Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:79/01.8BTLRS
Secção:CT
Data do Acordão:06/04/2020
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:CASO JULGADO
PRESCRIÇÃO
AUDIÇÃO PRÉVIA
APROVEITAMENTO DO ATO
Sumário:I-Verifica-se caso julgado quando a repetição de uma causa se dá depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (cfr. artigo 580.º nº1, in fine, do CPC). Preceituando, por isso, o artigo 581.º do CPC quanto aos requisitos do caso julgado que se repete a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (nº1), havendo identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (nº 2), identidade de pedido quando numa e noutra se pretende obter o mesmo efeito jurídico (nº 3) e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (nº 4).

II-A prescrição da obrigação tributária não constitui fundamento de anulação da liquidação, sendo apenas um pressuposto da utilidade do conhecimento das causas de invalidade alegadas na impugnação, razão pela qual não constando no processo todos os elementos para a sua apreciação, não só não se deve conhecer da prescrição, como não se impõe qualquer averiguação ou instrução nesse sentido.

III- Só existe cumprimento do artigo 60.º da LGT, quando é permitido o exercício pleno do direito de audição prévia, ou seja, quando é previamente dado a conhecer, ao contribuinte, de forma minimamente explicitada de todos os elementos que estão na génese do projeto decisório, e isto porque ao omitirem-se partes relevantes na formação do projeto decisório fica prejudicado e coartado o exercício de defesa, traduzindo uma preterição de formalidade essencial, cominada com a anulabilidade.

IV-O princípio do aproveitamento do ato apenas poderá ser aplicado em situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audição sobre o conteúdo decisório do acto, restringindo-se, na prática, aos casos em que não esteja em causa a fixação de matéria de facto relevante para a decisão. Daí que, esse direito não possa deixar de ser assegurado sempre que não seja de afastar a possibilidade de a decisão do procedimento tributário ser influenciada pela intervenção do interessado e não existam outros valores constitucionalmente relevantes que se lhe contraponham.

V-Tendo a Recorrente apresentado impugnação judicial e formulado pedido de indemnização pela prestação de garantia após a sua prestação e dentro do prazo contemplado na lei, a falta de quantificação dos prejuízos respetivos não contende com aquele reconhecimento, impondo apenas que o seu apuramento seja relegado para execução de sentença.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO

I-RELATÓRIO



R….., SA, (doravante Recorrente), veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, no âmbito do processo de impugnação judicial deduzido contra as liquidações adicionais de IVA com o n.º ….., relativas ao ano de 1997, no valor de € 76.667,39 (15.370.432$00) bem como as liquidações dos correspondentes juros compensatórios, com os n.ºs ….., ….. e ….., relativas aos períodos de 06/97, 09/97 e 12/97, no valor, respectivamente, de € 583,81 (117.044$00), € 13.589,50 (2.724.450$00) e € 6.473,29 (1.297.779$00), a qual julgou, totalmente, improcedente a impugnação judicial com a manutenção dos atos de liquidação de IVA e respetivos juros compensatórios.

A decisão recorrida foi proferida na sequência de Acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) datado de 11 de março de 2009, que anulou a sentença de procedência parcial proferida a 4 de junho de 2007, e ordenou a baixa dos autos à primeira instância para conhecimento da violação do direito de audição prévia arguida pela Impugnante.

A Recorrente apresentou alegações, tendo concluído, após competente aperfeiçoamento, da seguinte forma:


1. A douta Sentença violou o caso julgado.
2. Com efeito, foi anteriormente proferida a douta Sentença de 04.06.2007, que julgou a presente impugnação Judicial procedente quanto aos juros compensatórios.
3. Conforme resulta das respectivas alegações de recurso, a Impugnante/Recorrente interpôs recurso daquela douta Sentença de 04.06.2007 apenas na parte em que esta julgou a impugnação improcedente – ou seja, na parte em que a mesma Sentença não respeitou aos juros compensatórios.
4. A FP não interpôs recurso da douta Sentença de 04.06.2007.
5. Pelo que, quanto aos juros compensatórios, a douta Sentença de 04.06.2007 transitou em julgado.
6. Por conseguinte, a douta Sentença aqui recorrida, ao julgar a presente Impugnação Judicial improcedente também quanto aos juros compensatórios, violou o caso julgado.
Sem prescindir,
7. Quanto aos juros compensatórios, a douta Sentença aqui recorrida é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto e de Direito que justificaram a improcedência da Impugnação Judicial também quanto aos juros compensatórios (artigos 125.º nº1 do CPPT e 615º nº1 b) e nº4 do CPC).
8. A Recorrente /Impugnante imputou aos juros compensatórios vícios autónomos, específicos, independentes da legalidade da liquidação adicional de IVA-mas a douta Sentença não fez qualquer apreciação da legalidade dos juros compensatórios.
Por outro lado,
9. A douta Sentença é ainda nula por omissão de pronúncia quanto ao pedido de indemnização dos encargos incorridos com a prestação e manutenção de garantia, apresentando nestes autos em 09.05.2011, acompanhado dos respectivos documentos comprovativos (cfr. artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT, redacções aplicáveis),

Acresce o seguinte, quanto à prescrição,
10. A dívida emergente das liquidações impugnadas prescreveu (cfr. artigos 34º do CPT; 6º do DL 398/98, de 17/12, 48º nº1 e 49º nº2 da LGT, redacção aplicável; e 297º nº 1 do CC, por remissão do artigo 5º, nº1 do DL398/98, de 17/12).
11. Com a consequente extinção da presente Instância por inutilidade superveniente da lide, com fundamento em prescrição- a qual, aliás, é de conhecimento oficioso (artigo 175.º do CPPT).
12. Com efeito, a Impugnação Judicial esteve parada por mais de 1 ano, por facto não imputável ao contribuinte.
13. Se dúvidas houver, deve o processo baixar ao Tribunal a quo, a fim de ser alargada a matéria de facto assente, de forma a permitir a apreciação da questão da prescrição, podendo o Tribunal a quo ordenar à AT a remessa dos elementos documentais adicionais necessários para a apreciação da prescrição da dívida exequenda (princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material - artigos 13º n.º 1 do CPPT e 411.º do CPC.
Sem prescindir,
Quanto à violação do direito de audição prévia
14. A douta Sentença padece de erro de julgamento quando entende não ter havido violação do direito de audição prévia.
15. Conforme prova produzida, o projecto de correcções enviado ao contribuinte, para efeitos do exercício do direito de audição prévia, não continha todos os elementos necessários, de facto e de Direito, que permitissem o exercício esclarecido do direito de audição prévia, não estando devidamente fundamentado - em violação dos artigos 101.º nº 2 do CPA, redacção à data, 60º nº 1 e) e nº 5 da LGT e 267.º nº 5 da CRP.
16. Conforme, aliás, reconheceu/confessou expressamente a própria AT em 2.1. alínea a), págs. 6, do relatório de inspecção tributário referido em D) da factualidade assente.
17. Se se omitem partes relevantes no projecto de correcções, fica obviamente prejudicado o exercício do direito de audição prévia - como sucedeu in casu.
18. Sendo certo que, em resposta àquele projecto de correcções, a Impugnante/Recorrente limitou-se a salientar que o projecto de correccões não estava suficientemente explicitado/fundamentado, em violação do direito de audição prévia - nada mais tendo acrescentado, nem podendo fazê-lo, atenta a sobredita insuficiência desse projecto.

Aliás,
19. Os artigos 101.º n.º 2 do CPA, redacção à data, e 60º nº1 e) e nº 5 da LGT, na interpretação segundo a qual a AT não está obrigada a comunicar previamente ao contribuinte todos os elementos, de facto e de Direito, que lhe permitam um exercício totalmente esclarecido do seu direito de audição prévia, padecem de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 267.º n.º 5 da CRP.
Sem prescindir,
Quanto à legalidade das liquidações de IVA e JC,
20. Segundo o Tribunal recorrido, enquanto a liquidação de IVA a favor da AT é uma obrigação legal, a dedução, em simultâneo, do mesmo valor de IVA a favor do contribuinte (como sucede em todos os casos de autoliquidação de IVA ou reverse charge - designadamente nas AICB e nas aquisições de serviços prestados por não residentes), seria uma mera faculdade que só ao contribuinte compete exercer ou não, como este muito bem entender.
21. Ora, esse entendimento é oposto àquele que tem sido profusamente expresso em variados Acórdãos do TJUE (e pela mais variada Doutrina) - e está em causa a aplicação de normas de direito comunitário, designadamente os artigos 2º e 17º a 20º da Sexta Directiva 77/388/CCC do Conselho, de 17 de Maio de 1977, in JOCE ng L 145, de 13/06/1977, p. 0001-0040 (em vigor à data dos factos).
22.            Veja-se também o artigo 2º, § 2º, da Primeira Directiva/IVA, de 11 de Abril de 1967.
23.            Com efeito, o TJUE, com base nas Directivas do IVA, tem reiterado que a dedução do IVA por parte de um sujeito passivo (não consumidor final, pois) não é um mero direito ou faculdade; é um dever para o sujeito passivo,
24.            sob pena de violação do princípio da neutralidade fiscal do IVA relativamente aos sujeitos passivos, já que se trata de um imposto sobre os consumidores finais e não sobre os sujeitos passivos/agentes económicos.
25.            Sendo certo que no caso dos autos estamos perante transacções comerciais entre sujeitos passivos de IVA, com obrigação de liquidação de IVA a jusante e integral direito de dedução do IVA suportado a montante.
26.            A dedução do IVA é imperativa e deve, aliás, ser efectuada no mesmo período em que é liquidado o IVA respeitante a AICB e aquisições de serviços prestados por não residentes (artigo 229 do CIVA).
27.            A Sexta Directiva "comandou" a redacção do preceituado no CIVA e, consequentemente, deve nortear a forma como as disposições legais do CIVA podem e devem ser interpretadas e aplicadas.
28.            Nos termos do artigo 8º nº 3 e 4 da CRP, o regulado naquela Directiva sobrepõe-se e prevalece sobre o normativo interno.
29.            A douta Sentença, ao sufragar a posição da AT e, por conseguinte, ao coarctar à Recorrente o exercício do direito à dedução do IVA, interpreta e aplica os ditos artigos 19º do CIVA e 19º do RITI em violação dos preceitos comunitários e dos princípios constitucionais da justiça, proporcionalidade e prossecução do interesse público (artigos 55 e 559 da LGT, 3º a 6º do CPA, redacção aplicável, e 266º nº 2 da CRP).
30.            Com efeito, estes princípios impunham que, das duas uma: (i) ou se aceita o direito à dedução da Recorrente; (ii) ou se revoga a liquidação de IVA efectuada pela AT - caso contrário, verifica-se um enriquecimento ilegítimo, sem causa, da AT.
31.             Em suma, a AT está obrigada à "plena reposição da legalidade", dentro do aludido respeito do princípio da proporcionalidade (cfr. artigo 100º da LGT).
32.            Assim, impunha-se à AT, quando efectuou a liquidação adicional de IVA em questão, que atendesse igualmente à simultânea dedução do mesmo montante de IVA, conforme previsto na lei - só assim a sua actuação seria "justa" e equitativa.
33.             Caso contrário, como sucede na douta Sentença recorrida, sufraga-se uma actuação administrativa norteada única e exclusivamente pelo "princípio" da maximização da receita fiscal - e não pelo princípio da plena reposição da legalidade, ao arrepio das mais elementares regras de isenção e objectividade da actuação administrativa.
34.            O direito à dedução de IVA só pode ser retirado, por via administrativa, em circunstâncias muito excepcionais, que devem ser sujeitas ao crivo do princípio da proporcionalidade.
35.            De facto, em circunstâncias como a dos autos, de autoliquidação ou reverse charge do IVA (liquidação e dedução simultâneas do mesmo valor de IVA), em que não se evidencia qualquer prejuízo para os interesses da Fazenda Pública, os princípios da justiça e da proporcionalidade demandam que não se façam correcções prejudiciais ao contribuinte - sobretudo quando estão em questão correcções baseadas em razões meramente formais.
36.            Ao não ser invocado qualquer preceito comunitário que legitimasse o entendimento da douta Sentença, de que o direito de dedução do IVA, em AICB e aquisições de serviços prestados por não residentes, é uma mera faculdade, a douta Sentença está em oposição com o douto Acórdão do STA, 2ª Secção, de 02.03.2005, Proc. 01186/04, in www.dgsi.pt.
37              Quando se recusa o direito de dedução do IVA, apesar dos bens e serviços adquiridos terem sido destinados, a jusante, a uma actividade tributada, a douta Sentença está em oposição com o douto Acórdão do TJUE (Terceira Secção), de 15.12.2005, Processo C-63/04, Centralan Property Ltd vs. Commissioners of Customers & Excise, in http://eur- lex.europa.eu (e com o douto Acórdão do STA, 2ª Secção, de 20.02.2002, Proc. 026734, in www.dgsi.pt).
38.            Quando a douta Sentença desconsidera, tout court, a Jurisprudência interpretativa do TJUE, quanto ao "papel" do direito de dedução do IVA na economia deste imposto, está em oposição com o douto Acórdão do STA, 2§ Secção, de 09.11.2005, Proc. 01090/03, in www.dgsi.pt.
39.            Conforme resulta desta Jurisprudência, o direito de dedução o IVA tem um papel absolutamente nuclear e imperativo na economia deste imposto.
40.            Da lei interna e comunitária, e da Jurisprudência do TJUE, advém que as restrições ao direito à dedução do IVA apenas são legítimas em casos excepcionais, quando existam indícios de fraude ou evasão fiscal - o que, manifestamente, não é o caso.
41              Ainda no mesmo sentido - da absoluta necessidade do respeito do direito de dedução do IVA, à luz do direito comunitário - pode ver-se a Informação nº 41, de 19.04.1996, do Gabinete do Subdirector-Geral do IVA, sancionada por Despacho concordante da DGCI/SEAF, de 28.07.1997, (junta aos presentes autos) e a numerosa Jurisprudência do TJUE nela citada.
42             A propósito desta Informação e da demais doutrina da AT aqui referida, chama-se a atenção para a vinculação legal da AF "às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza" emitidas sobre a interpretação das normas tributárias que estiverem em vigor no momento do facto tributário (artigo 689-A n9 1 da LGT),
43. por força do princípio geral da boa-fé, da segurança jurídica e da protecção da confiança e das legítimas expectativas dos contribuintes, consignados, designadamente, nos artigos 69-A do CPA e 2669 n9 2 da CRP.
44. Por outro lado, é necessário olhar à materialidade dos factos, à substância económica - o princípio da prevalência da substância sobre a forma é um princípio basilar do direito fiscal, que foi indevidamente omitido e violado pela douta Sentença recorrida (cfr. artigos 11- nº 3 e 4, 36º nº4e 38º nº 1 da LGT).
45             O princípio da prevalência da substância sobre a forma, como princípio ordenador do Direito fiscal, não é unilateral mas ambivalente - pelo que deve reger não só quando (i) o contribuinte tenta prevalecer-se de determinada forma para escamotear a substância económica, como quando a AT esquece a substância e atem-se unicamente à forma (como sucede in casu).
46.            Por outro lado, se reconhecidamente não há "IVA devido", ou seja, se não está em falta, junto dos cofres do Estado, qualquer IVA, não há fundamento para liquidações adicionais de IVA, muito menos de juros compensatórios.
47.            Com efeito, dos nºs. 1 dos artigos 82.º e 89.º do CIVA, redacção aplicável, extrai-se que qualquer liquidação adicional de IVA pressupõe necessariamente que subsista imposto em falta, imposto entregue a menos nos cofres do Estado ou reembolso em excesso ao contribuinte.
48.            Ora, como é entendimento unânime, inclusivamente pela própria AT, nas situações de reverse charqe não há qualquer “dívida efectiva de imposto" (IVA)
49.            A interpretação e aplicação, in casu, do artigo 19.º do CIVA, de forma a negar o direito de dedução de IVA, na medida em que viola a dita regra da neutralidade do IVA e introduz um encargo adicional de imposto para a Impugnante/Recorrente (os tais "efeitos cumulativos"),
50.            viola os princípios constitucionais relativos às empresas, mais especificamente os princípios da liberdade de iniciativa económica privada, da liberdade de organização empresarial e de funcionamento eficiente dos mercados, no quadro de uma equilibrada concorrência empresarial, consagrados nos artigos 61º nº 1, 80º, alínea c), e 81º, alínea e), da CRP.
51.            A que acresce a liberdade de gestão fiscal, que tem como corolário a obrigatoriedade do Estado e demais entidades públicas deverem observar a regra da neutralidade fiscal, evitando provocar ou potenciar, por via da tributação, distorções na concorrência entre as empresas.
52.            Distorções, essas, que, num outro plano, representam a violação do princípio da igualdade, enquanto proibição de discriminações sem um fundamento racional bastante.
53.            Com efeito, não faz sentido que o contribuinte fique especialmente onerado com um encargo adicional de imposto, por negação do direito de dedução de IVA em aquisições de bens e serviços junto de não residentes, quando, se os tivesse adquirido em território nacional, já não teria problemas de dedução de IVA.
54.            O que, aliás, o discrimina negativamente, em relação a concorrentes que façam semelhantes aquisições no mercado interno,
55.            em violação de princípios comunitários elementares como os da liberdade de estabelecimento, liberdade de circulação de capitais e pessoas e liberdade de prestação de serviços, anteriormente consagrados nos artigos 129, 439, 469, 569 e 589 n9 3 do Tratado da CEE (e no artigo 59 n9 1 da Directiva 90/435/CEE do Conselho, de 23/07/1990) - correspondentes aos actuais artigos 569, 639 e 659 do TFUE.
56.            Assim, a douta Sentença recorrida padece de erro de julgamento e violação dos sobreditos preceitos e princípios legais.
Por outro lado,
57.            No caso, a AT substituiu-se ao contribuinte, procedendo à liquidação do IVA supostamente devido pelas AICB e serviços adquiridos a não residentes.
58.            Por isso, a liquidação de IVA em questão, na vertente a favor do Estado, foi feita pela AT
59.            Pelo que não se pode obstar que o contribuinte não poderia deduzir esse mesmo IVA pelo facto do mesmo não ter sido liquidado - já que foi liquidado pela AT.
Acresce que,
60             A douta Sentença padece ainda de errada interpretação e aplicação do artigo 71º nº 7 do CIVA (redacção à data).
61.            Com efeito, o artigo 71º nº 7 do CIVA respeita à correcção de erros de que tenha resultado imposto entregue a mais ou a menos.
62.            O que, manifestamente, não é o caso, pois o valor devido é nulo (não há dívida, nem crédito de IVA).
63.            É a própria AT, no ofício-circulado n5 30082/2005, de 17.11.2005, da DSIVA, quem assim expressamente entende.
64.            Com efeito, não estão em causa quaisquer facturas inexactas; não estão em causa nem foram cometidos quaisquer erros materiais ou de cálculo; não está em causa qualquer rectificação, anulação ou redução do que quer que seja; não está em causa a rectificação de qualquer imposto liquidado a mais ou a menos.
Aliás,
65.            Como foi considerado na (anterior) douta Sentença de 04.06.2007, "só pode haver juros compensatórios quando o imposto for devido”.
66.            Como aí se afirma, quando o imposto a liquidar a favor da AT for igual ao imposto a deduzir perante a AT (como, reconhecidamente, é o caso), "não pode haver lugar a juros compensatórios, pela simples razão de não haver IVA devido ao qual devam acrescer".
67.            Mais se acrescentou, naquela douta Sentença, que no caso não existe uma "dívida efectiva de imposto” (no mesmo sentido, o douto Acórdão deste Venerando STA, 23 Secção, de 27.11.1996, Proc. 20775, in www.dgsi.pt, e ponto 5.3 da Informação dos SIVA, de 15.04.1996, averbada de despachos concordantes do Exmo. Subdirector Geral, de 14.02.1997, e o Exmo. SEAF, junta aos autos).
68.            Pelo que, salvo o devido respeito, a conclusão só poderia ser uma: as liquidações de IVA e JC devem ser anuladas porque não há, no caso, qualquer "dívida efectiva de imposto” (IVA).
69.            A douta Sentença aqui concretamente recorrida padece, pois, de erro de julgamento.
Acresce que,
70.            Na pior das hipóteses, as situações identificadas pela AT - AICB e aquisições de serviços prestados por não residentes caso por hipótese estivessem sujeitas a IVA, obrigariam a Recorrente a proceder a uma liquidação e dedução simultâneas do mesmo valor de IVA ("reverse charge") - por força dos artigos 6.º, nº 8, e 19.º, nº 1, c), do CIVA,
71.             pelo que, nessa hipótese, a não sujeição dessas operações a IVA era financeiramente inócua para a AT.
72.            Com efeito, uma vez que se estaria, quando muito, perante serviços prestados por não residentes ou AICB, assiste à Recorrente o poder-dever de deduzir em simultâneo e pelo mesmo valor o IVA que ela própria liquidaria ("reverse charge"), pelo que daí jamais resulta qualquer dívida de IVA - tratar-se-ia de um mero movimento contabilístico, sem qualquer repercussão de ordem financeira junto dos cofres do Estado.
73.             Também por isto a douta Sentença recorrida padece de erro de julgamento e indevida omissão dos sobreditos preceitos legais.
Questão prejudicial - reenvio prejudicial aoTJUE:
74.            Está em causa a aplicação de normas comunitárias, em particular o disposto nos artigos 17.º a 20.º da Sexta Directiva 77/388/CCC do Conselho, de 17 de Maio de 1977.
75.            Conforme douto Acórdão deste Venerando STA, 2ª Secção, de 03.07.2002, Proc. 026384, in www.dgsi.pt, o reenvio prejudicial ao TJUE é obrigatório uma vez que da decisão do STA não cabe recurso.
76              Por conseguinte, antes da pronúncia de mérito deve ser colocada a seguinte questão prejudicial ao TJUE [ou outra(s), segundo o prudente arbítrio deste Venerando STA], a título de reenvio prejudicial (cfr. artigo 2679 do TFUE): "A Sexta Directiva 77/388/CCC do Conselho, de 17 de Maio de 1977, in JOCE nº L 145, de 13/06/1977, p. 0001-0040, admite a interpretação segundo a qual 0 exercício do direito de dedução de IVA, nos casos de aquisições intracomunitárias de bens, ou de aquisições de serviços prestados por não residentes (sedeados noutros países da EU), efectuadas por sujeitos passivos de IVA não isentos ("reverse charge"), e sendo esses bens ou serviços afectos a uma actividade tributada em IVA, é uma mera faculdade, à livre disposição do sujeito passivo, ou, ao invés, constitui um dever para 0 sujeito passivo ?"
77. Suspendendo-se os presentes autos até pronúncia do TJUE, nos termos do artigo 272º.
Nestes termos, nos melhores de Direito e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, consequentemente, (i) ser declarada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, com fundamento em prescrição, ou, (ii) subsidiariamente, a douta Sentença recorrida deve ser declarada nula, ou (iii), subsidiariamente, deve ser revogada a douta Sentença recorrida e julgada a Impugnação Judicial procedente, com a consequente anulação das liquidações de IVA e JC impugnadas e o reconhecimento, à Impugnante/Recorrente, do direito de indemnização pelos encargos incorridos e a incorrer com a sobredita garantia, assim fazendo V. Exas., mais uma vez, inteira JUSTIÇA.
Mais se requer o reenvio prejudicial ao TJUE, nos termos referidos, ao abrigo do artigo 2679 do TFUE, com a consequente suspensão da presente Instância, nos termos do artigo 272º nº 1 do CPC.


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Notificada, a Autoridade Tributária e Aduaneira não apresentou contra-alegações.

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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da não procedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr. fls. 1308 a 1449 dos presentes autos):


A) A impugnante foi sujeita a uma acção de inspecção, na sequência das Ordens de Serviço n.ºs ….., ….. e ….. de 13-10-1999, relativa aos exercícios de 1995 a 1997, tendo sido efectuadas, no que para aqui importa, correcção técnica ao IVA do exercício de 1997 no valor total de 15.370.432$00 (€ 76.667,39), conforme identificada no ponto 2.1. do relatório de inspecção, junto a fls. 24 dos autos - cfr. cópia do relatório de inspecção junta a fls. 19 a 30 dos presentes autos, o que se dá por integralmente reproduzido.
B) A impugnante foi notificada através do ofício nº ….., de 07-02-2000, para exercer o direito de audição prévia sobre o projecto de conclusões do relatório da inspecção (cfr. fls. 226 a 235).
C) A impugnante exerceu o direito de audição prévia, conforme consta de fls. 223 a 225, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual refere «De acordo com aquele documento, nomeadamente o seu ponto 2.1.1., é referido que «o sujeito passivo efectuou aquisições intracomunitárias de bens e, além disso, recorreu a prestadores de serviços cujas sedes não se situam em território nacional, portanto não residentes, e, porque não liquidou IVA, no montante de 15.370.432$00, nem sobre as aquisições de bens nem sobre os referidos serviços ...”. Adicionalmente referem -se as normas do CIVA e do RITI infringidas. No ponto 2.1.2. do mesmo documento apenas se procede à "distribuição" do montante de imposto objecto de liquidação pelos respectivos períodos, ou seja desde o mês de Junho até Dezembro de 1997.(…)Em face, não pode a A. Aceitar a proposta de correcção relativa ao IVA, pelo montante de 15.370.432$00.»
D) Do relatório final da inspecção, consta a seguinte fundamentação (cfr. fls. 24):

2.1-IVA

2.1.1 - Como o sujeito passivo efectuou aquisições intracomunitárias de bens e, além disso, recorreu a prestadores de serviços - Vide descritivo das facturas insertas no anexo I - cujas sedes não se situam em território nacional, portanto, não residentes, e, porque não liquidou IVA, no montante de 15.370.432$00, sobre as aquisições de bens e sobre os referidos serviços (pág. 1 e 2 Anexo I), estes (serviços) tributáveis nos termos do disposto na alínea a) do art.º 1 conjugado com o n.º 1 do art.º 4.º, ambos do CIVA, infringiu, respectivamente, a alínea a) do n.º 1 do art.º 23.º, do RITI, e o n.º 8 do art. 6.º conjugado com o art.º 29.º do CIVA. Deste modo vamos proceder à liquidação e correcção do IVA, no supramencionado valor - vide anexo 1.

2.1.2 - De acordo com o exposto no item anterior vão ser efectuadas correcções técnicas, em termos de IVA, no ano de 1997, no total de 15.370.432$00 a seguir discriminado por períodos/trimestres a que respeita (pág. 1 e 2 Anexo I). (…)”
E) A impugnante aceita, nomeadamente no artigo 23° da sua p.i., que “não procedeu à liquidação do IVA nem o mencionou em quaisquer declarações remetidas ao Serviço do IVA …”
F) Em consequência das correcções supra identificadas, foi emitida a liquidação adicional de IVA com o n.º ….., relativa ao exercício de 1997, no valor de € 76.667,39 (15.370.432$00) bem como as liquidações dos correspondentes juros compensatórios, com os n.ºs ……, ….. e ….., relativas aos períodos de 06/97, 09/97 e 12/97, no valor, respectivamente, de € 583,81 (117.044$00), € 13.589,50 (2.724.450$00) e € 6.473,29 (1.297.779$00), cuja data limite de pagamento voluntário foi fixada em 30-11-2000 (cfr. cópia da notificação das liquidações, junta a fls. 14 a 17 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
G) A Nota do Gabinete do SEAF, de 22-07-1997, com cópia junta a fls. 40-42 dos autos, mais concretamente o seu ponto 4, consta que " ... nos casos aparados pelos serviços de inspecção, parece-me que a dedução só poderá ser autorizada ao abrigo do art. 71°, n. ° 7 do Código do IVA, desde que o imposto dedutível se encontre pago e seja deferido o pedido de autorização formulado pelo sujeito passivo. Também sem prejuízo da penalidade que ao caso couber.”
H) Nota sobre a qual foi proferido despacho de concordância em 28-07-1997, com indicação para reapreciação (cfr. fls. 43).
I) Em 22-02-2001, conforme carimbo aposto a fls. 1, a impugnante deduziu a presente impugnação.”


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A sentença recorrida considerou não existir factualidade não provada com relevância para a decisão da causa.

A motivação da matéria de facto constante da sentença recorrida, nos seus dizeres, “efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais constantes dos autos e do PAT.”


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Atento o disposto no artigo 662.º, nº 1, do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT acorda-se em alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II), em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração.[1]

Nesse seguimento, procede-se à alteração da redação do facto que infra se identifica, por referência à sua enumeração efetuada em 1.ª instância:

C) A sociedade denominada “R….., SA” exerceu audição prévia relativamente ao projeto de correções referido em B), no qual aduz, designadamente e no que para os autos releva,  seguinte:

“4. De acordo com aquele documento, nomeadamente o seu ponto 2.1.1, é referido que “o sujeito passivo efectuou aquisições intracomunitárias de bens e, além disso, recorreu a prestadores de serviços cujas sedes não se situam em território nacional, portanto não residentes, e porque não liquidou IVA, no montante de 15.370.432$00, nem sobre as aquisições de bens nem sobre os referidos serviços…”

“É de salientar que no projecto de conclusões de relatório, apenas se indica o montante de imposto, supostamente em dívida, por ausência de liquidação do mesmo, sem contudo se efectuar a destrinça entre o valor de imposto correspondente às aquisições intracomunitárias de bens e prestação de serviços; sem que se identifiquem em concreto, as aquisições intracomunitárias de bens e as prestações de serviços; sem que se identifique o vendedor de bens ou o prestador de serviços, a base tributável ou o tipo de serviço prestado, referindo-se apenas, neste último caso, que estes serão enquadráveis no nº8 do art. 6º do Código do IVA (CIVA), podendo, portanto, considerar-se que será um ou vários dos serviços tipificados nas onze alíneas daquele número.”

(…) Contudo, e em face dos elementos disposníveis, pode a A. afirmar que aquela liquidação de imposto não tem qualquer razão de existir, já que é efectuada sem se tomar em consideração o direito à dedução do imposto, conforme o disposto nos artigos 19.º do CIVA e do RITI (…)

(…) Quanto às aquisições intracomunitárias de bens, e tomando em consideração o disposto no nº1 do art. 19.º do RITI, o imposto incidente sobre aquelas operações é também dedutível.” (cfr. doc. fls. 222 a 225 dos autos);


***

Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada adita-se ao probatório, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º, nº 1, do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT, a seguinte factualidade:
J) No Relatório definitivo evidenciado em D), no item respeitante ao direito de audição consta, designadamente, o seguinte:

“ 2.1. Alínea a)

-O contribuinte alega que não foi efectuada, a identificação concreta das AICB e dos serviços, a destrinça do imposto correspondente a cada um deles, que não foram identificados os vendedores e, nem indicada a base tributável nem fundamentado o cálculo do imposto. De facto os referidos elementos não constam da informação enviada ao sujeito porque:

1º Trata-se de um projecto de conclusões de relatório e não do relatório final;

2º Todos os elementos de que dispomos foram gentilmente fotocopiados e fornecidos pelo contribuinte;

3º Existem facturas que, em nosso entender, face ao descritivo “Arte Final y fotomecânica de robopáginas” contém AICB e serviços, no entanto, para efeitos da determinação da base tributável, dado que não existem bens ou serviços sujeitos a taxas diferenciadas, a separação é secundária, pela não alteração do resultado final;

4º No anexo I, dado que se trata do relatório final, encontram-se as já referidas fotocópias que identificam os vendedores, o cálculo da base tributável e, a liquidação do correspondente imposto, por período.”

- No tocante ao enquadramento dos aludidos serviços, na respectiva alínea do nº8 do art. 6º, do CIVA, é de referir que, na sua quase totalidade, os mesmos são enquadráveis na alínea b), tanto assim que o próprio contribuinte os contabilizou como custos de publicidade, vide classificação contabilística nas fotocópias (das facturas) existentes no anexo I. Salientamos que, em nosso entender, existem facturas que para além daquele enquadramento, contém também serviços enquadráveis na alínea g), isto é, são enquadráveis nas duas alíneas, porque não só se referem p. Ex. a “Arte Final y …” como também apresentam honorários/comissões de Agência.”

K) Na sequência da emissão das notas de liquidação adicionais de IVA e respetivos juros compensatórios referidos em F), e em resultado da sua falta de pagamento, foi instaurado pelo Serviço de Finanças de Lisboa 11, o processo de execução fiscal nº ….. e apensos, cuja quantia exequenda ascendia a €76.667,39, juros compensatórios de €20.646,60 e custas no valor de €1.177,17 (cfr. fls. 202 dos autos);

L) A 05 de maio de 2011, foi emitida fiança tendente à suspensão do processo de execução fiscal referido na alínea antecedente, e com o seguinte teor:

“FIANÇA

Serviço de Finanças de Lisboa 11

Processo de Execução Fiscal n.° ….. e Aps

R…., SGPS. S.A., Pessoa Colectiva com o n.° ….. e sede na Av° ….., com o capital social de € 25.000.000,00, aqui representada pelo seu Administrador Dr. R….. e pelo Procurador Dr. A….., ambos com poderes para o acto, constitui-se, pelo presente documento, fiador da sociedade R….., S.A., NIPC ….., e sede na Ava ….. (na qualidade de sociedade incorporante da empresa R….., S.A., NIPC …..), perante o Serviço de Finanças de Lisboa 11, até ao montante de € 123.113,95 (cento e vinte e três mil, cento e treze euros e noventa e cinco cêntimos), que possa vir a ser devido para pagamento da dívida de IVA e juros compensatórios respeitantes ao ano de 1997 e demais encargos devidos no âmbito do sobredito processo de execução fiscal.

A presente fiança é prestada para efeito de suspensão do processo de execução fiscal n.° ….. e Aps, até resolução definitiva do litígio jurídico-tributário que envolve a liquidação exequenda, ficando da responsabilidade do fiador o pagamento, até à sobredita verba, renunciando ao benefício de excussão prévia e assumindo a obrigação de principal pagador, nos termos do artigo 640 a) do cc.” (cfr. fls. 202 dos autos);

M) A 08 de abril de 2011, a sociedade denominada “R….., SA”, apresentou junto do Serviço de Finanças de Lisboa 11, a fiança referida na alínea antecedente, de forma a obter a suspensão do processo de execução fiscal nº ….. e apensos, melhor identificado em K) (cfr. fls. 202 dos autos);

N) A 09 de maio de 2011, a sociedade denominada “R….., SA”, apresentou requerimento junto do Tribunal Tributário de Lisboa, no âmbito do presente processo de impugnação judicial, com o seguinte pedido:

“Nestes termos, nos melhores e Direito e com o douto suprimento de V. Exa, requer-se seja reconhecido à Impugnante o direito de ser indemnizada pela totalidade dos encargos suportados com a prestação e manutenção da referida garantia, a liquidar oportunamente”.

(cfr. fls. 200 e seguintes dos autos, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);


***

III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações adicionais de IVA e respetivos juros compensatórios.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a sentença padece de erro de julgamento, cumprindo aferir se:

Ø Existe violação do caso julgado quanto aos juros compensatórios?

Ø A decisão recorrida padece de nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito, relativamente à improcedência dos juros compensatórios?

Ø A sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia quanto ao pedido de indemnização dos encargos incorridos com a prestação e manutenção de garantia?

Ø A dívida tributária encontra-se prescrita?

Ø A Administração Tributária preteriu formalidade concatenada com o direito de audição prévia? A interpretação adotada pela Administração Tributária e  perfilhada pelo Tribunal a quo traduz uma inconstitucionalidade material, por violação do artigo 267.º nº 5 da CRP?

Ø A decisão recorrida padece de erro de julgamento quanto à apreciação da legalidade das liquidações de IVA e de JC, porquanto o exercício do direito de dedução consubstancia uma obrigação e não uma mera faculdade?

Ø O juízo de entendimento de que o direito de dedução consubstancia uma mera faculdade determina uma inequívoca violação do princípio da neutralidade fiscal do IVA?

Ø A sufragar-se a posição da Administração Tributária e assumida pelo Tribunal a quo há lugar a uma interpretação e aplicação indevida e ilegal dos artigos 19.º do CIVA e 19.º do RITI, em violação dos preceitos comunitários e dos princípios constitucionais da justiça, proporcionalidade e prossecução do interesse público, traduzindo, in fine, um enriquecimento sem causa?

Ø E bem assim a violação de princípios constitucionais relativos às empresas, mais especificamente os princípios da liberdade de iniciativa económica privada, da liberdade de organização empresarial e de funcionamento eficiente dos mercados, no quadro de uma equilibrada concorrência empresarial, consagrados nos artigos 61.º nº 1, 80.º, alínea c), e 81.º, alínea e), da CRP?

Feita a delimitação da lide e das questões decidendas, vejamos, então, se assiste razão à Recorrente.

Apreciando.

Comecemos pela violação do caso julgado.

A Recorrente começa por defender que a decisão recorrida violou o caso julgado, visto que tendo sido proferida decisão datada de 04 de junho de 2007, que julgou a impugnação judicial procedente quanto aos juros compensatórios, e não tendo o DRFP interposto o competente recurso jurisdicional, a aludida questão transitou em julgado, pelo que não poderia o Tribunal a quo, ter determinado a total improcedência da impugnação judicial, ou seja, com a manutenção dos atos de liquidação adicional e bem assim dos juros compensatórios, como visto, já anulados.

Convoquemos, desde já, o quadro normativo que releva para o caso dos autos.

De harmonia com o consigando no artigo 619.º, nº1, do CPC, transitada em julgado a sentença que decida sobre o mérito da causa alcança o fim normal da ação, ficando, assim, a decisão sobre a relação material controvertida a ter força obrigatória dentro do processo e fora nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º do CPC, e sem prejuízo do consignado nos artigos 696.º a 702.º do CPC. É o que se designa por caso julgado material.

Dir-se-á, portanto, que a nossa lei adjetiva define o caso julgado a partir da preclusão dos meios de impugnação da decisão, logo o caso julgado traduz-se na insuscetibilidade de impugnação de uma decisão, decorrente do respectivo trânsito em julgado conforme decorre do artigo 628º do CPC.

Daí que ao caso julgado material sejam atribuídas duas funções que, embora distintas, se complementam: uma função positiva, coadunada com a autoridade do caso julgado e uma função negativa consubstanciada na exceção do caso julgado[2].

Com efeito, a função negativa do caso julgado, como visto, traduzida na insuscetibilidade de qualquer tribunal, incluindo aquele que proferiu a decisão, se voltar a pronunciar sobre essa mesma decisão, opera por via da exceção dilatória do caso julgado, nos termos previstos nos artigos artigos 577.º, alínea i), 580.º e 581.º todos do CPC, impedindo, por conseguinte, que uma nova causa possa ocorrer sobre o mesmo objeto (pedido e causa de pedir) e entre as mesmas partes, cuja identidade se afere pela sua qualidade jurídica perante o objeto da causa, ainda que em posição diversa da que assumiram na causa anterior.

Neste particular doutrina TEIXEIRA DE SOUSA[3] que “ a excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior” acrescentando ainda que “quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de ação, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior”.

Verifica-se, assim, o caso julgado quando a repetição de uma causa se dá depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (cfr. artigo 580.º nº1, in fine, do CPC). Preceituando, por isso, o artigo 581.º do CPC quanto aos requisitos do caso julgado que se repete a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (nº1), havendo identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (nº 2), identidade de pedido quando numa e noutra se pretende obter o mesmo efeito jurídico (nº 3) e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (nº 4).

No concernente ao alcance do caso julgado, diz o artigo 621.º do CPC que: “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”.

Sublinhando ainda TEIXEIRA DE SOUSA que “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”[4].

Feitos estes considerandos de direito, importa, então, responder à questão: Ocorre caso julgado, quanto aos juros compensatórios?

Para responder à questão importa ter presente toda a tramitação dos presentes autos por forma a se aquilatar do alcance do já decidido e do inerente caso julgado.

Vejamos, então.

A ora Recorrente apresentou petição inicial na qual arguiu a ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios, tendo a decisão do Tribunal Tributário de Lisboa datada de 4 de junho de 2007, decidido pela sua procedência invocando, para o efeito, o seguinte:

“Conclui-se, assim, pela não verificação de um dos pressupostos para a sua exigibilidade: o da existência de uma dívida efectiva de imposto sobre o qual possam recair os juros compensatórios-artigo 35.º da LGT”. Pelas razões expostas, julga-se existir fundamento para anular as liquidações impugnadas, no que concerne aos juros compensatórios.”

Razão pela qual a impugnação judicial foi julgada parcialmente procedente.

Nessa sequência, apenas a, ora, Recorrente apresentou recurso jurisdicional, o qual foi julgado procedente pelo STA, tendo determinado a anulação da decisão recorrida por a mesma padecer de omissão de pronúncia “[c]ausa de nulidade da sentença, nos termos do nº1 do artigo 125.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário [cf. também a alínea b) do nº1 do artigo 688.º do Código de Processo Civil]” porquanto “[n]ão se pronuncia, de modo nenhum, sobre a questão levantada na petição inicial de ter ficado «prejudicado o direito de audição»”.

Nessa medida, não tendo o DRFP interposto recurso jurisdicional do segmento que lhe foi desfavorável, o mesmo transitou em julgado consolidando-se, por isso, na ordem jurídica a questão referente à ilegalidade dos juros compensatórios.

Noutra formulação, a decisão prolatada em 04 de junho de 2007, tem a virtualidade de se impor aqui como exceção de caso julgado material, pelo que, no sentido propugnado pela Recorrente ao ter o Tribunal a quo decidido na sentença, ora, recorrida que inexiste “[f]undamento para anular a liquidação de IVA, o mesmo se diga quanto às liquidações juros compensatórios impugnadas (cfr. Ac. STA de 25-10-2000, rec.25461; Ac. TCAS de 01-06-2004, proc. 06409/02), pelo que a presente impugnação tem que improceder.”, violou, efetivamente, o caso julgado, concedendo-se, nessa medida, provimento ao recurso, conforme se decretará a final.

Atento o supra expendido, resulta prejudicada, necessariamente, a apreciação da nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito, relativamente à improcedência dos juros compensatórios.

Vejamos, ora, a questão da nulidade por omissão de pronúncia quanto ao pedido de indemnização dos encargos incorridos com a prestação e manutenção de garantia.

Neste particular, aduz que a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia quanto ao pedido de indemnização dos encargos incorridos com a prestação e manutenção de garantia, apresentado em 09 de maio de 2011, acompanhado dos respetivos documentos comprovativos e em ordem ao consignado nos artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT.

Apreciando.

A propósito da omissão de pronúncia dispõe o artigo 125.º do CPPT, nº1, do CPPT que constitui nulidade a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar.

Preceituando, por seu turno, a primeira parte da alínea d), do nº 1, do artigo 615.º do CPC, que a decisão é nula, quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Na verdade, a nulidade da decisão por omissão de pronúncia sucede apenas quando a mesma deixe de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes, salvo se a decisão tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra questão submetida à apreciação do Tribunal.

Dir-se-á, neste particular e em abono da verdade que, as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. De notar para o efeito que, as questões não são passíveis de qualquer confusão conceptual com as razões jurídicas invocadas pelas partes em defesa do seu juízo de valoração, porquanto as mesmas correspondem a simples argumentos e não constituem questões na dimensão valorativa preceituada no citado normativo 615.º, nº 1, alínea d), do CPC.

Conforme doutrinado por ALBERTO DOS REIS “[s]ão, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”[5].

Vejamos, então.

Mediante requerimento apresentado a 09 de maio de 2011, a ora Recorrida apresenta um requerimento junto do Tribunal Tributário de Lisboa, solicitando o reconhecimento “[à] Impugnante o direito de ser indemnizada pela totalidade dos encargos suportados com a prestação e manutenção da referida garantia, a liquidar oportunamente”.

Nessa conformidade, a Mmª Juiz do Tribunal a quo, assegurou o contraditório do aludido requerimento, mantendo-se a parte contrária silente.

Dimana, assim, inequívoco que a Recorrente peticionou o pagamento de uma indemnização pela prestação indevida de garantia sendo que analisando a decisão recorrida verifica-se, efetivamente, que a mesma não se pronunciou sobre esse pedido.

Mas a verdade é que, tal questão não foi analisada pela simples circunstância de ter sido decretada a improcedência global da pretensão da Recorrente. Noutra formulação, dir-se-á que sendo pressuposto basilar para o direito à indemnização que a decisão seja favorável ao contribuinte (cfr. artigo 53.º, nº1 da LGT), sendo julgada, totalmente, improcedente a impugnação resulta, necessariamente, prejudicada a sua apreciação.

Com efeito, “[s]ó pode ocorrer nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando o juiz não toma posição sobre questão colocada pelas partes, não emite decisão no sentido de não poder dela tomar conhecimento, nem indica razões para justificar essa abstenção de conhecimento, e da sentença também não resulta, de forma expressa ou implícita, que esse conhecimento tenha ficado prejudicado em face da solução dada ao litígio.[6]”.

Improcede, por conseguinte, a arguida nulidade isto sem prejuízo, naturalmente, de o Tribunal ad quem apreciar a indemnização para a prestação indevida de garantia, caso a solução de mérito assim o determine.

Aqui chegados, vejamos, então, a questão inerente à prescrição da dívida tributária.

No concernente à prescrição da obrigação tributária, sustenta que a dívida emergente das liquidações impugnadas já prescreveu, devendo, por isso, declarar-se a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, a qual, aliás, é de conhecimento oficioso, conforme preceitua o artigo 175.º do CPPT.

Mais sustenta, neste âmbito, que inexistindo elementos suficientes para o conhecimento da prescrição, deve o Tribunal ad quem ordenar a baixa dos autos ao Tribunal a quo, para que este estabeleça a competente instrução e aprecie da aludida questão.

Apreciando.

De harmonia com o disposto no artigo 175.º do CPPT, sob a epígrafe “prescrição ou duplicação de coleta”: “A prescrição ou duplicação da colecta serão conhecidas oficiosamente pelo juiz se o órgão da execução fiscal que anteriormente tenha intervido o não tiver feito.”

De facto, da letra do citado artigo 175.º do CPPT retira-se que nos processos de execução fiscal a prescrição é uma questão de conhecimento oficioso pelo juiz, se o órgão de execução fiscal que anteriormente tenha intervindo o não tiver feito, donde, a primeira inferência é a de que a competência para apreciação da prescrição é em primeira linha do órgão da execução fiscal, sendo certo que tem de ser arguida no meio próprio, concretamente deve ser arguida no âmbito do processo de execução fiscal mediante dedução de oposição ou interposição de reclamação de atos do órgão da execução fiscal referente ao ato que negou o seu reconhecimento.

É certo que, conforme propugnado pela Recorrente, pode ser objeto de análise no processo de impugnação judicial e isto porque embora a prescrição da obrigação tributária não consubstancie qualquer vício invalidante do ato de liquidação, verdade é que a jurisprudência vem admitindo que o juiz tome conhecimento da prescrição na impugnação judicial da liquidação, para retirar dela, não a procedência da impugnação e a anulação da liquidação, mas a declaração de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, mas a verdade é que essa análise tem de ter sempre como pressuposto que os autos forneçam os dados necessários para a sua apreciação.

Neste sentido se pronuncia Jorge Lopes de Sousa:

“[deverá entender-se que a prescrição poderá ser conhecida oficiosamente, em processo de impugnação judicial, como pressuposto da questão da utilidade ou não do prosseguimento da lide, de que o tribunal deva conhecer oficiosamente, desde que possua os elementos necessários.

Diferente poderá ser a solução no que concerne à admissibilidade de invocação de prescrição como fundamento autónomo de impugnação judicial.

No entanto, a nível incidental, podendo o tribunal conhecer de qualquer causa de extinção da instância, não haverá obstáculo processual a que tenha em conta a prescrição na apreciação que deve fazer sobre a manutenção da utilidade da lide[7]”.

Resulta, assim, que só quando o processo dispuser de todos os elementos e não exista a necessidade de fazer outras averiguações, pode e deve o tribunal conhecer da prescrição para julgar da inutilidade superveniente da lide, ou seja, da inutilidade da prossecução da impugnação judicial da liquidação.

O mesmo é dizer que se os elementos não constarem todos do processo, precisamente porque este meio processual não é o próprio para o sujeito passivo discutir judicialmente a prescrição da dívida, uma vez que, como já referido, a prescrição é uma questão respeitante à condição de exigibilidade da dívida tributária em sede da sua cobrança coerciva, a qual em nada contende com a validade do acto tributário que se avalia e julga no âmbito da impugnação judicial da liquidação, não só não se deve conhecer da prescrição, como não se impõe qualquer averiguação ou instrução nesse sentido.

Conforme doutrinado em recente Aresto do STA, prolatado no processo nº 0571/06, de 22 de janeiro de 2020: “A prescrição da obrigação tributária não constitui fundamento de anulação da liquidação, sendo apenas um pressuposto da utilidade do conhecimento das causas de invalidade alegadas na impugnação, razão pela qual não cabe ao Tribunal a quo diligenciar para conhecer se estão ou não verificados os pressupostos da prescrição, devendo o mesmo limitar-se a conhecer deles se todos os elementos constarem do processo.”

Assim, transpondo estes ensinamentos para o caso dos autos, ter-se-á de assumir que os elementos constantes do processo não permitem concluir, seguramente, pela prescrição das obrigações tributárias respeitantes ao IVA de 1997, desde logo, porque nada nos permite afirmar que, para além da presente impugnação judicial não tenham ocorrido outros factos susceptíveis de interromper o prazo da prescrição, sendo que, como é consabido, até à revogação do n.º 2 do art. 49.º da LGT, pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, a lei relevava cada uma das diversas causas de interrupção que se fossem sucedendo, sendo que apenas desde 1 de janeiro de 2007 – data da entrada em vigor daquele diploma – deixou de o fazer.

Ademais, é a própria Recorrente que demonstra que o processo de execução fiscal se encontra suspenso por garantia prestada em 8 de maio de 2011, logo a prescrição teria de ter ocorrido no período que medeia entre 1 de janeiro de 1999 até essa data, sendo que no caso, como já evidenciado, inexistem elementos que, seguramente, permitam atestar a prescrição da dívida tributária, sendo certo que tal não coarta qualquer direito ou garantia processual, uma vez que sempre pode arguir a prescrição junto do órgão da execução fiscal.

E por assim ser, conclui-se que não fornecedendo os autos elementos seguros para se conhecer da prescrição da obrigação tributária, e por não ter o Tribunal o dever de averiguar se a mesma se verifica ou não no âmbito deste processo, e por não fazer qualquer sentido mandar baixar os autos para a 1ª instância para dela conhecer[8], não há, pois, que declarar a inutilidade superveniente da lide com fundamento na prescrição da obrigação tributária correspondente à liquidação impugnada.

Aqui chegados, importa, então, analisar os erros de julgamento que são assacados à decisão recorrida.

A Recorrente aduz, em primeira linha, que o Tribunal a quo apreciou erradamente a questão inerente à preterição da audição prévia, visto que o projeto de correções que foi enviado à Recorrente, para efeitos do exercício do direito de audição prévia, não continha todos os elementos necessários, de facto e de direito, que permitissem o exercício esclarecido do direito de audição prévia, não estando suficientemente explicitado e devidamente fundamentado, o que viola, expressamente, os artigos 101.º nº 2 do CPA, redação à data, 60.º nº 1, alínea e), e nº 5 da LGT e 267.º nº 5 da CRP.

Defende, para o efeito, que não continha, entre outros, a identificação concreta dos serviços e aquisições objeto das propostas de correções, nem tão-pouco o respetivo enquadramento jurídico ou as operações de cálculo subjacentes ao seu apuramento.

Enfatiza, neste e para este efeito, que é a própria Administração Tributária que expressamente reconhece essa falha, conforme dimana inequívoco do Relatório definitivo de Inspeção Tributária.

Sendo que só é permitido o exercício pleno do exercício desse direito de audição prévia quando é previamente dado a conhecer, ao contribuinte, de forma minimamente explicitada de todos os elementos que estão na génese do projeto decisório, e isto porque ao omitirem-se partes relevantes na formação do projeto decisório fica prejudicado e coartado o exercício de audição prévia.

Acresce que, a interpretação propugnada pela Administração Tributária e perfilhada pelo Tribunal a quo, de que os artigos 101.º nº 2 do CPA, redação à data, e 60.º nº1 e) e nº 5 da LGT, não obrigavam a comunicar previamente ao contribuinte todos os elementos, de facto e de direito, que lhe permitam um exercício totalmente esclarecido do seu direito de audição prévia, padece de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 267.º nº 5 da CRP.

O Tribunal a quo entendeu, por seu turno, que dos elementos que acompanharam a notificação da Impugnante para o exercício do direito de audição e a resposta que esta apresentou, ao abrigo do artigo 60.º, da LGT, decorre que a notificação foi efectuada nos moldes legais.

Apreciando.

Vejamos, então, se a decisão recorrida padece do aludido erro de julgamento.

Atentemos, desde já, no quadro normativo que releva para a apreciação da questão.

O princípio da audiência prescrito nos artigos 100.º e seguintes do CPA assume-se como uma dimensão qualificada do princípio da participação consagrado no artigo 8.º do mesmo Código, surgindo na sequência e em cumprimento do comando constitucional contemplado no artigo 267.º da CRP, obrigando o órgão administrativo competente a, de alguma forma, associar o administrador à preparação da decisão final, transformando tal princípio em direito constitucional concretizado.

Tal princípio veio, igualmente, a ser acolhido no âmbito do procedimento tributário no artigo 60.º da LGT, sob a forma de “direito de audição do contribuinte”, e no artigo 45.º do CPPT.

De harmonia com o disposto no artigo 60.º da LGT, sob a epígrafe de direito de participação, com a redação, à data, aplicável dispunha-se que:

“1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou ato administrativo em matéria fiscal;

d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indiretos;

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspeção tributária.

2 - É dispensada a audição no caso de a liquidação se efetuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe for favorável.

3 - O direito de audição deve ser exercido no prazo a fixar pela administração tributária em carta registada a enviar para esse efeito para o domicílio fiscal do contribuinte.

4 - Em qualquer das circunstâncias referidas no n.º 1, para efeitos do exercício do direito de audição, deve a administração tributária comunicar ao sujeito passivo o projecto da decisão e sua fundamentação.

5 - O prazo do exercício oralmente ou por escrito do direito de audição, não pode ser inferior a 8 nem superior a 15 dias.

6 - Os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão.”

Neste particular, importa ter presente que a Lei nº 16-A/2002, de 31 de maio, conferiu nova redação ao nº3, do citado artigo 60.º da LGT, passando este a contemplar que: “3 - Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado.”, o qual, não obstante ser posterior à ação inspetiva e às liquidações impugnadas, atenta a natureza interpretativa conferida pelo artigo 13.º, nº2 da aludida le,i é inteiramente aplicável ao caso vertente[9].

Importa, outrossim, ter presente o consignado no artigo 60.º do RCPIT, que sob a epígrafe de “conclusão do procedimento de inspeção tributária” dispõe que:

“1 - Concluída a prática de actos de inspecção e caso os mesmos possam originar actos tributários ou em matéria tributária desfavoráveis à entidade inspeccionada, esta deve ser notificada no prazo de 10 dias do projecto de conclusões do relatório, com a identificação desses actos e a sua fundamentação.

2 - A notificação deve fixar um prazo entre 10 e 15 dias para a entidade inspeccionada se pronunciar sobre o referido projecto de conclusões.

3 - A entidade inspeccionada pode pronunciar-se por escrito ou oralmente, sendo neste caso as suas declarações reduzidas a termo.

4 - No prazo de 10 dias após a prestação das declarações referidas no número anterior será elaborado o relatório definitivo.”

Resulta, assim, do regime jurídico traçado anteriormente e na parte que para os autos releva que é imposto o direito de audição antes da liquidação, antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições, antes da decisão de aplicação de métodos indiretos, e antes da conclusão do relatório da inspeção tributária, só sendo dispensada tal formalidade quando o sujeito passivo já teve oportunidade de o fazer na fase do procedimento de inspeção, que culminou nos atos de liquidação, quando a liquidação se efetue com base na declaração do contribuinte ou quando a decisão lhe seja favorável.

Com efeito, o direito de audiência prévia de que goza o administrado incide sobre o objeto do procedimento, tal como ele surge após a instrução e antes da decisão. Daí que, estando em preparação uma decisão, a comunicação feita ao interessado para o exercício do direito de audiência deve dar-lhe conhecimento do projeto da mesma, a sua fundamentação, com todos os elementos que norteram o apuramento adicional de imposto, o prazo em que o mesmo pode ser exercido e a informação relativa à possibilidade de exercício do citado direito por forma oral ou escrita[10].

Razão pela qual, a falta de audição prévia do contribuinte, nos casos em que é obrigatória, constitui um vício de forma do procedimento tributário suscetível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada[11], podendo, todavia, degradar-se em formalidade não essencial ou em mera irregularidade, se independentemente do exercício de tal direito, aquele ato sempre tivesse de ser da mesma natureza e medida.

Feitos os considerandos que relevam para o caso dos autos.

Vejamos, então, o que resulta do acervo probatório dos autos.

Conforme resulta da factualidade assente, a Recorrente na sequência de ação inspetiva externa realizada pela Administração Tributária e melhor identificada em B), foi notificada do projeto de correções ao IVA de 1997, no valor global de € 76.667,39, mediante ofício datado de 07 de fevereiro de 2020.

Nessa sequência exerceu audição prévia no qual aduz, designadamente e no que para os autos releva, o seguinte:

 “[n]o projecto de conclusões de relatório, apenas se indica o montante de imposto, supostamente em dívida, por ausência de liquidação do mesmo, sem contudo se efectuar a destrinça entre o valor de imposto correspondente às aquisições intracomunitárias de bens e prestação de serviços; sem que se identifiquem em concreto, as aquisições intracomunitárias de bens e as prestações de serviços; sem que se identifique o vendedor de bens ou o prestador de serviços, a base tributável ou o tipo de serviço prestado, referindo-se apenas, neste último caso,que estes serão enquadráveis no nº8 do art. 6º do Código do IVA (CIVA), podendo, portanto, considerar-se que será um ou vários dos serviços tipificados nas onze alíneas daquele número.”

Limitando-se, em face das insuficiências supra expendidas a refutar a argumentação da Administração Tributária de forma genérica dizendo que, de todo o modo, a “[l]iquidação de imposto não tem qualquer razão de existir, já que é efectuada sem se tomar em consideração o direito à dedução do imposto, conforme o disposto nos artigos 19.º do CIVA e do RITI”, mais evidenciando no ponto 10 e no respeitante“[à]s aquisições intracomunitárias de bens, e tomando em consideração o disposto no nº1 do art. 19.º do RITI, o imposto incidente sobre aquelas operações é também dedutível.”

Em resultado do mesmo, foi emitido Relatório definitivo no qual consta, no item respeitante ao direito de audição expressa e designadamente, o seguinte:

“ 2.1. Alínea a)

-O contribuinte alega que não foi efectuada, a identificação concreta das AICB e dos serviços, a destrinça do imposto correspondente a cada um deles, que não foram identificados os vendedores e, nem indicada a base tributável nem fundamentado o cálculo do imposto. De facto os referidos elementos não constam da informação enviada ao sujeito porque:

1º Trata-se de um projecto de conclusões de relatório e não do relatório final;

2º Todos os elementos de que dispomos foram gentilmente fotocopiados e fornecidos pelo contribuinte;

3º Existem facturas que, em nosso entender, face ao descritivo “Arte Final y fotomecânica de robopáginas” contém AICB e serviços, no entanto, para efeitos da determinação da base tributável, dado que não existem bens ou serviços sujeitos a taxas diferenciadas, a separação é secundária, pela não alteração do resultado final;

4º No anexo I, dado que se trata do relatório final, encontram-se as já referidas fotocópias que identificam os vendedores, o cálculo da base tributável e, a liquidação do correspondente imposto, por período.”

- No tocante ao enquadramento dos aludidos serviços, na respectiva alínea do nº8 do art. 6º, do CIVA, é de referir que, na sua quase totalidade, os mesmos são enquadráveis na alínea b), tanto assim que o próprio contribuinte os contabilizou como custos de publicidade, vide classificação contabilística nas fotocópias (das facturas) existentes no anexo I. Salientamos que, em nosso entender, existem facturas que para além daquele enquadramento, contém também serviços enquadráveis na alínea g), isto é, são enquadráveis nas duas alíneas, porque não só se referem p. Ex. a “Arte Final y …” como também apresentam honorários/comissões de Agência.”

Ora, atentando no supra expendido resulta evidente que o Projeto de Conclusões não comportava todos os elementos que nortearam as correções- questão, aliás, não controvertida e expressamente reconhecida pela Administração Tributária no relatório definitivo- sendo que, contrariamente ao evidenciado pela Administração Tributária, sendo omitidas partes relevantes que permitam um cabal esclarecimento de quais as correções, o seu concreto enquadramento jurídico e o respetivo apuramento do quantum não pode ser entendida como o cumprimento de uma formalidade essencial. Com efeito, expressa, tão-só, a mera aparência de um exercício de um direito de audição.

Conforme propugna a Recorrente, só é permitido o exercício pleno do exercício desse direito de audição prévia quando é previamente dado a conhecer, ao contribuinte, de forma minimamente explicitada de todos os elementos que estão na génese do projeto decisório, e isto porque ao omitirem-se partes relevantes na formação do projeto decisório fica prejudicado e coartado o exercício de defesa.

Não podendo, de todo, lograr provimento a argumentação de que tais elementos não teriam de constar do projeto relatório inspeção por representarem uma proposta de correções, sendo, aliás, esse entendimento atentório dos direitos e das garantias dos interessados, coartando, efetivamente, a tutela que deve ser conferida e norteada no procedimento tributário, porquanto não permite contrapor as razões da desconformidade e bem assim conceder a, eventual, faculdade de apresentação de elementos adicionais ou requerer meios probatórios que se reputem relevantes para demonstrar a ilegalidade das propostas de correções.

Note-se, de resto, que esta é a solução que melhor se coaduna e compagina com a ratio legis e com o preceituado no normativo visado, mormente, no seu nº6, no sentido de que sendo suscitados elementos novos em sede de audição prévia os mesmos tenham, obrigatoriamente, de ser considerados e valorados na fundamentação da decisão.

Até porque, a apresentação de quaisquer elementos novos, particularmente, adstritos e atinentes à matéria de facto, poderá justificar a realização de novas diligências que poderão ter lugar, oficiosamente ou a requerimento dos interessados, caso se devam considerar como convenientes para apuramento da matéria factual em que deve assentar a decisão, em ordem ao consignado nos artigos 58.º, da LGT, e 125.º do CPA.

Com efeito, o projeto de decisão há-de conter os mesmos elementos de fundamentação que são obrigatórios na decisão final, concretamente no que se refere à matéria de facto e de direito, até porque se a decisão final contiver fundamentos novos não constantes da notificação para audição e não for concedido prazo adicional para o interessado se pronunciar, encontramo-nos perante uma preterição de uma formalidade essencial que comina o ato de liquidação de anulabilidade[12].

Carecendo, igualmente, de qualquer relevância, neste e para este efeito, a circunstância de todos os elementos que a Administração Tributária possui terem sido fornecidos pela Recorrente, pois tal não exime- bem pelo contrário, constituindo, como visto, uma obrigação legal e uma formalidade essencial- a cabal identificação de quais os elementos, e a competente substanciação de facto e de direito, que permitiu o apuramento de propostas de correções.

Ademais, se atentarmos no próprio requerimento de audição prévia exercido pela Recorrente constata-se que a sua defesa se centra nessa preterição de formalidade, não afastando as correções realizadas na sua aceção de subsunção normativa e desconformidade de esteira de entendimento.

Não podendo, de todo, entender-se suprida a reconhecida preterição de formalidade essencial com a correspondente densificação da matéria de facto e de direito em sede de Relatório Final e com a junção de um Anexo, denominado de Anexo I, com os elementos reputados em falta, designadamente, identificação dos vendedores, o cálculo da base tributável e, a liquidação do correspondente imposto, por período.

De relevar, in fine, que nos encontramos perante situações, como visto, passíveis de subsunção normativa no artigo 6.º do CIVA que, como é consabido, tem regras completamente diferentes em toda a sua enumeração, sendo fundamental a enumeração e descrição, devidamente esclarecida, das prestações de serviços em causa para se poder aquilatar de todos os pressupostos legais e consequente tributação. Ademais, o aludido normativo contempla derrogações, e “exceções à própria exceção”, as quais só se conseguem percecionar e subsumir fática e normativamente caso exista uma completa densificação da inerente matéria de facto e de direito na fase preliminar e de instrução.

Pelo que, como é bom de ver, assume particular relevância que todos os elementos-assumida e reconhecidamente em falta pela Administração Tributária- estivessem contemplados no projeto de correções.

Ora face a todo expendido anteriormente, e sob pena de o direito de audição se transformar num ritual inócuo, ter-se-á de concluir, face a todo o exposto, e contrariamente ao sentenciado pelo Tribunal a quo que nos encontramos perante uma mera aparência de exercício de audição prévia determinante da preterição de uma formalidade essencial, cominada com a anulabilidade[13].

Aqui chegados, importa aquilatar da, eventual, aplicabilidade do princípio do aproveitamento do ato administrativo.

Começando por evidenciar que é entendimento unânime jurisprudencial[14], que a omissão da audição do contribuinte, ou a sua realização de forma deficiente e sem os requisitos legais, constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que, ao abrigo do princípio do aproveitamento do ato administrativo, seja manifesto que a decisão tributária, em abstrato, não podia ser outra da que foi tomada no caso concreto, e por isso se impunha, o seu aproveitamento.

Noutra formulação, dir-se-á que o Tribunal tem o poder de não anular um ato inválido quando a decisão administrativa não poder assumir outro conteúdo, uma vez que em execução do efeito repristinatório da sentença não existe “alternativa juridicamente válida” que não seja a de renovar o ato inválido, embora sem o vício que determinou a anulação[15].

Note-se, neste particular, que o princípio do aproveitamento do ato administrativo, se encontra, atualmente, consagrado no artigo 163.º, nº5 do CPA, segundo o qual:

“5 - Não se produz o efeito anulatório quando:

a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;

b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;

c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.”

Ora, atentos os considerandos de direito supra expendidos e fazendo a apreciação casuística que se impõe, apelando, por isso, às circunstâncias concretas da realidade em apreço, e já devidamente materializadas anteriormente, resulta que não é possível concluir-se, inexoravelmente, que a audição do contribuinte- entenda-se devidamente esclarecida e munida de todos os elementos e requisitos legais- no procedimento não tinha a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, conduzindo a um resultado diferente.

Neste âmbito, importa chamar à colação, designadamente, o Aresto do STA proferido no processo nº 0489/08, de 24 de setembro de 2009:

“[a] jurisprudência deste STA tem vindo a decidir que, não obstante a audiência prévia constituir uma importante manifestação do princípio do contraditório e visar associar o administrado à tarefa de preparar a decisão final e permitir-lhe participar e influenciar a formação da vontade da Administração, a degradação daquela formalidade em formalidade não essencial só ocorrerá quando, atentas as circunstâncias, a intervenção do interessado se tornar inútil - v., neste sentido, o acórdão de 3/3/04, no recurso 1240/02. (…)

O princípio do aproveitamento do acto apenas poderá ser aplicado em situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto, o que conduz, na prática, à sua restrição aos casos em que não esteja em causa a fixação de matéria de facto relevante para a decisão.”.

Por isso, aquele direito não poderá deixar de ser assegurado sempre que não seja de afastar a possibilidade de a decisão do procedimento tributário ser influenciado pela intervenção do interessado e não haja outros valores constitucionalmente relevantes que se lhe contraponham.”

Ora, face a todo o exposto e sem necessidade de outros considerandos, impõe-se concluir que nos encontramos, por um lado, perante a preterição de uma formalidade essencial porquanto o direito de audiência não poderia deixar de ser assegurado com as formalidades atinentes para o efeito e já devidamente evidenciadas e, por outro lado, que tal preterição não é suscetível de ser degradada em não essencial, por não poder considerar-se sanada, nos termos densificados anteriormente.

Atenta a aludida procedência resultam prejudicadas as demais questões inerentes à legalidade das liquidações de IVA e JC.

Face ao supra aludido subsiste por analisar a questão inerente à indemnização por prestação indevida de garantia.

Vejamos então.

Para o efeito cumpre fazer uma interpretação articulada de dois normativos legais, especificamente: os artigos 53.° da LGT, e 171.° do CPPT.

Preceituava o artigo 53.º da LGT, com a redação à data aplicável, e sob a epígrafe de “Garantia em caso de prestação indevida” que:

“1- O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.

2- O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3-A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.”

Por sua vez, dispõe o artigo 171.º do CPPT, com a epígrafe “Indemnização em caso de garantia indevida” que:

“1-A indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda.

2-A indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou, em caso de o seu fundamento ser superveniente, no prazo de 30 dias após a sua ocorrência.”

Resulta, assim, do teor dos normativos legais citados que no domínio do contencioso tributário se “(…) consagra o direito do contribuinte a ser indemnizado, total ou parcialmente, pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia bancária ou equivalente que tenha oferecido para obter a suspensão da execução fiscal, no caso de esta vir a revelar-se indevida por força do vencimento do procedimento ou processo tributário em que era controvertida a legalidade da dívida exequenda (…)”[16]

No que concerne ao modo de exercício de tal direito, cumpre ainda relevar que o nº 3 do artigo 52.º da LGT refere expressamente que a indemnização pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente, sendo que o facto de os lesados não requererem a indemnização pela prestação indevida de garantia bancária no âmbito do processo de impugnação judicial, não preclude a possibilidade de se requerer essa indemnização no âmbito da execução de julgado anulatório.

E isto porque, a leitura do artigo 171.º do CPPT tem de ser conjugada com o dever de “plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio” que o artigo 100.° da LGT impõe à Administração Tributária em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo. Neste sentido, convoque-se, designadamente, o Aresto proferido pelo STA no processo nº 0216/11, em 22 de junho de 2011, chamando à colação a doutrina vertida no Acórdão de 24 de novembro de 2010, proferido no processo nº 01103/09[17].

São, portanto, pressupostos da concessão do direito à indemnização pela prestação indevida da garantia: a prestação da garantia por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida ou a invalidade do ato de liquidação, fundada em erro imputável aos serviços, peticionado no processo que tenha por objeto a ilegalidade da dívida exequenda, ou em sede de execução de julgados.

Atentemos, então, no que resulta do acervo probatório dos autos:

Para cobrança coerciva da dívida correspondente à liquidação impugnada nos presentes autos foi instaurado o processo de execução fiscal nº….. e apensos, no valor global de €98.491,16, respeitando €76.667,39 a quantia exequenda, €20.646,60 a juros compensatórios e €1.177,17 a custas.

Nessa sequência, e por forma a suspender o processo executivo, foi prestada fiança, em 08 de abril de 2011, até ao montante de €123.113,95 para pagamento da dívida de IVA e juros compensatórios respeitantes ao ano de 1997, cobradas coercivamente no aludido processo executivo e “até resolução definitiva do litígio jurídico tributário que envolve a liquidação exequenda”.

Ora, atenta a factualidade assente e chamada à colação anteriormente, encontram-se preenchidos os requisitos para a atribuição da indemnização por prestação indevida de garantia, desde logo, porque a mesma foi prestada em 08 de maio de 2011, tendo, portanto, sido cumprido o requisito do prazo de 3 anos contemplado no citado artigo 53.º, nº1, da LGT.

Neste particular, é de sublinhar que não constam dos autos quais os encargos, em concreto, que a Recorrente suportou com a prestação da garantia. A verdade, porém, é que tal facto não obsta a que este Tribunal reconheça esse direito, relegando-se o apuramento do seu quantum para execução de sentença.

Noutra formulação, dir-se-á, que tendo a Recorrente apresentado impugnação judicial e formulado pedido de indemnização pela prestação de garantia após a sua prestação e dentro do prazo contemplado na lei, a falta de quantificação dos prejuízos respetivos não contende com aquele reconhecimento, impondo apenas que o seu apuramento seja relegado para execução de sentença, como se fará no dispositivo do presente Acórdão[18].


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

Conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, e em consequência:

Julgar procedente a impugnação judicial, anulando-se o ato de liquidação de IVA impugnado, condenando-se a Recorrida a pagar à Recorrente uma indemnização por prestação indevida de garantia cujo apuramento se relega para execução de sentença.

Sem custas. Vencida a DRFP seria a mesma responsável pelas custas do recurso. No entanto, há que ter em conta que, nos processos instaurados até 01.01.2004 (como é o caso), a FP se encontrava isenta do pagamento de custas, atento o disposto no art.º 3.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas dos Processos Tributários, aprovado pelo DL n.º 29/98, de 11 de fevereiro (cfr. os art.ºs 14.º, n.º 1, e 15.º, n.º 2, ambos do DL n.º 324/2003, de 27 de dezembro, bem como o art.º 18.º do DL n.º 324/2003, de 29 de dezembro).

Registe. Notifique.


Lisboa, 04 de junho de 2020

 (Patrícia Manuel Pires)

(Cristina Flora)

 (Tânia Meireles da Cunha )


____________________
[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.
[2] Vide, designadamente, Acórdãos proferidos pelo TCA Sul, nos processos nºs 469/19, e 161/09, de 14.01.2020 e de 05.06.2019.
[3] Vide António Santos Abrantes Geraldes e outros-CPC anotado, Almedina, Vol. I, p.743, em anotação artigo 619.º, citando o autor no artigo intitulado O objecto da sentença e o caso julgado material", BMJ nº 325, p. 171 e segs.
[4] in Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 578-579
[5] Código de Processo Civil anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1981 (reimpressão), pág. 143.
[6] In Acórdão do STA, proferido no processo nº 01109/12, de 07.11.2012.
[7] Sobre a Prescrição da Obrigação Tributária, Notas Práticas, Áreas Editora, 2.ª edição, págs. 23 a 25.
No mesmo sentido, vide Acórdão do STA proferido no processo nº 01118/15, de 09.11.2016.
[8] Neste sentido, vide, por todos, os Acórdãos do STA proferidos nos processos nºs 0571/06.8 e 01433/17, de 20.04.2020 e 04.07.2018, respetivamente.
[9] Vide Acórdão do STA, proferido em Plenário, no âmbito do processo nº 0131/07, de 24.10.2007.
[10] Cfr.Ac. STA, proferidos nos processos nº.21244; rec.684/03, datados de 25.1.00 e 2.7.03; Ac TCAS, processo nº 1510/06, de 17.09.2013 Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, Encontro da Escrita Editora, 4ª. Edição, 2012, pág.502 e seg.
[11] cfr.artº.135, do CPA, então em vigor; Ac.TCAS processo nº 9810/16 e 5428/12, de 27.10.2016 e 9.03.2017.; Diogo Leite de Campos e Outros, ob.cit., pág.515; Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.437
[12] Vide, neste sentido, José Maria Fernandes Pires-LGT comentada e anotada: Almedina:2015, pp.620 e 621
[13] Vide Acórdão do STA, proferido no processo nº 0548/12, de 24.10.2012.
[14] Vide, por todos, o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA de 22.01.2014.
[15] Vide, designadamente, Acórdão do STA proferido no processo n.º 017/12, de 31/01/2012.
[16] In Acórdão do STA, proferido no recurso nº 01032/10, de 13 de abril de 2011.
[17] Neste sentido, vide também Acórdão proferido pelo STA no processo nº 01032/10 de 13.04.2011, no Acórdão proferido pelo STA, no processo nº 09/02, de 09.10.2002, no Acórdão proferido pelo STA no processo nº 0299/10, de 24.11.2010, no Acórdão proferido pelo STA no processo nº 0620/11, de 2.11.2011, entre outros, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[18] Vide, designadamente, Aresto do TCA Norte proferido no processo nº 00233/06.6BEPNF de 2.02.2012