Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2216/19.7BELRS-A
Secção:CT
Data do Acordão:03/25/2021
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:CAUTELAR
PERICULUM IN MORA
PONDERAÇÃO DE INTERESSES
Sumário:I-O periculum in mora, é configurado em duas vertentes, ou seja, quando com a não adoção da providência haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado e quando haja fundado receio de, se a providência vier a ser recusada haver a possibilidade de se produzirem prejuízos de difícil reparação, para os interesses que o Requerente visa assegurar no processo principal.
II-No caso vertente, circunscrevendo-se a prova do periculum in mora, no plano do facto consumado, face à alegada insolvência do Recorrente, competiria a este alegar e demonstrar factualidade que permita a formulação de um juízo sobre o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado para os interesses que o mesmo visa assegurar no processo principal.
III-Se a prova testemunhal e documental produzida não são de molde a demonstrar uma ambiência de fragilidade financeira do Recorrente, não se ficando, pois, com a convicção de que a cobrança dos valores aduaneiros determine o incumprimento das suas obrigações financeiras e, a breve trecho, a sua insolvência, tal determina que não foi feita prova do fundado receio para que se possa considerar “compreensível ou justificada” a cautela que é solicitada.
IV-Estando o requisito negativo atinente à ponderação de interesses públicos e privados, dependente da verificação, a montante, dos outros dois requisitos positivos (periculum in mora e o fumus boni iuris), claudicando, in casu, o periculum in mora, tal determina que resulte prejudicada a sua análise.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:

I-RELATÓRIO

J….., com os demais sinais dos autos, veio interpor recurso jurisdicional dirigido a este Tribunal tendo por objeto a sentença, exarada no âmbito do procedimento cautelar intentado contra a Autoridade Tributária (AT), deduzido contra o indeferimento tácito de reclamações graciosas apresentadas, identificando vários atos tributários de autoliquidação, constantes de declarações aduaneiras (DAU), que foram objeto de correção do valor aduaneiro e de notificação para cobrança, e que o julgou improcedente.

A decisão recorrida foi proferida na sequência de Acórdão prolatado por este Tribunal datado de 25 de junho de 2020, que revogou a sentença recorrida, e ordenou a baixa dos autos para a produção de prova testemunhal relativamente ao periculum in mora.


***

O Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

“Conclusões:

1ª Nos presentes autos é pedida a abstenção da cobrança coerciva de liquidações de direitos e imposições aduaneiras devidas pela importação, quanto às diferenças entre o valor declarado às autoridades aduaneiras e o valor por estas fixado, findo o procedimento estabelecido no art. 74º do CAU, ou, em alternativa, a remessa dos títulos de dívida ao serviço de finanças para acertos de garantia, sustentando que as liquidações em cobrança estão garantidas pela anterior caução global de desalfandegamento.», como reconhece a douta sentença recorrida.

2ª Quando requereu a providência e até à sentença proferida em 17/2/2020, o Requerente curava que as liquidações em cobrança estavam garantidas pela anterior caução global de desalfandegamento; até porque a Requerida, mantendo-a e emitindo o documento n.º 6 A, tinha a mesma convicção e nem a libertou; Só a partir dessa sentença ficou definido, à luz do Direito, o facto de ela não poder, afinal, ser aproveitada para esse efeito de caução. E nunca a Requerida, invocando o art. 45º do CAU, ou outro, intimou ou sugeriu ao Requerente que prestasse outra garantia; ou o informou que, nesse caso se absteria de avançar, suspendendo as contestadas cobranças; Pelo contrário, sem, ao menos, ter registado as liquidações, avançara decididamente para elas, o que motivou o pedido da providência sub juditio.

3ª O periculum in mora deve ser analisado em função dos factos, alegados, i.e., do risco, alegado no R.I., do Requerente ora recorrente cair em insolvência se a cobrança dos valores ilegalmente liquidados avançar, e não da necessidade de pagar uma caução, questão que, ao tempo, não se colocava; e que só se veio a colocar com a douta sentença de fls. de 17/2/2020.

4ª Para além de emergir do simples confronto dos valores em presença, a prova desse risco de insolvência, foi consistentemente produzida.

5ª Como correctamente registou a douta sentença recorrida, a testemunha A….., depôs, credivelmente, o seguinte no seu depoimento:
02:34:41: - Advogado: – O que é que aconteceria à mesa de despacho, aos vossos lugares de trabalho, etc., se porventura estes valores fossem cobrados?
2:34:47: - Testemunha - Seria mau, seria a insolvência, de certeza.
Na nossa área dos despachos a concorrência é muito grande e…
Sê-lo-ia para qualquer despachante! 1 Cfr. a gravação da audiência, indicando-se os tempos de registo.
2:35:01: - Advogado: - Os despachantes podem ter prejuízos, e continuarem a actividade?
2:35:07: - Testemunha: - Não; É difícil.
2:35:10: - Advogado: - Mas, legalmente, não sabe se legalmente podem mesmo estar em actividade com prejuízos?
2:35:11: - Testemunha: - Que eu saiba, que eu saiba, não.
2:35:14: - Advogado: - Não podem!, Portanto, têm que, ter pelo menos uma situação de… solvibilidade.
2:35:18: - Testemunha: - Exactamente!
2:35:25: - Advogado: Recorda-se se em 2019… ter existido uma preocupação, na empresa, no sentido de, no sentido da contenção de custos e de maior empenhamento para tentar salvar o negócio?
2:35:43: - Testemunha: - Ah, sim; pelo menos ir mantendo os, os clientes; …os que temos. Há sempre a preocupação de os manter…
2:35:55: - Advogado: - Portanto, …há uma especial atenção, aqui, aos custos e à continuidade, possibilidade de fazer novos negócios?
2:36:04: - Testemunha: - Sim.
2:36:06: - Advogado: - Sente ainda o risco deste processo poder, poder pôr em crise tudo?
2:36:10: - Testemunha: - É claro, ...(imperceptível)...

6ª Face a esta prova, credível, não contrariada por outra e conforme à experiência da vida, o recorrente não pode conformar-se com a parte do julgamento de facto que considerou que «não se provou que o Requerente fique em situação de não conseguir fazer face aos compromissos financeiros normais da actividade, por efeito da cobrança das liquidações em crise.», pelo que impugna os factos não provados nessa parte. Este facto deve ser considerado provado, com substanciais consequências para o julgamento de Direito e a procedência da providência requerida; o que requer.

7ª Consequentemente, a conclusão de que «nada se comprova nos autos quanto ao justo receio de lesão irreparável, nem sequer logra o Requerente comprovar ficar numa situação de facto consumado ou a verificação de prejuízos de difícil reparação» deve ser revogada, porquanto a insolvência é a maior «lesão irreparável»;

8ª O risco existente de insolvência não é susceptível de quantificação pecuniária precisa, exactamente como o exige o douto Tribunal a quo, citando jurisprudência superior, não sendo facilmente avaliadas ou quantificadas as lesões – como do desemprego de trabalhadores, a perda da reputação comercial, etc. - que o requerente virá a sofrer se a cobrança prosseguir. Deve ser verificado o preenchimento do requisito do periculum in mora; o que pede.

9ª O pagamento da caução a que se refere o art. 45º n. 2 do CAU não é uma condição obrigatória ou imprescindível para, em sede judicial, ser decretada a providência requerida. Muito menos integra o julgamento do periculum in mora.

10ª Aliás, não só a Requerida nunca notificou ou comunicou ao Requerente para prestar essa caução, antes ou depois da anterior sentença, nem o douto Tribunal a quo o fez, quando poderia fazê-lo tanto por despacho anterior à sentença, como, sobretudo, depois de ter julgado a anterior caução inidónia, deveria fazê-lo na própria sentença, impondo essa condição para a produção de efeitos da providência decretada, concedendo um prazo para a satisfação dessa eventual condição, bastando, neste caso, ter concluído a sua hipotética decisão citando a referida norma legal; depois de explicitar, que não ficou comprovado com base numa avaliação documentada que essa garantia pode causar graves dificuldades de natureza económica ou social ao requerente.

11ª De qualquer modo, a questão decidenda não era se o periculum in mora havia de ser julgado à luz do prejuízo que o pagamento de uma nova caução causaria ao Requerente, como a douta sentença recorrida fez, indevidamente, matéria que nunca foi suscitada no R.I.; mas à luz das consequências da cobrança, propriamente dita, que a Autoridade recorrida pretendia(e) realizar (da totalidade das quantias liquidadas), ilegalmente; não só pelo que o douto Tribunal a quo muito doutamente decidiu no que respeita ao boni fumus iuris, mas, também, porque as liquidações não foram registadas. Foi esta cobrança que o Requerente quis obstar nestes autos.

12ª O prévio ou posterior pagamento da garantia para que a requerida providência cautelar possa ser decretada, ou produzir efeitos, não é uma questão de periculum in mora. A avaliação documentada de que a prestação da garantia prevista no art. 45º n. 2 do CAU pode causar graves dificuldades - que a sentença refere - exige-se, apenas, para a dispensa da própria garantia pela Administração, não para o Tribunal o avaliar. Portanto, não sendo uma questão que caia no âmbito da avaliação do periculum in mora, a exigência do pagamento de caução, a existir – e ela, portanto, é relativa -, seria, quando muito, um outro requisito, específico, a acrescer e complementar os outros já conhecidos.

13ª S.m.o., a de vossas Excelências, ela não é realmente imprescindível.

14ª O disposto no art. 45º do CAU aplica-se às Autoridades Aduaneiras, não se dirige directamente aos Tribunais de forma a tolher-lhes, limitativamente, a sua acção.

15ª Estes são órgãos de soberania que, subordinados à lei, a aplicam de modo diferente da Administração, já que a interpretam, autenticamente, sistematicamente, no seu todo, integrando lacunas, esclarecendo dúvidas, dizendo o Direito, impondo-o no caso concreto, com autoridade sobre os particulares e sobre ela. Onde esta se deixa guiar estritamente pela norma concreta e pelo Código e até, tantas vezes, por actos jurídicos sem valor legal, aqueles dizem o Direito tal qual ele deve ser aplicado nos casos concretos a partir do edifício jurídico, com toda a profusão por vezes dispersa de normas e de princípios, concatenando-os.

16ª O n.º 2 deste art. 45º do CAU, de acordo com a sua letra, dirige-se expressamente, não aos tribunais, mas às próprias autoridades aduaneiras e impõe-lhes a suspensão da execução da decisão recorrida em certas circunstâncias, que, de resto, se verificam in casu; E o n.º 3, que faz depender a suspensão administrativa da execução que o número anterior impõe às próprias autoridades aduaneiras está, expressamente, subordinado a este n.º2 – ao dispor:

«Nos casos referidos no n.º 2…» -, que se lhes – às Autoridades Aduaneiras – dirige expressamente.

17ª O douto Tribunal a quo não estava a decidir apenas uma medida administrativa vinculativa para a Administração Aduaneira prevista no CAU, designadamente no seu art. 45º ns. 2 e 3; estava a dizer o Direito e a julgar o pedido de decretamento de uma providência cautelar, prevista, além do mais - incluindo este art. 45º do CAU - no C.P.P.T. e no CPTA, ex vi art. 2º c) daquele e ainda, subsidiariamente, ex vi art. 2º e) daquele código, no CPC, tendo sido violados, designadamente, os arts. 97.º i) do CPPT, o 120.º nº 1 do CPTA e os 362.º e 369.º n. 1 do CPC.

18ª O preenchimento dos requisitos do art. 45º do CAU, que versa sobre a «suspensão da execução» tem que ser verificado pela Autoridade Aduaneira; e pelo Tribunal, mas, este, tem capacidade e competência para a conjugar com o demais Direito aplicável e, pelas razões elencadas supra, não está vinculado por ele para as suas decisões, pelo contrário, tem amplo poder jurisidicional, nos termos dos arts. arts. 97º i) do CPPT, o 120.º n.º 1 do CPTA. Estaria vinculado, sim, mas no sentido do decretamento necessário da providência requerida, se a garantia tivesse sido considerado válida – cfr. art. 120º n. 6 do CPTA.

19ª Os requisitos para a tutela cautelar (judicial), i.e., para o decretamento de uma providência cautelar, são, sobretudo, de ordem da lei adjectiva (o C.P.P.T., o C.P.T.A., o C.P.C.), e não da lei substantiva, designadamente o CAU, ou mesmo o Código Civil.

20ª Com todo o respeito, entendemos que o douto Tribunal a quo entendeu de forma equivocada esta questão no 1º § da pag. 30 da douta sentença recorrida já que, reitera-se, a lei aduaneira é substantiva, não regula as providências cautelares.

21ª Repare-se que, respeitando a soberana autoridade dos Tribunais, o comando dispositivo do n.º 2 do art. 45º do CAU se dirige directamente, apenas, às «autoridades aduaneiras».

São elas que devem suspender, total ou parcialmente, a execução da decisão caso tenham motivos fundamentados para porem dúvida a conformidade da decisão impugnada com a legislação aduaneira, ou que seja de recear um prejuízo irreparável para a pessoa em causa; podendo, até, dispensar a obrigatoriedade de prestação de garantia, que, por isso, não é absoluta, mas relativa.

22ª A entidade requerida não o fez, até porque continua a insistir de modo contrário ao que consistentemente os Tribunais têm decidido a matéria do boni fumus iuris. Não o tendo feito, violou este dispositivo, que se lhe dirige directamente. Por isso o Requerente se viu obrigado a recorrer ao Tribunal, requerendo a presente providência.

23ª De qualquer modo, sem conceder, reitera-se que o douto Tribunal a quo poderia até entender que deveria ser prestada uma (nova) garantia; porém, tinha que ter tido em consideração que a recorrente estava ab initio convencida que essa garantia estava prestada e era válida; face à conclusão, por si próprio, de que a garantia existente não era válida para os efeitos do art. 45º n. 3 do CAU, e ao entendimento de que ela teria que ser prestada, deveria, ou ter convidado o Requerente a prestá-la, nos termos do art. 120º n. 4 do CPTA, ou ter decretado imediatamente a providência requerida subordinando a respectiva eficácia à prestação dela, nos termos do art. 122º n. 2 do CPTA; quando muito, poderia ainda, ter decretado o subsidiariamente requerido envio do processo de cobrança ao Serviço de Finanças da residência fiscal do requerente, para efeito de acertos na garantia. Só não podia ter rejeitado a providência por este motivo.

24ª É que, além do mais e sem conceder, o Requerente requerera isso mesmo, expressamente, no seu petitório, o que resolveria concretamente esta questão; e outras, porque o Serviço de Finanças competente não deixaria, nos termos legais, de reconhecer a incobrabilidade da alegada dívida não registada.

25ª Ao não ponderar este pedido, pronunciando-se sobre ele, a douta sentença recorrida incorreu numa nulidade, nos termos do art. 125º n. 1 do CPPT.

26ª As liquidações de direitos e imposições aduaneiras alegadamente devidas pela importação, quanto às diferenças entre o valor declarado às autoridades aduaneiras e o valor por estas fixado, não podem ser cobradas enquanto não forem registadas, de acordo com a jurisprudência constante e uniforme, quer do STA quer deste Venerando Tribunal, que ensina que o registo é condição de exigibilidade da dívida aduaneira e que sem registo a liquidação não produz efeitos externos.

27ª Tal jurisprudência impõe-se in casu, o que o douto Tribunal deveria ter conhecido, mas não o fez, constituindo esta omissão uma nova causa de nulidade da sentença - de novo nos termos do art. 125º n. 1 do CPPT - e o impedia de ter decidido como decidiu.

28ª Quanto ao julgamento da ponderação de interesses, a douta sentença reconhece que as «partes não aduzem argumentação relativa à ponderação de interesses…», o que faz cair o caso na previsão da norma que invoca, o art. 120º n. 5 do CPTA, devendo aplicar-se-lhe a respectiva estatuição.

29ª Não andou bem o douto Tribunal a quo, ao realizar uma inversão da excepção ao efeito cominatório legalmente previsto naquela norma. Os interesses públicos genéricos invocados pela douta sentença recorrida não são obstativos, nem devem sobrepor-se ao interesse do Requerente demonstrado nestes autos, que não os prejudica clara, manifesta ou ostensivamente.

30ª O interesse do Requerente, de que se cumpra a lei, é que prossegue cabalmente os interesses públicos superiores, ao invés da interpretação, reconhecidamente ilegal – como o próprio douto Tribunal a quo admite – que a Requerida lhes dá e que deve ser atalhada.

31ª A pretendida cobrança de direitos, que o Requerente tenta suster, implica uma transferência, ilícita, de recursos financeiros nacionais para a UE – num atropelo do interesse público nacional - sendo indutora de responsabilidade civil do Estado que o douto Tribunal deve evitar.

32ª Apoiando-se em jurisprudência superior e constante, o douto Tribunal a quo reconheceu, e bem, a ilegalidade dos actos impugnados de forma mais consistente até do que a que perfunctoriamente ocorreria em sede de Procedimento cautelar. Ora, a subordinação à legalidade é uma obrigação universal e absoluta desde que a sua violação é consistentemente percepcionada pelo Tribunal. Este não pode reconhecer que, do ponto de vista substantivo, há um atropelo da lei, para permitir que esse atropelo se concretize apenas pela simples razão de que estamos em sede de um procedimento cautelar.

33ª Em qualquer caso, verificando-se preenchido o requisito do periculum in mora e o da ponderação de interesses favorável ao requerente, tal como o boni fumus iuris, esta última questão nem se coloca.

34ª A ordem jurídica e a Justiça carecem e os interesses do recorrente aconselham e requerem a revogação da sentença recorrida nas partes identificadas e o decretamento da providência requerida.”


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A Recorrida apresentou contra-alegações como segue:

“1. Pretende o recorrente, no presente recurso, pôr em crise a douta decisão do Tribunal Tributário de Lisboa que não decretou a providência cautelar requerida, na qual havia peticionado que:

a) Seja ordenada a imediata paragem da cobrança das dívidas até que haja uma decisão sobre a impugnação transitada em julgado; ou, em alternativa

b) Seja ordenado o envio do título de cobrança para o Serviço de Finanças, acompanhado da informação de que a dívida se encontra garantida.

2. O ora recorrente coloca em causa o segmento da decisão judicial, proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa de que recorre, na qual julgou que nada se comprova nos autos quanto ao justo receio de lesão irreparável.

3. Com efeito, como bem se refere na douta sentença:

“No que concerne ao primeiro requisito, embora o requerente invoque a ocorrência, de prejuízos que considera irreparáveis, a jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido que “prejuízos irreparáveis” são aqueles que não sejam susceptíveis de quantificação pecuniária minimamente precisa.

Ora, as lesões que o Requerente associada possa vir a sofrer, poderão sempre ser avaliadas ou quantificadas pela via pecuniária, uma vez que sendo procedente a acção principal, será viável , repor a legalidade, como determina o artigo 100º da LGT : “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.

Ora, nada se comprova nos autos quanto ao justo receio de lesão irreparável, nem sequer logra o Requerente comprovar ficar numa situação de facto consumado ou a verificação de prejuízos de difícil reparação.

Ademais, a possibilidade de suspensão da execução implica, além da verificação dos requisitos previstos no nº 2, que seja aplicada a regra constante do nº 3 do mesmo artigo do CAU: “Nos casos referidos no n.º 2, se a decisão impugnada der origem à aplicação de direitos de importação ou de direitos de exportação, a suspensão da execução dessa decisão fica sujeita à prestação de uma garantia, salvo se for comprovado, com base numa avaliação documentada, que essa garantia pode causar graves dificuldades de natureza económica ou social ao devedor.” (sublinhado nosso).

Note-se que a Jurisprudência europeia vai no sentido de que o prejuízo de carácter financeiro só será considerado irreparável se não for suscetível de ser inteiramente ressarcido com o ganho da causa (cfr. acórdãos do TJUE relativos aos proc. C-130/95 e C-226/99, disponíveis em http://curia.europa.eu ), de que seria exemplo a susceptibilidade de a execução imediata do acto resultar na dissolução da sociedade ou impor ao particular a venda da casa de morada de família.

Pelo que, no contexto de um litígio sobre imposições aduaneiras, caso a decisão impugnada dê origem à aplicação de direitos de importação (que é justamente o que acontece no caso em apreciação), a suspensão da execução da decisão fica sujeita à prestação de uma garantia, salvo se for comprovado, com base numa avaliação documentada, que essa garantia pode causar graves dificuldades de natureza económica ou social ao devedor, o que decorre expressamente do n.º 3.º do art. 45.º do CAU. É justamente essa documentação que o Requerente não faz nestes autos, o que se lhe impunha para poder ser julgada verificado o requisito do periculum in mora.

Aliás, o Requerente não densifica minimamente, na sua alegação, de que forma os actos suspendendos comprometem as condições de exercício da sua actividade ou o deixam em perigo de insolvência. Nem a prova testemunhal permite concluir positivamente sobre os factos que alega.

Ao contrário, o que se verifica é que pela contratação de nova caução global de desalfandegamento, pelo valor seguro de € 1.500.000,00, em 10-04-2019, o Requerente acordou pagar um prémio de € 15.000,00 (cfr. alínea J) dos factos indiciariamente provados).

Ora, o Requerente não alega nem comprova a falta de meios para fazer face a uma garantia autónoma para a suspensão da execução das imposições aqui em causa, ainda que se possa admitir que tal garantia possa importar em encargos de maior monta, sendo certo que refere uma facturação média anual de valor aproximado de 1,5 M€ - cfr. motivação da decisão da matéria de facto.

E, se os prejuízos exigidos pela lei geral como requisito para o decretamento das providências cautelares são qualificados, isto é, o “fundado receio de constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação”, são ainda mais exigentes os requisitos constantes da lei especial, aduaneira, aplicável ao caso.

Face ao exposto, o Requerente não prova, nos autos, o perigo que invoca, de comprometimento da possibilidade de o Requerente poder continuar a exercer a sua atividade.

Conclui, assim, este Tribunal que não está verificado o primeiro dos requisitos de que a lei faz depender o decretamento da peticionada providência cautelar de abstenção da execução. “ (…)

4. A AT corrobora, pois, a posição assumida na douta sentença sob recurso, de que não ficou provado que haja um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal, conforme exige o n.º 1 do artigo 120.º do CPTA.

5. Na verdade, a Requerente não juntou um único elemento de prova que consubstancie o eventual prejuízo invocado, que deveria colocar em causa a subsistência ou viabilidade da atividade profissional do requerente.

6. Sendo que, da audição das testemunhas, não resultou provada a verificação do “periculum in mora”

7. Ora, determina o artigo 342º do C.C. conjugado com o artigo 114º, nº. 3, alínea g), do CPTA, que o Requerente deverá oferecer prova sumária da existência dos fundamentos do pedido, onde o prejuízo irreparável terá que ser real, nomeadamente demonstração concreta da incapacidade para pagar a fornecedores, trabalhadores etc.

8. Efetivamente, no que tange ao conceito de prejuízo irreparável, o Acórdão n.º 06637/13 de 29 de Janeiro, do TCASUL é liminar referindo o seguinte:

“O legislador recorre a um conceito relativamente indeterminado na norma em exame (prejuízo irreparável), o qual permite a avaliação judicial concreta da natureza do prejuízo (ou dano) invocado, sendo que dano irreparável não é o mesmo que dano de difícil reparação (cfr. artº. 120, n.º 1, alªs. b) e c), do C.P.T.A.), e muito menos o mesmo que prejuízo considerável (cfr. artº. 692, nº.4, do C.P.Civil), ou seja, não basta, pois, que o reclamante alegue e prove o risco de lesão considerável, ou até de lesão de difícil reparação. Antes é necessário que o dano invocado e objecto de prova tenha a característica de irreparável, que não seja susceptível de reparação. Prejuízo esse a analisar de acordo com as regras da experiência comum e segundo um juízo de probabilidade (teoria da causalidade adequada), mais sendo o carácter irreparável do mesmo derivado, desde logo, de uma conjuntura de impossível reparação ou reconstituição da situação existente. “

9. Também não se verifica, a nosso ver, o requisito da aparência do bom direito, já que, ao contrário do que quer fazer crer o recorrente, teve oportunidade de, na fase de desalfandegamento das mercadorias, ter apresentado provas tendentes à aplicação dos métodos de determinação do valor aduaneiro das mercadorias previstos no artigo 74º, evitando, dessa forma a aplicação do método do último recurso.

10. Com efeito, conforme resulta provado pelo depoimento da testemunha Ana Paula Raposo, Subdiretora Geral da AT para a área aduaneira (a partir do minuto 25 da gravação da audiência) é ao particular que compete a iniciativa de apresentar as provas que possibilitem percorrer os métodos de apuramento do valor aduaneiro da mercadoria. Não compete às autoridades aduaneiras procurar no mercado mercadorias idênticas ou similares, mas sim ao particular interessado apresentar as referidas provas,

11. Aliás, conforme resulta do depoimento da testemunha J….. (aos 1h42minutos da gravação da audiência), empregado do recorrente, no âmbito do desalfandegamento de mercadorias contidas em declarações aduaneiras que deram origem aos presentes autos, e, face à manutenção das dúvidas fundadas da alfândega de Setúbal- Delegação Aduaneira de Sines, o ajudante de despachante apresentou mercadorias similares o que determinou a aceitação, por parte das autoridades aduaneiras, do valor aduaneiro declarado e ao consequente desalfandegamento das mercadorias.

12. Em todo o caso, a análise aprofundada do bom direito deverá ser apreciada em sede própria que é ação principal.

13. Concluímos que não estão verificados os pressupostos exigíveis para ser adotada qualquer providência cautelar, dado que:

a) A matéria dada como assente no douto aresto recorrido, no que respeita à não verificação do requisito do “periculum in mora”, não deve ser modificada, antes devendo manter-se intacta, por estar de acordo com os factos.

b) nem tão pouco assiste qualquer direito aparente ou interesse da Requerente que mereça tutela jurisdicional.

Nestes termos e nos demais de direito e com o douto suprimento de V. Exas deve o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, confirmando-se, assim, a douta sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, como é de Direito e de Justiça.”


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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) junto deste Tribunal, emitiu parecer no sentido de improcedência do presente procedimento cautelar.

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Com dispensa de vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, vêm os autos à conferência para decisão.

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II) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida considerou indiciariamente provados os seguintes factos:

A) O Requerente exerce atividade como despachante oficial, nomeadamente na Delegação Aduaneira de Sines da Alfândega de Setúbal – facto não controvertido;

B) No exercício da sua atividade e para desalfandegamento de mercadorias, o Requerente entregou, entre outras, as declarações aduaneiras nº ….., de 2018-10-05; ….., de 2018-10-26, ….., de 2018-10-26, ….., de 2018-10-29, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-05, ….., de 2018-11-09, ….., de 2018-11-09, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-10-26, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, e ….., de 2018-11-12 – cfr. docs. 1 e 6, juntos aos autos com o requerimento inicial, que se dão por reproduzidos;

C) Relativamente às declarações identificadas na alínea B), as autoridades aduaneiras solicitaram, “nos termos do art. 70º do CAU conjugado com o nº 1 do art. 140º do AE-CAU (…) informação adicional relativa ao valor aduaneiro declarado (…) documentação suplementar, tais como (…):
Ø contratos;
Ø packing list separado por adição;
Ø cópia da declaração de exportação presentada no país terceiro;
Ø recibos relativos às despesas de transporte e seguro;
Ø ordens de encomenda;
Ø registos contabilísticos;
Ø correspondência;
Ø recibos de pagamento;
Ø preço de revenda;
Ø quaisquer outros documentos úteis para a correcta determinação do valor aduaneiro”.

– cfr. docs. 5, 6, 7, 8, 9, 10,11, 12,13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24, juntos aos autos com a petição inicial do processo principal, que se dão por reproduzidos;

D) Os serviços aduaneiros informaram o Requerente de que “nos termos do do art.º 195º do CAU, caso se pretenda a concessão de autorização de saída das mercadorias, deve ser prestada uma garantia suficiente para cobrir a diferença entre o montante resultante dos elementos da declaração e aquele a que as mercadorias poderão, em definitivo, ficar sujeitas” - cfr. docs. 5, 6, 7, 8, 9, 10,11, 12,13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24, juntos aos autos com a petição inicial do processo principal, que se dão por reproduzidos;

E) Após análise da documentação apresentada pelo Requerente, “a mesma foi considerada insuficiente para a determinação do correto valor aduaneiro (…) de acordo com o estabelecido no nº 2 do art. 74º do CAU (…) possibilidade de se recorrer, sucessivamente, a métodos secundários (…) no prazo (…) se informe esta Delegação Aduaneira do método que, justificadamente, se pretende aplicar, fundamentando a sua escolha (…) na ausência da conclusão referida no parágrafo anterior, a Administração Aduaneira aplicará o método a que se refere o nº 3 do art. 74º do CAU, procedendo-se à liquidação definitiva da dívida aduaneira e respetiva cobrança. “ - cfr. docs. 5, 6, 7, 8, 9, 10,11, 12,13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24, juntos aos autos com a petição inicial do processo principal, que se dão por reproduzidos;

F) Para exercício do “direito de participação na decisão na modalidade de audição prévia prevista no artigo 22º nº 6 do CAU e no artigo 8º nº 1 do AD-CAU” os serviços aduaneiros informaram o Requerente de que a documentação que este enviara “não foi considerada esclarecedora para a determinação do correto valor aduaneiro da mercadoria (…) dado que os elementos apresentados não justificam o facto do valor faturado das mercadorias se encontra excecionalmente baixo, em comparação com os valores médios da mesma classificação pautal importadas em território nacional nos últimos 6 meses (…) Na impossibilidade da aplicação dos métodos previstos no artigo 70º e nos números 1 e 2 do artigo 74º do CAU, o valor aduaneiro deverá ser calculado através do método previsto no nº 3 do artigo 74º (…) No caso concreto (…) não é exequível a aplicação dos métodos referidos nas alíneas a), b) e c) do parágrafo anterior, uma vez que não existe a possibilidade de aceder às características das mercadorias importadas, o que permitiria obter o valor de mercadorias idênticas ou similares. Por outro lado, constata-se que a descrição dos itens das faturas é demasiado genérica o que impede uma caracterização objetiva.

No que respeita ao método da alínea d), o mesmo não é passível de ser utilizado, porque não existe a possibilidade de apurar os custos das matérias primas e das operações de fabrico, utilizadas para produzir na China as mercadorias importadas (…) informa-se que é intenção desta Estância Aduaneira proceder à liquidação do montante garantido, apurado com base no valor médio nacional para idênticas mercadorias importadas nos últimos 6 meses, retirado o valor declarado, a multiplicar pela taxa aplicável (…)” – cfr. docs. 5, 6, 7, 8, 9, 10,11, 12,13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24, juntos aos autos com a petição inicial do processo principal;

G) Para a saída das mercadorias até fixação de um valor aduaneiro definitivo, o Requerente prestou garantia através da caução global para desalfandegamento nº …..– acordo e doc. 2 junto aos autos com o requerimento inicial;

H) Em 04-12-2018, o Requerente apresentou uma exposição dirigida à Diretora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, respeitante à atuação Delegação Aduaneira de Sines, imputando-lhe práticas discriminatórias no desalfandegamento de mercadorias provenientes da China - cfr. doc. 3, junto aos autos com o requerimento inicial, que se dá por reproduzido;

I) Em 21-03-2019, o Requerente apresentou uma exposição, que designou de “reclamação graciosa necessária, nos termos do artigo 77.º-A do CPPT” – cfr. doc. 1 juntos aos autos com a petição inicial dos autos principais que se dá por reproduzido;

J) Em 10-04-2019, e com efeitos desde 01-04-2019 até revogação, o Requerente celebrou contrato de seguro-caução, na qualidade de tomador, sendo segurado a Autoridade Tributária e Aduaneira, Alfândega de Alverca, e valor seguro € 1.500.00,00, mediante o pagamento do prémio de € 15.000,00– cfr. doc. 5 junto aos autos com o requerimento inicial que se dá por reproduzido;

K) A exposição mencionada na alínea H) foi considerada como uma participação e apreciada pelos serviços, nessa qualidade, com decisão de arquivamento, na vertente disciplinar, e de encaminhamento para duas subdiretoras gerais da AT - cfr. doc. 3, junto aos autos com o requerimento inicial, que se dá por reproduzido;

L) A Alfândega de Setúbal notificou o Requerente da aplicação do “método de último recurso previsto no nº 3 do art. 74º do CAC”, relativamente aos valores constantes das declarações aduaneiras nº ….., de 2018-10-05, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-10-26, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, e ….., de 2018-11-12 e de que iria proceder à cobrança das diferenças – cfr. docs. 25, 26, 27, 28, 29, 30 e 31, juntos aos autos com a petição inicial do processo principal;

M) Em 05-09-2019, o Requerente apresentou neste Tribunal Tributário de Lisboa, a petição inicial de impugnação judicial de fls. 1 e ss. do processo principal, que se dá por reproduzida;

N) Em 02-10-2019, o Requerente apresentou na Alfândega de Setúbal um requerimento solicitando a suspensão da cobrança das dívidas aduaneiras respeitantes às DAU ….., de 2018-10-05, ….., de 2018-10-26, ….., de 2018-10-26, ….., de 2018-10-29, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-05, ….., de 2018-11-09, ….., de 2018-11-09, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-10-26, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02 e ….. , de 2018-11-12, até decisão transitada em julgado sobre a impugnação judicial ou, em substituição, o envio dos títulos de cobrança para o Serviço de Finanças, acompanhado de informação de que as dívidas se encontram garantidas – cfr. doc. 1 junto aos autos com o requerimento inicial;

O) O requerimento identificado no número anterior foi indeferido, com os fundamentos constantes da informação prestada em 28-10-2019, da qual consta, designadamente:

“estabelece o artigo 250.º do Ato Delegado – Código Aduaneiro da União, Regulamento Delegado (UE) 2015/2446 da Comissão, que as autorizações concedidas com base no Regulamento (CEE) n.º 2913/92 ou no Regulamento (CEE) n.º 2454/93 válidas em 1 de maio de 2016 e que não tenham um período de validade limitado devem ser reavaliadas. (…) considerando que a garantia ao abrigo da qual foram apresentadas as DAU em crise (garantia …..) foi prestada ainda ao abrigo do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 289/88, a mesma teria de ser reavaliada por imposição legal. (…) esta obrigação não adveio de poderes discricionários das Autoridades Aduaneiras, mas sim de uma imposição legal. (…)

No que respeita à suspensão da cobrança, cumpre indicar que estabelece o artigo 45.º do CAU que a interposição de recurso não tem efeito suspensivo da execução da decisão impugnada.

Poderão, no entanto, as autoridades aduaneiras suspender, total ou parcialmente, a execução da sua decisão caso tenham motivos fundamentados para pôr em dúvida a conformidade da decisão impugnada com a legislação aduaneira ou que seja de recear um prejuízo irreparável para a pessoa em causa.

No caso sub judice não se verifica a existência de quaisquer dúvidas quanto à conformidade da decisão em causa.

Ademais, não foi (com)provado pelo requerente qualquer situação de prejuízo irreparável.

Concludentemente, não se verifica a existência de qualquer razão que afaste a norma geral do nº 1 do artigo 45º do CAU (…)

Será, ainda, de salientar que a figura da garantia prevista no nº 3 do artigo 45º do CAU não se poderá confundir com a garantia prestada nas liquidações ora em crise (que se encontram garantidas pela garantia global de desalfandegamento nº …..), uma vez que a figura de garantia prevista no nº 3 do artigo 45º do CAU implica a prestação de uma garantia autónoma, garantia que não foi prestada no caso em análise. (…)” – cfr. doc. 2, junto aos autos com o requerimento inicial, que se dá por reproduzido;

P) A Alfândega de Setúbal notificou o Requerente da “aplicação do método de último recurso previsto no nº 3 do art. 74º do CAU”, relativamente aos valores constantes das declarações aduaneiras nº ….., para, “nos termos artigo nº 108º do CAU, procederem, junto à Tesouraria desta Estância Aduaneira, no prazo de dez dias (…) ao pagamento do montante (…) decorrido o prazo de pagamento acima referido, a dívida fica constituída em mora (…) sem obviar à extração de certidão de dívida, a qual servirá de base à instauração do processo de execução fiscal (…) do presente ato de liquidação poderá apresentar reclamação graciosa […] recorrer contenciosamente – cfr. docs. 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24 juntos aos autos com o requerimento inicial e que se dão por reproduzidos;

Q) Em 22-10-2019, o Requerente apresentou pedido de certidão de que as DAU ….., de 2018-10-05, ….., de 2018-10-26, ….., de 2018-10-26, ….., de 2018-10-29, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-05, ….., de 2018-11-09, ….., de 2018-11-09, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-10-26, ….., de 2018-11-02, ….., de 2018-11-02 e ….. , de 2018-11-12, “estão garantidas” – cfr. doc. 6, junto aos autos com o requerimento inicial;

R) Em resposta ao pedido identificado no número anterior, foi emitida certidão mencionando que os mesmos “se encontram garantidos por liquidação provisória, ao abrigo do art. 195º do CAU conjugado com os arts. 89º e seguintes” – cfr. doc. 6-A, junto aos autos com o requerimento inicial;

S) Em 12.11.2019, deu entrada neste Tribunal Tributário de Lisboa o requerimento inicial do processo cautelar, a tramitar como apenso da impugnação judicial nº 2216/19.7BELRS – cfr. fls. 1 e ss. dos autos de processo cautelar.


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A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Com relevância para a decisão a proferir, segundo as plausíveis soluções de Direito, não se provou que o Requerente fique em situação de não conseguir fazer face aos compromissos financeiros normais da actividade, por efeito da cobrança das liquidações em crise, ou por efeito da prestação de garantia autónoma para a suspensão da respetiva execução.

Não se provam os demais factos alegados pelas partes com relevância para a decisão do processo que não foram inscritos na matéria de facto indiciariamente provada.


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A motivação da decisão sobre a matéria de facto assentou no seguinte:

“A decisão do Tribunal relativa à prova indiciária da matéria de facto supra elencada baseou-se no exame crítico dos documentos juntos aos autos, os quais não foram impugnados, bem como na posição assumidas pelas partes nos seus articulados, conforme referido em cada alínea do probatório, bem como do depoimento das testemunhas arroladas pela impugnante, que decorreu de forma consistente, segura e credível, contudo insuficientes para provar os factos integradores do periculum in mora, referindo-se genericamente ao modo de funcionamento da delegação aduaneira de Sines e às circunstâncias que, na sua opinião, levaram a uma diminuição do movimento de contentores no porto de Sines.

A testemunha A….., Sub-Diretora Geral da ATA, esclareceu o tribunal acerca dos procedimentos relativos ao regime aduaneiro em causa, desde a submissão electrónica da declaração aduaneira (DAU), ao sistema de análise de risco que funciona de forma automática e que seleciona as declarações a controlar documentalmente ou fisicamente. Afirmou que as mercadorias só podem ser desalfandegadas desde que a dívida alfandegária esteja paga ou garantida no âmbito da caução global de desalfandegamento. Esclareceu que sempre que se coloquem dúvidas quanto ao valor transacional das mercadorias, a ATA deve pedir esclarecimentos ao importador, o qual deve apresentar documentação diversa da que apresentou com o DAU.

A testemunha J….., ajudante de despachante e funcionário do Requerente em Sines, afirmou que requerente abriu um escritório em Sines em 2018 e admitiu mais uma funcionária, dado o aumento de serviço. Declarou que actualmente trabalham menos funcionários na empresa do que em 2018, uma vez que tiveram que reduzir custos.

No que tange à retenção de contentores na delegação aduaneira de Sines, explicitou que um contentor pode levar média 2 ou 3 dias a desalfandegar e que em Sines podia demorar 1 mês ou um mês e meio, o que implica um aumento de custos de paralisação e armazenagem, que são as rubricas debitadas pelas agências de navegação. Concluindo que tal circunstância originou perdas e que dezenas de clientes se deslocaram para outros países.

Esclareceu que, assim que é recebida a documentação referente às mercadorias é feito o DAU que é submetido electronicamente, com base na documentação enviada pelo cliente (por ex. factura, packing list), que o preço das mercadorias tem relação com a qualidade do produto. E que o mesmo produto com a mesma classificação pautal pode ter valores muito diferentes, não tendo o despachante não tem condições para perceber o valor exacto das mercadorias.

Afirmou que, no caso dos autos foi questionado o valor das mercadorias e solicitado ao requerente, documentação como sales contract, packing list, fotografias, comprovativo de pagamentos e que, houve situações de verificação documental e outros em que houve verificação física das mercadorias.

Declarou que em 2018 se acumularam 54 despachos relativos a contentores retidos na alfândega de Sines, tendo alguns estado 4 ou 5 semanas parados, o que implica um custo de 4 ou 5 mil euros por contentor imobilizado.

A testemunha M….., Diretor Comercial, trabalha para uma empresa que é transitário e despachante e conhece um funcionário do Requerente, tem conhecimento do caso Shenale, porque é sua cliente, que teve que ver com valorização de mercadorias pelos serviços aduaneiros através da utilização de tabelas secretas da OLAF e que deram origem a bloqueio de mercadorias. Declarou consequentemente o serviço em Sines diminuiu 50% e que os clientes que não cessaram a actividade estão a fazer as importações através da Holanda.

A testemunha J….., é Gestor Armazém da S….., Lda, da qual o Requerente é cliente.

Declarou que, no ano de 2014 em Sines se estava no pico das importações da China, contudo a partir do final de 2014 o negócio deslocalizou-se, nomeadamente para França. Que relativamente à importação de mercadorias não há um comportamento uniforme em todos os países do espaço europeu e que, em Sines se criaram constrangimentos no que tange ao desalfandegamento de mercadorias que não existem por exemplo na Bobadela.

Declarou ainda, que se apercebeu dos atrasos relativos à retenção dos contentores no porto de Sines e que, em 2019 o porto de Sines perdeu 22% do movimento de carga contentorizada, ou seja, 400 mil contentores.

A testemunha A….., ajudante de despachante e funcionário do Requerente desde 2013, declarou que, antes de trabalhar com o Requerente tem experiência em idas à China para comprar mercadorias, afirmando que os comprovativos da operação são o comprovativo de pagamento, o contrato e o despacho que é feito na China, não há mais documentos que demonstrem o valor do negócio. Acrescentou que, na sua opinião, se os valores em causa nestes autos forem cobrados a consequência seria a insolvência.


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III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, o Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente a presente providência cautelar por entender que o pedido do Recorrente se revela infundado quanto ao periculum in mora e bem assim à ponderação de interesses enquanto critérios de decisão previstos no artigo 120.º do CPTA.

Antes de proceder à análise das questões supra identificadas, e por forma a percecionar-se, com clareza, qual o âmbito da presente lide, uma vez que já foi objeto de anterior Acórdão, importa convocar o que por nós já foi, definitivamente, decidido no anterior Aresto, estando, portanto, consolidado na ordem jurídica:
ü O ato objeto do presente pedido cautelar é, o ato que determinou a cobrança de direitos aduaneiros, porquanto essa cobrança o coloca em risco de insolvência;
ü Aplicação subsidiária do regime cautelar previsto no CPTA, como forma de dar cumprimento ao imperativo constitucional contemplado no artigo 268.º, nº4 da CRP, e face à interpretação conjugada dos artigos 97.º e 147.º, do CPPT, com a redação à data da interposição da presente providência cautelar, e bem assim em ordem ao consignado no artigo 136.º do CPC;
ü Face à lei adjetiva aplicável, para ver deferida a sua pretensão cautelar, o Recorrente teria de articular e provar, embora de forma sumária, o preenchimento de três requisitos (artigo 120º do CPTA):
o  Haver fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que ele visa assegurar no processo principal periculum in mora;
o  Ser provável que a pretensão formulada, ou a formular, nesse processo principal, venha a ser julgada procedente fumus boni iuris;
o  Mesmo que verificados estes dois requisitos, a adoção da providência cautelar é recusada se, ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.
ü Verificado o fumus boni iuris, na vertente positiva da aparência do direito, tendo sido expendida a seguinte fundamentação jurídica:
“[c]ontrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, e convocando, desde logo, a Jurisprudência deste Tribunal é provável que a pretensão formulada no processo principal pelo Requerente seja julgada procedente.
Senão vejamos.
Importa, desde já, relevar que anuímos com a inexistência, pelo menos numa análise perfuntória, da falta de objeto. (…)
“[n]ão poderia o Tribunal a quo, de forma conclusiva -limitando-se a transcrever o juízo de entendimento da Recorrida- a dar como adquirido e a aderir ao entendimento propugnado pela Entidade Recorrida, o qual, como é consabido, é controvertido e constitui o cerne da questão a dilucidar na ação principal.
Com efeito, importaria que o Tribunal a quo, ainda que numa análise sumária e perfuntória, afastasse a, alegada, possibilidade de recurso a métodos alternativos, mormente, de mercadorias similares.
Ademais, como o Recorrente sustenta os artigos em causa são calçado e têxteis de baixo valor, pelo que -desde logo, face às regras da experiência- não se afigura plausível que não seja possível o confronto com bens similares. Note-se que, relativamente a esta realidade fática e específica dos materiais e bens em contenda, a Recorrida, na sua oposição, nada refutou.
Acresce que, no caso o Recorrente foi notificado para apresentar os contratos, packing list separado por adição; cópia da declaração de exportação presentada no país terceiro, recibos relativos às despesas de transporte e seguro, ordens de encomenda, registos contabilísticos, correspondência, recibos de pagamento, preço de revenda, e o mesmo, de forma a colaborar inteiramente com a determinação do valor e demonstrar a sua conformidade com o valor declarado, cumpriu com essa instrução.
Mais importa ter presente que as mercadorias foram objeto de retenção por um período significativo de tempo-conforme resulta do probatório, não sendo, de resto, controvertido- donde, inferir-se-á que era viável e exequível a inspeção das mercadorias.
De resto, conforme é entendimento deste Tribunal, os critérios de fixação do valor aduaneiro de uma mercadoria são sequenciais, com um nexo de subsidiariedade, daí que o valor aduaneiro não possa ser fixado com base numa disposição sem que a precedente tenha sido excluída por impossibilidade de o determinar, sendo de sublinhar, que esta impossibilidade tem de ser absoluta e não meramente relativa.
Neste âmbito, importa convocar o Aresto deste Tribunal proferido no processo nº 02297/17.8, de 18 de outubro de 2018, o qual se entende transponível para o caso dos autos, ainda que o mesmo se reporte ao CAC e nos presentes autos seja aplicável o CAU, visto que as redações em causa são idênticas, sendo a ratio legis subjacente, necessariamente, a mesma, transcrevendo-se, nessa medida, os excertos que se reputam relevantes para o caso em apreço:
“Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, os mecanismos aduaneiros da União visam o estabelecimento de um sistema equitativo, uniforme e neutral, que exclua a utilização de valores aduaneiros arbitrários ou fictícios e que permita que seja refletido no valor aduaneiro definitivamente fixado o valor real da mercadoria importada, tendo em conta todos os elementos dessa mercadoria que representem um valor económico.
O critério prioritário para a fixação do valor da mercadoria importada deverá ser o do seu valor transacional, entendido como o valor efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias quando as mesmas são exportadas com destino ao território da União Europeia. Dito de modo mais simples, o valor transacional mais não é do que o preço real do contrato de compra e venda da mercadoria no país exportador, celebrado entre o importador (comprador) e o exportador (vendedor), sem embargo desse valor transacional poder ser ajustado nos termos do artigo 32.º do CAC .
Mas quando não for possível determinar 0 valor transacional – por não ser possível apurá-lo ou por ter sido rejeitado- e, consequentemente, o valor aduaneiro nos termos do art.º 29.º do CAC, com eventuais ajustamentos nos termos dos artigos 32.º e 33.º do CAC, o valor aduaneiro das mercadorias importadas deverá ser efetuado com base em métodos substitutivos, segundo a sequência estabelecida nas alíneas a) a d) do n.º 2 art.º 30.º do CAC.
O primeiro método a aplicar será então o método comparativo, que comporta dois critérios, ambos relacionados com o valor transacional, o relativo a mercadorias idênticas (primeiro critério) e o que respeita às mercadorias similares (segundo critério).
Segue-se o método dedutivo, previsto no art.º 30.º n.º 2 alínea c) do CAC e desenvolvido no artigo 152.º das DADAC.
Não sendo possível apurar o valor aduaneiro da mercadoria por recurso a este método, há que convocar o método seguinte, o método do valor calculado.
O método do valor calculado está consagrado no art.º 30.º, n.º 2, alínea d) do CAC e no artigo 153.º das DADAC. Neste caso o valor aduaneiro é determinado a partir dos elementos constitutivos do preço, comunicados pelo fabricante da mercadoria.
Se, ainda assim, não for possível fixar o valor aduaneiro este será então estabelecido através de um método residual, de última instância ou método de último recurso, previsto no art.º 31.º do CAC.
Resulta deste regime que os critérios de fixação do valor aduaneiro de uma mercadoria são sequenciais, apresentando entre si um nexo de subsidiariedade, não podendo o valor aduaneiro ser fixado com base numa disposição sem que a precedente tenha sido excluída por impossibilidade de o determinar.
Entendemos que esta impossibilidade tem de ser absoluta e não meramente relativa. Com efeito, não basta uma mera dificuldade, muito menos abstrata, encontrada na aplicação de um critério para justificar o abandono do mesmo e a passagem para o seguinte e assim sucessivamente. Tal procedimento não pode deixar de ser entendido como violador das disposições do CAC que regulam a fixação do valor aduaneiro, visto que a interpretação dessas normas à luz dos demais dispositivos com os quais devem ser concatenadas, quer do próprio CAC, quer das DACAC e anexos, não deixa margem para quaisquer dúvidas.
A aplicação do método do último recurso previsto no art.º 31.º do CAC, sem que esteja cabalmente esgotada a possibilidade de aplicação de algum dos métodos anteriores não pode, pois, deixar de reputar-se violadora do disposto no artigos 29.º e 30.º do CAC e do princípio do valor aduaneiro dever ser equivalente ao valor transacional.
Retenha-se que, atualmente, na esteira da doutrina de Dworkin, é dominante o entendimento de que os princípios são proposições jurídicas, são standards equivalentes às normas, que apenas diferem destas quanto ao modo da sua aplicação.
Consequentemente, a conduta de uma autoridade aduaneira que não respeite, justificadamente, o mecanismo previsto nos dispositivos do CAC acima referidos, nem os princípios que dominam o ordenamento jurídico-aduaneiro da União, e que avance sem delongas, optando pelo atalho ou caminho mais fácil do método do último recurso, não pode deixar de ser considerada, indubitavelmente, como ilícita.
No caso vertente a recorrente argumenta que aplicou paulatinamente os métodos previsto no art.º 30.º, n.º 2, do CAC, e depois de os analisar rejeitou-os por falta de aplicabilidade ao caso vertente [conclusão f)]. É um argumento que, salvo o devido respeito, não convence e que por isso não pode merecer a nossa concordância.
Se bem percebemos o argumento, basta a mera impossibilidade abstrata para justificar a aplicação sequencial das alíneas a) a d) do n.º 2 do art.º 30.º para de imediato se lançar mão do mecanismo do art.º 31.º do CAC. Mas não é assim como já se acentuou.
A impossibilidade de utilização sequencial dos critérios plasmados no art.º 30.º, n.º 2, tem de ser concreta, isto é, só perante uma impossibilidade casuisticamente demonstrada de utilizar o primeiro critério é que se poderá avançar para o segundo e assim sucessivamente, até se esgotarem todas as hipóteses concedidas pelo normativo.
E só perante o esgotamento de todas essas hipóteses é que a autoridade aduaneira poderá convocar o disposto no art.º 31.º, n.º 1, tendo sempre presente que a determinação do valor aduaneiro das mercadorias não pode infringir o disposto no n.º 2 do mesmo artigo.
É que, como já se referiu, o princípio basilar, a trave mestra deste regime é de o valor aduaneiro dever ser tendencialmente equivalente ao valor transacional das mercadorias importadas, o que implica a sua determinação concreta por métodos consistentes que tenham em consideração as circunstâncias particulares de cada caso. E só quando se constate que estes não permitem chegar a uma conclusão segura é que poderão ser convocados os referenciais previstos no artigo 31.º, n.º 1, do CAC.
(…) Como decorre linearmente do n.º 2, o procedimento de revisão comporta atos materiais de controlo, que podem ser efetuados junto do declarante, de qualquer pessoa direta ou indiretamente interessada profissionalmente nas citadas operações ou de qualquer outra pessoa que, pela sua qualidade profissional, esteja na posse dos pertinentes elementos.
Tem por isso razão a sentença quando afirma que a AT poderia indagar junto das feiras do preço de venda do calçado da recorrente introduzido em livre prática ou de calçado idêntico ou similar.
De facto, é comummente sabido que o tipo de calçado em causa é vendido ao público a preços irrisórios em feiras e mercados; por isso, neste tipo de mercadorias e considerando a sua proveniência (China), o problema não está, tanto, no valor pago pelo importador pela mercadoria no país exportador mas acima de tudo nas práticas de dumping e de subvenção estatal, que baixam artificialmente o preço das mercadorias e cujo combate se faz em várias frentes, não só pela via aduaneira.
O dumping é um termo usado no contexto do comércio internacional (mas não só), significando a comercialização no mercado importador de produtos estrangeiros a preços abaixo do custo de produção no mercado exportador. Como envolve, em regra, volumes substanciais de exportação de uma mercadoria, pode colocar em risco a viabilidade económica dos produtores dessa mercadoria no mercado importador. Tem, por isso, um alcance mais vasto e mais duradouro do que o mero benefício económico imediato. (…)
Na situação sub juditio, não se tratando de um caso de dumping– pelo menos não foi suscitada essa hipótese -, então não colhe o argumento do baixo preço do calçado para justificar a aplicação do art.º 31.º do CAC. Bem vistas as coisas, a vantagem financeira obtida com uma menor tributação aduaneira seria sacrificada com o aumento da carga tributária sobre o lucro, que necessariamente teria uma margem maior, para compensar a diferença entre o preço real de importação e o preço fictício (inferior) declarado.
Por outro lado, os argumentos aduzidos no relatório, sobre a impossibilidade de avaliar o valor transacional de mercadorias idênticas ou similares ou o valor representativo dos custos de fabrico, lucro e despesas gerais, também não colhem visto que esses argumentos partem de uma premissa que já se considerou ser inaceitável, isto é, partem de um raciocínio abstrato de impossibilidade de apuramento do valor transacional e não de uma constatação concreta que requereria, como de resto o art.º 78.º impunha, operações materiais de averiguação de preços de mercadorias idênticas ou similares introduzidas no mercado em regime de livre prática.
Aliás, como sublinha a sentença, a inspeção nem sequer solicitou amostras das mercadorias em causa à recorrente e, acrescentamos nós, outros elementos que pudessem contribuir para a determinação do valor transacional, como de resto impõe o art.º 78.º do CAC e as normas aduaneiras do GATT, que infra, e com mais detalhe, se referirão.
Não tem, portanto, qualquer fundamento a afirmação de ser impossível avaliar o valor transacional de mercadorias idênticas ou similares, desde logo pela singela razão da inspeção “desconhecer” fisicamente a mercadoria a comparar.
Concluiu-se, assim, que a passagem per saltum ao método do último recurso foi ilegal, como de resto já se tinha salientado.” (destaques e sublinhados nossos).
Nesta medida, e contrariamente ao ajuizado pelo Tribunal a quo, mostra-se possível concluir, perfunctoriamente, pela aparência do direito, sem necessidade de produção de prova testemunhal nesse e para esse efeito. Noutra formulação, entende-se provável que a ação principal venha a ser julgada procedente.
De relevar, in fine, que o Acórdão do TJUE C-291/15, de 16 de junho de 2016, citado pelo Tribunal a quo, tem na sua génese uma situação de falta de colaboração com a Entidade Aduaneira[1], demitindo-se a Requerente do seu dever de colaboração, o que, atenta a matéria indiciariamente provada, não sucedeu no caso vertente.
Sem embargo do exposto, importa, ainda, ter presente que atentando na factualidade indiciariamente provada as razões invocadas pela Entidade Aduaneira para a insusceptibilidade de recurso aos métodos consignados no artigo 74.º do CAU, representam juízos conclusivos, sem a devida explicitação de quais os fundamentos que determinaram a assunção de tal conclusão, o que, perfuntoriamente, também levaria a equacionar a procedência do vício formal de falta de fundamentação.”

Face ao supra aludido, ficou por decidir o periculum in mora e a ponderação subsequente de interesses públicos e privados, porquanto a sua apreciação, enquanto requisito negativo, se encontrava dependente da verificação, a montante, dos outros dois requisitos positivos (periculum in mora e o fumus boni iuris)[2].

Feito este introito, e tendo presente que, em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, importa, assim, decidir se:
Ø A decisão recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia;
Ø O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de facto, em face de ter valorado erroneamente a prova produzida nos autos, mormente a factualidade julgada não provada, a qual deveria constar como provada;
Ø A decisão incorreu em erro de julgamento de direito ao julgar inverificado o periculum in mora e a ponderação de interesses.

Comecemos, então, pela nulidade por omissão de pronúncia.

A Recorrente começa por defender que, requereu, ainda que subsidiariamente, que o Tribunal a quo procedesse ao envio do processo de cobrança ao Serviço de Finanças da residência fiscal do requerente, para efeitos de acerto na garantia, e sobre essa questão inexistiu qualquer pronúncia o que inquina, desde logo, a decisão recorrida de nulidade, nos termos do artigo 125.º nº 1 do CPPT.

Mais aduz que, não podendo as liquidações de direitos e imposições aduaneiras alegadamente devidas pela importação, quanto às diferenças entre o valor declarado às autoridades aduaneiras e o valor por estas fixado, ser cobradas enquanto não forem registadas, porquanto o registo é condição de exigibilidade da dívida aduaneira e de eficácia externa, então o Tribunal a quo ao não se pronunciar sobre a aludida questão incorreu em nova omissão de pronúncia.

Vejamos, então.

A propósito da omissão de pronúncia dispõe o artigo 125.º do CPPT, nº1, do CPPT que constitui nulidade a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar.

Preceituando, por seu turno, a primeira parte da alínea d), do nº 1, do artigo 615.º do CPC, que a decisão é nula, quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Na verdade, a nulidade da decisão por omissão de pronúncia sucede apenas quando a mesma deixe de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes, salvo se a decisão tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra questão submetida à apreciação do Tribunal.

Dir-se-á, neste particular e em abono da verdade que, as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. De notar para o efeito que, as questões não são passíveis de qualquer confusão conceptual com as razões jurídicas invocadas pelas partes em defesa do seu juízo de valoração, porquanto as mesmas correspondem a simples argumentos e não constituem questões na dimensão valorativa preceituada no citado normativo 615.º, nº 1, alínea d), do CPC.

Conforme doutrinado por ALBERTO DOS REIS “[s]ão, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”[3].

Vejamos, então.

Atentando na parte final do requerimento inicial e, particularmente, no pedido final- ainda que forma pouco clara- o Requerente peticiona o seguinte: “Termos em que se requer sejam a Exma Senhora Directora da AT e o Senhor Director da Alfândega de Setúbal intimados a abster-se de procederem à cobrança das dívidas aduaneiras, conexas com os DAUs relacionados com os autos principais (incluindo no articulado superveniente), sem prejuízo do processo de cobrança ser enviado ao Serviço de Finanças da residência fiscal do requerente, para efeitos de acerto de garantia”.

Ora, da leitura conjugada da p.i., mormente, do item referente à existência de garantia e do pedido final supra transcrito dimana, ainda que com pouca clareza e alguma imprecisão, que o Requerente pretendia que o Tribunal a quo, subsidiariamente, caso entendesse que a providência cautelar não poderia lograr provimento se remetesse o processo ao órgão da execução fiscal para, eventual, prestação adicional de garantia.

E, de facto, atentando no teor da decisão recorrida inexiste qualquer pronúncia sobre o aludido pedido, é certo que a mesma poderá não se circunscrever no âmbito da presente lide e bem assim no âmbito das competências do Tribunal, mas a verdade é que representando uma questão autónoma e não se encontrando prejudicada pela solução dada a outras, sempre o Tribunal a quo estava vinculado a pronunciar-se sobre a mesma. E por assim ser, procede a arguida nulidade por omissão de pronúncia, impondo-se, por isso, dela conhecer, em substituição, ao abrigo do disposto no artigo 665.º, nº1 do CPC.

Ab initio, importa relevar que o facto de se entender que o Tribunal a quo deveria ter emitido pronúncia, ainda que sumária, sobre a aludida questão em nada permite retirar que o mesmo incorreu em erro de julgamento, bem pelo contrário atento o objeto da presente lide.

Conforme já devidamente evidenciado e delimitado no anterior Aresto prolatado por este Tribunal, o ato objeto do pedido cautelar é o ato que determinou a cobrança de direitos aduaneiros, porquanto essa cobrança, alegadamente, o coloca em risco de insolvência.

Pelo que, como é bom de ver, não se encontra abrangido pelo âmbito da presente providência o aludido pedido de remessa do processo para o órgão da execução fiscal para apreciação de, eventual, reforço ou prestação adicional de garantia.

Noutra formulação, dir-se-á que, não compete nos presentes autos qualquer dilucidação sobre a idoneidade e suficiência de garantia, e necessariamente, não impende qualquer obrigação por parte do julgador de remeter o processo ao órgão executivo por forma a aquilatar de qualquer, eventualidade, de reforço ou prestação de nova garantia.

Aliás, é o próprio Requerente que reconhece o alcance e a delimitação da lide, sublinhando, de forma cristalina, que o periculum in mora ter-se-á de aferir por reporte à cobrança dos atos de direitos aduaneiros e não por referência à prestação de garantia.

De todo o modo, sempre se dirá que ajuizando o Requerente que ocorreu uma superveniente inidoneidade da garantia prestada, então qualquer questão coadunada com a mesma pode/deve ser tratada junto do órgão competente, sendo que a ulterior decisão essa, sim, e em caso de ser negada a pretensão demandada, pode ser objeto de discussão judicial. Note-se, de resto, que é o próprio Requerente que evidencia e bem que o citado artigo 45.º do CAU se dirige às entidades administrativas competentes.

E por assim ser não incorreu o Tribunal a quo no erro de julgamento que lhe é assacado.

No concernente à outra omissão de pronúncia reportada à falta de apreciação da questão inerente ao registo, mormente quanto à circunstância de o mesmo ser condição de exigibilidade da dívida aduaneira e de eficácia externa, a mesma não procede porquanto não se afigura que tal questão tenha sido convocada para efeitos de periculum in mora e bem assim de ponderação de interesses, como visto, as únicas questões que ficaram por dirimir.

De todo o modo, e sem embargo do exposto, sempre importa sublinhar que não compete na presente lide tecer considerações finais acerca da legalidade dos atos impugnados, apenas realizar um juízo sumário e perfuntório, sendo que quanto a este, concretamente ao fumus boni iuris, e conforme já evidenciado anteriormente, a questão inerente ficou, definitivamente, decidida por este Tribunal aquando da prolação do anterior Acórdão e, natural e necessariamente, acatada pelo Tribunal a quo quando elaborou a nova decisão, ora, sindicada.

E por assim ser improcede a aludida omissão de pronúncia.

Atentemos, ora, no erro de julgamento, quer de facto, quer de direito.

Comecemos pelo erro de julgamento de facto. Se o que está em causa é o Tribunal a quo ter errado o seu julgamento de facto, cumpre ter em conta a tramitação processual atinente à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Para o efeito, importa começar por aferir se a Recorrente cumpriu os requisitos consignados no artigo 640.º do CPC.

Preceitua o aludido normativo que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Com efeito, no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de primeira Instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao Recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Tem, por isso, de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adotada pela decisão recorrida ou o aditamento de novos factos ao acervo probatório dos autos[4].

No concernente à observância dos requisitos constantes do citado normativo relativamente à prova testemunhal , após posições divergentes na Jurisprudência, mormente, na Jurisdição Comum o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que “[e]nquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.” [5]

Note-se que, a indicação exata das passagens de gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo, naturalmente, do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, conforme decorre do artigo 662.º do CPC[6], aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT.

Dir-se-á, portanto, que o que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do artigo 640.º do CPC[7].

In casu, conforme se extrai do teor das alegações recursivas e suas conclusões, a Recorrente impugnou a matéria de facto relativamente à factualidade não provada, tendo cumpriu o ónus a que estava adstrita.

No caso vertente, a Recorrente requer que a factualidade não provada consubstanciada na seguinte enunciação “não se provou que o Requerente fique em situação de não conseguir fazer face aos compromissos financeiros normais da atividade, por efeito da cobrança das liquidações em crise” seja considerada provada, convocando, para o efeito, o teor do depoimento da testemunha A….. e respetivos excertos reputados relevantes, sublinhando, outrossim, que tal inferência resulta, igualmente, do simples confronto dos valores em presença.

Mais evidenciando que a conclusão de que “nada se comprova nos autos quanto ao justo receio de lesão irreparável, nem sequer logra o Requerente comprovar ficar numa situação de facto consumado ou a verificação de prejuízos de difícil reparação” não pode lograr provimento, porquanto a insolvência é a maior “lesão irreparável”.

Até porque, adensa que o risco existente de insolvência não é suscetível de quantificação pecuniária precisa, não sendo facilmente avaliadas ou quantificadas as lesões – como do desemprego de trabalhadores, a perda da reputação comercial, etc. - que o Requerente virá a sofrer se a cobrança prosseguir.

Vejamos, então.

O Tribunal ad quem, procedeu à audição integral do depoimento convocado, e contrariamente ao sustentando pelo Recorrente do seu teor não se retira que por efeito da cobrança dos direitos aduaneiros em crise fique em situação de não conseguir fazer face aos compromissos financeiros normais da atividade, logo que tal determine a sua insolvência.

Com efeito, atentando no depoimento da aludida testemunha o mesmo redundou num juízo opinativo, eminentemente conclusivo e sem a substanciação fática que ao caso se impunha.

No concernente aos prejuízos que adviriam da cobrança dos direitos aduaneiros em discussão no processo principal, o mesmo limitou-se a enunciar que em sua opinião “seria mau, seria a insolvência de certeza”, e quando instado pelo Ilustre Mandatário acerca dos despachantes poderem ter prejuízos e com isso continuar a atividade, sublinhou que seria muito difícil.

Ora, como é bom de ver, para efeitos de prova da ocorrência da insolvência seria curial que esse depoimento fosse absolutamente inequívoco, que atestasse por confronto com os recursos humanos, faturação, pagamentos e diretrizes e meandros de atividade de que forma a cobrança dos direitos aduaneiros inviabilizariam a continuação da atividade.

Note-se, ademais, que para efeitos de prova da aludida insolvência é manifestamente insuficiente o depoimento de uma só testemunha-quando para mais foram ouvidas mais quatro testemunhas que em nada relevaram para este concreto particular- como visto, demasiado conclusivo.

É certo que a testemunha apresenta um discurso mais fluido e um pouco mais substanciado quando aborda a questão atinente à sua experiência nos mercados da China, e na documentação que reputava relevante para o efeito, porém, como é bom de ver, tais realidades em nada permitem inferir prejuízos irreparáveis e a existência de uma situação de facto consumado -no caso a insolvência- que, como visto, era a prova que relevava para o caso vertente.

Mais importa relevar que, contrariamente ao aduzido pelo Recorrente não se vislumbra de que forma é que o mero confronto de valores permite concluir pela existência de uma situação de facto consumado, no caso a insolvência.

O Tribunal ad quem não descura que no seu requerimento inicial o Requerente alude que a dimensão, média, da atividade do Requerente, cuja mesa de despacho conta com 18 empregados e tem uma faturação anual de 1.465.285,56€, manifestamente não lhe permitirá, ainda que temporariamente, suportar o pagamento a breve trecho das imposições em processo de cobrança objeto dos presentes autos, e que tal é um facto notório, mas como é bom de ver, tais realidades em nada podem consubstanciar factos notórios, carecendo, de uma concreta e completa dilucidação casuística da questão. Daí que, o Tribunal ad quem, tenha mandado baixar os autos para a cabal demonstração de tal realidade fática.

Acresce, outrossim, que para se considerar provada tal realidade era vital que da prova produzida, concretamente, da prova documental e da prova testemunhal-a qual, como já evidenciado, tinha de ser inequívoca e devidamente esclarecida e substanciada em termos fáticos, com contextos perfeitamente delimitados espácio-temporalmente-, se concluísse que a insolvência seria eminente caso ocorresse a cobrança dos direitos aduaneiros, o que, como visto, não sucedeu no caso vertente.

Note-se, neste expresso particular, e em sentido consonante com o defendido pela Recorrida, o Recorrente não juntou um único documento que consubstancie a constituição de uma situação de facto consumada, ou seja, que ateste que a cobrança dos direitos aduaneiros poderá colocar em causa a subsistência ou viabilidade da atividade económica do Requerente.

E por assim ser, indefere-se o requerido aditamento por substituição da factualidade tida por não provada, mantendo-se a mesma nos exatos termos decretados pelo Tribunal a quo.

Ora, aqui chegados estabilizada a matéria de facto com a evidência de que não resulta provado “que o Requerente fique em situação de não conseguir fazer face aos compromissos financeiros normais da atividade, por efeito da cobrança das liquidações em crise, ou por efeito da prestação de garantia autónoma para a suspensão da respetiva execução”, dirimida que fica a questão atinente ao periculum in mora e à sua demonstração.

Senão vejamos.

Ab initio, importa relevar que o periculum in mora, é configurado em duas vertentes, ou seja, quando com a não adoção da providência haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado e quando haja fundado receio de, se a providência vier a ser recusada haver a possibilidade de se produzirem prejuízos de difícil reparação, para os interesses que o Requerente visa assegurar no processo principal.

Para efeitos de densificação dos aludidos conceitos, convoque-se o entendimento de Mário Aroso de Almeida[8], o qual doutrina que o único sentido que pode ser atribuído à expressão “facto consumado” coaduna-se com “[o]s factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio de que, se a providência for recusada, se tornará depois impossível, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente, proceder à reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade”, enunciando, outrossim, que a vertente de prejuízos de difícil reparação se terá de ater nas “[s]ituações em que a providência é necessária para evitar o risco da infrutuosidade da sentença a proferir no processo principal o critério não pode ser, portanto, o da susceptibilidade ou insusceptibilidade da avaliação pecuniária dos danos, mas tem de ser o da viabilidade do restabelecimento da situação que deveria existir se a conduta ilegal não tivesse tido lugar.”.

Ainda em termos de densificação dos conceitos, importa chamar à colação o entendimento de José Carlos Vieira de Andrade[9],  “O juiz deve, pois, fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deveria beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua esfera jurídica. Neste juízo, o fundado receio há-de corresponder a uma prova em princípio a cargo do requerente, de que tais consequências são suficientemente prováveis para que se possa considerar “compreensível ou justificada” a cautela que é solicitada.”.

In casu, como visto, a prova do periculum in mora, circunscreve-se no plano do facto consumado, face à alegada insolvência do Recorrente.

Portanto, circunscrevia-se na esfera do Requerente, ora Recorrente, alegar e demonstrar factualidade que permita a formulação de um juízo sobre o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado para os interesses que o mesmo visa assegurar no processo principal.

Mas, a verdade é que face ao já expendido e ao campo atinente à factualidade não provada, não resulta demonstrada a sua imediata insolvência, donde a necessária demonstração fática que permita a formulação de um juízo e uma convicção que pende para a sua relevância no âmbito de um fundado receio de constituição de uma situação de facto consumado.

Com efeito, os factos assentes e a prova testemunhal e documental produzida não são de molde a demonstrar uma ambiência de fragilidade financeira do Recorrente, não se ficando, pois, com a convicção de que a cobrança dos valores aduaneiros determine o incumprimento das suas obrigações financeiras e, a breve trecho, a sua insolvência. No fundo, não foi feita prova do fundado receio para que se possa considerar “compreensível ou justificada” a cautela que é solicitada.

Neste particular, vide, designadamente, o acórdão do STA, proferido no processo nº 0435/18, de 14 de junho de 2018, o qual doutrina: "o «periculum in mora» constitui verdadeiro leitmotiv da tutela cautelar, pois é o fundado receio de que a demora, na obtenção de decisão no processo principal, cause uma «situação de facto consumado ou prejuízos de difícil ou impossível reparação» aos interesses perseguidos nesse processo que motiva ou justifica este tipo de tutela urgente. Efectivamente, na linha da jurisprudência deste Supremo Tribunal, a decisão do processo principal pode já não vir a tempo de dar resposta às situações jurídicas envolvidas no litígio, ou porque a evolução da situação durante a pendência do processo «tomou a decisão totalmente inútil», ou porque essa evolução levou à «produção de danos dificilmente reparáveis». No primeiro segmento alternativo, estaremos em face de uma situação de «facto consumado». Como já disse este tribunal, «o facto será havido como consumado por referência ao fim a que se inclina a lide principal, de que o meio cautelar depende; e isto significa que só ocorre uma situação de facto consumado quando, a não se deferir a providência, o estado de coisas que a acção quer influenciar ganhará entretanto a irreversível estabilidade inerente ao que já está terminado ou acabado - ficando tal acção inutilizada ex ante». Já no segundo segmento alternativo, a demora da acção principal não retira, de todo, utilidade a esta lide, todavia, há o fundado receio de que provoque «danos de difícil reparação», nomeadamente porque a sua indemnização pecuniária, ou a reconstituição da situação, ou, de um modo geral, a reintegração da respectiva legalidade, não é capaz de os reparar, ou, pelo menos, de os reparar integralmente."

É certo que o Recorrente evidencia que o Tribunal a quo colocou, erradamente, o acento tónico do periculum in mora na prestação de caução e na falta de demonstração que a mesma poderia levar à alegada, insolvência, quando o busílis do periculum in mora se teria de ater à própria cobrança dos atos de liquidação em discussão no processo principal.

E, é certo, outrossim, que face à demarcação da lide e ao objeto dos presentes autos e à concreta delimitação já realizada no anterior Aresto que o periculum in mora terá de ater-se aos próprios atos de cobrança, mas a verdade é que tal em nada permite retirar um erro de julgamento que permita alterar o sentido da decisão.

Até porque, se atentarmos na factualidade não provada a mesma abrange as duas realidades, ou seja, que o Requerente, ora Recorrente, fique em situação de não conseguir fazer face aos compromissos financeiros normais da atividade, por efeito da cobrança das liquidações em crise, ou por efeito da prestação de garantia autónoma para a suspensão da respetiva execução.

Salientando, designadamente, a decisão recorrida que “nada se comprova nos autos quanto ao justo receio de lesão irreparável, nem sequer logra o Requerente comprovar ficar numa situação de facto consumado ou a verificação de prejuízos de difícil reparação.” Mais enfatizando que, “o Requerente não densifica minimamente, na sua alegação, de que forma os atos suspendendos comprometem as condições de exercício da sua actividade ou o deixem em perigo de insolvência. Nem a prova testemunhal permite concluir positivamente sobre os factos que alega.”

Note-se que, a noção de prejuízo de difícil reparação, e a de situação de facto consumado - tal como consagradas no artigo 120.º do CPTA - integram uma carga lesiva, negativa, sem a qual deixam de fazer sentido. E por assim ser, constando enquanto factualidade não provada tais asserções e inexistindo, como visto, qualquer erro de julgamento na sua fixação, ter-se-á de concluir que não resultou demonstrado o periculum in mora.

Ora, face ao supra expendido, não obstante, como visto, ter-se por verificado o fumus boni iuris,  a verdade é que a falta de demonstração do periculum in mora, faz claudicar a concessão da presente providência.

Com efeito, face à lei adjetiva aplicável, para ver deferida a sua pretensão cautelar, o Recorrente teria de articular e provar, embora de forma sumária, o preenchimento de três requisitos (artigo 120º do CPTA):

- Haver fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que ele visa assegurar no processo principal periculum in mora;

- Ser provável que a pretensão formulada, ou a formular, nesse processo principal, venha a ser julgada procedente fumus boni iuris;

- Mesmo que verificados estes dois requisitos, a adoção da providência cautelar é recusada se, ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.

Sendo que estes três requisitos -dois positivos e um negativo-, assumem natureza cumulativa sendo, portanto, indispensáveis para a concessão da providência cautelar requerida. Significa, isto, que a não verificação de um dos requisitos positivos impõe, desde logo, o indeferimento da providência, e que a abordagem do requisito negativo apenas se exige no caso de se verificarem os outros dois – o periculum in mora e o fumus boni iuris.

Noutra formulação, dir-se-á que, no concernente à ponderação subsequente de interesses públicos e privados, a sua apreciação, enquanto requisito negativo, está dependente da verificação, a montante, dos outros dois requisitos positivos (periculum in mora e o fumus boni iuris[10]), donde revertendo tais considerações para o caso vertente, e face a todo o supra aludido resulta prejudicada a análise do requisito da ponderação de interesses[11].

In fine, importa relevar que carece de qualquer relevância, donde abordagem, todas as questões atinentes à prestação da caução e em torno do artigo 45.º CAU, aliás em sentido consonante com o âmbito da presente lide e como se infere, inclusive, pela posição do próprio Requerente.

E por assim ser, improcede o presente recurso por falta de verificação dos pressupostos atinentes ao efeito.


***

Uma nota final e ex oficio, relativamente à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, nº 7 do RCP.

Neste particular, importa convocar o Aresto do STA, proferido no processo nº 01953/13, de 07 de maio de 2014, segundo o qual : “A norma constante do nº7 do art. 6º do RCP deve ser interpretada em termos de ao juiz, ser lícito, mesmo a título oficioso, dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de €275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade”.

No caso sub judice, considera-se que o valor de taxa de justiça devida a final, calculado nos termos do tabela I.B., do RCP, é excessivo. Porquanto, ponderadas as circunstâncias do caso vertente à luz dos critérios escolhidos pelo legislador, em especial, o comportamento processual das partes litigantes, sem qualquer reparo negativo a apontar, a complexidade do processo – atendendo a que as questões decidendas, embora respeitantes a matéria específica, não exigiram do julgador especiais e diversos conhecimentos técnicos e jurídicos, antes se mantiveram dentro de parâmetros normais e comuns – encontra-se preenchido o circunstancialismo do n.º 7, do artigo 6.º do RCP, decretando-se, ex oficio a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO e em consequência manter a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que excede os €275.000,00.

Registe. Notifique.


Lisboa, 25 de Março de 2021

[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Susana Barreto e Vital Lopes]

Patrícia Manuel Pires

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[1] Vide, designadamente, ponto 14.
[2] Como doutrina Mário Aroso de Almeida, in ob. Cit. p. 975 “[o] nº 2 vem acrescentar uma cláusula de salvaguarda neste domínio, permitindo que, no interesse dos demais envolvidos, a providência ainda seja recusada quando, pese embora o preenchimento, em favor do requerente, dos requisitos no nº1, seja de entender que a sua adoção provocaria danos (ao interesse público e/ou de eventuais terceiros) desproporcionados em relação àqueles que se pretenderia evitar que fossem causados (à esfera jurídica do requerente).
[3] Código de Processo Civil anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1981 (reimpressão), pág. 143.
[4] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pp 165 e 166; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; Vide, designadamente, Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº 6505/13, de 2 de julho de 2013.
[5] Ac. STJ de 01.10.2015, P. 824/11.3TTLRS.L1.S1; Ac. STJ de 14.01.2016, P. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1; Ac. STJ de 11.02.2016, P. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, P. nº 299/05; Ac. STJ de 22.09.2015, P. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção; Ac. STJ, datado de 29/09/2015, P. nº 233/09; Acórdão de 31.5.2016, 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, 449/410; Acórdão do STJ de 27.1.2015,  1060/07.
[6] Vide, designadamente, Acórdão do STJ datado de 19/02/2015, proferido no processo nº 299/05.06TBMGD.P2.S1.
[7] Conforme doutrina o Ac. STJ. de 03/03/2016, no processo nº 861/13.3TTVIS.C1.S.
[8] In Manual de Processo Administrativo, 2.ª Edição:2016, Almedina, pág. 449
[9] In A Justiça Administrativa, 14.ª Edição, pág. 293.
[10] Como doutrina Mário Aroso de Almeida, in ob. Cit. p. 975 “[o] nº 2 vem acrescentar uma cláusula de salvaguarda neste domínio, permitindo que, no interesse dos demais envolvidos, a providência ainda seja recusada quando, pese embora o preenchimento, em favor do requerente, dos requisitos no nº1, seja de entender que a sua adoção provocaria danos (ao interesse público e/ou de eventuais terceiros) desproporcionados em relação àqueles que se pretenderia evitar que fossem causados (à esfera jurídica do requerente).
[11] Vide, designadamente, Acórdão do STA, proferido no processo nº 408/10, de 14.06.2018, e TCAS, processos nº 408/10, de 14.06.2018 e 595/17, de 10.05.2018.