralidade do IVA (art. 55.º do CIVA e art. 19.º do CIVA).

Vejamos:

339. A LIGA sempre autoliquidou o IVA nos diversos períodos tributários em causa, como um sujeito misto, sem liquidação, nem dedução do IVA numa parte da sua atividade (a componente associativa agora em causa).

340. A AT recebeu mensalmente essas declarações, com essa informação e detalhe e nunca censurou ou investigou a reclamante - e isto assim permaneceu por mais de 5 anos.

341. Aliás, o tema só agora se despoleta quando a LIGA, porque em elevado crédito de imposto, solicitou o reembolso do IVA (no período de janeiro de 2017) - e, apenas por isso, a AT iniciou uma inspeção tributária (doc. n.° 1, ponto II.2, p. 2).

342. A impugnante, como se referiu ao longo desta peça, comportou-se em sede de IVA com base numa leitura plausível que faz da lei fiscal e do desporto aplicável - que parte da natureza pública da parte associativa da sua atividade (com poderes concedidos diretamente pelo Estado, para esse efeito).

343. Ora, a LIGA confiando no seu entendimento - corroborado pelo comportamento silente do Estado durante muito tempo - confiou que o seu comportamento estava correto.

344. Mais ainda (e este ponto é relevante): o Estado, em relação às transferências de jogadores e quotas, emitiu um Despacho com o n.° ….., tirado pelo Secretário de Estado dos Assuntos fiscais, onde a pedido da Associação ….. […..] (responsável pelas transferências de jogadores amadores - mas o tema é igual ao dos autos),

345. Onde determina que as "importâncias cobradas aos clubes pela …..nos termos dos respetivos estatutos relativas à organização de jogos, filiação dos clubes e sua inscrição nas provas [quotas legais e suplementares], às inscrições de jogadores e atribuição de cartões [inscrição de jogadores e afins], se enquadram no n.° 21 do art. 9.º do CIVA” (doc. n.° 4, que se junta e se dá por reproduzido).

346. Isto é, essas atividades estão isentas de IVA, atendando, não só ao exercício de poderes públicos dessas atividades, mas também porque não existe contrapartida e por verificação dos demais requisitos de isenção (doc. n.° 4).

347. Ora, se é verdade que esse Ofício não é diretamente oponível pelo impugnante, também é verdade que o seu conteúdo legitima que à LIGA seja dado idêntico tratamento do concedido à ….., por identidade de situações e sob pena de violação do princípio da igualdade, imparcialidade e legalidade.

348. O Contribuinte confiou, pois, que teria o mesmo tratamento em sede de IVA do que aquele que o SEAF concedeu, por ofício, à ….., dada a identidade das situações em causa.

Além disso:

349. A AT conhece o comportamento do contribuinte, revelado em cada declaração periódica de IVA, em que se assume como um sujeito misto de imposto - e não como um contribuinte totalmente sujeito a IVA.

330. E essa mesma AT, ao nada dizer durante todo este tempo, reforçou ainda mais a convicção da bondade do comportamento fiscal da LIGA em sede de IVA

351. Quer dizer: não há aqui quaisquer manobras de escondimento do regime fiscal perante a AT: tudo é claro e transparente.

352. Mais ainda: não há sequer uma tentativa de arriscar a leitura da lei fiscal (numa interpretação menos óbvia), no intuito de se pagar menos imposto - numa manobra de planeamento fiscal.

353. Nada disso: para a LIGA era indiferente se a sua atividade seria isenta ou sujeita a imposto - tanto lhe dava (só queria estabilidade na solução e inexistência de contradições subsequentes).

354. Se a sua atividade estivesse - como está - isenta de IVA, não liquidava IVA aos clubes e não deduz IVA nos inputs da parte associativa (como o fez consequentemente).

335. Mas se lhe dissessem que a atividade estaria sujeita e não isenta de IVA, nenhum problema se suscitaria para a LIGA: liquidaria IVA aos Clubes (normais sujeitos de IVA) sobre a parte associativa - e os clubes deduzi-lo-iam nos seus inputs, sem que tivessem, portanto, qualquer constrangimento) e deduziria assim o IVA suportado nos inputs associativos.

356. Tudo isto constitui, na verdade, uma enorme injustiça, em violação do art. 68.°-A, n.° 2, da LGT (mutatis mutandis): a AT não pode invocar retroativamente o entendimento da inspeção tributária, perante contribuintes, como a LIGA, que agiram com base numa interpretação plausível e de boa-fé da lei fiscal (e silêncio ensurdecedor da AT ao longo do tempo).

357. A jurisprudência alinha pelo mesmo diapasão, através de decisões sábias, que atendem a todas as vicissitudes concretas em análise, em casos que se podem designar como de violações formais, mas não materiais da lei tributária (Ac. STA de 13/10/1996, CTF 387, p. 263 e ss; Ac. STA de 29/2/2000, BMJ 494, p. 182 e ss; Ac. STA de 25/01/2006, processo 830/05, Ac. STA de 2/4/2008, processo 807/2007 - publicados em www.dgsi.pt).

358. Esta jurisprudência foi criada para a especialização de exercícios em sede de IRC, mas os seus corolários e ensinamentos aplicam-se integralmente ao caso dos autos.

359. A jurisprudência entende que:

360. Nos casos em que existe uma situação de complexidade técnica (como é manifestamente no caso dos autos, perante a natureza e qualificação jurídica e fiscal da LIGA e suas prestações);

361. E se um contribuinte se comporta de acordo com uma leitura plausível e congruente da lei fiscal, que posteriormente se vem a revelar como errada (como no caso dos autos, admitido agora apenas à cautela),

362. Sem qualquer intuito evasivo (como sucede no caso dos autos, numa dupla vertente: (i) era indiferente ao contribuinte, ab initio, qualquer das soluções, e (ii) o Estado, com a solução trilhada, isenção de IVA, ainda arrecadou mais receita fiscal, por impossibilidade de dedução do IVA nos inputs);

363. E, muitas vezes, porque o sujeito passivo confiou em comportamentos ativos ou omissivos do Fisco que penderam para essa decisão (como sucede no caso dos autos) - e que, aliás, o problema só existe, porque se foi avolumando, dado que o Fisco não corrigiu imediatamente esta questão (apesar de ter toda a informação) - como sucede no caso dos autos, se a AT informasse, declaração a declaração, assim que apresentadas, que estas prestações eram sujeitas e não isentas de IVA,

364. Sendo agora, por causa deste atraso, impossível corrigir globalmente toda a situação - como acontece nos autos, em que a LIGA já não pode, ou é manifestamente inviável, exigir o IVA de 2014 a 2916 aos clubes, nem consegue deduzir o IVA dos seus inputs desde o início, dado que nalguns casos se tratam de imobilizados,

365. Frustrando-se com isso os princípios gerais e traves mestras do imposto: o lucro real nos casos da jurisprudência e nos casos de IRC e o direito de dedução do IVA, a trave mestra do sistema do imposto sobre o valor acrescentado, em que a tributação concreta, por se impedir a dedução de IVA consequente, transforma-se numa tributação de um património e não do consumo,

366. E, assim sendo, quando reunidos todos estes pressupostos (como sucede in casu), a Jurisprudência tolera a aceita violações formais da lei fiscal e não anula as autoliquidações entregues pelo contribuinte.

367. As razões são fáceis de explicar: qualquer outra interpretação trilhada pela jurisprudência violaria as regras da boa-fé, da justiça, igualdade e proporcionalidade, constantes do art. 55.º da LGT e art.13.º e 18.º da CRP e violaria o direito à dedução do IVA e neutralidade do imposto, trave mestra do sistema comum do IVA, ínsito nos artigos 19,º e ss. do CIVA.

Acresce que:

368. Estas mesmas regras e corolários - impõem obrigatoriamente a anulação de quaisquer juros sobre o contribuinte (compensatórios, mora e outros), nos termos do art. 35.º e 44.º LGT.

369.Só são exigíveis juros (compensatórios, mas o mesmo se aplica à mora) se à omissão ou atraso no pagamento do imposto devido se associar um juízo de censura ou de culpa ao contribuinte nessa conduta (Ac. STA de 16/12/2012, proc. 0587/10 e Ac. STA de 0325/08, de 19/11/2008)

370. Ora, a LIGA atuou como atuou - dentro da letra da lei, com base numa interpretação legal da lei, mas tida a posteriori como violadora do espírito - com base numa interpretação plausível e congruente da lei fiscal, ainda que porventura errada (hipótese aventada à cautela).

371. Por isso, não lhe pode ser assacado qualquer comportamento intencional e culposo na errada interpretação e aplicação da lei fiscal (e falta ou atraso no pagamento do imposto).

372. Não se preenche, assim, um dos requisitos para a existência de juros compensatórios (mas também de mora), pela boa interpretação do art. 35.º da LGT (e art. 44.º da LGT), tal como trilhada pela jurisprudência dos tribunais superiores acima identificada.

373. Donde, à reclamante não se lhes podem exigir quaisquer juros” (cfr. fls. 1 a 96 da certidão do processo em formato PDF, constante de CD apenso, a que correspondem futuras referências sem menção de origem, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

ee. Na sequência do referido em dd., foi constituído Tribunal arbitral coletivo, tendo dado origem ao processo n.º 118/2019-T (cfr. fls. 115).

ff. No âmbito do processo referido em ee., foi proferida decisão arbitral, a 24.10.2019, da qual consta designadamente o seguinte:

“IV. DO DIREITO E DO MÉRITO

A. Delimitação das questões decidendas materiais

22. A Requerente entende que a não liquidação de IVA sobre as quantias enumeradas nos pontos l. e m. supra da Matéria de Facto assente é plenamente justificada porque:

(i)           Ao estarmos perante rendimentos associativos, a Requerente está excluída da incidência subjetiva do IVA, nos termos do artigo 2.° n.° 2 do Código do IVA e artigo 13.° da Diretiva IVA, na medida em que os rendimentos em causa se reportam a atividades que a Requerente desenvolve na qualidade de “organismo de direito público” e no exercício de “poderes de autoridade”;

(ii)          Os rendimentos em causa estão excluídos da incidência objetiva do IVA porque não consubstanciam uma atividade económica sujeita a este imposto nos termos do artigo l.° e 4.° do Código do IVA e artigo 9.° da Diretiva IVA;

(iii)        Ainda que considerássemos os rendimentos em causa como sujeitos a IVA, os mesmos sempre seriam isentos de imposto ao abrigo das isenções constantes do artigo 9.° n.°s 19 e 21 do Código do IVA por estarmos perante prestações realizadas no interesse coletivo dos seus associados por organismos sem finalidade lucrativa ou perante prestações fornecidas aos seus membros por grupos autónomos de pessoas que exerçam uma atividade isenta.

23. A Requerente indica ainda que: (i) a considerar-se que os rendimentos aqui em causa são sujeitos e não isentos de IVA, sempre as liquidações estão inquinadas de vício de lei por violação dos princípios da boa-fé e interpretação plausível, não sendo devidos, ao abrigo destes princípios, juros compensatórios (ii) haveria direito à dedução do IVA incorrido na aquisição de bens e serviços destinados à atividade (associativa), pelo que as correções efetuadas pela Autoridade Tributária padecem de vício de ilegalidade ao não contemplarem a diferença entre o IVA dedutível e o IVA liquidado.

Vejamos.

B. Exclusão da qualidade de sujeito passivo a pessoas coletivas de direito público que atuem no exercício de poderes de autoridade

24. A primeira questão a analisar prende-se com a regra de não sujeição a IVA de pessoas coletivas de direito público e a sua aplicação à Requerente e aos rendimentos aqui em causa.

25. Nos termos do artigo 13.° da Diretiva IVA, que baliza o nosso direito e IVA nacional: “os Estados, as regiões e autarquias locais e os outros organismos de direito público não são considerados sujeitos passivos relativamente às atividades ou operações que exerçam na qualidade de autoridades públicas, mesmo quando, no âmbito dessas atividades ou operações, cobrem direitos, taxas, quotizações ou remunerações

26. Esta regra foi transposta para o Código do IVA, artigo 2.° n.° 2, com a seguinte redação: “o Estado e demais pessoas coletivas de direito público não são, no entanto, sujeitos passivos do imposto quando realizem operações no exercício dos seus poderes de autoridade, mesmo que por elas recebam taxas ou quaisquer outras contraprestações, desde que a sua não sujeição não origine distorções de concorrência".

27. Nesta sede, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“doravante TJUE”) tem-se pronunciado, em diversas ocasiões, sobre o conceito de “organismo de direito público” no contexto da interpretação do artigo 13.° da Diretiva IVA, que é aquele que importa ao caso concreto .

28. Decorre da jurisprudência emitida que não são tidos como “organismos de direito público”: (i) operadores de direito privado (Processos das Portagens) , (ii) entidades que não estão integrados na organização da administração pública e (iii) entidades que exercem atividades económicas independentes, exercidas no quadro de uma profissão liberal (Comissão/Países Baixos) .

29. Está ainda claro que:

(i)           não é pelo simples facto de uma atividade exercida por um privado consistir na prática de atos que consubstanciam prerrogativas da autoridade pública que tal atividade é abrangida pela regra de não sujeição do IVA ;

(ii)          a norma do artigo 13.°, analisada à luz dos objetivos da Diretiva IVA, põe em evidência a necessidade do preenchimento cumulativo de duas condições para que a regra da não sujeição seja aplicada: (a) o exercício de atividades por um “organismo de direito público” e (b) o exercício de atividades efetuadas na qualidade de autoridade pública .

(iii)        o único critério que permite distinguir as atividades realizadas por organismos públicos na qualidade de sujeitos de direito público ou de sujeitos de direito privado é o regime jurídico aplicável com base no direito nacional . Daí que se entenda que os organismos de direito público agem na qualidade de autoridades públicas quando exercem competências no âmbito do regime jurídico que lhes é específico e, ao contrário, não atuam nessa condição se intervêm como os operadores económicos privados .

30. Da aplicação do acima exposto ao caso concreto, resulta assim que a Requerente apenas estará excluída da incidência subjetiva do IVA nos termos do artigo 2.° n.° 2 do Código do IVA, se agir na qualidade de “organismo de direito público” à luz das regras nacionais.

31. Ora nos termos do regime jurídico em vigor, o futebol, enquanto atividade desportiva, agrega-se numa Federação, no caso, a Federação Portuguesa de Futebol.

32. Esta Federação é uma pessoa coletiva sem fins lucrativos, constituída sob a forma de associação de direito privado (cfr. artigo 1.° n.° 1 dos Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol), a quem é conferido o estatuto de utilidade pública (cfr. artigo 19.° da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, Lei n.° 5/2007 de 16 de Janeiro doravante “Lei de Bases do Desporto”, e artigo 7.° do Regime Jurídico das Federações Desportivas com Utilidade Pública, Decreto-Lei n.° 248-B/2008, de 31 de Dezembro, doravante “RJFD”).

33. Mediante a obtenção do estatuto de utilidade pública passa a caber à Federação Portuguesa de Futebol o exercício, em exclusivo, dos poderes de natureza pública, regulamentar, e disciplinar da modalidade de futebol (cfr. artigo 19.° da Lei de Bases do Desporto).

34. Neste contexto, a Federação deve integrar uma liga profissional, sob a forma de associação sem fins lucrativos, com personalidade jurídica e autonomia administrativa, técnica e financeira - no caso concreto, a Requerente (cfr. artigo 22.°, n.° 1, da Lei de Bases do Desporto).

35. Esta liga, por delegação da Federação, passa a exercer as competências relativas às competições de natureza profissional de futebol, nomeadamente organizar e regulamentar as competições profissionais, exercer, relativamente aos seus associados, as funções de controlo e supervisão e definir os pressupostos desportivos, financeiros e de organização de acesso às competições profissionais Requerente (cfr. artigo 22.°, n.° 2, da Lei de Bases do Desporto).

36. Esta liga não tem interesse público reconhecido por ato administrativo.

37. A relação entre a Requerente e a Federação Portuguesa de Futebol está regulada num contrato próprio celebrado entre as duas entidades (cfr. artigo 23.° da Lei de Bases do Sistema Desportivo e contrato existente entre Requerente e a Federação Portuguesa de Futebol).

38. Ainda que, por vezes, pudesse ter-se suscitado a dúvida quanto à natureza das federações desportivas, foi sempre entendimento dominante que essas entidades, mesmo que fossem pessoas coletivas de direito privado, na medida em que dispusessem do estatuto de utilidade pública, beneficiavam de prerrogativas de autoridade no exercício de uma missão de serviço público, de tal modo que os atos unilaterais que praticassem nessa qualidade assumiam a natureza de atos administrativos, sendo contenciosamente impugnáveis junto da jurisdição administrativa (Parecer da Procuradoria Geral da República n.° 14/1985, BMJ n.° 359, pág. 189; acórdão do STA (Pleno) de 30 de abril de 1997, Cadernos de Justiça Administrativa (CJA) n.° 4, pág. 3; Vital Moreira, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, pág. 303).

39. A Lei de Bases do Desporto aponta neste sentido quando identifica, no seu artigo 18o, que “os litígios emergentes dos atos e omissões dos órgãos das federações desportivas e das ligas profissionais, no âmbito do exercício dos poderes públicos, estão sujeitos às normas do contencioso administrativo".

40. Resulta de tudo o que foi aqui exposto que a Federação Portuguesa de Futebol adquiriu poderes públicos de regulação e disciplina da atividade desportiva do futebol, poderes esses que lhe foram delegados pelo Estado.

41. Por sua vez, a própria Federação delegou, na Requerente, parte desses poderes públicos quanto às competições de natureza profissional de futebol.

42. Não obstante a conclusão chegada acima, a delegação de poderes verificada apenas significa que existiu um processo de transferência de responsabilidades de execução de uma função pública e não que uma determinada entidade passe, por essa via, a qualificar-se como um organismo de direito público.

43. Nesta sede, este Tribunal concorda na íntegra com a decisão e fundamentos do Tribunal Arbitral Coletivo no processo 248/2018-T, que se passam a transpor por facilidade de referência:

“9. À luz de todo este enquadramento jurídico importa reconhecer que as federações desportivas são, na sua génese, associações privadas (livremente constituídas por agentes desportivos, clubes e agrupamento de clubes) e só mediante o pedido de atribuição de estatuto de utilidade pública desportiva adquirem a competência para o exercício de poderes públicos de regulação e disciplina da actividade desportiva. Esses poderes públicos correspondem a poderes delegados pelo Estado, isto é, a poderes que se enquadravam originariamente nas atribuições do Estado em matéria desportiva.

A delegação de poderes públicos numa entidade privada apenas significa que esta, por um processo de transferência de responsabilidades, passa a ser uma instância de execução de uma função pública, e no exercício da qual se impõe a vinculação ao direito administrativo e a procedimentos de fiscalização pública. Não estamos perante a execução de uma tarefa que tenha passado para o setor privado, mas que se mantém como tarefa pública e que continua a ser da responsabilidade última do Estado.

(...)

Em relação às competições profissionais, a lei permite a delegação de competências nas ligas profissionais o que corresponde a uma forma de subdelegação de competências. Ou seja, o Estado delega funções públicas nas federações mas o exercício de algumas dessas funções podem ser delegadas na A... [Requerente].

Como resulta do disposto no artigo 22.° da Lei de Bases, e se reafirma no artigo 27.° do Regime Jurídico das Federações Desportivas, a A... constitui um órgão autónomo da B [Federação Portuguesa de Futebol] para o desporto profissional e que dispõe de personalidade jurídica e autonomia administrativa. Tal significa que os actos que praticam no exercício delegado de poderes não são imputáveis à B... mas à própria A... enquanto órgão diferenciado. Havendo de concluir-se que as ligas profissionais participam no exercício da função pública de regulação do desporto exercendo, nesse âmbito, poderes públicos de autoridade (neste sentido, Pedro Gonçalves, ob. cit., pág. 867).

Nesse contexto, não pode deixar de reconhecer-se que a intervenção da A... nos procedimentos de inscrição e transferências de jogadores e de vistorias de espaços desportivos, com efeitos constitutivos, ainda que sujeitos a homologação da B..., representam o exercício de poderes de autoridade. Isso porque, por efeito do regime jurídico específico que lhe é aplicável, a A... intervém, não como sujeito de direito privado, mas no exercício de poderes subdelegados de regulação das competições profissionais que pertenciam originariamente ao Estado.

O ponto é que a A..., como se deixou entrever, é uma associação de direito privado, constituída para a defesa dos “interesses comuns dos seus associados”, à qual compete não só o exercício de funções regulatórias mas também “negociar, gerir e supervisionar, no interesse e por conta dos seus associados, a exploração das competições profissionais” e “gerir as receitas” delas provenientes (artigos Io, 7.°, alínea b), e 8o, n.° 1, alíneas q) e r), dos Estatutos). Para a prossecução dos interesses comuns, cabe à A..., designadamente, “constituir sociedades comerciais com vista à exploração comercial da sua actividade e conexas com a mesma” ou “definir as regras e as orientações gerais com vista à promoção, valorização e rentabilidade das competições profissionais” (artigo 8o, n° 2, alíneas e) e f), dos Estatutos).

Enquanto mera entidade privada, a A... não preenche o primeiro dos requisitos de que depende a aplicação da regra da não sujeição a IVA, na medida em que não pode ser tida como autoridade pública para os efeitos previstos nos artigos 13° da Diretiva IVA e 2.°, n.° 2, do Código do IVA, e, como se deixou exposto, segundo o próprio entendimento do Tribunal de Justiça, a referida regra de exclusão do IVA implica que cumulativamente se encontrem verificadas as condições de exercício de prerrogativas de autoridade e que essa atividade se processe na qualidade de autoridade pública.”

44. À mesma conclusão se chega se aplicarmos os ensinamentos do acórdão do TJUE Saudaçor invocado pela Requerente, reforçado pelos ensinamentos do acórdão Nagy szebas T elepulesszolgaltatasi .

45. Decorre desta jurisprudência que uma das pedras de toque para considerar uma entidade como um “organismo de direito público” é a demonstração de que uma entidade esteja suficientemente integrada na organização da administração pública , o que pode ser evidenciado designadamente quando:

(i)           o capital dessa entidade é 100% detido por entidades de direito público;

(ii)          os clientes dessa entidade sejam entidades de direito público;

(iii)        as prestações de serviços fornecidas a terceiros particulares sejam residuais;

(iv)         a gestão e administração dessa entidade sejam determinadas por entidades de direito público; e,

(v)          exista uma ligação orgânica entre a entidade e entidades de direito público, designadamente por a entidade ser criada por um ato legislativo aprovado pelo legislador nacional .

46. Ora no caso concreto, como decorre dos factos aqui assentes e do regime jurídico nacional aplicável, os traços da Requerente apontam no sentido de esta não estar suficientemente integrada na administração pública a ponto de ser considerada um organismo de direito público:

(i)           A Requerente é uma entidade de direito privado, constituída na grande maioria por sociedades desportivas e clubes desportivos que disputam competições de natureza profissional e que assumem o carácter de entidades privadas (cfr. artigos 26 e 27 da Lei de Bases do Desporto);

(ii)          A Lei é clara quando estabelece que a Requerente mantém autonomia administrativa, técnica e financeira, não lhe conferindo, de igual modo, o estatuto de utilidade pública mas sim funções delimitadas de execução de poderes de autoridade no âmbito do futebol profissional por via de subdelegação de tais poderes por parte da entidade que possui o estatuto de utilidade pública, a Federação Portuguesa de Futebol (cfr. artigo 19.° n.° 1 e artigo 22.° n.°s 1 e 2 da Lei de Bases do Desporto);

(iii)        A Requerente tem os seus próprios órgãos deliberativos, executivos e de controlo fiscal e disciplinar (artigo 18.° dos Estatutos).

(iv)         A Requerente tem autonomia na exploração comercial das competições de futebol de natureza profissional (cfr. artigo 48.° n.° 2 al. b) dos Estatutos).

(v)          A Requerente tem autonomia para associar-se com pessoas singulares e coletivas tendo em vista a prestação de serviços ou a comercialização de direitos e produtos conexos com o futebol (cfr. artigo 8.° n.° 2 al. k) dos Estatutos).

(vi)         A Requerente tem receitas próprias que não dependem de entidades de direito público (cfr. artigo 63.° dos Estatutos).

47. Pelo que também aqui este Tribunal concorda na íntegra com a decisão e fundamentos do Tribunal Arbitral Coletivo no processo 248/2018-T, que se passam a transpor por facilidade de referência:

“10(...)

Como é patente, o Estado não exerce em relação à A... quaisquer poderes de direcção ou superintendência, não financia nem participa nas respectivas receitas ou no seu património social, e não interfere na sua constituição ou funcionamento, visto que a A... é constituída livremente pelos seus associados de acordo com o regime jurídico aplicável às associações de direito privado.

O Estado exerce apenas poderes de fiscalização relativamente ao exercício dos poderes públicos pela B..., mediante a realização de inquéritos, inspecções e sindicâncias, podendo suspender ou cancelar o estatuto de utilidade pública que confere a essa entidade a competência para o exercício de poderes regulamentares ou disciplinares (artigos 20.° e 21.° da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto). E, nesse sentido, exerce um mero poder de tutela traduzido na verificação do cumprimento das leis e regulamentos por parte dos órgãos próprios da B... .

E, por outro lado, embora a A... se encontre legalmente habilitada a exercer, por delegação da B..., as competências relativas às competições de natureza profissional, essa delegação nem sequer opera por intervenção do Estado, sendo antes conferida por contrato a celebrar entre as partes (artigo 23.° da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto).

Como é de concluir, a A... não pode ser considerada como um organismo de direito público na acepção de uma entidade que se encontra integrada na organização da Administração Pública, mesmo segundo os critérios definidos no referido acórdão Saudaçor.”

48. Considerando todos os fundamentos supra expostos, este Tribunal entende que a Requerente não está, quanto aos rendimentos associativos aqui em causa, excluída da incidência subjetiva do IVA nos termos do artigo 2.° n.° 2 do Código do IVA e inerente artigo 13.° da Diretiva IVA, por não qualificar um “organismo de direito público”.

C. Exclusão dos rendimentos em causa do campo de incidência objetiva do IVA por não consubstanciarem uma atividade económica

49. A Requerente argumenta que os rendimentos indicados nos pontos 1. e m. supra da Matéria de Facto assente sempre estão excluídos da incidência objetiva do IVA porque não consubstanciam uma atividade económica sujeita a este imposto nos termos do artigo 1.° e 4.° do Código do IVA e artigo 9.° da Diretiva IVA.

50. Ora nos termos do artigo 9º da Diretiva IVA, define-se como atividade económica: “qualquer atividade de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, incluindo as atividades extrativas, agrícolas e as das profissões liberais ou equiparadas”.

51. Nos termos do artigo 1.° n.° 4 do Código do IVA, que trata da incidência objetiva do imposto, sujeita-se a IVA as prestações de serviços sendo como tal consideradas “(...) as operações efetuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens".

52. A este respeito, é jurisprudência pacífica do TJUE que a possibilidade de qualificar uma prestação de serviços como «operação a título oneroso», pressupõe unicamente a existência de uma ligação direta entre essa prestação e uma contrapartida realmente recebida pelo sujeito passivo. Essa ligação direta é demonstrada quando exista entre o prestador e o beneficiário uma relação jurídica no quadro da qual são trocadas prestações recíprocas, constituindo a retribuição recebida pelo prestador o contravalor efetivo do serviço fornecido ao beneficiário .

53. Já quanto ao conceito de “atividade económica” contido no artigo 9.° da Diretiva IVA, o TJUE tem vindo a considerar, de forma sucessiva, que uma atividade está abrangida por este conceito caso seja realizada com o fim de auferir receitas com caráter de permanência .

54. Aplicando o supra exposto ao caso concreto este Tribunal conclui que estamos perante rendimentos que são a contraprestação de prestações recíprocas, baseadas na relação existente entre a Requerente e os seus associados ou destinatários das respetivas prestações:

(i)           No caso das quotas, estamos perante uma remuneração paga pelos respetivos destinatários em contrapartida de pertencerem à associação com os direitos e deveres inerentes à respetiva posição de associados, tais como definidos nos Estatutos; estas receitas são uma realidade de carácter permanente, contínuo e periódico, enquanto durar a qualidade de associado, e as prestações dadas em troca beneficiam diretamente as sociedades desportivas, clubes e demais associados, sendo portanto pretendidas por estas.

(ii)          No caso dos valores de inscrição e transferência de jogadores e agentes desportivos e quantias devidas pela emissão de cartões de identificação e cópias, conforme factos assentes, estamos perante a remuneração do procedimento tendente ao reconhecimento de que uma determinada pessoa está apta à modalidade de futebol profissional; Estas receitas têm um carácter permanente e contínuo, todas as épocas desportivas, e as prestações dadas em troca beneficiam diretamente os jogadores e agentes desportivos ou entidades que os representam, sendo portanto pretendidas por estas.

(iii)        No caso de valores pela vistoria em estádios visa-se, conforme factos assentes, remunerar o procedimento de fiscalização dos estádios e verificação da sua aptidão para a realização de eventos desportivos, atos estes que assumem também um carácter permanente e contínuo no âmbito das atribuições da Requerente e que beneficiam as sociedades e clubes desportivos envolvidos, sendo, portanto, pretendidos por estes.

55. Existe assim uma relação sinalagmática objetiva entre os valores pagos e as prestações recebidas em troca que faz cair as prestações em causa na definição residual de prestações de serviços constante do artigo 4º, n.° 1, do Código do IVA.

56. A sua prestação de forma sucessiva e com caráter de permanência para obtenção de receitas por parte da Requerente - não estamos perante manifestações ocasionais, esporádicas ou realizadas no livre arbítrio de cada um - denota o caráter económico das atividades em causa.

57. Nesta sede, importa salientar que é irrelevante a designação dada às prestações como “quotas”, “taxas” ou “licenças”. Ainda que as taxas ou licenças sejam, de forma comum, cobradas em contextos de exercício de poderes de autoridade - o que importa é a análise da sua substância material como contraprestações decorrentes de uma atividade económica, quando se conclui, como no presente caso, que tais realidades não são excluídas de IVA ao abrigo das regras de incidência subjetiva.

58. Pelo exposto, este Tribunal considera que os rendimentos indicados nos pontos 1. e m. supra da Matéria de Facto não estão excluídos da incidência objetiva do IVA porque refletem prestações de serviços decorrentes do exercício de uma atividade económica nos termos do artigo 1.° e 4.° do Código do IVA e artigo 9.° da Diretiva IVA.

D. Isenção do artigo 9.° n.°s 19 e 21 do Código do IVA

59. A Requerente invoca que ainda que se considerem os rendimentos em causa como sujeitos a IVA (sede subjetiva e objetiva) os mesmos sempre seriam isentos de IVA ao abrigo do artigo 9.° n.°s 19 e 21 do Código do IVA. Vejamos.

60. Nos termos do artigo 9.° n.° 19.° do Código do IVA: “estão isentas de imposto “as prestações de serviços e as transmissões de bens com elas conexas efetuadas no interesse coletivo dos seus associados por organismos sem finalidade lucrativa, desde que esses organismos prossigam objetivos de natureza política, sindical, religiosa, humanitária, filantrópica, recreativa, desportiva, cultural, cívica ou de representação de interesses económicos e a única contraprestação seja uma quota fixada nos termos dos estatutos

61. Esta regra deve ser lida em conjugação com o artigo 10.°, do Código do IVA, que determina as características dos “organismos sem finalidade lucrativa”, fixando-se que são assim entendidos os que, simultaneamente, preencham as seguintes condições:

“a) Em caso algum distribuam lucros e os seus corpos gerentes não tenham, por si ou interposta pessoa, algum interesse direto ou indireto nos resultados da exploração;

b) Disponham de escrituração que abranja todas as suas atividades e a ponham à disposição dos serviços fiscais, designadamente para comprovação do referido na alínea anterior;

c) Pratiquem preços homologados pelas autoridades públicas ou, para as operações não suscetíveis de homologação, preços inferiores aos exigidos para análogas operações pelas empresas comerciais sujeitas de imposto;

d) Não entrem em concorrência direta com sujeitos passivos do imposto. ”

62. As duas regras acima têm a sua génese nos artigos 132.° e 133.°, da Diretiva IVA, relativos às isenções em benefício de certas atividades de interesse económico geral e como tal devem ser lidas e interpretadas em harmonização com estes.

63. Nesta sede, o artigo 132.° dispõe, na alínea 1) do seu n.° 1, que os estados-membros isentem “as prestações de serviços, e bem assim as entregas de bens com elas estreitamente relacionadas, efetuadas aos respetivos membros no interesse coletivo por organismos sem fins lucrativos que prossigam objetivos de natureza política, sindical, religiosa, patriótica, filosófica, filantrópica ou cívica, mediante quotização fixada nos estatutos, desde que tal isenção não seja suscetível de provocar distorções de concorrência".

64. E o artigo 133.° da Diretiva do IVA dispõe que os estados-membros, no que se refere a “organismos que não sejam de direito público”, podem fazer depender a concessão da isenção da observância de diversas condições, entre elas a que consta da respetiva alínea a): “Os organismos em causa não devem ter como objetivo a obtenção sistemática de lucro, não devendo os eventuais lucros ser em caso algum distribuídos, mas sim afetados à manutenção ou à melhoria das prestações fornecidas”.

65. Aqui chegados, importa salientar que não se pode confundir a classificação civilística da Requerente enquanto associação sem fins lucrativos, da classificação autónoma e para efeitos de IVA da Requerente enquanto “organismo sem fins lucrativos”.

66. Com efeito, o conceito “organismo sem fins lucrativos” é um conceito autónomo do sistema do IVA e, como tal, deve ser interpretado de forma harmonizada, dentro da sistemática deste imposto.

67. Nesta sede, a jurisprudência do TJUE dá-nos uma noção precisa e clara da ratio legis das normas de isenção em causa e das traves mestras com que se deve interpretar o conceito de “organismo sem fins lucrativos”:

(i)           o beneficio da isenção deve estar reservado aos organismos que não têm finalidade comercial e o legislador comunitário pretendeu efetuar uma distinção entre as atividades das empresas comerciais e as dos organismos que não têm por objetivo gerar lucros para os seus membros ;

(ii)          o objetivo da isenção é o de conceder um tratamento mais favorável, em matéria de IVA, a determinados organismos cujas atividades são orientadas para fins distintos dos fins comerciais ;

(iii)        para determinar se tal organismo preenche as condições impostas pela isenção, deve-se atender ao conjunto das suas atividades ;

(iv)         não são os resultados, na aceção de excedentes obtidos no final de um exercício, que impedem que um organismo seja qualificado como “sem fins lucrativos”, mas sim os lucros, na aceção de “vantagens pecuniárias a favor dos membros” ’

(v)          um organismo pode ser qualificado como “sem fins lucrativos” ainda que procure sistematicamente gerar excedentes desde que os afete à execução das suas próprias prestações .

68. Resultando claro da jurisprudência acima referida que a norma de isenção do artigo 9.° n.° 19 do Código do IVA não se pretende aplicar a organismos que realizem atividades comerciais com o objetivo de conferir vantagens pecuniárias a favor dos membros, mas sim a organismos que, diferentemente de uma empresa comercial, não têm por objetivo gerar lucros para os seus membros.

69. Da aplicação dos critérios acima descritos ao caso concreto, este Tribunal conclui que a Requerente não logra passar o crivo das condições que se devem verificar para beneficiar de isenção de IVA nos termos do artigo 9.° n.° 19 do CIVA.

70. Com efeito, está assente que a Requerente tem por fim principal e competência exclusiva a organização das competições de natureza profissional de futebol em Portugal e, dentro deste fim, é sua atribuição a exploração comercial das competições profissionais de futebol.

71. Neste âmbito, é à Requerente quem compete gerir, negociar e supervisionar a atividade de exploração comercial das competições profissionais de futebol no melhor interesse e por conta dos seus associados.

72. Ainda que atue por conta dos seus associados, a Requerente está na verdade a agir em nome próprio (veja-se que a S….. se assume como patrocinador da Liga Portuguesa de Futebol) e em cumprimento de atribuições próprias associativas, na procura sistemática do lucro decorrente daquela atividade, por via da obtenção de patrocínios e receitas de publicidade.

73. E bem claro, da factualidade assente, que esse lucro é uma vantagem pecuniária a favor dos seus associados, ficando apenas uma pequena parte para o orçamento da Requerente, cff. artigo 8.° n.° 4 dos Estatutos.

74. Nestes termos, a atividade da Requerente, vista de forma global e no cômputo das atividades, não deixa de ter por objetivo a procura sistemática de lucro a favor dos seus associados, nem se pode falar, em sentido lato, numa “ausência” de distribuição de lucros pelos seus associados quando o saldo positivo decorrente da atividade de exploração comercial das competições profissionais de futebol, i.e. o lucro de uma das suas atribuições é distribuído por estes.

75. Frustrando-se a ratio legis e condições da isenção em causa, este Tribunal entende que a Requerente não pode ser qualificada como “organismo sem finalidade lucrativa” para efeitos da isenção prevista no artigo 9.°, n.° 19, do Código do IVA e segundo o entendimento da jurisprudência do TJUE.

76. E sempre se diga, nesta sede, que decorre da redação das normas em causa que a isenção a ser concedida - o que não é por cair na base a condição de “organismos sem finalidade lucrativa” - apenas aproveitaria aos serviços abrangidos pelas quotas associativas e nunca aos serviços autónomos como aparentam ser os de inscrição e transferência de jogadores e agentes desportivos e que foram objeto da grande maioria das correções efetuadas.

77. De igual modo, este Tribunal considera que não tem aplicação ao caso a isenção prevista no n.° 21 do artigo 9.° do Código do IVA, com base nos mesmos fundamentos invocados pelo Tribunal Arbitral Coletivo na decisão do processo 248/2018-T, que se passam a transpor por facilidade de referência:

“Em correspondência com o artigo 132°, n.° 1, alínea f), da Directiva IVA, o artigo 9o do Código do IVA prevê, no seu n.° 21, que estejam isentas do imposto “as prestações de serviços fornecidas aos seus membros por grupos autónomos de pessoas que exerçam uma actividade isenta, desde que tais serviços sejam directamente necessários ao exercício da actividade e os grupos se limitem a exigir dos seus membros o reembolso exacto da parte que lhes incumbe nas despesas comuns, desde que, porém, esta isenção não seja susceptível de provocar distorções de concorrência”.

A aplicação desta isenção depende, além do mais, de os membros que constituem o agrupamento autónomo levarem a cabo uma actividade ela própria isenta de imposto, de onde resulta que a aplicação da isenção dependeria, não do regime das prestações levadas a cabo pela A..., mas do regime das prestações que sejam realizadas autonomamente pelas sociedades desportivas enquanto seus associados.

A liquidação adicional de imposto que constitui objecto do presente processo arbitral reporta-se, todavia, às prestações de serviços realizadas pela A..., pelo que apenas haveria de considerar-se a isenção que pudesse abranger essa actividade, não estando em causa, no caso, qualquer outra actividade que possa ser imputada aos clubes associados.”

E. Dedução de IVA nas correções efetuadas pela Autoridade Tributária

78. A Requerente sustenta ainda que, a admitir-se que as prestações de serviços realizadas estão sujeitas e não isentas de imposto, haveria que incorporar nas liquidações adicionais de IVA a dedução do imposto relativa à atividade em causa, de modo a que as correções aritméticas correspondessem à diferença do imposto a pagar e do imposto a deduzir.

79. Nesta sede, a Requerente invoca que, em sede de direito de audição, indicou os valores a deduzir, mas que a Autoridade Tributária não tomou em conta esta argumentação em violação do artigo 60.° n.° 7 da LGT e em violação do princípio da legalidade constante do artigo 55.° da LGT.

80. O referido artigo 60.° da LGT, sob a epígrafe “Princípio da participação”, prevê, no n.° 1, alíneas a) e e), o direito de audição dos contribuintes antes da liquidação e da conclusão do relatório de inspeção tributária, e, no n.° 7, prescreve que “Os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão”.

81. Ora resulta dos documentos juntos aos autos que a Requerente não exerceu direito de audição quanto ao projeto de correção da inspeção relativa ao período de tributação de 02.2018 (cfr. Relatório de Inspeção junto como documento 2 do PP A, pág 18. Ponto VIII) pelo que cai, nesta parte, a sua pretensão quanto à violação do direito de participação invocado.

82. Quanto aos anos de 2013 e 2017, resulta dos autos que no ato de indeferimento expresso da Reclamação Graciosa a Autoridade Tributária tomou conhecimento da invocação do vício de forma por infração do n.° 7 do artigo 60.° da LGT e ilegalidade dos juros compensatórios, não se tendo pronunciado de forma expressa sobre esta questão na sua decisão mas mantendo a sua posição quanto às liquidações de IVA efetuadas. Os elementos juntos aos autos não permitem inferir outros dados ou elementos sobre esta matéria.

83. Nesta sede, afirmam Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4. “Edição, Encontro da Escrita Editora, Lisboa 2012, p. 513), em anotação ao citado preceito legal:"... se o titular do direito de audiência, no exercício deste direito, suscitar elementos novos, eles deverão ser considerados na fundamentação da decisão.

A apresentação destes elementos novos, se se tratar de elementos atinentes à matéria de facto, poderá justificar a realização de novas diligências que deverão ser realizadas, oficiosamente ou a requerimento dos interessados, caso se devam considerar como convenientes para apuramento da matéria factual em que deve assentar a decisão (...).

A obrigatoriedade de ter em conta estes elementos novos, na fundamentação da decisão, traduz-se em eles deverem ser mencionados e apreciados.

A falta de apreciação dos elementos factuais ou jurídicos novos invocados pelos interessados constituirá vício de forma, por deficiência de fundamentação, susceptível de levar à anulação da decisão do procedimento."

84. Ainda a este respeito, a jurisprudência dos Tribunais administrativos superiores, quanto ao direito de audição prévia em cuja sistemática se inclui a norma do número 7 do artigo 60.° da LGT em discussão, tem sido no sentido de dispor que a formalidade de direito de audição em causa (essencial) só se degrada em não essencial, não sendo, por isso, invalidante da decisão, nos casos em que a audiência prévia não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, o que impõe o aproveitamento do acto - uíile per inutile non viciatur (cfr. o Acórdão de 14/5/2003, recurso n° 317/03 do STA, entre outros

85. No caso vertente, não resulta da lei que a Autoridade Tributária tenha que considerar, nos atos de liquidação adicional de IVA, os valores de IVA dedutível do sujeito passivo.

86. Pelo contrário, resulta dos artigos 19.° a 21°, 41.° e artigo 98.° do Código do IVA que o exercício do direito à dedução do IVA é efetuado pelos sujeitos passivos, nas suas declarações periódicas, e por opção destes - neste sentido o artigo 19.° n.° 1 do Código do IVA refere que “para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuaram (...) o imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos”.

87. Tal exercício pode e deve ser realizado, pelo sujeito passivo, nos prazos dispostos nos artigos 78.° e 98.° do Código do IVA (sendo o prazo geral de dedução de 4 anos após o nascimento do direito à dedução).

88. Por sua vez, resulta do artigo 28.° e 87.° do Código do IVA que a Autoridade Tributária não tem o dever de considerar as deduções de imposto nas liquidações adicionais de IVA por si realizadas - neste sentido o artigo 87.° n.° 1 do Código do IVA determina que “(...) a Direção-Geral dos Impostos procede à retificação das declarações dos sujeitos passivos quando fundamentadamente considere que nelas figure um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, liquidando adicionalmente à diferença”.

89. Aplicando o supra exposto ao caso em referência, resulta que os factos novos trazidos pela Requerente ao processo, i.e., os valores de dedução do IVA dos anos de 2013 e 2017, não são determinantes para a matéria factual objeto do ato tributário da Autoridade Tributária em discussão que é o de saber se os rendimentos enumerados nos pontos 1. a m. da Matéria de Facto assente estão ou não sujeitos a IVA e, concluindo de forma fundamentada que houve pagamento de imposto inferior ao devido, proceder, nos termos do artigo 87.° do CIVA, à liquidação adicional da diferença.

90. Pelo que, no entender deste Tribunal, impõe-se o aproveitamento dos atos de liquidação adicional em causa não se considerando que a alegada invocação de falta de fundamentação sobre os factos novos trazidos pela Requerente - que não aproveitariam à causa - seja suscetível de levar à anulação do procedimento - utile per inutile non viciatur.

F. Da violação dos princípios da boa fé, da justiça e da proporcionalidade e neutralidade do IVA e do pagamento de juros compensatórios

91. A Requerente considera que os atos impugnados violam os princípios da boa fé, da justiça e da proporcionalidade e neutralidade do IVA argumentando que:

(i)           Sempre autoliquidou o IVA como sujeito passivo misto, sem liquidação de IVA numa parte da sua atividade - a parte entendida como associativa, sem que fosse questionada pela Autoridade Tributária que todos os meses recebia as suas declarações periódicas;

(ii)          A Autoridade Tributária só levantou as questões agora impugnadas na sequência de um pedido de reembolso de IVA efetuado pela Requerente, objeto de inspeções tributárias;

(iii)        Sempre atuou com base numa leitura plausível da lei aplicável e para, mais, com base no Despacho n.° …..emitido à Associação ….. […..], e que claramente dispunha no sentido da aplicação da isenção de IVA nas importâncias cobradas aos clubes relativas à organização de jogos, filiação dos clubes e sua inscrição nas provas, inscrições de jogadores e atribuição de cartões por aplicação do artigo 9.° n.° 21 do CIVA (correspondente ao atual artigo 9.° n.° 19 do CIVA);

(iv)         Pelo que a Autoridade Tributária não pode invocar retroativamente a interpretação da Inspeção Tributária, em violação do artigo 68.-A n.° 2 da LGT, sendo agora impossível ou inviável corrigir globalmente toda a situação ou deduzir o IVA dos seus inputs desde o início, violando-se assim o direito à dedução e neutralidade do IVA.

92. No que se refere à invocação da violação do princípio da boa fé, justiça, proporcionalidade e neutralidade do IVA este Tribunal acolhe, na íntegra, a decisão e fundamentos do Tribunal Arbitral Coletivo no processo 248/2018-T, que se passam a transpor por facilidade de referência:

“No caso, os procedimentos inspectivos foram desencadeados na sequência de pedidos de reembolso de IVA por se ter constatado que a Requerente não liquidou IVA sobre algumas das operações ativas realizadas.

O procedimento inspectivo pode ter em vista a confirmação dos elementos declarados pelos sujeitos passivos ou indagação de factos tributários não declarados, podendo traduzir-se num procedimento de comprovação e verificação do cumprimento das obrigações tributárias (artigos 2.° e 12.° do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira).

Por outro lado, o impulso do procedimento poderá ser de iniciativa oficiosa, de acordo com critérios de oportunidade que cabe à Administração Tributária definir.

Não se vê, por conseguinte, em que termos é que a abertura de um procedimento inspectivo na sequência de um pedido de reembolso de imposto e para verificar a legalidade da situação tributária do contribuinte pode ferir os falados princípios da actividade administrativa.

Dificilmente se pode compreender, também, em que medida é que o acto tributário de liquidação adicional de imposto destinado a assegurar o pagamento de imposto não liquidado pode afectar o princípio da neutralidade, quando este princípio, em matéria de IVA, constitui a tradução do princípio da igualdade de tratamento e tem em vista assegurar que os bens tributáveis suportem a mesma carga fiscal independentemente da extensão do circuito de produção e distribuição.”

93. Acresce ainda que o Despacho da Administração Tributária invocado pela Requerente foi emitido a uma entidade terceira e distinta da Requerente, com pressupostos e enquadramento próprios, não sendo assim vinculativo para a Autoridade Tributária na situação da Requerente que, a ter pretendido uma informação vinculativa própria, poderia tê-la submetido à Autoridade Tributária, ato que não praticou.

94. Pelo que improcede o pedido neste ponto.

G. Dos juros compensatórios

95. A Requerente impugna igualmente a liquidação de juros compensatórios em relação aos atos tributários de liquidação de IVA.

96. Nos termos do artigo 35.°, n.° 1, da Lei Geral Tributária, “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.

97. Nesta sede, é entendimento dominante que os juros compensatórios devidos à Autoridade Tributária constituem uma reparação de natureza civil que visa indemnizar esta entidade pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente.

98. Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, a mesma só é exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a atuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa atuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência (cif. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária - Anotada e Comentada, 4a edição, Encontro da Escrita Editora, Lisboa, página 283 e segs,).

99. Nesta sede, este Tribunal concorda também com a decisão e fundamentos do Tribunal Arbitral Coletivo no processo 248/2018-T de que a improcedência do pedido arbitral quanto às liquidações adicionais de IVA não é determinante do reconhecimento do direito dos juros compensatórios.

100. Com efeito, também aqui as ações de inspeção aos anos de 2013, 2017 e 2018 surgiram na sequência de um pedido de reembolso realizado em janeiro de 2017, e nesses períodos a Requerente sempre autoliquidou, nas suas declarações periódicas, de boa-fé e sem intuito evasivo, o IVA, sem fazer incidir este imposto sobre os rendimentos que considerava derivados da atividade associativa.

101. E, tal como conclui a decisão do coletivo no processo arbitral 248/2018-T: “Acresce que a questão jurídica subjacente à exigência do pagamento do imposto, na situação do caso, se reveste de especial complexidade, podendo entender-se que a interpretação feita pelo sujeito passivo, quando está em causa a autoliquidação do imposto, apresenta algum grau de plausibilidade. Além de que não se encontra demonstrado um intuito evasivo.”” (cfr. fls. 183 a 214, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Da nulidade da decisão impugnada por omissão de pronúncia

Entende a Impugnante que a decisão arbitral padece de nulidade, por omissão de pronúncia, nos seguintes termos:
a) Por um lado, nada consta da decisão impugnada atinente à violação do princípio da operação única, questão suscitada no pedido de pronúncia arbitral (concretamente nos art.ºs 316.º a 336.º do mesmo);
b) Por outro lado, quanto ao alegado em torno da boa-fé, o Tribunal arbitral concluiu, sem explicar, que a boa-fé nunca é um vício da liquidação de imposto;
c) Não foi igualmente apreciada a relação de causalidade entre a procedência da boa-fé no tema do imposto e no tema dos juros.

Apreciando.

A sindicância das decisões proferidas pelos tribunais arbitrais tributários é limitada às situações previstas no art.º 25.º (que prevê a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos circunscritos aí previstos) e nos art.ºs 27.º e 28.º todos do RJAT. Estes últimos, relativos à impugnação da decisão arbitral junto do Tribunal Central Administrativo, definem, de forma taxativa, os termos e os fundamentos dessa mesma impugnação. Resulta desta disciplina que, ao contrário do que decorre do regime de recurso das decisões proferidas pelos tribunais tributários de 1.ª instância, o mérito das decisões proferidas pelos tribunais arbitrais tributários é sindicável num conjunto muito limitado de situações (cfr. novamente o art.º 25.º do RJAT) e nunca no âmbito da sua impugnação junto do Tribunal Central Administrativo.

Centrando-nos, pois, na impugnação da decisão arbitral junto do TCA, nos termos do art.º 27.º, n.º 1, do RJAT, tal decisão pode ser anulada, sendo que a impugnação pode ser apresentada considerando um dos fundamentos taxativamente elencados no n.º 1 do art.º 28.º do mesmo diploma.

Assim, nos termos desta última disposição legal, a decisão arbitral é impugnável com fundamento em:

“a) não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

b) oposição dos fundamentos com a decisão;

c) pronúncia indevida ou na omissão de pronúncia;

d) violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, nos termos em que estes são estabelecidos no artigo 16.º”.

Logo, atento o art.º 28.º, n.º 1, al. c), do RJAT, a decisão arbitral é impugnável com fundamento em omissão de pronúncia.

Tendo em conta o disposto no art.º 29.º, n.º 1, do RJAT, é de considerar a disciplina subsidiariamente aplicável, de onde se destacam as normas constantes do CPPT, do CPTA e do CPC [cfr. art.º 29.º, n.º 1, als. a), c) e e), do RJAT].

Atentando no art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, há omissão de pronúncia, que consubstancia nulidade da sentença, quando haja falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar [cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC].

As questões que o juiz deve conhecer são ou as alegadas pelas partes ou as que sejam de conhecimento oficioso.

A este propósito cumpre sublinhar a diferença entre questões e argumentos suscitados pelas partes, porquanto apenas o não conhecimento das questões se configura como omissão de pronúncia.

Assim, para os efeitos do art.º 608.º, n.º 2, do CPC, questões são os pontos de facto ou de direito, atinentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções. Já os argumentos são os motivos ou razões que fazem sustentar a pretensão inerente às questões. “As questões (…) reportam-se aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, não se reconduzindo à argumentação utilizada pelas partes”[1].

A dicotomia questões / argumentos, nos termos sumariamente descritos, implica, pois, que o julgador tenha de conhecer todas as questões que lhe são colocadas (exceto se o conhecimento de umas resultar prejudicado pelo conhecimento de outras), já não lhe sendo exigível que se pronuncie sobre todos os argumentos esgrimidos[2].

Feito este enquadramento, apliquemos os conceitos ao caso dos autos, apreciando separadamente cada uma das alegadas omissões de pronúncia.

III.A.1. Quanto à violação do princípio da operação única

Como referimos, considera a Impugnante que a decisão impugnada padece de omissão de pronúncia, em virtude de não ter sido apreciada a violação do princípio da operação única por si suscitada.

Compulsado o pedido de pronúncia arbitral, verifica-se que a Impugnante invocou a incindibilidade do serviço prestado, alegando tratar-se economicamente de operação única, questão que, no seu entender, comporta a ilegalidade das liquidações de IVA em causa. Configurou tal questão como sendo de conhecimento a título subsidiário [“O serviço de transferência e inscrição de agentes desportivos e recintos tem ainda uma característica peculiar - que os tornas isentos de IVA (no caso de improcedência da argumentação anterior)” – sublinhado nosso]. Nos termos em que a referida questão foi configurada, a ora Impugnante entendeu que, se a Federação Portuguesa de Futebol está não sujeita e/ou isenta de IVA para a prestação consubstanciada na inscrição e transferência de agentes e recintos desportivos, o mesmo sucederá com a parte acessória da prestação da Liga, por se tratar, na sua perspetiva, de operação não cindível.

Ora, desde já se refira que, neste caso, e em consonância com o já decidido em situação muito similar, no âmbito dos autos n.º 41/19.4BCLSB (Acórdão de 20.02.2020, do qual fomos relatora), estamos perante uma verdadeira questão, discernível das demais invocadas no pedido de pronúncia arbitral e que, per se, pode, em abstrato, conduzir à procedência da pretensão da Impugnante, ainda que as demais questões fossem improcedentes.

Tratando-se de questão, nos termos já assinalados, caberia ao Tribunal arbitral a sua apreciação e decisão, o que, in casu, não ocorreu.

Com efeito, compulsada a decisão arbitral verifica-se que nada foi referido a este propósito. Por outro lado, a questão em causa não se encontra prejudicada pela apreciação das demais questões suscitadas, o que desde logo se encontra evidenciado pelo facto de ter sido julgada improcedente a pretensão da ora Impugnante relativamente ao pedido de anulação das liquidações de IVA.

Assim sendo, não tendo sido conhecida a mencionada questão suscitada pela Impugnante em sede de pedido de pronúncia arbitral, questão essa cujo conhecimento não resulta prejudicado nos termos já referidos, o Tribunal arbitral incorreu em omissão de pronúncia, nos termos previstos na al. c) do n.º 1 do art.º 28.º do RJAT, assistindo, pois, razão à Impugnante. Tal omissão fere de nulidade a decisão impugnada, o que será declarado, devendo, nessa sequência, os autos ser remetidos ao CAAD para, se a tal nada obstar, ser proferida nova decisão, sanada da referida irregularidade.

III.A.2. Quanto ao alegado em torno da boa-fé

Como já deixamos sistematizado supra, sobre esta questão a Impugnante configura a omissão de pronúncia sob dois prismas, que serão analisados conjuntamente.

Adiante-se que, nesta parte, não assiste razão à Impugnante.

Com efeito, compulsada a decisão arbitral, verifica-se que a mesma conheceu da alegada violação do princípio da boa-fé (cfr. pontos 91. a 94., da decisão arbitral), tendo concluído pela inexistência de tal violação, acolhendo os fundamentos constantes da decisão arbitral proferida no âmbito dos autos 248/2018-T.

Se o conhecimento efetuado pelo Tribunal arbitral não esgotou todos os argumentos esgrimidos pela Impugnante ou se foi seguida uma linha de raciocínio com a qual a Impugnante não concorda, tal não configura omissão de pronúncia, podendo sim configurar-se como erro de julgamento, matéria arredada da apreciação a fazer por este TCAS.

Como já deixamos referido supra, para que haja omissão de pronúncia teremos de estar perante o não conhecimento de questões, que não se confunde com o não conhecimento de alguns dos argumentos esgrimidos a propósito de alguma das questões.

O mesmo se refira quanto ao alegado no sentido de não ter sido igualmente apreciada a relação de causalidade entre a procedência da boa-fé no tema do imposto e a no tema dos juros. Na verdade, tal representa um argumento e não uma questão.

Assim, a violação do princípio da boa fé, relativamente às liquidações de imposto, foi apreciada e considerada improcedente, pelo que esta questão encontra resposta na decisão arbitral proferida.

Como tal, a decisão impugnada, nesta parte em específico, não padece de omissão de pronúncia.

III.B. Da nulidade por oposição dos fundamentos com a decisão

Entende, por outro lado, a Impugnante que a decisão impugnada padece de nulidade, por oposição entre os fundamentos e a decisão, em dois momentos.

Em primeiro lugar, na sua perspetiva, tal resulta do facto de:
a) Em sede de decisão proferida sobre a matéria de facto, ter sido dado como provado que a LIGA é uma associação sem fins lucrativos e que os excedentes (saldo positivo) da componente comercial, a existirem, são devolvidos aos Clubes associados;
b) A decisão advoga que a Liga não é um organismo sem finalidade lucrativa, na medida em que os excedentes das explorações comerciais são imputados aos clubes.

Considera, por este motivo, que é flagrante a oposição entre os fundamentos e a decisão.

Em segundo lugar, considera que os fundamentos da decisão (complexidade técnica das questões dos autos, interpretação plausível da LIGA e inexistência de intuito evasivo) deveriam conduzir, num processo lógico, a uma decisão oposta ou pelo menos diferente da que foi adotada: deveriam conduzir ao reconhecimento da boa-fé da LIGA na parcela relativa ao imposto, com a anulação das liquidações impugnadas.

Vejamos.

Nos termos do já mencionado art.º 28.º, n.º 1, al. b), do RJAT, a decisão arbitral é impugnável com fundamento em oposição entre os fundamentos e a decisão.

Como já foi referido supra, atento o disposto no art.º 29.º, n.º 1, do RJAT, é de considerar a disciplina subsidiariamente aplicável, de onde se destacam as normas constantes do CPPT, do CPTA e do CPC [cfr. art.º 29.º, n.º 1, als. a), c) e e), do RJAT].

Atentando no art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, constitui nulidade da sentença a oposição dos fundamentos com a decisão [cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Esta nulidade consubstancia-se na contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença[3], ou seja, na circunstância de o iter constante da sentença, na sua motivação, estar em contradição com a decisão a final proferida[4].

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.11.2014 (Processo: 0308/14), “… esta nulidade ocorre quando a construção da sentença é viciosa, quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas ao resultado oposto. Isto é, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma oposta à que logicamente deveria ter extraído: a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.

Aplicando estes conceitos ao caso dos autos, atentando no discurso argumentativo constante da decisão impugnada, conclui-se que não existe qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão.

Com efeito, da mencionada decisão resulta que o Tribunal arbitral aborda o conceito de “organismo sem finalidade lucrativa” para efeitos de IVA, tendo concluído que, no caso, a Liga não pode ser classificada como tal.

Em sede decisória, o Tribunal arbitral julgou parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, sendo que a parte em que foi julgada improcedente respeita às liquidações de IVA.

Ora, desta análise resulta desde logo que não há qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão.

O que no fundo a Impugnante pretende invocar é erro de julgamento por parte do Tribunal arbitral, considerando que, dos factos provados, não poderia resultar a conclusão extraída em termos de direito.

No entanto, como já mencionamos, tal argumentação extravasa os poderes deste TCA em matéria de impugnação da decisão arbitral, poderes esses circunscritos e que não abrangem o erro de julgamento.

O mesmo se refira quanto ao entendimento referido pela Impugnante, no sentido de que os fundamentos que conduziram à anulação da liquidação dos juros compensatórios deveriam ter conduzido ao mesmo resultado quanto às liquidações de imposto: não se trata de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão (segmento decisório), uma vez que, em matéria de legalidade das liquidações de imposto, o Tribunal arbitral considerou improcedentes todas as questões que apreciou, o que se encontra em conformidade com o segmento decisório, mas sim de eventual erro de julgamento.

Logo, também neste prisma não assiste razão à Impugnante.

Em suma, verifica-se omissão de pronúncia, quanto à questão da violação do princípio da operação unitária.

O exposto fere de nulidade a decisão impugnada, o que será declarado, devendo, nessa sequência, os autos ser remetidos ao CAAD para, se a tal nada obstar, ser proferida nova decisão, suprida da concreta irregularidade identificada.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Julgar procedente a presente impugnação e, em consequência, declarar a nulidade de decisão arbitral proferida no âmbito do processo 118/2019-T, por omissão de pronúncia, e determinar a baixa dos autos ao CAAD, para, se a tal nada obstar, ser proferida nova decisão, suprida da concreta irregularidade identificada;
b) Sem custas;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 30 de setembro de 2020

(Tânia Meireles da Cunha)

(António Patkoczy)

(Mário Rebelo)


____________________
[1] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2019, p. 727.
[2] Cfr. José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 320; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pp. 219 e 220.
[3] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e Comentado, 6.ª Edição, Vol. II, Áreas Editora, Lisboa, 2011, pp. 361 e 362; José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 333.
[4] V., exemplificativamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 17.04.2013 (Processo: 0969/12) e de 15.09.2010 (Processo: 01149/09) e o Acórdão deste TCAS, de 18.06.2013 (Processo: 06121/12).