Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:195/17.4BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:07/13/2023
Relator:JORGE CORTÊS
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO EM INFRA-ESTRUTURA RODOVIÁRIA.
NULIDADE INSUPRÍVEL.
Sumário:No âmbito das contra-ordenações por falta de pagamento da taxa de portagem não é necessário à descrição sumária dos factos a identificação do agente infractor, porquanto ao preenchimento do tipo legal são suficientes a indicação da passagem do veículo na portagem sem pagamento e a indicação das normas legais violadas, bem como das normas sancionatórias. Este entendimento é conforme com o princípio das garantias de defesa do arguido.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO
I- Relatório
Talentos & Iguarias – Serviços de Catering, Unipessoal, Lda., interpôs junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé recurso da decisão do Chefe do Serviço de Finanças de Loulé que, no âmbito do processo de contra-ordenação n.385920160600000061141, lhe aplicou uma coima única no montante de €573,00, acrescida das custas do processo no valor de €38,25, pela prática da contra-ordenação prevista e punível nos artigos 5º, nº2 e 7º da Lei nº 25/2006, de 30 de Junho.
Por sentença proferida a fls.111 e ss. (numeração do processo em formato digital - sitaf), datada de 26 de Junho de 2019, o referido Tribunal julgou o recurso procedente e anulou a decisão de aplicação de coima à sociedade arguida, por entender que a mesma enferma de nulidade insuprível nos termos do artigo 63º, n.ºs 1, alínea d) e 3, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), por violação do disposto na alínea d) e do n.º 1 do artigo 79º, do mesmo Regime.
Desta sentença foi interposto o presente recurso em cujas alegações de fls. 135 e ss. (numeração do processo em formato digital - sitaf), a recorrente, Fazenda Pública, alegou e formulou as seguintes conclusões:
«I) Decidiu o Meritíssimo Juiz “a quo” pela procedência dos autos de Recurso, por considerar que “(…) para que se cumpra a descrição sumária dos factos na decisão de aplicação da coima terá de haver referência, ainda que sumária, à qualidade do arguido que leva à sua configuração como agente da contraordenação: condutor, proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira ou detentor do veículo”;
II) O Mmº Juiz “a quo” considerou relevante que ” a infração imputada à Arguida não se basta com uma pura omissão de um dever de agir (o pagamento da taxa de portagem), contendo na sua descrição típica, para além disso, um elemento adicional (a qualidade do responsável: condutor, proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira ou detentor do veículo) que, ao constituir pressuposto da punição por ser um elemento objectivo do tipo, tem de estar suportado em factos descritos na decisão de aplicação da coima – cfr., com as necessárias adaptações, o supra citado aresto do Supremo Tribunal Administrativo.”;
III) Salvo melhor e douta opinião, não pode a FP concordar com tal conclusão;
IV) Considera a FP que o recurso deve ser admitido, não obstante o valor da coima e o disposto no art.º 83.º, n.º 1 do RGIT, ao abrigo do artigo 73.º, n.º 2 do RGCO, aplicável subsidiariamente por força do artigo 3.º, al. b) do RGIT;
V) Com efeito, afigura-se-nos que a sentença recorrida afirma um entendimento incorreto no que concerne à invocada nulidade insuprível por falta do requisito enunciado no art.º 79.º, n.º 1, al. b) do RGIT;
VI) Desde logo, porque as exigências daquele preceito deverão considerar-se satisfeitas quando as referências feitas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício efetivo dos seus direitos de defesa;
VII) E, depois, porque consideramos que a identificação do agente não é um fato essencial que integre o tipo de ilícito em causa;
VIII) Na verdade, parece-nos que a contraordenação sub judice descreve um fato que pode ser levado a cabo por qualquer pessoa ou agente, não se tratando de um “delictum proprium” em que a lei exige a intervenção de pessoas de um certo círculo no dizer de Eduardo Correia;
IX) Deste modo, observado o estabelecido no artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho está descrita nas decisões de aplicação de coima a factualidade das contraordenações imputadas à ora Arguida, em termos que lhe permitiram a cabal defesa dos seus direitos, entende-se que as mesmas não padecem de qualquer nulidade contrariamente ao julgado;
X) Aliás, como em hipótese semelhante decidiu o STA (Proc. n.º 0207/17.1BEVIS0189/18,) através do seu Acórdão de 01/23/2019, que mandou baixar os autos para apuramento da autoria da contraordenação;
XI) Também o TCA no seu Acórdão de 11.04.2019, que deu provimento ao recurso da Fazenda Pública da decisão proferida pelo tribunal “a quo” no Processo (Recurso de Contraordenação) n.º180/18.9BELLE: “Concluindo, no caso "sub judice" não constitui elemento objectivo do tipo a considerar a qualidade do responsável a quem é imputada a prática das contra-ordenações (condutor, proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira ou detentor do veículo), consagrada no examinado art°.10, n°.3, da Lei 25/2006, de 30/6, pelo que a não indicação dessa circunstância, no auto de notícia ou na decisão de aplicação de coima, não tem por consequência a nulidade insuprível de tal decisão, nos termos dos art°s.63, n°.1, al.d), e 79, n°1, al.b), do R.G.I.T., contrariamente ao decidido pelo Tribunal "a quo".
XII) Face aos entendimentos do STA supra expostos e do TCA, contraditórios com a sentença a quo, não obstante o baixo valor da coima (inferior a ¼ da alçada do tribunal judicial de 1.ª instância) aplicadas ao Arguido, afigura-se-nos ser manifestamente necessário o presente recurso tendo em vista a uniformização da jurisprudência e a melhoria e clarificação do direito aplicável, nos termos do art.º 73.º, n. º2 do RGCO.
Pelo exposto e com mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida como é de inteira JUSTIÇA.».
X
O Ministério Público notificado para os termos e efeitos do disposto no artigo 413º do CPP, apresentou resposta, a fls.146 e ss. (numeração do processo em formato digital - sitaf), que finalizou com as seguintes conclusões:
«I. A questão a decidir é a de saber se a sentença de 26/06/2019 enferma de erro de julgamento por considerar que a decisão de fixação de coima proferida no processo de Contra-Ordenação nº 38592016060000061141 não contém a descrição sumária dos factos exigida pelo art.79º nº1 al. b) RGIT porque não imputou à arguida o preenchimento do tipo legal ou seja, não refere a que título ou em que qualidade (art. 10º nº 3 da Lei 25/2006, 30/06) a arguida praticou a contra-ordenação prevista no nº 5 nº 2 Lei 25/06 já que a norma daquele preceito não contém todos os elementos do tipo contra-ordenacional, faltando-lhe a identificação do agente, isto é, da pessoa que adopta a conduta aí descrita, devendo este elemento objectivo do tipo ser encontrado no referido artigo 10º.
II. “Em qualquer tipo de ilícito objectivo é possível identificar os seguintes conjuntos de elementos: os que dizem respeito ao autor; os relativos à conduta; e os relativos ao bem jurídico” (Prof. Jorge Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pág. 278 e 287, Coimbra Editora 2004);
III. No ilícito contra-ordenacional em causa os elementos típicos do autor estão previstos no art. 10º da Lei 25/2006, 30/06; os elementos respeitantes à conduta susceptível de consubstanciar o ilícito contraordenacional encontram-se no art. 5º da mesma Lei; e a punição ou coima aplicável é determinada de acordo com as regras constantes do art. 7º do mesmo diploma legal;
IV. Autor da conduta qualificada como contra-ordenação no art.5º da Lei 25/2006, 30/06, tanto poderá ser o condutor do veículo, como o seu proprietário, o adquirente com reserva de propriedade, o usufrutuário, o locatário em regime de locação financeira ou o detentor do veículo;
V. Tudo depende do prévio e correcto cumprimento, por parte das concessionárias, as subconcessionárias, as entidades de cobrança das taxas de portagem ou as entidades gestoras de sistemas electrónicos de cobrança de portagens, consoante os casos, da notificação prevista no nº 1 do art. 10º da Lei 25/2006, 30/06;
VI. Nos casos em que não for possível identificar o condutor do veículo no momento da prática da contra-ordenação (art. 10º nº1 da Lei 25/2006, 30/06), nomeadamente porque a deteção da prática da contra-ordenação foi feita através de equipamentos adequados que registem a imagem ou detetem o dispositivo electrónico do veículo (art. 8º nº 1 da Lei 25/2006, 30/06);
VII. Todavia aquela notificação não integra a decisão que aplica a coima, constituindo uma fonte externa ao acto de decisão (cfr. ac. TCA Sul 14/02/2019, P. 368/17.0 BELLE).
VIII. A qualidade do agente é pois, quanto a nós, um elemento essencial do tipo.
IX. A decisão que aplicou a coima é totalmente omissa quanto à identificação do agente da infracção, isto é, não contém uma referência ainda que sumária relativa aos elementos típicos do autor da prática da contra-ordenação tal como vem estabelecido no art. 10º nº 3 da Lei 25/2006, 30/06 e que constitui pressuposto da punição (cfr. ac. TCA Sul 11/04/2019, P.180/18.9BELLE).
X. A decisão baseia-se na presunção de que a arguida é a responsável pela prática das contra-ordenações mas omite os factos que fundamentam tal presunção.
XI. Perante a inexistência de elementos factuais relativos à conduta humana que integrem o elemento objectivo das infracções cuja prática lhe é atribuída a arguida desconhece a que título lhe foi aplicada a coima e vê-se impedida de exercer cabalmente o seu direito de defesa, consagrado no art.32º nº 10 CRP, já que não defender-se simultaneamente e de forma adequada na qualidade de condutor, de proprietário do veículo, de adquirente com reserva de propriedade, de usufrutuário, de locatário em regime de locação financeira ou de detentor do veículo.
XII. Em consequência, a decisão que aplicou a coima está ferida de nulidade insuprível, conforme decorre do regime dos arts. 79º nº 1 al. b) e 63º nº 1 al. d) RGIT.
XIII. O acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo no processo nº0217/17.1BEVIS0189/18 salvo melhor opinião não se reporta a situação idêntica respeitando, outrossim, ao modo como o não pagamento se concretiza,
XIV. Pelo que não se mostra verificado o fundamento de recurso previsto no art. 73º nº2 RGCO.
Pelos motivos expostos entende-se que a sentença recorrida deve ser confirmada. Todavia, Vªs Excias decidirão e farão a costumada JUSTIÇA.»
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O Digno Magistrado do M.P. junto deste Tribunal notificado para o efeito, emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao presente recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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II- Fundamentação
1.De Facto.
A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:«
A) Em 27-10-2016, foi instaurado no Serviço de Finanças de Loulé, contra T ……… & I…………… – SERVIÇOS …………….., UNIPESSOAL, LDA o processo de Contra-ordenação n.º …………………..141 (cfr. fls. 2 dos autos no SITAF, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
B) Em 08-12-2016, foi proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças de Loulé 2, no âmbito do processo de Contra-ordenação referido na alínea A), decisão de aplicação de coima única ao arguido, ora Recorrente, no montante de €618,84, acrescida de €76,50 de custas processuais (cfr. fls. 8 a 9 dos autos no SITAF, idem);
C) Consta da decisão mencionada na alínea antecedente, a seguinte descrição sumária dos factos: “(…)
« Imagem no original»

(…)” (cfr. fls. 8 dos autos no SITAF, ibidem);»
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«Factos Não Provados //Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito e que, por conseguinte, importe registar como não provados.»
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«Motivação da decisão de facto // Quanto aos factos provados a convicção do Tribunal fundou-se no teor dos documentos constantes dos autos, que não foram impugnados pelas partes, nem existem indícios que ponham em causa a sua genuinidade.»
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Ao abrigo do disposto no artigo 431.º/a), do Código de Processo Penal (ex vi artigo 3.º/b), do RGIT (1) e artigo 41.º/1, do RGCO (2)), adita-se a seguinte matéria de facto:
D) Do auto de notícia subjacente ao processo referido em A), consta o seguinte:
« Texto no original»

E) Da decisão referida em C), consta o seguinte:
« Texto no original»
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2.2. De Direito.
2.2.1. A presente intenção recursória centra-se sobre o alegado erro de julgamento quanto ao enquadramento jurídico da causa em que terá incorrido a sentença recorrida.
A sentença julgou procedente o presente recurso judicial de decisão de aplicação de coima. Considerou, em síntese, que ocorreu, no caso, a preterição de nulidade insuprível, no que respeita à descrição sumária dos factos. Ponderou que «[a] decisão que aplicou a coima apenas refere a “data e hora da infracção”, o “local da infracção”, a “Entrada” e “Saída” e a “identificação da viatura” cfr. alínea C) do probatório - sendo totalmente omissa quanto à qualidade da Arguida (à concreta imputação da conduta ao agente) que justifica a sua responsabilização contra-ordenacional para preencher o tipo legal. // Concluindo, a infracção imputada à Arguida não se basta com uma pura omissão de um dever de agir (o pagamento da taxa de portagem), contendo na sua descrição típica, para além disso, um elemento adicional (a qualidade do responsável: condutor, proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira ou detentor do veículo) que, ao constituir pressuposto da punição por ser um elemento objectivo do tipo, tem de estar suportado em factos descritos na decisão de aplicação da coima (…)».
2.2.2. A recorrente censura o veredicto que fez vencimento na instância. Alega, em síntese, que «a sentença recorrida afirma um entendimento incorreto no que concerne à invocada nulidade insuprível por falta do requisito enunciado no art.º79.º, n.º 1, al. b) do RGIT»; «as exigências daquele preceito deverão considerar-se satisfeitas quando as referências feitas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício efetivo dos seus direitos de defesa»; «porque consideramos que a identificação do agente não é um fato essencial que integre o tipo de ilícito em causa».
2.2.3. Antes de entrarmos na apreciação do objecto do recurso, cumpre aferir da admissibilidade do mesmo.
No caso em exame, a petição inicial deu entrada em Janeiro de 2017, pelo que o valor da alçada do Tribunal Tributário é de €5.000,00 (artigo 105.º da LGT). Sendo o valor da causa de €618,84, o recurso não seria admissível (artigo 280.º/4, do CPPT (3)). Cabe, todavia, aferir da aplicabilidade do disposto no artigo 73.º/2, do Regime Geral das Contra-Ordenações [RGCO (4)]. A norma estabelece o seguinte: «Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso de sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência». «A expressão “melhoria da aplicação do direito”, usada no art.º 73.º, n.º 2, do RGCO deve interpretar-se como abrangendo todas as situações em que há «erros claros na decisão judicial», situações essas em que, à face do entendimento jurisprudencial amplamente adoptado, repugne manter na ordem jurídica, a decisão recorrida, por ela constituir uma afronta ao direito»(5).
No caso, a decisão judicial em apreço vai contra a jurisprudência dos Tribunais Superiores, da qual resulta que: «Sobre a questão do que deve entender-se por “descrição sumária dos factos” no âmbito destes processos contra-ordenacionais por falta de pagamento de portagens pronunciou-se o S.T.A. ainda no acórdão de 17-10-2018, no processo n.º 1004/17.0BEPRT, disponível emwww.dgsi.pt, de que se transcrevem os seguintes trechos: // «(…) A «descrição sumária dos factos» imposta pela alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT e, bem assim, os demais requisitos da decisão de aplicação da coima enumerados nesse número «devem ser entendidos como visando assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão» (…). Por isso, essas exigências «deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos» (Ibidem.), assim assegurando o direito de defesa ao arguido [cfr. art. 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa]. // (…) bastando-se a lei como uma descrição sumária dos factos, afigura-se-nos que esta exigência se há-de considerar satisfeita quando, como no caso sub judice, o elemento essencial do tipo – a falta de pagamento da taxa de portagem pela circulação de veículo automóvel em infra-estruturas rodoviárias, designadamente auto-estradas e pontes – está descrito na decisão administrativa; e está, não apenas por referência à norma que prevê a contra-ordenação, o que não seria suficiente, mas mediante a descrição detalhada do comportamento: falta de pagamento de taxas de portagem referente ao veículo identificado pela respectiva matrícula e com referência aos trajectos expressamente indicados, com indicação dos locais, datas e horas a que se verificaram as infracções e aos montantes das respectivas taxas (…)». // Não existindo razão para divergir de tal entendimento que se consolidou (…) – e, verificando-se referidas as normas infringidas da Lei n.º 25/2006, de 30/6, embora com alterações posteriormente introduzidas, bem como também a respetiva factualidade essencial tal como no auto de notícia, a decisão proferida não padece da dita nulidade, pelo que o julgado não pode subsistir».(6) Pelo que se mostram preenchidos os requisitos do artigo 73.º/2, do RGCO.
Motivo porque se impõe admitir o presente recurso.

2.2.3. No que respeita ao objecto do recurso, cumpre referir o seguinte.
Está em causa a interpretação dos normativos seguintes:
i) Artigo 79.º/1/b), do RGIT, «A decisão que aplica a coima contém: // b) A descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas».
ii) Artigo 63.º/1/e), «Constituem nulidades insupríveis no processo de contra- -ordenação tributário: // d) A falta dos requisitos legais da decisão de aplicação das coimas, incluindo a notificação do arguido».
iii) Artigo 5.º (Contraordenações praticadas no âmbito do sistema de cobrança eletrónica de portagens) da Lei n.º 25/2006, de 30/06, (1) «Constitui contraordenação, punível com coima, nos termos da presente lei, o não pagamento de taxas de portagem resultante: // (…) // (2) «Constitui, ainda, contraordenação, punível com coima, nos termos da presente lei, o não pagamento de taxas de portagem resultante da transposição, numa infraestrutura rodoviária que apenas disponha de um sistema de cobrança eletrónica de portagens, de um local de deteção de veículos sem que o agente proceda ao pagamento da taxa devida nos termos legalmente estabelecidos».
iv) Nos termos do Artigo 10.º (Responsabilidade pelo pagamento) // (1) «Sempre que não for possível identificar o condutor do veículo no momento da prática da contraordenação, as concessionárias, as subconcessionárias, as entidades de cobrança das taxas de portagem ou as entidades gestoras de sistemas eletrónicos de cobrança de portagens, consoante os casos, notificam o titular do documento de identificação do veículo para que este, no prazo de 30 dias úteis, proceda a essa identificação ou pague voluntariamente o valor da taxa de portagem e os custos administrativos associados» (2) «A identificação referida no número anterior deve, sob pena de não produzir efeitos, indicar, cumulativamente: // a) Nome completo; // b) Residência completa; // c) Número de identificação fiscal, salvo se se tratar de cidadão estrangeiro que o não tenha, caso em que deverá ser indicado o número da carta de condução». // (3) «Na falta de cumprimento do disposto nos números anteriores, é responsável pelo pagamento das coimas a aplicar, das taxas de portagem e dos custos administrativos em dívida, consoante os casos, o proprietário, o adquirente com reserva de propriedade, o usufrutuário, o locatário em regime de locação financeira ou o detentor do veículo. // (4) «Quando, nos termos do n.º 1, seja identificado o agente da contraordenação, é este notificado para, no prazo de 30 dias úteis, proceder ao pagamento da taxa de portagem e dos custos administrativos associados».
Constitui jurisprudência assente a seguinte:
i) «A, já de si notória, generosidade do legislador, ao apenas exigir a “descrição sumária” dos factos ilícitos, não pode ser interpretada no sentido de que basta aos autos de notícia contra-ordenacionais uma mera remissão para as “normas infringidas” e “normas punitivas” para se ter por preenchido tal requisito, pelo facto de estas preverem comportamentos gerais e abstractos, donde e por definição não individualizáveis».(7)
ii) «Quanto à «descrição sumária dos factos», firmou-se jurisprudência no sentido de que os factos que importa descrever sumariamente na decisão não são senão os factos essenciais que integram o tipo de ilícito em causa. E no sentido de que a norma em apreço – o artigo 5.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho – tutela o pagamento da taxa de portagem, sendo indiferente o modo como o não pagamento se concretizou. Que, por isso, também não constitui elemento essencial do tipo. // Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 17/10/2018, tirado no processo n.º 01004/17.0BEPRT, «(…) bastando-se a lei como uma descrição sumária dos factos, afigura-se-nos que esta exigência se há-de considerar satisfeita quando, como no caso sub judice, o elemento essencial do tipo – a falta de pagamento da taxa de portagem pela circulação de veículo automóvel em infra-estruturas rodoviárias, designadamente auto-estradas e pontes – está descrito na decisão administrativa; e está, não apenas por referência à norma que prevê a contra-ordenação, o que não seria suficiente, mas mediante a descrição detalhada do comportamento: falta de pagamento de taxas de portagem referente ao veículo identificado pela respectiva matrícula e com referência aos trajectos expressamente indicados, com indicação dos locais, datas e horas a que se verificaram as infracções e aos montantes das respectivas taxas.». // E estas considerações são integralmente transponíveis para o caso dos autos. Razão porque, também aqui, importará concluir que as decisões de aplicação de coimas não padecem dessa nulidade».(8)
iii) «Sobre esta questão pronunciou-se já este Supremo Tribunal Administrativo, em jurisprudência consolidada, firmando o seguinte entendimento, que pode ler-se, entre outros, no acórdão de 17 de Outubro de 2018, exarado no processo n.º 1004/17.0BEPRT:
«A «descrição sumária dos factos» imposta pela alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT e, bem assim, os demais requisitos da decisão de aplicação da coima enumerados nesse número «devem ser entendidos como visando assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão» (… ). Por isso, essas exigências «deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos» (Ibidem.), assim assegurando o direito de defesa ao arguido [cfr. art. 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa]. (…) // Salvo o devido respeito, bastando-se a lei com uma descrição sumária dos factos, afigura-se-nos que esta exigência se há-de considerar satisfeita quando, como no caso sub judice, o elemento essencial do tipo – a falta de pagamento da taxa de portagem pela circulação de veículo automóvel em infra-estruturas rodoviárias, designadamente auto-estradas e pontes – está descrito na decisão administrativa; e está, não apenas por referência à norma que prevê a contra-ordenação, o que não seria suficiente, mas mediante a descrição detalhada do comportamento: falta de pagamento de taxas de portagem referente ao veículo identificado pela respectiva matrícula e com referência aos trajectos expressamente indicados, com indicação dos locais, datas e horas a que se verificaram as infracções e aos montantes das respectivas taxas». // (…) Como, lapidarmente, ficou dito no acórdão de 7 de Outubro de 2015 desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 218/15, «O requisito da decisão administrativa de aplicação da coima “descrição sumária dos factos”, constante da primeira parte da alínea b) do n.º 1 do artigo 79.º, do RGIT, há-de interpretar-se em correlação necessária com o tipo legal de infracção no qual se prevê e pune a contra-ordenação imputada à arguida, pois que os factos que importa descrever, embora sumariamente, na decisão de aplicação da coima não são outros senão os factos tipicamente ilícitos declarados puníveis pela norma fiscal punitiva aplicada» (…) // O ilícito em causa é a falta de pagamento da taxa de portagem e os comportamentos imputados à Arguida, descritos com pormenor, preenchem o tipo legal, permitindo à Arguida entender claramente o facto que lhe é imputado. // A norma em apreço – art. 5.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho – tutela o pagamento da taxa de portagem, sendo indiferente o modo como o não pagamento se concretizou, que também não releva quanto à coima aplicável ou à respectiva medida (cfr. art. 7.º da mesma Lei). É certo que no referido art. 5.º se descrevem, nos seus n.ºs 1, alíneas a) e b), e 2, os diversos modos como pode concretizar-se essa falta de pagamento, uma vez que esta, em razão da diversidade de modos de pagamento, pode resultar de uma multiplicidade de circunstâncias. Mas essas circunstâncias não constituem elementos essenciais do tipo, pois se destinam apenas a concretizar um e o mesmo ilícito, qual seja a falta de pagamento da portagem. Por isso, não se exige a menção às mesmas na “descrição sumária dos factos” requerida pela primeira parte da alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT. // Acresce que esses elementos não essenciais do tipo foram oportunamente comunicados à Arguida aquando da notificação que lhe foi efectuada ao abrigo do art. 70.º do RGIT (cfr. os documentos para que se remete no facto provado sob o n.º 2). // Em suma, a descrição sumária da factualidade constante da decisão administrativa que aplicou a coima permite à Arguida o exercício cabal do seu direito de defesa, não subsistindo dúvida alguma quanto aos factos que lhe são imputados, motivo por que não concordamos com a sentença quando considera que essa decisão enferma de nulidade por inobservância do requisito constante da primeira parte da alínea b) do n.º 1 do art. 79.º, do RGIT» (9).

Dos elementos coligidos no probatório (alíneas B) a D), resulta que a decisão de aplicação de coima em exame contém a descrição dos elementos essenciais do tipo, já que discrimina o facto relativo à transposição da barreira electrónica da portagem, pelo veículo em causa, sem o devido pagamento, invocando também as normas contra- -ordenacionais infringidas, bem como as normas punitivas, e a concretização da medida da coima. Pelo que a apontada nulidade insuprível, por ausência da descrição sumária dos factos, não se comprova nos autos.
A sentença que assim julgou incorreu em erro de julgamento, devendo ser substituída por decisão que conheça dos demais fundamentos do recurso de decisão de aplicação de coima. A recorrida questiona a imputação objectiva dos factos relatados, a imputação subjectiva dos mesmos, a prova recolhida e a medida da coima. Arrola para o efeito prova testemunhal e requer a junção de prova documental que identifica. Pelo que se impõe ordenar a baixa dos autos, para que sejam realizadas as diligências instrutórias necessárias para conhecimento das questões cujo conhecimento foi considerado prejudicado.
Termos em que se julga procedentes as presentes conclusões de recurso.

X
Dispositivo
Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos para prolação de nova sentença que conheça das questões cujo conhecimento foi considerado prejudicado.
Custas pela recorrida, sem prejuízo da dispensa de taxa de justiça, dado não ter contra-alegado.
Registe.
Notifique.
(Jorge Cortês - Relator)

(1.ª Adjunta – Patrícia Manuel Pires)

(2.º Adjunto – Vital Lopes)
(1) Regime Geral das Infracções Tributárias.
(2) Regime Geral das Contra-Ordenações.
(3) Versão vigente.
(4) Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
(5) Manuel Sima Santos, e Jorge Lopes de Sousa, Anotações ao Regime Geral das Contra-Ordenações, Áreas Editora, 2011, p. 538.
(6) Acórdão do STA, de 12-05-2021, P. 0477/19.0BEMDL.
(7) Acórdão do STA, de 18-05-2022, P. 0278/19.6BEMDL
(8) Acórdão do STA, de 13-07-2021, P. 0402/19.9BEMDL.
(9) Acórdão do STA, de 06.05.2020, P. 0475/17.9BEVIS 0374/18.