Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08946/12
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:03/07/2013
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:REGULAMENTO DE DISCIPLINA MILITAR.
DEVER DE LEALDADE.
Sumário:I- A disciplina militar é o laço moral que liga entre si os diversos graus da hierarquia militar, que nasce da dedicação pelo dever e consiste na estrita e pontual observância das leis e regulamentos militares e na execução pronta e total das ordens legítimas recebidas através da cadeia de comando, com excepção das determinações cuja execução consista na prática de um crime.

II - O carácter reforçado da disciplina e da hierarquia militar é essencial para a coesão das Forças Armadas e para o cumprimento das suas tarefas e missões, para a sua eficácia em prol da defesa nacional, tornando a instituição militar, regida por princípios e deveres que consubstanciam características muito próprias e específicas, substancialmente distinta da restante Administração Pública.

III - São características do processo disciplinar militar a celeridade e sumariedade, a rejeição de garantias excessivas e de procedimentos dilatórios, sem prejuízo das garantias defesa dos direitos dos arguidos constitucionalmente consagradas.

IV - Em nome dessa disciplina reforçada e das necessidades de prevenção geral, as penas aplicadas em processo disciplinar militar devem ser cumpridas na íntegra e imediatamente após a sua aplicação, mas sem preterição dos direitos de defesa do arguido e da possibilidade da sua impugnação contenciosa.

V - No âmbito do pedido de suspensão de eficácia de pena disciplinar detentiva aplicada a militar, o juízo de ponderação de interesses deve levar em conta o superior interesse público na execução o mais rápido possível da pena.

VI - Essa ponderação não carece de ser feita nos casos em que o tribunal antecipa o conhecimento da acção principal, nos termos do art.º 121.º, n.º 1, do CPTA.

VII - O oficial de dia às unidades, estabelecimentos e órgãos do Exército não tem competência para, em dias de actividade normal, mandar chamar quaisquer especialistas para recolha de amostras, com vista à sua análise, de géneros alimentares que aparentemente possam estar impróprios para consumo.

VIII - A recolha dessas amostras deve ser ordenada pelo Comando, segundo os procedimentos previstos nas respectivas Normas de Execução Permanente do Exército Português.

IX -Age em violação das normas do Regulamento Geral do Serviço nas Unidades do Exército que definem os deveres e a competência dos oficiais de dia, bem como das Normas de Execução Permanente que prevêem os procedimentos a adoptar em caso de surto de toxinfecção alimentar, o oficial de dia que sem autorização da cadeia de comando convoca técnicos do Laboratório de Bromatologia do Exército a fim de serem recolhidas amostras de alimentos cuja ingestão tinha sido generalizadamente recusada pelos militares da unidade.

X - Dessa recusa decorria a impossibilidade objectiva de vir ocorrer surto de toxinfecção alimentar.

XI - Mesmo que tal surto tivesse ocorrido, o único procedimento adequado para o debelar consistiria em assegurar a assistência médica aos doentes e não em chamar os técnicos do Laboratório de Bromatologia.

XII - Neste contexto o oficial de dia não agiu em legítima defesa, própria e ou alheia, já que não se verificava uma agressão ilícita, actual ou iminente, que ameaçasse interesses juridicamente protegidos do próprio e ou de terceiros.

XIII -A lealdade e a obediência são as mais importantes virtudes militares.

XIV -A lealdade comunga dos princípios éticos vigentes nas Forças Armadas e significa a fidelidade do militar à Pátria, aos superiores, iguais e inferiores.

XV - A conduta do oficial de dia, nas circunstâncias referidas supra em ix. viola o dever de lealdade, quer por ter agido sem autorização superior e sem competência para tanto, quer porque não podia desconhecer os efeitos negativos que a vinda dos técnicos acarretaria para o prestígio, quer do comando, quer da própria Unidade.

XVI -Constitui nulidade insuprível, directamente aplicável ao processo disciplinar militar, a preterição de formalidades essenciais que visem salvaguardar direitos de defesa do arguido, previstos no art.º 18.º da CRP.

XVII -Ao exercer os seus poderes disciplinares na determinação da medida da pena e da culpa, a hierarquia militar goza de margem de liberdade, judicialmente insindicável, a não ser que a decisão enferme de erro manifesto, palmar ou grosseiro.

XVIII - Não é ilegal o despacho do CEME que homologou o despacho do Director do DGME que, nas circunstâncias supra descritas, aplicou ao oficial que agiu pelo modo descrito em ix., uma pena de sete dias de proibição de saída, já que o referido acto não padece de vícios intrínsecos, a pena aplicada mostra-se adequada e proporcional à gravidade da infracção e o processo disciplinar não contém irregularidades que consubstanciem a prática de nulidades insupríveis.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1 - Relatório

a) - As partes e o objecto do recurso

Gonçalo ................., oficial do Exército, com domicílio na Rua Presidente ................, lote 8, 3.° andar .............(frente), 2835-272, ......................., veio intentar contra o Ministério da Defesa Nacional e o Exército Português, processo cautelar pedindo a suspensão de eficácia do despacho do Director do Depósito Geral de Material do Exército ("DGME"), de 22.12.2011, que em processo disciplinar lhe aplicou uma pena de 7 dias de proibição de saída.

Na sua extensa petição alegou, em resumo, que o acto suspendendo “padece de erro grosseiro, na medida em que se observa um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível”, porquanto não violou o dever de lealdade invocado como pressuposto da punição, nem deixou de informar com franqueza sobre a situação que espoletou o processo disciplinar, a distribuição ao almoço de bacalhau com broa nos refeitórios do DGME em precárias condições organolépticas, tendo agido na sua qualidade de oficial de dia em situação de legítima defesa, própria e alheia, perante eventuais danos para a saúde dos militares que consumissem a refeição, pelo que estava justificado o pedido de comparência de técnicos do Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica do Centro Militar de Medicina Veterinária para a recolha de amostras, tanto mais que o Director do DGME não se encontrava presente e o Subdirector encontrava-se no gozo de férias.

Alega ainda que não foram cumpridos os procedimentos para colheita de amostras da refeição, que era patente a avaria dos géneros alimentares, que existe uma situação de negligência continuada no DGME no que toca à qualidade da alimentação servida aos militares, tendo por isso exercido as competências que lhe estavam legalmente atribuídas como Oficial de Dia.

Mais alega que a escolha e medida da pena não foi a adequada, que a sua actuação não foi dolosa, é primário, sendo que os factos de que foi acusado e punido tiveram como único objectivo proteger a saúde e integridade física de todos os militares do DGME.

Pelo que, sustenta, o processo disciplinar não tem qualquer fundamento, assim como a pena aplicada, que é totalmente desadequada, padecendo o acto suspendendo padece de um erro grosseiro na análise da factualidade subjacente e das circunstâncias dirimentes.

No que concerne ao requisito do periculum in mora defende que estando em causa uma pena privativa de liberdade, isso pode por em causa o contrato de trabalho que celebrou com as empresas S................ Portugal e com a P............ — Companhia ....................., Lda., bem como as suas funções de juiz em campeonatos de ginástica artística masculina, conduzindo à impossibilidade do exercício das referidas funções e, consequentemente, à rescisão dos vínculos laborais por parte das suas entidades patronais, vendo-se por isso amputado de uma parcela significativa dos seus rendimentos, essencial para o cumprimento das suas obrigações financeiras, além de não lhe ser fácil obter novas ocupações a médio/longo prazo.

Acrescenta que inexistem circunstâncias que obstem ao conhecimento de mérito" do processo principal, pelo que todos os requisitos do art. 120.°, n.º 1, al. b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) se mostram preenchidos.

Quanto à ponderação de interesses sustenta que não se vislumbram quaisquer danos ou prejuízos que possam advir para o interesse público da suspensão dos efeitos da decisão de aplicação da pena disciplinar, pelo que termina pedindo o decretamento da suspensão do despacho supra referido.

A petição foi apresentada no TAF de Almada, tendo sido distribuída como “outros processos cautelares [DEL. 825/05]”, cabendo-lhe o número 366/12.0BEALM.

Aberta conclusão foi proferido despacho liminar a admitir “o Requerimento relativo à Providência Cautelar” e ordenada a citação das entidades requeridas para, querendo, deduzirem oposição.

O Ministério da Defesa Nacional veio aos autos defender a sua ilegitimidade passiva, com fundamento no disposto no n.° 2 do artigo 21.º da Lei Orgânica n.° 1-A12009, de 7 de Julho, Lei Orgânica de Bases da Organização das FORÇAS ARMADAS (LOBOFA), que transcreveu: "Nos processos jurisdicionais que tenham por objecto a acção ou omissão de órgãos das FORÇAS ARMADAS em matérias de disciplina e de administração de pessoal, parte demandada é o Estado-Maior-General das FORÇAS ARMADAS ou o respectivo ramo, conforme os casos".

Terminou pedindo a sua absolvição da instância.

O Exército Português deduziu oposição, arguindo a excepção dilatória da “incompetência em razão da matéria” do TAF de Almada, alegando que nos termos do art.º 6.° da Lei n.° 34/2007, de 13 de Agosto, com a epígrafe «competência jurisdicional em função da matéria», que «compete à secção de contencioso administrativo de cada tribunal central administrativo conhecer, em 1.ª instância, dos processos relativos a actos administrativos de aplicação das sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas».

À cautela sustenta que não se verificam os requisitos de que depende o decretamento da providência, visto que o art.º 3.º da Lei n.° 34/2007 estabeleceu um regime especial para os processos relativos a actos administrativos de aplicação de sanções disciplinares previstas no Regulamento de Disciplina Militar, em razão do qual, e sem prejuízo do disposto nos n.os 2, 3 e 5 do artigo 120.° do CPTA, a providência só pode ser decretada quando exista fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado e, cumulativamente, seja evidente .a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal, por se tratar de acto manifestamente ilegal, acto de aplicação de norma já anteriormente anulado ou de acto materialmente idêntico a outro já anteriormente anulado ou declarado nulo ou inexistente.

E não resultando da petição do que o acto suspendendo seja «manifestamente ilegal» nem a pena inadequada, a providência tem de ser indeferida.

Notificado da oposição do Exército Português o requerente insistiu que o TAF de Almada era competente mas, à cautela, pediu que o processo fosse remetido a este TCA Sul no caso de se entender o contrário.

Por sentença de fls. 83 e ss. do processo cautelar decidiu-se, “sem necessidade de mais diligências” declarar-se “este Tribunal Administrativo de Almada incompetente em razão da matéria para julgar o Presente Processo Cautelar, o que conduz à absolvição da instância, entendendo-se, in casu, como competente o Venerando Tribunal Central Administrativo Sul”.

Remetendo-se os autos a este TCA Sul e após várias vicissitudes processuais foi, pelo Relator, proferido o despacho de fls. 163, determinando a antecipação do conhecimento da causa principal, nos termos do art.º 121, n.º 1, do CPTA. Notificadas, as partes não manifestaram oposição a tal antecipação.

Entretanto, pelo mesmo GONÇALO ..............................., foi interposta acção administrativa especial, desta feita directamente neste TCA Sul, apenas contra o Exército Português.

Nela alega que o acto punitivo “padece de erro grosseiro, na medida em que se observa um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, porquanto não houve qualquer violação do dever de lealdade a que o Autor se encontra sujeito, nem resulta provado que o Autor não tenha respeitado e agido com franqueza para com os militares de serviço no dia em questão, isto é, 15.06.2011, ou que não tenha informado com verdade o superior hierárquico acerca de algum assunto desse serviço, pelo contrário, dirigiu-se aos diversos interlocutores da cadeia de comando presentes no DGME, dando-lhes a conhecer, por diversas vezes, a situação que se encontrava a ocorrer”.

E que o “acto suspendendo olvida flagrantemente as responsabilidades exclusivas que sobre o Autor impendiam, enquanto Oficial de Dia, em matéria de qualidade e segurança alimentares dos militares, tanto mais que a ser verdade que o Director do DGME foi informado da situação relacionada com o deficiente estado da segunda refeição, nada fez para se inteirar dos pormenores do caso junto do Autor, enquanto Oficial de Dia, ou para resolver a questão da recusa dos militares em consumir a refeição, pelo que “seria no mínimo negligente, senão mesmo criminoso, se o Autor, perante as queixas de diversos Praças e Sargentos e as evidências por si presenciadas, nada fizesse para evitar o consumo do bacalhau com broa que ia ser distribuído na 2.ª refeição”, sendo tal comportamento “susceptível de consubstanciar uma violação dos seus deveres de serviço, punível com sanção disciplinar.

Ademais argumenta que “tinha receio mais do que funda do no perigo que o consumo do referido bacalhau com broa pudesse comportar para os militares presentes no DGME, evidenciado pelas queixas que chegaram ao seu conhecimento e pelo cheiro evidente que se fazia sentir na cozinha e no Refeitório Geral de Praças”, pois havia “indícios sérios de que o consumo do bacalhau com broa poderia por em causa a saúde dos militares”.

Alegando que na recolha de amostras da alimentação não foram observadas as prescrições regulamentares pertinentes, e que, enquanto Oficial de Dia “estava legitimado a convocar especialistas em segurança alimentar”, visto que “o comando da unidade negligenciou as normas de actuação perante surto de toxinfecção alimentar”, que era evidente pelas queixas dos militares e do cheiro intenso que emanava da cozinha, limitando-se a exercer as “competências e responsabilidades que, na qualidade de Oficial de Dia, lhe estavam atribuídas”.

E acrescenta que a “convocação do Laboratório se enquadra numa situação de legítima defesa, própria e alheia”, consubstanciando “igualmente uma circunstância dirimente da responsabilidade disciplinar, nos termos da alínea c) do art. 43.º do RDM”, pelo que “não existiu qualquer violação do dever de lealdade por parte do Autor, mas tão só o cumprimento de um dever de zelo pelos seus subordinados e, diga-se, restantes militares da Unidade, bem como de uma actuação de legítima defesa, perante a negligência reiterada face à alimentação no DGME.

À cautela arguiu a inadequação da medida da pena, a primariedade da sua conduta e a inexistência de quaisquer resultados perturbadores na disciplina, pelo que “o presente processo disciplinar não tem qualquer fundamento, assim como a pena aplicada, que é totalmente desadequada”, padecendo a “decisão do DGME de um erro grosseiro na análise da factualidade subjacente e das circunstâncias dirimentes acima explicitadas, bem como na aplicação do direito aplicável”.

Foi citado o Chefe do Estado-Maior do Exército (cfr. fls. 105).

O Exército Português contestou, pugnando em síntese pela manutenção do acto.


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O MP foi notificado, nos termos do art.º 85.º, n.º 1, do CPTA, nada tendo requerido.

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Sem vistos vem o processo à conferência.

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b) Questões a decidir:
¾ Fixar o objecto da causa;
¾ Decidir se o réu Ministério da Defesa Nacional tem legitimidade passiva;
¾ Sindicar as ilegalidades imputadas ao acto impugnado, através da definição dos deveres e competências do oficial de dia às Unidades, Estabelecimentos e Órgãos do Exército, designadamente em situação de toxinfecção alimentar, da eventual justificação, por legítima defesa, da convocação de especialistas estranhos à Unidade, e da verificação da eventual violação do dever de lealdade em contexto de disciplina militar.

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2 - Saneamento

O Tribunal é competente em razão da matéria e da hierarquia.

O processo é o próprio.


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a) - Do objecto da causa

Nos termos do art.º 121.º, n.º 1, do RDM, “das decisões em matéria disciplinar cabe reclamação e ou recurso hierárquico necessário, nos termos previstos, respectivamente, no Código do Procedimento Administrativo e no presente Regulamento.

O recurso é dirigido ao Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas ou ao chefe de estado-maior do ramo, conforme o caso (art.º 124.º, n.º 2, do RDM)

De uma interpretação a contrário do n.º 3 do art.º 121.º, do RDM, retira-se a conclusão de que o recurso hierárquico em matéria disciplinar para o Chefe do Estado-Maior não tem natureza facultativa, sendo outrossim imposto como caminho obrigatório para abrir a via contenciosa, nos termos do art.º 133.º, n.º 1, do RDM. Tanto assim que a sua interposição suspende a decisão recorrida, excepto no caso previsto no n.º 2 do artigo 51.º (1) (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do RDM).

Não se subsumindo o caso presente a uma das situações previstas no citado art.º 51.º, n.º 2, do RDM, é patente que quer o processo cautelar, quer a acção principal, não podiam ter como objecto o acto do Director do DGME.

É que, tendo havido recurso para o Chefe do Estado-Maior do Exército do despacho do Director do DGME que aplicou a pena de sete dias de proibição de saída do autor/requerente, seria da decisão do primeiro que devia ter sido interposto o pedido de decretamento da providência cautelar de suspensão de eficácia e, bem assim, o pedido da sua anulação.

Com efeito, o despacho do Director do DGME foi absorvido pela decisão do Chefe do Estado-Maior do Exército, deixando de ter autonomia e eficácia quanto aos efeitos disciplinares que poderia produzir na esfera jurídica do autor/requerente, os quais nunca se chegaram a consolidar com a interposição do recurso hierárquico, e que se transferiram, outrossim, para o acto do CEME que o confirmou.

Neste contexto a petição inicial do processo cautelar poderia ser liminarmente indeferida, na medida em que a dedução de uma pretensão cautelar contra acto administrativo destituído de qualquer eficácia e que de resto não é lesivo nem constitui o acto final do procedimento, constitui uma manifesta ilegalidade, já que não pode ser pedida a suspensão de eficácia de um acto dela completamente despido (cfr. art.º 116.º, n.º 2, al. d), do CPTA)

Por outro lado a mesma situação, mas no que respeita à acção principal, em que não existe despacho liminar, sempre conduziria à absolvição dos réus da instância.

Contudo, tendo em conta os princípios anti-formalista e pro accione, entende-se que estas irregularidades de ambas as petições (do processo cautelar e do processo principal) não devem merecer a sanção que de outro modo seria incontornável por se considerar que as deficiências de que as petições padecem se devem a meros erros técnicos consubstanciados, além do mais, numa deficiente formulação da pretensão, e por isso susceptíveis de serem interpretados num contexto de aproveitamento de ambas, visto que é manifesto que o autor/requerente pretende atacar o acto que na ordem jurídica lhe impôs a pena que discute. Tanto mais que, como adiante se demonstrará, o desfecho final é inteiramente favorável ao réu/requerido Exército Português, sendo por isso de aplicar o comando normativo constante do art.º 288.º, n.º 3, do CPC.


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Não há nulidades processuais.

As partes têm personalidade e capacidade judiciária.

O autor e o Exército Português são partes legítimas.


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b) - Da legitimidade do réu Ministério da Defesa Nacional.

O autor intentou o processo cautelar contra o Ministério da Defesa Nacional e Exército Português e a acção principal apenas contra este último.

Pese embora as competências e atribuições que o art.º 14.º e 20.º da Lei n.º 31-A/2009, de 7 de Julho (Lei de Defesa Nacional) cometem, respectivamente, ao Ministro da Defesa Nacional e ao Ministério da Defesa Nacional, o art.º 18.º, n.º 2, al. f), da Lei n.º 1-A/2009, de 7 de Julho (Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas), atribui aos dos Chefes de Estado Maior dos Ramos competências no âmbito da justiça militar e para administrar a disciplina no respectivo ramo.

Por seu lado o art.º 21.º da citada lei, sob a epígrafe “Disposições comuns”, tem esta redacção:

1 - Dos actos do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e dos Chefes do Estado-Maior dos ramos não cabe recurso hierárquico.

2 - Nos processos jurisdicionais que tenham por objecto a acção ou omissão de órgãos das Forças Armadas em matérias de disciplina e de administração de pessoal, parte demandada é o Estado-Maior-General das Forças Armadas ou o respectivo ramo, conforme os casos, sendo representados em juízo por advogado ou por licenciado em direito com funções de apoio jurídico, constituído ou designado pelo respectivo Chefe do Estado -Maior.

Conjugando estas disposições com o disposto nos artigos 124.º, n.º 1 e 2, 125.º, n.º 1, e 133.º, n.º 1, do R.D.M, aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22 de Julho (doravante RDM), não sobram dúvidas de que o Chefe de Estado-Maior do Exército tinha (e teve) a última palavra no processo.

Por conseguinte, não tem o Ministério da Defesa Nacional qualquer interesse em contradizer no presente processo, cujo desfecho lhe é de todo indiferente. Ou seja, não lhe aproveita o conceito de legitimidade passiva plasmado no art.º 26.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC, nem é parte na relação material controvertida (cfr. art.º 9.º, n.º 1, do CPTA). Deve, pois, ser declarada a sua ilegitimidade passiva, nos termos do art.º 10.º, n.º 1, do CPTA, e excluído da causa.

Em face do exposto julga-se o Ministério da Defesa Nacional parte ilegítima no processo cautelar, absolvendo-se em consequência da respectiva instância.

Custas pelo autor, nesta parte, nos termos a fixar a final.


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Não há outras excepções dilatórias ou nulidades de que cumpra conhecer.

O processo fornece todos os elementos para uma decisão segura e conscienciosa.


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3 – Fundamentação

a) - De facto
1. O autor é oficial do Exército em regime de contrato, com a patente de Tenente, e a especialidade de técnico de manutenção de armamento e munições (fls. 7 a 14 do PI).
2. Em 22-09-2009 foi colocado no DGME (fls. 7 a 14 do PI).
3. O autor desempenhou as funções de oficial de dia ao DGME entre as 09H30 do dia 15-06-2011 e as 09H30 do dia 16-06-2011.
4. No dia 15 e à hora da 2.ª refeição (almoço) foi informado por inferiores que o bacalhau com broa apresentava um cheiro intenso.
5. Dirigindo-se aos refeitórios onde a refeição estava a ser distribuída, constatou que o bacalhau apresentava esse cheiro intenso, que o autor qualificou como “nauseabundo”, e que a refeição havia sido recusada pela maior parte dos militares, oficiais, sargentos e praças, sendo apenas consumido por alguns deles.
6. Depois da formatura de reinício dos trabalhos, pelas 13H50, contactou telefonicamente o Serviço de Analises Clínicas do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos e o Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica da Direcção de Saúde (Repartição Veterinária), com o intuito de solicitar a presença desta última Entidade nas instalações do Quartel, para que fossem recolhidas amostras dos géneros alimentícios confeccionados naquele dia (fls. 15 e 16 do PI).
7. Dessa diligência não deu qualquer conhecimento prévio à cadeia de comando do DGME, designadamente ao seu Director, que nesse momento não se encontrava na unidade.
8. Vieram a ser recolhidas amostras dos géneros alimentares distribuídos no almoço desse dia, entre as 17H10 e as 18H30, pelo Capitão Veterinário José .........., do Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica do Exército Português.
9. Com data de 16-07-2011 o TCOR António ...................... dirigiu ao Director do DGME uma participação do seguinte teor:
Para os devidos efeitos legais, participo que no dia 15 de Junho, pelas 16 horas e 20 minutos, tomei conhecimento de que o Oficial de Dia à Unidade, Ten RC ................. GONÇALO ........................., havia contactado uma entidade exterior à Unidade, a fim de solicitar a sua presença no DGME, sem que para isso tenha solicitado a respectiva autorização junto da SOIS ou à Cadeia de Comando. Refira-se ainda que toda a Cadeia de Comando se encontrava na unidade.
10. O participante indicou duas testemunhas: o Maj SGE ............ MANUEL..................e o SMor MAT .............. JOÃO ....................
11. Por despacho do Director do DGME de 21-06-2011 foi ordenada a instauração de processo disciplinar contra o autor, nestes termos:
Considerando que os factos constantes da Participação de Ocorrência de 16JUN11, elaborada pelo Sr. TCOR MAT ENG ANTÓNIO ..................., indiciam a pratica de infracção disciplinar, instaure-se Processo Disciplinar contra o TEN RC NIM.............. GONÇALO ......................., nos termos previstos no Regulamento de Disciplina Militar (RDM) e, designadamente, dos Art.os 7.º, 74.º e 75.º do referido Regulamento.
Nos termos do Art.° 90.° do RDM, nomeio para Oficial Instrutor deste Processo Disciplinar, a TENENTE RC NIM ................INÊS ..................., deste DGME a quem faço entrega do presente despacho e demais documentos.
12. No dia imediato (22-06-2011), o arguido foi notificado da instauração do processo disciplinar e para, designadamente, apresentar defesa e meios de prova em seu benefício (cfr. doc. de fls. 15 e 16 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
13. O arguido foi ouvido em declarações prestadas perante a oficial instrutor no dia 27-06-2011, tendo exarado as que constam do documento de fls. 18 e 19 do PI (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido), confessando os factos que lhe eram imputados mas dando a sua versão dos mesmos.
14. No mesmo dia foi inquirido o participante, TCor Ferraz .............., que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 21 e 22 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
15. No dia 28-06-2011 foi inquirida a testemunha Maj SGE Manuel ........................, que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 23 e 24 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
16. Ainda no dia 28-06-2011 foi inquirida a testemunha SMor João .........................., que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 25 e 26 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
17. No dia 29-06-2011 foram inquiridas as testemunhas Primeiro-Cabo Fábio ............... e SSar Liliana ..................., que exararam as declarações constantes dos docs., respectivamente, de fls. 27/28 e 29/30, do PI, cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos.
18. No dia 30-06-2011 foi inquirida a testemunha PSar António ......................., que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 31 e 32 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
19. No dia 01-07-2011 foram inquiridas as testemunhas Primeiro-Cabo Vasco ......................, o SCh Renato ................., o Cap. Alcino .................. ................. e o Maj. João .........................., que exararam as declarações constantes dos docs., respectivamente, de fls. 33/34 e 35/36, 37/38 e 39/40, do PI, cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos.
20. No dia 05-07-2011 foi inquirida a Soldado Sofia ......................, que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 41/42, do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e que refere, designadamente, que no decorrer da 2.ª refeição “o Tenente Corceiro deu-lhe indicação para preparar sandes de omoletes de ovos para serem distribuídas aos militares de serviço, pelo que assim procedeu, tendo entregue as sandes indicadas na Casa da Guarda”.
21. No dia 06-07-2011 foi inquirida o SAJU Manuel ..................................., que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 43/44, do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, referindo além do mais «que questionou [o oficial de dia] se o Sr. Director estaria informado daquela situação [chamada para o Laboratório], ao que o mesmo respondeu que “não tinha de informar ninguém, uma vez que era o Oficial de Dia”».
22. Em 07-07-2011 a oficial instrutor deduziu e entregou ao arguido Corceiro a nota de culpa do seguinte teor:
Nos termos do Art.° 98.° do Regulamento de Disciplina Militar (RDM), aprovado pela Lei Orgânica n.° 22009 de 22 de Julho, é deduzida contra o TENENTE PC NIM ................... GONÇALO ................................, a seguinte Acusação:

1.º
No dia quinze do mês de Junho do ano de 2011, após distribuição da 2.ª refeição no DGME, encontrando-se de serviço como Oficial de Dia a esta Unidade, sem ter informado os seus superiores hierárquicos e sem estar devidamente autorizado, contactou telefonicamente o Serviço de Analises Clínicas do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos e o Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica da Direcção de Saúde (Repartição Veterinária), com o intuito de solicitar a presença desta última Entidade nas instalações do Quartel, para que fossem recolhidas amostras dos géneros alimentícios confeccionados naquele dia.
2.º
Na mesma data, entre as quinze e as dezasseis horas, dirigiu-se ao Chefe da Secção de Alimentação, o Sr. Sargento-Ajudante NIM ............... Manuel ..............., a quem comunicou o facto de que iria comparecer, na Cozinha do DGME a Entidade que havia contactado - o Sr. Capitão Veterinário José ........ -, e de que ali iriam ser recolhidas amostras dos géneros em questão.
3.º
Em virtude de não ter fornecido qualquer informação do contacto que efectuou ou da confirmação da vinda da Equipa em causa ao Quartel à Direcção do DGME, foi a mesma informada daquela situação, nomeadamente, o Sr. Director, através do Chefe da Secção de Alimentação - o Sr. Sargento-Ajudante M. Vitorino.
4.º
Assumiu o facto de ter procedido ao contacto telefónico com as Entidades indicadas, de ter solicitado e confirmado a presença da respectiva Equipa nas instalações do DOME, nas circunstâncias supracitadas, sem ter transmitido qualquer informação prévia ou obtido a devida autorização junto do seu Comando Hierárquico, o qual se encontrava presente no DGME na altura da ocorrência dos factos em causa.
Com a conduta descrita, o Arguido TENENTE RC, GONÇALO ...............violou o dever de lealdade, previsto no Art.° 16.º n.° 1 e n.º 2, alíneas b) e c) do RDM, cometendo assim infracção disciplinar a sancionar com uma das penas previstas no Art.° 30.° do RDM.
6.°
Verifica-se que o Arguido é abrangido pela circunstância atenuante prevista no Art.° 41.° alínea e) do RDM.
Milita contra o Arguido a circunstância agravante constante da alínea d) do Art.° 40.° do RDM.
8.º
Nos Termos do n.º 1 do Art.° 99.° do RDM é conferido ao Arguido o prazo de 10 dias úteis para apresentar a sua defesa por escrito, podendo dizer ou requerer o que tiver por conveniente para a mesma e indicar quaisquer meios de prova, tendo ainda o direito de escolher defensor ou constituir advogado.
Nos termos do n.° 2 do Art.° 103.° do RDM, serão indeferidas todas as diligências requeridas, que sejam meramente dilatórias, impertinentes ou desnecessárias, ou sejam considerados suficientemente provados os factos alegados pelo Arguido na sua defesa.
Nos termos do n.° 5 do Art.º 102.° do RDM, a não apresentação de defesa dentro do prazo fixado vale como efectiva audiência do Arguido para todos os efeitos Iegais.
23. Por fax enviado a 19-07-2011, pelas 17H14, o arguido apresentou a sua defesa escrita, subscrita pela sua advogada, nos termos que constam do doc. de fls. 64 a 66 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, requerendo a audição de 8 (oito) testemunhas a factos que indicou, bem como a prestação do seu próprio depoimento.
24. Das testemunhas indicadas duas, Fábio ................. e Sofia ......................., já tinham sido inquiridas pela oficial instrutor (cfr. supra, n.os 17 e 20).
25. E requereu ainda que fosse junto “o texto integral” do relatório pericial às amostras referidas em 8, supra.
26. Em 21-07-2011 a oficial instrutor indeferiu as diligências de prova requeridas pelo arguido com esta argumentação:
Em resposta ao Fax recepcionado nesta Subsecção de Justiça em 21JUL12, em que é solicitado o adiamento da audição requerida em defesa escrita, reportada ao Processo Disciplinar N.° 71//11, que corre seus trâmites na Subsecção de Justiça deste DGME, nos termos dos Art."8 81.° e 103.° n.° 1 do RDM, é concedido o prazo máximo para a prossecução deste trâmite processual até ao dia 10 de Agosto de 2011 (inclusive).
Sublinha-se o facto de, mediante a alegação efectuada por parte do TENENTE RC NIM .............. GONÇALO ................................, da impossibilidade da sua deslocação a esta Unidade através de meios próprios, ter sido disponibilizado o referido transporte em viatura militar do DGME, na data marcada para a audição requerida pelo mesmo, o qual confirmou a sua comparência nesta Subsecção de Justiça em 210900JUL11, com o Oficial Instrutor do processo de que foi constituído Arguido.
Considerando que as demais diligências requeridas na defesa escrita apresentada em 20JUL2011 pelo Arguido do presente processo disciplinar, o TENENTE RC GONÇALO ......................, não oferecem relevantes meios de prova, susceptíveis de sustentar a sua inocência ou de contrariar os factos de que foi acusado, constantes dos n.° s 1.° a 7.° da respectiva Acusação datada de 07JUL2011, que constituem infracção disciplinar, por violação do dever de lealdade, previsto no Art.° 16.° n.° 1 e n.° 2 alíneas b) e c) do RDM, designadamente, a sua conduta demonstrada em acto de serviço, em que, como Oficial de Dia ao DGME no dia 15JUN2011, procedeu ao contacto telefónico com Entidades exteriores à sua Unidade, tendo solicitado e confirmado a comparência das mesmas nas instalações do Quartel, sem que para tal tenha transmitido qualquer informação prévia ou obtido a devida autorização junto do seu Comando Hierárquico, o qual se encontrava presente no DGME e facilmente contactável, nomeadamente, através do telemóvel de serviço distribuído ao Oficial de Dia, verifica-se que as mesmas assentam sobre pressupostos colocados pelo Arguido, relativos à qualidade da alimentação confeccionada e ao procedimento de recolha da respectiva amostra, factos passíveis de serem confirmados pelas inquirições em questão.
O objecto em apreciação no referido processo, afere-se à violação do dever supracitado, perante o qual, as testemunhas oferecidas, não se poderão pronunciar, pelo que, face ao exposto c, nos termos do Art.° 94.° n.° 5 do RDM, indefiro as diligências requeridas, em virtude de se revelarem desnecessárias e dilatórias ao apuramento da verdade, colocando em causa os princípios da celeridade e simplicidade que implicam o procedimento disciplinar, em conformidade com o disposto no Art.81,° do RDM.
27. Por requerimento que deu entrada no DGME em 25-07-2011, o arguido/autor pronunciou-se sobre o indeferimento das diligências que requereu alegando, em síntese, que estas eram essenciais para a sua defesa por visarem a prova de factos que excluiriam a sua responsabilidade disciplinar, pelo que a não realização das mesmas obstava à sua defesa, inquinando o processo disciplinar (doc. de fls. 79/80, do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
28. O arguido/autor foi de novo ouvido em declarações, tendo exarado as declarações que constam do doc. de fls. 83/84 do PI, cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido, onde refere, nomeadamente, que não pretendeu ser desleal para com os seus superiores hierárquicos ao não informar a Direcção do pedido de realização de análises aos alimentos, mas apenas obter rapidez na realização da mesma, a fim de evitar que a situação se repetisse, e que quando questionado pelo Director cerca das 15H30 respondeu afirmativamente à pergunta sobre se tinha efectuado pedido de chamada do Laboratório Militar.
29. Em 10-08-2011 a oficial instrutor deduziu o relatório final que na parte que interessa é do seguinte teor:
“Da prova produzida resultou provado:
Que no dia quinze do mês de Junho do ano de 2011, após decorrida a distribuição da 2.ª refeição no DGME, o Arguido, encontrando-se de serviço como Oficial de Dia a esta Unidade, sem informar os seus superiores hierárquicos e sem estar devidamente autorizado procedeu ao contacto telefónico com o Serviço de Análises Clínicas do Laboratório Militar de Produtos Químicos Farmacêuticos e com a Repartição Veterinária do Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica da Direcção de Saúde (conforme consta da Participação da fls. 03 e dos Autos de Inquirição das fls. 21 a 34, 39, 40, 43 e 44).
Que solicitou e confirmou a vinda daquela Entidade às instalações do DGME, para aí serem recolhidas amostras dos géneros alimentícios confeccionados naquele dia, nomeadamente, de bacalhau (em conformidade com o constante na Participação da fls. 03, no Relatório do Oficial de Dia da fls. 04 e nos relatos das testemunhas inquiridas das fls. 23 a 34, 43 e 44).
Que, entre as quinze e as dezasseis horas, nas imediações da Cozinha do DGME, comunicou o facto de que iria ali comparecer a Entidade que havia contactado ao Sr. Sargento-Ajudante NIM ................ Manuel ............ - Chefe da Secção de Alimentação -, encontrando-se junto deste, a Segundo-Sargento NIM ...............Liliana ............. e o Primeiro-Cabo NIM ..............Fábio ............... (comprovado pelas Inquirições das fls. 27 a 29, 43 e 44).
Que a Direcção do DGME, que desconhecia a atitude tomada pelo Arguido referente aos contactos a que o mesmo procedeu, foi informada daquela situação, através do Sr. Sargento-Ajudante M. Vitorino, que ao ter conhecimento da mesma, contactou o Sr. Director, tendo-lhe relatado o sucedido (consoante Testemunhos obtidos nas fls. 27 a 29, 43 e 44).
Que posteriormente, junto à Casa da Guarda, enquanto aguardava a chegada dos elementos da equipa em questão, afirmou ao Sr. Sargento-Mor NIM ................ João ..............., que havia contactado as Entidades em questão, por iniciativa própria e sem ter pedido autorização ou dado conhecimento à sua Cadeia de Comando, visto ter julgado que a alimentação distribuída naquele dia não estaria nas melhores condições (tal como relato testemunhal nas fls. 23 a 26).
Que, na mesma data, às dezassete horas e dez minutos, deram entrada no DGME os elementos da equipa do Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica da Direcção de Saúde (Repartição Veterinária) - Capitão VET José ............e Primeiro-Cabo RC Joana .............. -, os quais procederam à referida recolha de amostras e saíram do Quartel às dezoito horas e trinta minutos (ocorrências evidenciadas nas fls. 23 a 28, 31 a 34, 43, 44 e 46).
Que a recolha de amostras dos géneros alimentícios confeccionados e distribuídos na 2.ª refeição de 15JUN2011, efectuada no interior das instalações da Cozinha do DGME, pelos elementos da equipa do Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica da Direcção de Saúde (Repartição Veterinária), foi acompanhada pelo Arguido, juntamente com o Sr. Sargento-Ajudante M. Vitorino, o Primeiro-Cabo F. Nunes e a Soldado NIM .............. Sofia ................ (testemunhado nas fls. 23 a 26 e 41 a 44).
Em Auto de Declarações (fls. 18 a 20), o Arguido confessou de livre e espontânea vontade o facto de não ter transmitido qualquer informação prévia ou obtido a devida autorização junto do seu Comando Hierárquico, o qual se encontrava presente no DGME no momento em que procedeu ao contacto telefónico com as Entidades supracitadas, às quais solicitou e confirmou a respectiva comparência nas instalações do Quartel”.
Factos não provados:
Não foram apurados os factos invocados pelo Arguido nos Art.os 18.° a 22.° e 25.° ao 33.° da sua defesa escrita, os quais se limitaram a reportar a alegação de ter agido sob pressupostos de falhas de qualidade na alimentação confeccionada no DGME, nomeadamente, no que se refere à formação dos cozinheiros que ali prestam serviço e à verificação periódica de géneros alimentícios, tal como ao procedimento de recolha das amostras dos alimentos em questão, e, eventuais repercussões na avaliação efectuada pelo Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica da Direcção de Saúde (Repartição Veterinária).
Mediante o supracitado, constatou-se que, durante o decurso dos prazos delineados para apresentação de defesa e cumprimento das diligências requeridas na mesma, perante a acusação de que o Arguido foi notificado, não foram apresentados meios de prova susceptíveis de a contrariar, nem sustentáveis para confirmação da sua inocência ou atenuação da infracção cometida, em virtude de o objecto em causa no presente procedimento disciplinar se referir à conduta adoptada pelo mesmo em acto de serviço, que, enquanto Oficial de Dia, procedeu ao contacto telefónico com Entidades exteriores à sua Unidade, solicitou e confirmou a presença daquelas nas instalações do Quartel, sem que para tal tenha transmitido qualquer informação prévia ou obtido a devida autorização junto do respectivo Comando Hierárquico, o qual se encontrava presente na altura da ocorrência e facilmente contactável.
9. Os factos provados ao longo da instrução do presente processo revelam que o Arguido contactou, sem a necessária autorização e sem informar previamente o seu Comando Hierárquico - que se encontrava presente na Unidade -, o Serviço de Análises Clínicas do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos e o Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica da Direcção de Saúde (Repartição Veterinária), tendo solicitado e obtido a respectiva confirmação da comparência desta última entidade nas instalações do DGME, constituindo assim, infracção disciplinar por violação do dever de lealdade, previsto no Art.° 16.0 n.° 1 e n.° 2 alíneas b) e c) do RDM.
10. Verifica-se que é abrangido pela circunstância atenuante prevista no Art.° 41.0 alínea c) do RDM.
11. Milita contra o Arguido a circunstância agravante constante da alínea d) do Art.° 40.° do RDM.
CONCLUSÕES
Que o Arguido, o TENENTE RC ........................, procedeu ao contacto telefónico com entidades externas à sua Unidade, tendo solicitado e confirmado a presença das mesmas no Quartel do DGME, nas condições descritas em 7. a) b) c) d) e e).
Que com a conduta supracitada, o Arguido cometeu infracção disciplinar pela violação do dever de lealdade, previsto no Art.° 16.° n.° 1 e n.° 2 alíneas b) e c) do RDM.
Que o Arguido, em auto de declarações, confessou os factos de que vinha acusado.
Nos termos do disposto no Art.° 39.° do RDM, deverá ser considerado o elevado grau de ilicitude dos factos constatados e de culpa do Arguido na graduação da medida da pena a aplicar, a sua conduta anterior e posterior à infracção em causa, tal como a circunstância agravante constante da alínea d) do Art.° 40.° do RDM.
13. Face ao que foi exposto, tendo por base as provas produzidas, factos não provados no presente processo e, de acordo com o artigo 39.° do RDM, em conjunção com o quadro Anexo B do RDM, que define a competência punitiva do Sr. Director deste DGME, temos uma moldura disciplinar até 15 dias para proibição de saída, até 10 dias de suspensão de serviço ou até 5 dias de prisão disciplinar.
30. Em 23-08-2011 o Director do DGME proferiu o seguinte despacho:
“Em cumprimento do meu despacho de 21 de Junho de 2011, constante dos Autos, a fls. 02, procedeu-se à instrução do presente processo, destinado a apurar a responsabilidade disciplinar do TENENTE RC NIM ................GONÇALO ............................ pela prática dos factos constantes na Participação de Ocorrência datada de 16JUN2011, elaborada pelo Sr. TENENTE-CORONEL MAT ENG ANTÓNIO ................................., a fls. 03.
Concordo na íntegra com as conclusões do Oficial Instrutor do presente processo, pelo que considero provada toda a matéria como tal consignada no relatório, o qual aqui dou por integralmente reproduzido.
Com interesse para a causa, resultou provado o seguinte:
Que no dia quinze do mês de Junho do ano de 2011, o Arguido, encontrando-se de serviço como Oficial de Dia ao DGME, após decorrida a distribuição da 2.ª refeição, sem estar devidamente autorizado e sem informar os seus superiores hierárquicos, através da Cadeia de Comando presente na Unidade, procedeu ao contacto telefónico com o Serviço de Análises Clínicas do Laboratório Militar de Produtos Químicos Farmacêuticos e com a Repartição Veterinária do Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica da Direcção de Saúde.
Que solicitou e confirmou a comparência daquela Entidade no Quartel do DGME, para aí serem recolhidas amostras dos géneros alimentícios confeccionados naquele dia, tendo a respectiva Equipa dado entrada na Unidade, pelas dezassete horas e dez minutos, e saído pelas dezoito horas e trinta minutos, após efectivada a referida recolha de amostras no interior das instalações da Cozinha.
Que fui informado acerca do contacto efectuado pelo Arguido, entre as quinze e as dezasseis horas do mesmo dia, através do Sr. Sargento-Ajudante NIM ..............Manuel .............. - Chefe da Secção de Alimentação do DGME -, ao qual o Arguido comunicou que a Entidade que havia contactado iria comparecer nas instalações da Cozinha do DGME para proceder à recolha em questão.
Que confessou de livre e espontânea vontade o facto de não ter transmitido qualquer informação prévia ou obtido a devida autorização junto do seu Comando Hierárquico, o qual se encontrava presente no DGME no momento em que procedeu ao contacto telefónico com as Entidades supracitadas, às quais solicitou e confirmou a respectiva comparência nas instalações do Quartel.
Com a conduta descrita, o Arguido, cometeu infracção disciplinar por violação do dever de lealdade, previsto no Art.° 16.° n.° 1 e n.° 2 alíneas b) e c) do RDM.
A sua conduta é especialmente censurável por revelar falta de franqueza e sinceridade para com os seus superiores hierárquicos durante o serviço, constituindo um péssimo exemplo para todos os militares que da mesma tiveram conhecimento, sobretudo, para aqueles a quem o mesmo relatou a forma como agiu, nomeadamente, a inferiores hierárquicos.
Assim, atendendo ao elevado grau da ilicitude dos factos e de culpa do infractor, à responsabilidade decorrente do seu posto e natureza do serviço desempenhado, à sua personalidade, aos resultados perturbadores na disciplina desta Unidade, tal como à sua conduta anterior e posterior e demais circunstâncias em que a infracção foi cometida, ponderadas as circunstâncias agravantes e atenuantes aplicáveis ao caso em questão, previstas respectivamente, na alínea d) do Art.° 40.° do RDM e na alínea c) do Art.° 41.0 do RDM, PUNO com sete (07) dias de proibição de saída o TENENTE RC GONÇALO ..................”.
31. O arguido/autor foi notificado da decisão punitiva em 25-08-2011.
32. Em 08-09-2011 o arguido interpôs recurso hierárquico para o CEME;
33. Em 09-11-2011 o CEME concedeu provimento ao recurso e anulou todo o processado posterior à defesa apresentada pelo arguido, a fim de serem inquiridas as testemunhas por si indicadas;
34. Tendo o processo sido devolvido em 23-11-2011, ao DGME;
35. No dia 25-11-2011 foi inquirida o Primeiro Cabo Fábio .................., que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 123/124 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, a Soldado Joana Raquel Nunes Rego, que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 125/126 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, o Soldado Nuno ......................, que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 127/128 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e a Soldado Sara ........................., que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 129/130 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
36. No seu depoimento a Soldado Joana ..................... refere, além do mais, que dos oficiais apenas dois consumiram a refeição e que cerca das 15H00, encontrando-se junto ao Parque Auto ter ouvido o arguido dizer «para os camaradas que aí se encontravam “já os chamei”, ao que lhe perguntou “chamou quem?” e aquele respondeu “o Laboratório Militar”, pelo que lhe indagou se havia avisado o Sr. Director, tendo o mesmo declarado “sou o Oficial de Dia, quem manda sou eu!”».
37. No seu depoimento a Soldado Sara ......................., que disse ser cozinheira do DGME, referiu que “as travessas com o referido bacalhau regressaram à Cozinha”.
38. No dia 30-11-2011 foi inquirida a Soldado Sofia ......................, que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 131/132 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e onde refere que almoçou o bacalhau com broa, “não tendo sofrido qualquer má-disposição”, e a Soldado Neuza ....................., que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 133/134 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
39. Nesse mesmo dia foi junto o Relatório Técnico elaborado pela equipa do Laboratório de Bromatologia, que constitui o doc. de fls. 136 a fls. 143 do PI e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
40. O teor do referido relatório, não incluindo as referências de natureza técnica, é o seguinte:
No dia 15 de Junho de 2011 o Capitão VET José ....................... realizou uma visita de Apoio Técnico ao Sector de Alimentação do Depósito Geral de Material do Exército (DGME) em Alcochete.
Objectivo
A visita teve como objectivo a avaliação higio-sanitária de bacalhau armazenado e da 2.ª refeição do dia 15JUN2011 (bacalhau c/broa). Foram ainda recolhidas amostras da 2.ª refeição do dia 15JUN2011 para análise microbiológica.
B) Situação
Em 151550JUN2011 o Oficial de Dia ao DGME solicitou por CONTEL apoio ao Laboratório de Bromatologia/CMMV/DS no sentido de ser avaliada a salubridade da 2.ª refeição desse dia (queixas de cheiro anormal), e subsistindo algumas dúvidas sobre o estado de salubridade dos géneros alimentícios utilizados na confecção dessa refeição.
Em 151720JUN2011 o CAP VET José ....................... visitou o sector de alimentação do DGME acompanhado pelo Oficial de Dia ao DGME e pelo responsável do sector de alimentação desta Unidade (SAJ Vitorino).
Foram recolhidos e transportados para o Laboratório os frascos de vidro contendo a totalidade das amostras testemunha da refeição (2 frascos correspondendo a 2 amostras). Foi declarado que todo o bacalhau armazenado tinha sido utilizado na confecção desta refeição não existindo reservas deste género alimentício em armazém.
C) Discussão
A intervenção do Laboratório de Bromatologia teve como principal finalidade a prevenção de surto de toxinfecção alimentar através de apoio directo ao DGME na área da segurança alimentar, conforme configura a sua missão.
A avaliação das características organolépticas das 2 amostras testemunha não revelou alterações perceptíveis; designadamente não foram detectados cheiro ou cores anormais. Entendeu o CAP VET José ...............recolher/transportar a totalidade das amostras para o Laboratório por considerar que a quantidade da amostra poderia não ser suficiente para a realização das análises microbiológicas.
As análises microbiológicas às amostras testemunha revelam que todos os parâmetros estão dentro dos limites de aceitabilidade com excepção do número de microrganismos aeróbios mesofilos ligeiramente acima do valor de referência na amostra 769. Não foram detectados agentes patogénicos, nem indicadores de contaminação fecal. Estes resultados indiciam que, do ponto de vista microbiológico, a qualidade da refeição amostrada é aceitável.
Conclusões
A investigação e esclarecimento de situações anómalas verificadas no âmbito da segurança alimentar nas U/E/O do Exército Português constitui elemento essencial para a prevenção de toxinfecções de origem alimentar (por acção não-deliberada ou deliberada). Estas situações podem ter implicações directas na preservação da força.
As alterações das características organolépticas (designadamente cheiro) dos géneros alimentícios podem ter muitas origens. Na maior parte dos casos são provocadas pela presença no alimento de substâncias químicas produzidas por alterações de origem microbiana (produção de cheiros amoniacais pela degradação microbiana das proteínas presentes no alimento). Podem também ocorrer por processos puramente químicos (por exemplo a rancificação das gorduras). A inspecção higio-sanitária dos alimentos por técnico especializado pode por vezes fornecer uma indicação singular do processo subjacente. Tendo em consideração os resultados das análises microbiológicas, não é possível esclarecer a origem do alegado cheiro anormal da refeição.
No sentido de prevenir outras situações envolvendo o género alimentício bacalhau salgado seco, recomenda-se à Unidade o atendimento específico de algumas questões (algumas levantadas no relatório de auditoria do dia 18ABR2011 -nossa Informação 79/11 de 09MAI2011-), nomeadamente:
- A armazenagem de bacalhau deverá sempre ser feita a temperaturas de refrigeração
- Deverá existir uma check-list na zona de recepção dos géneros
Sempre que seja detectada alguma inconformidade à recepção dos géneros alimentícios poderá ser contactado o Gabinete de Inspecção Veterinária do Gabinete Coordenador de Controlo da Qualidade da Manutenção Militar.
- As amostras testemunha deverão considerar as características estabelecidas na NEP DS.70.325/14 de 20MAI09 disponível em:
http:// 10.105.0.55/publica/CmdLog/DS/Organização/CMMV/NEPS/NEP%2014.pdf” (fls. 138 a 140)
No anexo do relatório respeitante aos elementos técnicos consta, quanto aos ensaios laboratoriais, que a contagem de microorganismos aeróbios mesofilos ficou acima dos valores de referência (fls. 141 do PI);
41. No anexo do relatório respeitante aos elementos técnicos consta, quanto aos ensaios laboratoriais, que a contagem de microorganismos aeróbios mesofilos ficou acima dos valores de referência (fls. 141 do PI);
42. No dia 05-12-2011 foi inquirida a Primeiro Cabo Diogo .................., que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 144/145 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, o Primeiro Cabo Vasco ........................, que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 146/147 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
43. No dia 06-12-2011 foi inquirida o SAJ Nuno ............................, que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 146/147 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
44. No dia 07-12-2011 foi inquirida a Soldado Patrícia ..........................., que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 150/151 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, tendo dito, além do mais, que apenas o Tenente Coronel Neves e o Aspirante Narciso consumiram o bacalhau com broa, “não tendo os Sargentos consumido o mesmo” e que teve conhecimento do Aspirante Narciso “ter estado doente”.
45. No mesmo dia foi inquirido o ASP João .........................., que exarou as declarações constantes do doc. de fls. 152/153 do PI, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, referindo além do mais que durante a noite se sentiu indisposto, tendo sido assistido nas urgências do Hospital Militar Principal, mas que o médico que o assistiu não relacionou “a comida que consumiu com os sintomas manifestados”.
46. Do Relatório Final elaborada pela oficial instrutor consta, designadamente, o seguinte:
(…)
Da prova produzida resultou provado:
Que mediante as circunstâncias dirimentes da responsabilidade disciplinar apontadas na defesa escrita apresentada pelo arguido, que se referem às alíneas c) e e) do Art.° 43.° do RDM, respectivamente, a legítima defesa própria ou alheia e o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever, com o pressuposto de que "uma vez provadas, implicariam a exclusão da responsabilidade de que […] vinha acusado", através do registo de prova de que "a situação ocorrida no dia 15.06.2011 e que deu origem ao presente procedimento é recorrente no DGME e que, portanto, o comportamento do recorrente ao convocar o Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica do Centro Militar de medicina Veterinária para recolher amostras da alimentação distribuída na 2.ª refeição, pretendeu, por um lado, zelar pela saúde e integridade física dos militares da Unidade e, por outro, evitar a perpetuação de negligência que, nesta matéria, se tem verificado", foram reunidos os testemunhos por aquele enumerados, tendo-se procedido à junção do Relatório da Visita de Apoio Técnico ao DGME, decorrida em 15JUN2011, por parte de uma Equipa do Laboratório de Bromatologia e de Defesa Biológica do Centro Militar de Medicina Veterinária da Direcção de Saúde (Art.º 36.º e 37.º - Defesa).
Que o Arguido declarou ter agido com o intuito do "cumprimento de um dever de zelo pelos seus subordinados, diga-se, restantes militares da Unidade, bem como de uma actuação de legítima defesa, perante a negligência reiterada face à alimentação no DGME, pelo que, no seu entendimento não terá violado o dever de lealdade constante de Art.° 16.° do RDM (Art.º 77.º - Defesa).
Que a audição das testemunhas incidiu sobre a matéria factual recolhida ao longo da instrução, fundamentada com a que foi expressada pelo Arguido na sua defesa escrita, nomeadamente, apontada nos Art.°s 18.°, 20.°; 25.0. 27.". 28.", 29.° e 32.°, tendo sido recolhidos os depoimentos testemunhais arrolados - SAJ SS/MED NIM ............... N. VILHENA. ICAB RC NIM ......................F. NUNES, SOLD RC N ............... S. FERREIRA, SOLD RC NIM ................. S. SOUSA, SOLD RC NIM .................. P. SANTOS, SOLD RC NIM ..............J. REGO, SOLD RC DISP NIM ................. N. AIRES e SOLD RC NIM ............. N. SANTOS - e, ainda, os respeitantes aos militares referenciados ao longo destas últimas inquirições ASP OF RC NIM ............ J. NARCISO, 1CAB RC DISP NLM .............D. LOPES, 1CAB RC NIM ...........V. LEITÃO e SOLD RC NIM ............. S. SOUSA.
Que a matéria alegada em defesa pelo Arguido consistiu em que [...]nenhum dos cerca de 100 Praças e Sargentos comeu o dito bacalhau, tal como os civis do Instituto do Emprego e Formação Profissional presentes na Unidade. e apenas alguns Oficiais o fizeram, tendo as travessas, contendo 40 a 50 quilos de bacalhau, regressado à cozinha quase intactas"(Art.° 18.°), "[..] na Messe de Oficias, apenas o Tenente-Coronel NIM .............. António ...................... comeu uma quantidade muito reduzida) o bacalhau com broa, tendo os restantes Oficiais se recusado afazê-lo. " (Art.° 20.°), "Existe um passado/presente de falta de qualidade e segurança da alimentação servida no DGME, evidenciada pela distribuição de arroz do mar, mousse de chocolate ou bacalhau com broa salgadíssima, impróprios para consumo. " (Art.° 25."), "[..]de os cozinheiros não terem formação, excepto uma, nem que seja interna, na área de alimentação [...] (Art.° 27.°),q que a alimentação distribuída é descuidada, principalmente na quantidade de sal empregue. " (Art.° 28.0), "A segurança e qualidade da alimentação é, pois, matéria negligenciada no DGME." (Art.° 29.") e que "[..] as amostras recolhidas de bacalhau com broa da 2. ° refeição foram trocadas por algumas das postas de bacalhau, entretanto descongeladas/demolhadas, e confeccionadas, que poderiam estar em melhores condições, para complementar o quantitativo necessário à distribuição, o que, naturalmente desvirtuou os resultados. " (Art." 32.°).
A nível testemunhal foi revelado que, fls. 123 a 134 e 144 a 153:
No dia 15JUN201 1, durante a distribuição da 2.ª refeição no DGME, o Arguido, enquanto Oficial de Dia, se dirigiu para o interior da Cozinha, mediante o cheiro intenso emanado pelo prato em questão - bacalhau com broa -, tendo regressado ao Refeitório Geral de Praças, onde afirmou que havia recebido indicação superior para que procedessem ao consumo dos géneros em questão se assim o pretendessem, tendo sido referida a expressão "se quisessem comer comiam [...]”
Foram apontados como tendo consumido o prato supracitado, o Sr. Tenente-Coronel Neves, o Aspirante Narciso e a Soldado Sousa.
Se encontravam a desempenhar funções na Cozinha do DGME naquela data, militares detentores de formação (militar e civil) nas áreas de Alimentação e de Higiene e Segurança no Trabalho, nomeadamente, com a Especialidade de Cozinheiros.
Foram recolhidas amostras dos géneros alimentícios confeccionados e distribuídos na 2.ª refeição (bacalhau com broa), em recipientes individuais com peças que emanavam um "cheiro intenso" que foi identificado e de outras que não apresentavam qualquer cheiro, tendo ambas sido entregues à Equipa do Laboratório de Bromatologia e de Defesa Biológica do Centro Militar de Medicina Veterinária da Direcção de Saúde, que compareceu na Cozinha do DGME.
Questionadas acerca da quantidade de sal empregue na alimentação distribuída no DGME, parte das testemunhas inquiridas avaliaram a mesma, como denotando esporádicas situações em que se verifica escassez de sal e outras como em excesso, tendo sido enfatizado por aquelas, o facto de se verificar um esforço por parte dos Cozinheiros para corrigir aquelas situações, no que concerne à confecção das referidas refeições.
Foi ainda referenciado o facto de os géneros alimentícios recepcionados, quando entregues pela Manutenção Militar e armazenados no Depósito de Géneros da Secção de Alimentação do DGME, serem sujeitos a uma avaliação, e, de na altura em que são constatadas condições impróprias dos mesmos, ser proposta a sua devolução, que se efectiva mediante autorização.
f. A nível documental observa-se que, fls. 136 a 142:
No Relatório Técnico elaborado pelo Laboratório de Bromatologia e de Defesa Biológica do Centro Militar de Medicina Veterinária da Direcção de Saúde, após visita ao DGME em 15JUN2011, com as respectivas recomendações técnicas e boletins de resultados das análises microbiológicas efectuadas, consta que "Em 151550JUN2011 o Oficial de Dia ao DGME solicitou por CONTEL apoio ao Laboratório de Bromatologia/CMMV/DS no sentido de ser avaliada a salubridade da 2.ª refeição desse dia (queixas de cheiro anormal), e subsistindo algumas dúvidas sobre o estado de salubridade dos géneros alimentícios utilizados na confecção dessa refeição. Em 151720JUN2011 o CAP VET José .........................visitou o sector de alimentação do DGME acompanhado pelo Oficial de Dia ao DGME e pelo responsável do sector de alimentação desta Unidade (SAJ Vitorino). Foram recolhidos e transportados para o Laboratório os frascos de vidro contendo a totalidade das amostras testemunha da refeição (2 frascos correspondendo a 2 amostras). Foi declarado que todo o bacalhau armazenado tinha sido utilizado na confecção desta refeição não existindo reservas deste género alimentício em armazém. A intervenção do Laboratório de Bromatologia teve como principal finalidade a prevenção de surto de toxinfecção alimentar através de apoio directo ao DGME na área da segurança alimentar, conforme configura a sua missão. A avaliação das características organolépticas das 2 amostras testemunha não revelou alterações perceptíveis; designadamente não foram detectados cheiro ou cores anormais, entendeu o CAP VET José Freitas recolher/transportar a totalidade das amostras para o Laboratório por considerar que a quantidade da amostra poderia não ser suficiente para a realização das análises microbiológicas. As análises microbiológicas às amostras testemunha revelam que todos os parâmetros estão dentro dos limites de aceitabilidade com excepção do número de microorganismos aeróbios mesofilos ligeiramente acima do valor de referência na amostra 769. Não foram detectados agentes patogénicos, nem indicadores de contaminação fecal Estes resultados indiciam que, do ponto de vista microbiológico, a qualidade da refeição é aceitável." (extracto publicado na O.S. N.° 128/DGME/13JUL2011, a fls. 143).
Factos não provados:
Apurados os factos invocados pelo Arguido em sede da sua defesa escrita, verifica-se que, perante a prova testemunhal e documental reunida, não ficou comprovado que agiu sob circunstâncias atenuantes e/ou dirimentes de responsabilidade disciplinar, nomeadamente, as que se referem às alíneas c) e e) do Art.° 43.° do RDM.
7. Os factos que ficaram comprovados no presente procedimento disciplinar, revelam que o Arguido praticou e confessou o contacto que efectivou em 15JUN2011 com o Laboratório de Bromatologia e de Defesa Biológica do Centro Militar de Medicina Veterinária da Direcção de Saúde, sem ter informado ou obtido qualquer autorização prévia para o efeito, junto do seu Comando Hierárquico, que estava presente no DGME, tendo solicitado e confirmado a comparência daquela entidade externa nas instalações do Quartel onde se encontrava de serviço, enquanto Oficial de Dia, pelo que se constata que cometeu infracção disciplinar, face à violação do dever de lealdade, previsto no Art.° 16.° n.° 1 e n.° 2 alíneas b) e c) do RDM.
8. É abrangido pela circunstância atenuante constante do Art.° 41.0 alínea c) do RDM.
9. Milita contra o mesmo a circunstância agravante prevista na alínea d) do Art.° 40.° do RDM.
III
CONCLUSÕES
10. Face ao que foi exposto, concluo pelo seguinte:
Que o Arguido, TENENTE RC GONÇALO ............., encontrando-se de serviço como Oficial de Dia ao DGME em 15JUN2011, após decorrida a distribuição da 2.ª refeição nesta Unidade, contactou telefonicamente o Laboratório de Bromatologia e de Defesa Biológica do Centro Militar de Medicina Veterinária da Direcção de Saúde, tendo solicitado e confirmado a comparência daquela entidade nas instalações do Quartel, tendo agido nas condições expressas em 5. e) e f).
Com a conduta descrita, o Arguido infringiu o dever de lealdade, constante do Art.° 16.° n.° 1 e n.° 2 alíneas b) e c) do RDM.
Os factos alegados na defesa escrita apresentada, não foram sustentados pela prova testemunhal ou documental obtida, nomeadamente, a existência de circunstâncias atenuantes ou dirimentes da responsabilidade disciplinar aplicáveis às circunstâncias em que a infracção em causa foi cometida.-/
Nos termos do disposto no Art.° 39.° do RDM, na graduação da medida da pena a aplicar, deverá ser considerado o elevado grau de ilicitude dos factos provados e de culpa do Arguido, assim como, a sua conduta anterior e posterior à infracção constatada e a circunstância agravante prevista na alínea d) do Art.° 40.° do RDM.
11. Face ao supracitado, perante as provas produzidas e factos não provados, reunidos ao longo do presente processo, de acordo com o artigo 39.° do RDM, conjugado com o quadro Anexo B do RDM, o qual define a competência punitiva do Sr. Director deste DGME, poderá ser aplicada a moldura disciplinar de até 15 dias de proibição de saída, 10 dias de suspensão de serviço ou 5 dias de prisão disciplinar.
47. Em 22-12-2012 o Director do DGME proferiu o seguinte despacho:
Em cumprimento do meu despacho de 24 de Novembro de 2011, constante dos Autos, a fls. 114, procedeu-se à reabertura do presente processo, a fim de ser cumprido o disposto no Despacho Decisório de 09NOV2011 de Sua Excelência o General Chefe do Estado-Maior do Exército, mediante as circunstâncias dirimentes de responsabilidade disciplinar alegadas em defesa escrita e recurso hierárquico apresentados pelo TENENTE RC NIM .................. GONÇALO ................................................., fls. 53 a 67 e 96 a 111.
Concordo na íntegra com as conclusões constantes do relatório de 21 DEC2011 do Oficial Instrutor do presente processo, pelo que considero provada toda a matéria como tal consignada no mesmo, o qual aqui dou por integralmente reproduzido, fls. 170 a 174.
Com interesse para a causa, resultou provado o seguinte:
Que no dia quinze do mês de Junho do ano de 2011, o Arguido, encontrando-se de serviço enquanto Oficial de Dia ao DGME, após decorrida a distribuição da 2.ª refeição, praticou e confessou o contacto que efectuou com o Laboratório de Bromatologia e de Defesa Biológica do Centro Militar de Medicina Veterinária da Direcção de Saúde, com o intuito de solicitar e confirmar a comparência daquela entidade externa nas instalações do Quartel, sem que tenha informado ou obtido qualquer autorização prévia junto dos seus superiores hierárquicos, através da devida Cadeia de Comando, que se encontrava presente na Unidade.
Que aquela entidade compareceu, pelas dezassete horas do mesmo dia, no DGME, onde procedeu à recolha de duas amostras dos géneros alimentícios confeccionados naquela data (bacalhau com broa), no interior das instalações da Secção de Alimentação, tendo sido publicado na Ordem de Serviço N.° 128 de 13 de Julho de 2011, o resultado constante do respectivo relatório técnico resultante da referida visita e consequentes análises microbiológicas efectuadas.
Que apenas fui informado acerca do contacto efectivado pelo Arguido, através do Sr. Sargento-Ajudante NIM .............. Manuel Vitorino - Chefe da Secção de Alimentação do DGME à altura dos factos decorridos -, a quem o Arguido comunicou relativamente à comparência e recolha em causa, por parte da entidade que havia contactado.
d) Que em defesa escrita, o Arguido alegou ter agido sob as circunstâncias dirimentes de responsabilidade disciplinar, constantes das alíneas c) e e) do Art.° 43.° do RDM, factos que, devidamente apurados, não ficaram provados, face às provas testemunhais e documentais reunidas, após cumprimento das diligências processuais em questão.
Mediante a conduta supracitada, verifica-se que o Arguido cometeu infracção disciplinar, pela violação do dever de lealdade, previsto no Art.° 16.° n.° 1 e n.° 2 alíneas b) e c) do RDM.
Refira-se que a conduta revelada é fundamentalmente censurável, pela falta de franqueza e sinceridade que demonstrou para com os seus superiores hierárquicos, enquanto se encontrava de serviço como Oficial de Dia, pelo que constituiu um péssimo exemplo para todos os militares que daquela situação tiveram conhecimento, sobretudo, para a quem relatou e expressou a forma como agiu, nomeadamente, no que se refere a inferiores hierárquicos.
Assim, atendendo ao elevado grau de culpa do infractor e da ilicitude dos factos, à responsabilidade decorrente do seu posto e natureza do serviço que se encontrava a desempenhar, e ainda, à sua personalidade, aos resultados perturbadores na disciplina deste DGME, respectiva conduta anterior e posterior e demais circunstâncias em que a infracção foi cometida, ponderadas as circunstâncias agravantes e atenuantes aplicáveis, previstas respectivamente, na alínea d) do Art.° 40.° e alínea c) do Art.° 41.0 do RDM, PUNO com sete (07) dias de proibição de saída o TENENTE RC GONÇALO ...........................
48. O despacho foi notificado à advogada do arguido, por correio registado com AR, expedido em 27-12-2011 (fls. 177 e ss. do PI)
49. O arguido foi notificado a 04-01-2012 (fls. 184 do PI).
50. Em 16-01-2012 o arguido apresentou recurso hierárquico para o CEME;
51. Pela Assessoria Jurídica do Gabinete do General CEME foi elaborado um parecer que concluiu que o recurso hierárquico “deve improceder, confirmando-se o acto recorrido”.
52. Por despacho de 21-03-2012 o General CEME proferiu o seguinte despacho: 1. Homologo. 2. Com os fundamentos do parecer nego provimento ao recurso hierárquico.
53. Em 23-04-2012 o arguido apresentou no TAF de Almada a petição da providência cautelar pedindo que fosse decretada a “suspensão do acto da autoria do Director do DGE, constante do despacho de 22-12-2011 (…)”, que foi distribuída sob o número de processo 366/12.0BEALM.
54. Em 30-05-2012 o TAF de Almada declarou ser “incompetente em razão da matéria para julgar o Presente Processo Cautelar, o que conduz à absolvição da instância, entendendo-se, in casu, como competente o Venerando Tribunal Central Administrativo Sul” (sic).

*

b) O Direito

i) - Intróito

Foi interposto processo cautelar em que se pede o decretamento da providência de suspensão de eficácia do despacho do General Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME) que, negando provimento ao recurso hierárquico, manteve a pena aplicada ao requerente pelo Director do DGME, de sete dias de proibição de saída.

Na acção principal é pedida a anulação desse acto.

Tendo sido decidido antecipar o conhecimento da causa principal, nos termos do art.º 121.º, n.º 1, do CPTA, obviamente que o conhecimento do pedido cautelar fica prejudicado.

Assim sendo, debrucemo-nos sob os contornos da acção, tendo presente que a situação de facto é, em termos gerais, a seguinte:
¾ O arguido e ora autor/requerente, no exercício das funções de oficial de dia ao DGME no dia 15-06-2011 foi informado de que o bacalhau que iria ser servido ao almoço não se encontrava em boas condições.
¾ Tendo constatado que o bacalhau exalava um cheiro intenso e como nesse momento o Director do DGME não se encontrava na unidade, procurou junto de um oficial superior orientação quanto ao procedimento a seguir, tendo-lhe sido dada ordem no sentido da refeição continuar a ser servida, ordem essa que transmitiu às praças. Apesar disso determinou a confecção de sanduíches, para serem distribuídas em lugar do bacalhau, que apenas foi consumido em quantidade reduzida por um Tenente Coronel, o oficial superior anteriormente referido, e por um aspirante a oficial, que veio a ser acometido de mal estar gástrico durante a noite mas que o médico não relacionou com a refeição. Nenhum outro militar evidenciou sinais de intoxicação (de resto mais nenhum consumiu a refeição, como se disse).
¾ Após ter tomado essas medidas o autor pediu a comparência de técnicos do Laboratório de Bromatologia e Defesa Biológica do Centro Militar de Medicina Veterinária do Exército (doravante Laboratório), sem contactar ou obter permissão, previamente, do Director e do Subdirector do DGME, nem dos demais oficiais superiores que se encontravam na Unidade.
¾ A recolha e a posterior análise de amostras da refeição, efectuadas pelos referidos técnicos, não forneceram resultados evidentes de contaminação bacteriológica que pusesse em risco a saúde dos militares que consumissem a refeição.
¾ Com base nestes factos foi-lhe instaurado processo disciplinar e acusado de violação do dever de lealdade, previsto no Art.° 16.° n.° 1 e n.° 2 alíneas b) e c) do RDM, e punido com a pena de sete dias de proibição de saída pelo Director do DGME. Após várias vicissitudes processuais a decisão veio a ser confirmada pelo CEME, que negou provimento ao recurso hierárquico interposto pelo arguido.

É quanto à convocação dos técnicos do Laboratório - atitude que está na base da pena aplicada - que reside a discordância no que concerne aos pressupostos da punição, discordância que se projecta, logicamente, na argumentação jurídica que as partes carrearam para os autos.

Na tese do autor a convocação dos técnicos do Laboratório insere-se no cumprimentos dos deveres que as normas legais e regulamentares lhe impunham que observasse no desempenho das funções de oficial de dia, bem como no exercício de legítima defesa própria e alheia, face ao perigo que para a saúde constituíam os géneros contaminados servidos à segunda refeição.

Para o Director do DGME e para a hierarquia militar tal atitude, não autorizada superiormente nem permitida pelas normas regulamentares, violou o dever de lealdade, por falta de franqueza e sinceridade para com o comando do DGME.

A resposta a dar à questão fundamental - saber se o acto impugnado é ilegal ou não e, consequentemente, se deve se anulado ou mantido - convoca a resolução de três outras questões, cuja definição é essencial para se responder a essa questão magna ou principal: em primeiro lugar, apurar se o quadro normativo regulamentar em vigor no Exército Português, no que concerne aos deveres e competências do oficial de dia, permite ou impõe a este a convocação de peritos estranhos à unidade onde o serviço se desenrole em caso de surto de toxinfecção alimentar e, maxime, no caso de alimentos servidos a uma refeição cujas características organolépticas indiciem algum tipo de contaminação; caso a resposta seja negativa, se a convocação de especialistas pode ser justificada num quadro de legítima defesa. E por último, caso esta segunda resposta seja também negativa, apurar se a conduta empreendida viola o dever de lealdade para com a cadeia de comando da Unidade, o que implica que se apure e densifique o conceito de disciplina militar, como ponto de partida para a definição daquele dever.


*

ii) - O quadro normativo

A primeira questão a abordar consiste em saber, pois, qual a conduta que o autor devia ter adoptado face quadro regulamentar aplicável.

O RGSUE dispõe que o serviço interno nas unidades é contínuo mas tem dois tipos diferentes de desenvolvimento: num, a actividade é normal, isto é, decorre durante os períodos de expediente normal e empenha no serviço orgânico o pessoal próprio de cada órgão e no serviço de carácter geral o pessoal de nomeação diária; no outro, a actividade é reduzida, decorrendo fora dos períodos de expediente normal e é desenvolvida pelo pessoal de nomeação diária, sendo que a transição de um período para o outro deve ser bem definida para demarcar claramente a transferência de responsabilidades (art.º 1.º, n.º 2, al. a).

O RGSUE aponta, neste artigo, duas outras directrizes fundamentais para a compreensão do caso que nos ocupa, ao estipular que “as ordens devem ser dadas em termos de missão a cumprir, através da cadeia de comando e de modo que seja marcado o grau de empenhamento de cada escalão” e que “em todos os actos se deve procurar robustecer a coesão e o espírito de corpo das subunidades orgânicas e órgãos subordinados” (n.º 2, als. e) e f).

O RGSUE estabelece, também, que o serviço nas unidades é contínuo, sendo que nos períodos de actividade normal, a cadeia de comando tem a responsabilidade de todo o serviço orgânico e, à cadeia de nomeação diária, é atribuída a responsabilidade e accionamento dos serviços de carácter geral, não orgânicos, enquanto que nos dias e períodos de actividade reduzida, a cadeia de nomeação diária acciona o serviço da unidade (art.º 20.º, al. a).

A cadeia de nomeação diária compreende, além de outros militares, um oficial de dia cujos deveres (e competências) se encontram consignados no art.º 31.º, sendo que uma dessas competências é de mandar chamar o médico, o veterinário, ou qualquer especialista, quando julgar necessária a sua presença no quartel, mas apenas nos dias e períodos de actividade reduzida [n.º 1, al. n), n.º (2), subal. (i)].

Ora, o dia 15-06-2011 ocorreu a uma quarta-feira, dia normal de trabalho, incluindo no concelho onde está sedeado o DGME (Benavente). Não sendo dia de actividade reduzida nem podendo considerar-se como tal o período do almoço, que não obstante a paragem que provoca se insere no período de expediente normal, segue-se que o autor não tinha competência para pedir a comparência de técnicos do Laboratório, como efectivamente o fez. Mas mesmo que se entendesse que o período de almoço é um período de actividade reduzida, o resultado seria idêntico, pois a chamada foi efectuada depois dessa refeição, em rigor depois da formatura de reinício dos trabalhos, isto é, numa altura em que indiscutivelmente a unidade se encontrava em período de actividade normal.

Contudo, tinha o dever de verificar a qualidade da alimentação confeccionada, antes de mandar executar o toque para as refeições e mandar proceder à sua distribuição [n.º 1, al. n), n.º (1), subal. (c), do art.º 31.º do RGSUE], dever que é densificado no art.º 62.º do RGSUE nestes termos:

1. Antes do toque de refeição, o oficial de dia deve passar pela cozinha a fim de provar a alimentação e verificar que está em condições de ser distribuída. Caso não se verifique essa condição, toma as providências para a imediata substituição da parte da ementa afectada, de acordo com o que estiver determinado.

2. No caso de tal ocorrência se verificar fora das horas de actividade normal, o oficial de dia averigua a quem cabem as responsabilidades e participa superiormente (negrito nosso).

Com este enfoque constata-se que o autor tomou duas decisões que contradizem deveres regulamentares: no que concerne à distribuição da segunda refeição do dia 15-06-2011, optou por fazer intervir a cadeia de comando, quando tinha competência própria que podia exercer sem pedir ordens ao oficial superior; aliás, a sua abstenção aparentemente abrangeu também o dever de verificar a qualidade da alimentação, pois segundo o próprio alega só tomou conhecimento da sua alegada má qualidade pelas queixas dos militares, o que indicia que não procedeu à verificação dos alimentos previamente à sua distribuição. No que respeita à possibilidade de pedir a comparência dos especialistas do Laboratório não se coibiu de exercer uma competência que o regulamento não lhe conferia para o concreto dia em que se encontrava de serviço como oficial de dia.

Mais: decorre do disposto no art.º 58, nº 1, do RGSUE que “a alimentação representa um importante factor de bem-estar físico e psíquico para os militares da unidade. Os alimentos, a água e outras bebidas fornecidas devem ser de boa qualidade, seguros e atenderem às necessidades específicas da actividade, proporcionando uma alimentação saudável, para além de contribuir para um agradável intervalo entre as ocupações do serviço”, cabendo, nos termos do n.º 2, ao comandante da unidade “uma cuidada atenção à alimentação das tropas”, competindo o “controlo de qualidade e segurança alimentar compete ao Serviço Veterinário de Inspecção de Alimentos do Exército” (n.º 2 do art.º 59.º, que tem por epígrafe Competências”, do RGSUE), e sendo a sua qualidade assegurada pelo chefe da secção de alimentação que deve “alertar o canal hierárquico para as necessidades e eventuais não-conformidades encontradas” na qualidade e segurança da alimentação, bem como verificar a qualidade higio-sanitária dos géneros alimentares no momento da aquisição e os géneros entregues à cozinha para confecção, propondo a sua rejeição ou solicitando uma inspecção veterinária caso verifique não-conformidade dos mesmos, sendo seu dever, após a confecção e antes da distribuição, avaliar o alimento confeccionado, garantindo a sua qualidade, após o que de acordo com o horário estabelecido, apresenta uma amostra da ementa ao comandante (cfr. art.º 61.º do RGSUE).

Decorre deste quadro normativo que o autor não detinha competência para, como oficial de dia, pedir a comparência de especialistas do Laboratório a fim de serem recolhidas amostras da refeição para análise. E essa competência também não lhe era reconhecida pela Norma de Execução Permanente (NEP) SOIS.20830/02, de 09-12-2010, do DGME, que tem por objecto a “Segurança e Vigilância do Aquartelamento em Situação Normal”.

Mas o autor argumenta em sentido contrário baseando-se na NEP n.º DS.70.325/14 (fls. 28 e ss. dos autos principais), do Comando da Logística do Exército Português, que tem por assunto “Procedimentos para a Colheita de Amostras de Refeição”

Depois de definir “Toxinfecção alimentar” como a “doença de origem alimentar resultante do consumo de alimentos contaminados com um ou mais agentes causadores de doenças (bactérias e/ou suas toxinas)” e “surto de Toxinfecção alimentar”, caracterizado como o “incidente no qual duas ou mais pessoas experimentam uma doença similar após ingestão de um alimento em comum, confirmado por análise epidemiológica que explicite qual o alimento implicado como fonte da doença” [n.º 4, al. a) (1) e (2)], a referida NEP estabelece que compete ao Comando da Unidade, Estabelecimento ou Órgão, nomear um responsável pela colheita da amostra testemunha, a quem compete recolher a amostra após esta ter sido servida, certificando-se que a recolha obedece aos requisitos previstos quanto à representatividade da refeição e quantidade, à higiene dos utensílios utilizados na recolhe da amostra e à sua conservação [cfr. n.º 4), al. b)], sendo os procedimentos concretos da recolha objecto enunciação exaustiva no anexo A da referida NEP, que tem por destinatárias as várias unidades do Exército, nelas expressamente se contemplando o DGME.

Por conseguinte, desta NEP não decorre que enquanto oficial de dia o autor tivesse competência para pedir a comparência de especialistas do Laboratório para efectuarem a recolha de amostras. Seria admissível e no limite da sua competência, ordenar a recolha de amostras da refeição nos termos regulamentares na impossibilidade de ser contactado o Comando da Unidade (impossibilidade que, contudo e como decorre da matéria de facto, não se verificava).

Também da NEP n.º DS.325/13, de 20-05-2010, do Comando da Logística do Exército Português, relativa aos procedimentos a tomar em caso de surto de toxinfecção alimentar não decorre que cabe ao oficial de dia providenciar pelo pedido de comparência de especialistas do Laboratório; pelo contrário, compete ao comando da unidade, estabelecimento ou órgão tomar as medidas necessárias previstas na NEP, entre as quais não se inclui sequer esse pedido de comparência; pelo contrário, no que concerne à recolha de amostras o procedimento é o inverso, isto é, compete ao comando providenciar pela colheita nos termos regulamentares e de seguida assegurar que são expedidas para o Laboratório.

Resumindo, quanto à questão acima enunciada, que consistia em apurar qual a conduta que o autor devia ter adoptado face aos regulamentos, a resposta é uma só e inequívoca: o autor não estava autorizado, nem lhe estava outorgada competência regulamentar (ou qualquer outra) para mandar chamar os técnicos do Laboratório de Bromatologia.


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iii) - Da legítima defesa

Mas o autor defende-se dizendo que agiu em legítima defesa, própria e alheia, na medida em que poderia estar em eminência um surto de toxinfecção alimentar. Mas esta defesa é, como se verá, claramente improcedente.

Na vertente sancionatória, o direito disciplinar (e sobretudo o direito disciplinar militar), equipara-se ao direito penal, embora seja distinta a natureza das respectivas sanções e os fins que cada uma prossegue (2), já que se num caso e noutro a finalidade é prevenir e reprovar condutas que violam deveres normativamente conformados, no direito disciplinar está em causa o interesse da função e não tanto a protecção de bens jurídicos ou finalidades preventivas ou retributivas (3), como sucede no direito penal.

Contudo, diferentemente do que se passa no direito penal, as infracções disciplinares não são abrangidas pelo princípio da tipicidade no que respeita à ilicitude dos factos, entendo-se até que são inominados os deveres essenciais ao bom e regular funcionamento dos serviços (4).

Porém, é entendimento pacífico que o direito disciplinar é tributário das normas e princípios penais, em tudo o que nele não esteja especialmente regulado, embora não seja unívoca a opinião acerca da primazia na aplicação supletiva ao processo disciplinar das normas e princípios do processo penal. Disso nos dá conta TERESA PIZARRO BELEZA (5), que refere “que a doutrina, ainda que com resistências esporádicas, tem defendido a aplicação, adaptada, de tais ideias e princípios [do direito penal] ao direito disciplinar”.

Para LUIS VASCONCELOS ABREU (6) “como o procedimento disciplinar é um procedimento administrativo especial, de natureza sancionatória, cumpre, em primeiro lugar, no processo de integração de lacunas, esgotado o recurso à analogia dentro do próprio direito processual disciplinar, fazer apelo às normas e princípios do procedimento administrativo em geral (...). Só em seguida se recorrerá às normas e princípios do direito processual penal....”.

Assim, a invocação do conceito de legítima defesa é passível de ser exercida no direito disciplinar e por maioria de razão no direito disciplinar militar, e a sua verificação determina a exclusão da ilicitude por aplicação do princípio da unidade da ordem jurídica consagrado no art. 31º do Código Penal.

O art.º 32.º do Código Penal dispõe que “constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”.

A legítima defesa é, pois, uma reacção legitimada pela ordem jurídica perante uma agressão actual (ou iminente) e ilícita que ameace interesses juridicamente protegidos do próprio ou de terceiro, que de um ponto de vista doutrinal e jurisprudencial se entende dever ser proporcional à ameaça de lesão, isto é, os meios utilizados devem ser apenas os necessários para fazer cessar a agressão. Para além disso a legítima defesa deve estar imbuída de animus defendendi, isto é, deve existir um intuito de defesa por parte do defendente.

Ora, os requisitos da legítima defesa não se verificam no caso em apreço. Por duas ordens de razões.

Em primeiro lugar a situação de toxinfecção alimentar nem sequer se verificou, sendo objectivamente impossível que se verificasse, na medida em que os militares recusaram ingerir os alimentos. Apenas três os terão ingerido (um deles uma cozinheira), e desses apenas um manifestou problemas de saúde. Só que, não só um único caso não preenche o conceito de surto de toxinfecção alimentar, nos termos da NEP citada, como também o médico que assistiu tal militar não viu relação entre o consumo do bacalhau e a doença. Consequentemente, não só esse surto não era iminente - para tanto teria sido necessário que um maior número de militares tivesse consumido os alimentos alegadamente contaminados - como nem sequer se pode afirmar que veio a confirmar-se. De resto é próprio relatório do Laboratório que expressamente afirma a natureza preventiva da sua intervenção no caso em concreto.

Em segundo lugar, mesmo que tivesse existido ou fosse iminente esse surto não seria por certo a chamada dos técnicos do Laboratório que o iria enfrentar e pôr-lhe fim. Com efeito, numa perspectiva de reacção defensiva perante uma hipótese de intoxicação alimentar o procedimento essencial e primordial é providenciar tratamento médico e não pedir a comparência de peritos para investigação e determinação laboratorial das causas que lhe deram origem. É uma conclusão tão óbvia que sobre ela nos dispensamos de expender mais considerações.

E mesmo que a chamada de tais peritos tivesse em vista prevenir situações semelhantes que pudessem ocorrer no futuro, deve dizer-se que tal propósito não é causa de legítima defesa, pois como atrás se salientou o que a justifica é uma agressão actual e eminente e não uma agressão passada ou futura.

Resumindo: a conduta do autor não releva como legítima defesa, pelo que não há qualquer causa excludente da culpa e da ilicitude por esta via.


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iv) - Do dever de lealdade

Concluindo-se que o autor não tinha competência para mandar chamar os técnicos do Laboratório de Bromatologia nem que a sua conduta se insere num quadro de legítima defesa, impõe-se averiguar se aquela traduz a violação que lhe é imputada ao dever de lealdade, que como já se referiu, “implica que se apure e densifique o conceito de disciplina militar, como ponto de partida para a definição daquele dever”.

(1) - As características da disciplina militar.

A par do princípio da hierarquia e umbilicalmente ligada a este, a disciplina militar é a condição básica da existência das Forças Armadas (FFAA), contribuindo decisivamente para a coesão e eficácia de que estas necessitam para cumprir cabalmente as suas missão e tarefas. Sem disciplina as FFAA nem sequer poderiam ser encaradas como uma milícia, já que não passariam de um bando armado onde muito dificilmente o superior poderia obter do subordinado a execução imediata de ordens e o acatamento de deveres. Veja-se o exemplo soviético, em que após a consolidação do regime comunista se eliminaram quaisquer distinções e categorias no Exército Vermelho em benefício dos comités; bastou um ano para que fosse restaurada a estrutura hierárquica tradicional e imposta por Trotsky uma disciplina ainda mais acentuada do que aquela que tinha vigorado no exército imperial.

A essência da disciplina militar é, para usar a definição do Regulamento de Disciplina Militar de 2 de Maio de 1913, o “laço moral que liga entre si os diversos graus da hierarquia militar; nasce da dedicação pelo dever e consiste na estrita e pontual observância das leis e regulamentos militares”, concretizando-se no cumprimento das leis e deveres militares e na execução pronta e total das ordens legítimas recebidas através da cadeia de comando, com excepção das determinações cuja execução consista na prática de um crime, situação em que o subordinado deve recusar o cumprimento da ordem ilegal (art.º 12.º, n.º 1, in fine, do Regulamento de Disciplina Militar (RDM) aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22 de Julho) (7), o que significa que a obediência a ordens superiores não exime o militar da responsabilidade pela violação de alguns direitos fundamentais consagrados na Constituição e na lei e demonstra que se o militar deve ser estrutural e intrinsecamente disciplinado isso não o impede de em certas circunstâncias (muito restritas) poder ser desobediente. Disciplina e obediência são, pois, conceitos não integralmente sobreponíveis, embora estreitamente interligados.

A disciplina não é, porém, apanágio ou atributo exclusivo da instituição militar; com efeito, toda a vida em sociedade se baseia em relações de autoridade e de supremacia, quer no seio familiar, que no âmbito profissional, social ou político, embora com diferentes graduações consoante a maior ou menor rigidez dos laços jurídicos, sociais ou morais que aglutinam e estruturam as organizações ou sistemas que integram tais grupos.

O que justifica, então, a existência de sanções bem mais gravosas no ordenamento jurídico militar, por comparação com os ordenamentos jurídicos civis, são os motivos que o acórdão do Tribunal Constitucional de 22-01-2002 (8) claramente expressou nestes termos:
“Não carece de demonstração que, se há sector da Administração que se reveste de características muito próprias e de uma forma organizativa reconhecidamente peculiar, ele é, sem dúvida, o das Forças Armadas, onde a organização hierárquica rege por excelência.
As finalidades e exigências específicas desse sector são, aliás, inconcebíveis se desacompanhadas de uma acentuada disciplina. É que, sendo as FFAA uma instituição constituída por pessoas a quem é confiado o uso de armas e a quem, para a defesa nacional, é dada formação para o uso de meios violentos - exigindo-se-lhes a exposição a riscos que podem levar ao sacrifício da própria vida, o que tudo acarreta a observância de numerosos deveres que se não surpreendem noutros sectores da Administração -, mal se compreenderia que a cadeia hierárquica não estivesse dotada de poder para a aplicação de sanções eficazes contra quem, dentro dessa organização, desrespeita aqueles deveres. Por isso, só uma ampla subordinação à cadeia de comando pode levar à unidade de acção, de esforços e de direcção, subordinação essa que, se não fora a existência de sanções gravosas para o incumprimento de deveres essenciais às finalidades das Forças Armadas e a sua aplicação célere e simplificada, redundaria em ficar desprovida de efectividade prática” (negrito nosso).

Dito de outro modo, os princípios por que se rege a instituição militar (princípio do comando, da hierarquia, da disciplina e coesão, a par dos deveres de honra, lealdade e coragem que todos os militares devem praticar e observar), constituem características específicas que a distinguem da restante Administração Pública e que outorgam aos seus membros um conjunto de deveres que lhes pode impor, no limite e em certas circunstâncias, o sacrifício da própria vida (9).

Sendo a coesão das Forças Armadas vital para a prossecução das suas missões e por isso inseparável do conceito de disciplina, não causa estranheza que o Regulamento Geral do Serviço nas Unidades do Exército (RGSUE) expressamente refira que “a disciplina deve encaminhar todas as vontades para o fim comum e fazê-las obedecer ao menor impulso do comando; coordenando os esforços de cada um, assegura às unidades a sua principal força e a sua melhor garantia de êxito. Manifesta-se pela subordinação de posto para posto, pelo respeito para com os superiores e subordinados, pela obediência constante e imediata às ordens, pela vontade sincera e manifesta de se alcançar o fim que se deseja e pela consciente aceitação dos princípios enunciados nos regulamentos que pautam a actividade militar” (art.º 2.º, quer tem por epígrafe “Princípios gerais de comando”).

Portanto, o que distingue a disciplina militar das demais é, pois, a sua natureza reforçada, a importância fulcral que a mesma tem na solidez da organização militar - que constitui o exemplo acabado e mais perfeito da técnica de dominação e da consagração do indivíduo à causa e objectivos comuns - na sua eficácia e no cumprimento da sua missão.

Como escreveu o militar espanhol, D. JOSÉ ALMIRANTE:

“La importancia de la palabra es indudable porque lo es la de la cosa que representa. En todos los tiempos, en todos los pueblos, desde Roma y Bizâncio, en el momento en que la DISCIPLINA se relajó, el EJÉRCITO e la nación que lo nutre están heridos de muerte: al paso que por más desdichas, por más derrotas, por más desastres que ambos sufran, no hay que desesperar de la salvación y de la victoria si la DISCIPLINA queda en pie. No hay duda que merece meditación, y las largas consideraciones que le estamos dedicando, este poder invisible, este virus impalpable, que así crea y vigoriza EJÉRCITOS como los enferma y mata com su ausencia” (10).

Na verdade, a história ensina que os êxitos militares dos Romanos não se ficaram a dever apenas a uma organização e tácticas militares inovadoras; eles repousam também numa férrea e pronta disciplina imposta aos legionários, que levou o cônsul Tito Manlio Torquato a ordenar a decapitação do seu próprio filho Tito Manlio, por este lhe ter desobedecido no decurso de uma campanha militar(11).

Por isso, hoje e tal como sempre, entre nós “a hierarquia e a disciplina [militares] assumem, em nome do superior interesse da eficácia e da eficiência da defesa nacional e das Forças Armadas, uma importância sem paralelo na generalidade dos domínios da Administração Pública” (12).

Ora, é precisamente em nome dessa eficácia que se entende, por um lado, que o processo disciplinar militar deve ser dominado pela celeridade e sumariedade, rejeitando o garantismo processual excessivo e dilatório, bem como os mecanismos processuais entorpecedores de uma decisão rápida e enérgica, que é medida pela bitola da efectividade, sem prejuízo da garantia de total defesa dos direitos dos arguidos (13). Celeridade, sumariedade e eficácia que devem, sobretudo, ser a nota dominante em todas as situações a que não são aplicáveis as penas mais gravosas, privativas da liberdade.

E por outro que o cumprimento das penas aplicadas a militares deve(ia) ser imediato. Era o que dispunha o RDM de 1977, cujo art.º 44.º, sob a epígrafe, momento do cumprimento da pena dispunha: “As penas disciplinares serão cumpridas, sempre que seja possível, seguidamente à sua aplicação”. O art.º 45.º, n.º 2, estabeleceu o princípio de que o cumprimento das penas aplicadas a recrutas seria imediato se o interesse da disciplina assim o exigisse.

Princípio que já vinha do Regulamento Disciplinar do Exército, promulgado em 19-01-2011, com revisão publicada em 2 de Maio do 1913 e do Regulamento de Disciplina Militar de 1925 (14) (art.º 119.º).

A jurisprudência dos tribunais administrativos à luz do RDM de 1977 entendia, porém, que o cumprimento imediato não impedia a suspensão da execução da decisão punitiva fundando-se na expressão “sempre que seja possível”, constante do citado artigo 44.º do RDM.

Contra esta orientação argumentava-se que ao se impedir a imediata execução da pena disciplinar se transmitia à comunidade militar um sinal negativo, com reflexos nas necessidades de prevenção geral; nesta perspectiva os interesses da disciplina, encarada como um insubstituível pilar da instituição castrense, justificavam que as sanções disciplinares fossem cumpridas na íntegra e imediatamente após a sua aplicação, o que implicava celeridade no procedimento, tomada de decisão final e aplicação de eventual censura jurídico-disciplinar no mais curto lapso de tempo que decorresse após a prática da infracção, obviamente sem preterição dos direitos de defesa do arguido.

Cremos que o legislador da Lei n.º 34/2007, de 13 de Agosto, foi sensível a esta argumentação por duas ordens de razões:

Primeira: ao estabelecer, no art.º 2.º do diploma a proibição da aplicação automática da suspensão prevista no 128.º do CPTA;

Segunda: ao atribuir, nos termos do art.º 6.º do mesmo diploma, à secção de contencioso administrativo de cada tribunal central administrativo a competência para conhecer, em 1.ª instância, dos processos relativos a actos administrativos de aplicação das sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas.

Se no primeiro caso se revela um inequívoco acolhimento da tese defensora da imediata exequibilidade das penas disciplinares militares, já o segundo tem mais a ver com posições jurisprudenciais que entretanto tinham sido adoptadas em primeira instância, vistas como demasiado permissivas na aplicação da suspensão de eficácia de actos punitivos e, consequentemente, perniciosas para a disciplina militar.

Com efeito, o art.º 3.º da Lei acima citada restringiu acentuadamente a possibilidade de ser decretada a suspensão de eficácia de actos de aplicação de penas ou sanções militares, limitando-a apenas aos casos de constituição de uma situação de facto consumado e quando seja evidente a procedência da pretensão, formulada ou a formular no processo principal, por se tratar de:

a) Acto manifestamente ilegal;

b) Acto de aplicação de norma já anteriormente anulada;

c) Acto materialmente idêntico a outro já anteriormente anulado ou declarado nulo ou inexistente.

Restrição que, de resto, se estendeu ao decretamento provisório de providências cautelares, como decorre do art.º 4.º, que de qualquer modo só pode ser imposto depois de ouvida a entidade requerida.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional foi sendo construída em torno da ideia de que especificidades da instituição militar não exigiam que o processo disciplinar assegurasse todas as garantias de defesa que constituíam o padrão dos demais regimes disciplinares, designadamente o da Função Pública, sem embargo de dever concretizar as garantias mínimas impostas pelo princípio de estado de direito democrático e pela Constituição (15). Correspondia a uma tendência que também é acolhida em termos de direito comparado.

No entanto, esta visão algo pragmática e temperada das coisas cedeu perante uma outra mais formalista e garantística que desembocou no acórdão de 2 de Maio de 2012 (16), que declarou “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da parte final do n.º 1, do artigo 51.º, do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2009, na medida em que prevê que o cumprimento da pena de prisão disciplinar tenha lugar logo após ter sido negado provimento ao recurso hierárquico apresentado, sem que seja garantida, no Regulamento de Disciplina Militar, a possibilidade de impugnação junto do tribunal competente, em tempo útil, por violação do disposto no artigo 27.º, n.º 3, alínea d) da Constituição”.

O acórdão reflecte a profunda divisão que grassa nesta matéria, com votos de vencido que no essencial defendem que a compressão de direitos dos militares é constitucionalmente justificada pelos especiais estatuto e deveres que constitucional e legalmente estão atribuídos às FFAA, que justificam a restrição de alguns direitos dos militares em homenagem a superiores interesses colectivos, que impõem uma maior rigidez nas relações hierárquicas, na disciplina e na obediência pronta e total. Por outro lado e como se salientou, não parece que a norma em causa colida com o regime geral de impugnação de actos lesivos em matéria administrativa; ao invés a declaração de constitucionalidade alarga esse regime, sem fundamento material bastante, constituindo na prática uma derrogação à regra geral relativa à eficácia e imediata executoriedade dos actos administrativos.

No sentido que se extrai do acórdão parece que nenhuma pena disciplinar militar pode ser efectivamente executada pelo menos antes de decorridos três meses, isto é, até que decorra o prazo regra para impugnação de actos administrativos desfavoráveis, previsto no art.º 58.º, n.º 1, al. b), do CPTA, tendo em consideração que um eventual processo cautelar pode ser intentado previamente, mas também conjuntamente ou mesmo depois de instaurada a acção administrativa especial, o que obviamente coloca em causa e seriamente a disciplina das FFAA, onde o especial dever de obediência dos seus membros impõe, como se diz num dos votos de vencido, “que a punição imposta pelo superior seja prontamente cumprida”.

Em todo o caso, é patente que ambas as posições não negam a especial relevância e especificidades da disciplina militar e da sua importância fundamental na acção de comando, impondo rigorosa obediência material e intelectual, pelos rígidos deveres que são impostos ao militares, pela consciência do espírito de corpo que cria, pelos efeitos que provoca na personalidade própria de cada militar que o distingue no contexto da sociedade civil, onde muitas vezes é desculpável a falta de abnegação, de coragem e de espírito de sacrifício, e em que virtudes como a honra e a obediência são encaradas de forma parcimoniosa, atributos pessoais cuja inexistência seria imperdoável para aquele. Daí resulta que a disciplina militar deva ser encarada à luz dos seus próprios conceitos e com uma sensibilidade muito particular, em razão dos superiores interesses que visa preservar.


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(2) - O dever militar de lealdade

O Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 236/99, de 25JUN (com as alterações e rectificações introduzidas pela Declaração de Rectificação n.º 10-BI/99, de 31JUL, Lei n.º 25/2000, de 23AGO, Decreto-Lei n.º 232/2001, de 25AGO, Decreto-Lei n.º 197-A/2003, de 30AGO, Decreto-Lei n.º 70/2005, de 17MAR e Decreto-Lei n.º 166/2005, de 23SET.), prescreve no seu art.º 15.º, n.º 2, al. b), que o militar deve “proceder com lealdade para com os outros militares”. E o art.º 114.º, n.º 1, acrescenta que “o militar deve dedicar-se ao serviço com toda a lealdade, (…)”.

O art.º 11.º, n.º 2, al. e), do RDM, consagra o dever de lealdade como um dos “deveres especiais do militar”, tentando uma definição no n.º 1 do art.º 16.º nestes termos:

O dever de lealdade consiste em guardar e fazer guardar a Constituição e demais leis e no desempenho de funções em subordinação aos objectivos de serviço na perspectiva da prossecução das missões das Forças Armadas”.

Obviamente que o valor lealdade não se esgota no cumprimento destes ditames. A dificuldade em construir uma definição que traduza toda a sua abrangência levaram o legislador a recorrer no n.º 2 à técnica da exemplificação, procurando densificá-lo deste modo:

Em cumprimento do dever de lealdade incumbe ao militar, designadamente:

a) Não manifestar de viva voz, por escrito ou por qualquer outro meio, ideias contrárias à Constituição ou ofensivas dos órgãos de soberania e respectivos titulares, das instituições militares e dos militares em geral ou, por qualquer modo, prejudiciais à boa execução do serviço ou à disciplina das Forças Armadas;

b) Respeitar e agir com franqueza e sinceridade para com os militares de posto superior, subordinados ou de hierarquia igual ou inferior, tanto no serviço como fora dele;

c) Informar com verdade o superior hierárquico acerca de qualquer assunto de serviço;

d) Não tomar parte em manifestações colectivas atentatórias da disciplina, entendendo-se como tais as que ponham em risco a coesão e disciplina das Forças Armadas, nem promover ou autorizar iguais manifestações;

e) Não se servir, sem para isso estar autorizado, dos meios de comunicação social ou de outros meios de difusão para tratar assunto de serviço ou para responder a apreciações feitas a serviço de que esteja incumbido, caso em que deve participar o sucedido às autoridades competentes;

f) Informar previamente o superior hierárquico quando apresente queixa contra este”.

Se, com SAMUEL P. HUNTINGTON (17) a lealdade, a par da obediência, são as mais importantes virtudes militares, pois destas decorrem todas as demais, é importante observar que o dever de lealdade não é, apenas, a outra face do dever de obediência, nem tão pouco se esgota na panóplia de proibições e imposições consagradas no citado n.º 2 do art.º 16.º do RDM, que ainda assim é encarado, por alguns, como exemplo da prolixidade do legislador, por antítese à “concisão utilizada para o tratamento do dever de obediência”, ditada “com a preocupação de não facultar ao militar uma forma mais ou menos subtil, mais ou menos insidiosa, de marcar a sua discordância com o superior hierárquico” (18), exceptuando, como já se referiu, as ordens que constituam crime.

A lealdade é, na verdade, mais do que uma soma de deveres e de interdições: “é a qualidade (19) de fidelidade à Pátria, ao Exército, superiores, subordinados e pares. A confiança e o respeito que o líder pode obter dos seus superiores e subordinados são incomensuráveis. Ao invés, o dano provocado por uma falha de lealdade é tremendo” (20). A lealdade insere-se no sistema ético das Forças Armadas (21), ao qual se subordina a condição militar (art.º 2.º, al. h), da Lei n.º 11/89, de 1 de Junho).


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(3) - O dever de lealdade no caso concreto

Terá, então, o autor violado este dever de lealdade quando decidiu chamar o técnicos do Laboratório de Bromatologia?

Já se apurou que o autor não tinha competência para tomar essa decisão, cuja repercussões no prestígio do comando da DGME e da própria unidade são evidentes. A circunstância de não ter havido ressonância mediática ou conhecimento generalizado da situação não evita essa lesão, já que numa perspectiva castrense o prestígio significa um capital de confiança conquistado no meio militar. Ora, o autor não podia desconhecer que uma situação destas - verdadeiro levantamento de rancho (22) - ocasionaria por si só uma situação constrangedora para o Comando do DGME, abalando a capacidade de liderança e a autoridade do Director e minando a credibilidade deste junto dos seus pares e superiores, pelo que a convocação do Laboratório potenciaria a lesão que já se verificava, constituindo, passe a expressão, verdadeiro lançar de gasolina num fogo já latente.

Por outro lado, tendo adoptado atitudes dúbias e contraditórias em toda esta situação, o autor não podia deixar de saber que o pedido de comparência dos técnicos do Laboratório seria entendido pelos militares como uma afronta do oficial de dia ao comando da unidade, tanto mais que para a resolução dos problemas com os alimentos servidos à 2.ª refeição o autor alijou a sua própria responsabilidade, escudando-se nas ordens de um oficial superior. Talvez por isso uma das testemunhas inquiridas tenha referido que o autor se vangloriou da atitude que tomou ao chamar o Laboratório. Isto é, o autor não podia desconhecer que tal atitude punha em risco o princípio de comando, que em essência traduz a autoridade de que está investido o militar situado num determinado escalão hierárquico.

Doutro passo, a alegada má qualidade da alimentação fornecida no DGME e a necessidade de prevenir situações futuras não legitimavam uma actuação à revelia da cadeia de comando, pois como afirma SAMUEL P. HUNTINGTON "apenas em raras situações o militar encontrará justificação para seguir os ditames da sua própria consciência contra a dupla exigência de obediência militar e do desígnio do Estado" (23).

Por tudo isto, é patente que o autor não agiu com franqueza e sinceridade para com os seus superiores hierárquicos, em concreto, para com o comando do DGME.

Violou, por isso, o dever de lealdade, na exacta dimensão que lhe é imputada no despacho punitivo [art.º 16.º, n.º 1 e 2, als. b) e c), do RDM], o que significa que o acto punitivo não padece do vício de violação de lei que o autor (implicitamente) lhe assaca.


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v) - Considerações finais

Resta, por fim, averiguar se a medida da pena é manifestamente desadequada ou desproporcionada, como sustenta o autor, e se existem nulidades de conhecimento oficioso.

Com efeito, a jurisprudência do STA considera, com fundamento no art.º 18.º da CRP, directamente aplicável ao processo disciplinar militar, não obstante a celeridade própria deste e especial contracção de direitos a que nele o militar arguido está sujeito, que em tudo o que contenda com o direito de defesa do arguido a preterição de formalidades essenciais constitui uma nulidade insuprível (24).

Por outro lado entende que “ao exercer os seus poderes disciplinares em sede de graduação da culpa e de determinação da medida concreta da pena, a Administração goza de certa margem de liberdade, numa área designada de "justiça administrativa", movendo-se a coberto da sindicância judicial, salvo se os critérios de graduação que utilizou ou o resultado que atingiu forem grosseiros ou ostensivamente inadmissíveis”, sendo que tal “margem de liberdade administrativa, reconhecida na conformação da actividade disciplinar da Administração, não afronta os princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade (art. 18º, nº 2 da CRP) (25).

Olhando o caso sub judice à luz desta jurisprudência, constata-se que não se verificam (nem foram alegadas) nulidades insupríveis cujo conhecimento oficioso nos fosse imposto. E no que se refere à medida concreta da pena não há quaisquer motivos para considerar - ao contrário do que defende o autor - que enferma de erro manifesto, palmar ou grosseiro, que conduzisse à anulação do acto impugnado. Pelo contrário, a pena revela-se adequada e proporcional à gravidade da infracção.

O acto impugnado não padece, pois, de quaisquer vícios que o invalidem.


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vi) - Sintetizando, para concluir:
i. A disciplina militar é o laço moral que liga entre si os diversos graus da hierarquia militar, que nasce da dedicação pelo dever e consiste na estrita e pontual observância das leis e regulamentos militares e na execução pronta e total das ordens legítimas recebidas através da cadeia de comando, com excepção das determinações cuja execução consista na prática de um crime.
ii. O carácter reforçado da disciplina e da hierarquia militar é essencial para a coesão das Forças Armadas e para o cumprimento das suas tarefas e missões, para a sua eficácia em prol da defesa nacional, tornando a instituição militar, regida por princípios e deveres que consubstanciam características muito próprias e específicas, substancialmente distinta da restante Administração Pública.
iii. São características do processo disciplinar militar a celeridade e sumariedade, a rejeição de garantias excessivas e de procedimentos dilatórios, sem prejuízo das garantias defesa dos direitos dos arguidos constitucionalmente consagradas.
iv. Em nome dessa disciplina reforçada e das necessidades de prevenção geral, as penas aplicadas em processo disciplinar militar devem ser cumpridas na íntegra e imediatamente após a sua aplicação, mas sem preterição dos direitos de defesa do arguido e da possibilidade da sua impugnação contenciosa.
v. No âmbito do pedido de suspensão de eficácia de pena disciplinar detentiva aplicada a militar, o juízo de ponderação de interesses deve levar em conta o superior interesse público na execução o mais rápido possível da pena.
vi. Essa ponderação não carece de ser feita nos casos em que o tribunal antecipa o conhecimento da acção principal, nos termos do art.º 121.º, n.º 1, do CPTA.
vii. O oficial de dia às unidades, estabelecimentos e órgãos do Exército não tem competência para, em dias de actividade normal, mandar chamar quaisquer especialistas para recolha de amostras, com vista à sua análise, de géneros alimentares que aparentemente possam estar impróprios para consumo.
viii. A recolha dessas amostras deve ser ordenada pelo Comando, segundo os procedimentos previstos nas respectivas Normas de Execução Permanente do Exército Português.
ix. Age em violação das normas do Regulamento Geral do Serviço nas Unidades do Exército que definem os deveres e a competência dos oficiais de dia, bem como das Normas de Execução Permanente que prevêem os procedimentos a adoptar em caso de surto de toxinfecção alimentar, o oficial de dia que sem autorização da cadeia de comando convoca técnicos do Laboratório de Bromatologia do Exército a fim de serem recolhidas amostras de alimentos cuja ingestão tinha sido generalizadamente recusada pelos militares da unidade.
x. Dessa recusa decorria a impossibilidade objectiva de vir ocorrer surto de toxinfecção alimentar.
xi. Mesmo que tal surto tivesse ocorrido, o único procedimento adequado para o debelar consistiria em assegurar a assistência médica aos doentes e não em chamar os técnicos do Laboratório de Bromatologia.
xii. Neste contexto o oficial de dia não agiu em legítima defesa, própria e ou alheia, já que não se verificava uma agressão ilícita, actual ou iminente, que ameaçasse interesses juridicamente protegidos do próprio e ou de terceiros.
xiii. A lealdade e a obediência são as mais importantes virtudes militares.
xiv. A lealdade comunga dos princípios éticos vigentes nas Forças Armadas e significa a fidelidade do militar à Pátria, aos superiores, iguais e inferiores.
xv. A conduta do oficial de dia, nas circunstâncias referidas supra em ix. viola o dever de lealdade, quer por ter agido sem autorização superior e sem competência para tanto, quer porque não podia desconhecer os efeitos negativos que a vinda dos técnicos acarretaria para o prestígio, quer do comando, quer da própria Unidade.
xvi. Constitui nulidade insuprível, directamente aplicável ao processo disciplinar militar, a preterição de formalidades essenciais que visem salvaguardar direitos de defesa do arguido, previstos no art.º 18.º da CRP.
xvii. Ao exercer os seus poderes disciplinares na determinação da medida da pena e da culpa, a hierarquia militar goza de margem de liberdade, judicialmente insindicável, a não ser que a decisão enferme de erro manifesto, palmar ou grosseiro.
xviii. Não é ilegal o despacho do CEME que homologou o despacho do Director do DGME que, nas circunstâncias supra descritas, aplicou ao oficial que agiu pelo modo descrito em ix., uma pena de sete dias de proibição de saída, já que o referido acto não padece de vícios intrínsecos, a pena aplicada mostra-se adequada e proporcional à gravidade da infracção e o processo disciplinar não contém irregularidades que consubstanciem a prática de nulidades insupríveis.

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vii) - Conclusão

Face a todo o exposto a pretensão do autor tem fatalmente de improceder, conduzindo à absolvição do réu Exército Português do pedido de anulação do acto punitivo que o sancionou com a pena de sete dias de proibição de saída, acto esse que, por não padecer dos vícios que lhe são apontados nem de quaisquer outros cujo conhecimento oficioso nos fosse imposto (cfr. art.º 95.º, n.º 4, do CPTA), deve ser mantido na ordem jurídica.


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3 - Dispositivo:

Termos em que, em conferência, acordam em julgar totalmente improcedente a presente acção administrativa especial que o autor Gonçalo ……………. interpôs contra o réu Exército Português e, em consequência:
i. Absolvem o réu do pedido que contra si foi formulado pelo autor.
ii. Condenam o autor nas custas, quer do processo cautelar, quer da acção.

D.n.


Lisboa, 2013-03-07

O Relator

(Benjamim Magalhães Barbosa)

A Adjunta

(Sofia Ilda Moura de Mesquita da Cruz David)

O Adjunto

(Antonio Joaquim de Aguiar Pereira Cardoso, Major-General)

(1) Que impõe o cumprimento imediato das penas de repreensão e de repreensão agravada, que são “cumpridas imediatamente a seguir à decisão que as aplicou”.
(2) Cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, Parte Geral - I, Lisboa, Editorial Verbo, 2001, 2.ª Edição, p. 144.
(3) Afirmação que não é totalmente transponível para o direito disciplinar militar, em que pela natureza das coisas as penas impostas tem evidentes objectivos dissuasores de eventuais condutas semelhantes às que estiveram na base da punição.
(4) MANUEL DE OLIVEIRA LEAL-HENRIQUES, Procedimento Disciplinar, 4.ª edição, Lisboa, Editora Rei dos Livros, 2002, p. 35 e s.
(5) Direito Penal, Vol. I, 2.ª edição, Lisboa, Associação Académica da FDUL, 1998, p. 61.
(6) Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português Vigente: as Relações com o Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1993, p. 81.
(7) De resto, um princípio bastante comum em matéria de direito comparado.
(8) N.º 33/2002, proc. n.º 1141/98. Jurisprudência do Tribunal Constitucional. [Em linha]. Lisboa: TC, 2013. [Consult. 2013-02-15].
Disponível na www: <URL: www.tribunalconstitucional.pt
(9) Constitui entendimento arreigado que os deveres militares derivam de um conjunto de vínculos jurídicos, racionais e morais, que colocam o militar ao serviço do Estado e que compreendem, na sua essência, a (i) dedicação e a fidelidade à Pátria, cujas instituições, honra e soberania devem ser defendidas mesmo com o sacrifício da própria vida, o (ii) respeito pelos símbolos nacionais, a (iii) probidade e a lealdade em todas as circunstâncias, a (iv) a disciplina e obediência à hierarquia, o (v) o rigoroso e incontestado cumprimento das obrigações e das ordens (salvo as excepções previstas na lei) e, (vi) o dever de tratar os demais, sejam militares ou não, com dignidade e urbanidade.
(10) Diccionario Militar, Madrid, Imprenta e Litografia del Depósito de La Guerra, 1869, p. 359, integralmente disponível na www:
<URL: www.books.google.pt/books?id=vjYMAQAAMAAJ [em linha]; [Cons. 2012-11-11].
(11) Cfr. “Um manuscrito sobre São Torcato”. Casa de Sarmento - Centro de Estudos do Património. [Em linha]. Braga: Universidade do Minho, 2013. [Consult. 2013-02-17]. Documento disponível na www:
<URL: http://www.csarmento.uminho.pt/docs/amap/bth/bth1980_07.pdf.
José Almirante informa, a propósito da cruel concepção de disciplina militar dessa época que a Legião de Campania foi “diezmada lentamente y á sangre fria sin sepultura ni lágrimas, por el saqueo no ordenado de la ciudad de Régio” (op. cit., p. 352).
(12) Acórdão do Tribunal Constitucional de 2012-05-02 (rec. n.º 229/2012). Jurisprudência do Tribunal Constitucional. [Em linha]. Lisboa: TC, 2013. [Consult. 2013-02-15].
Disponível na www: <URL: www.tribunalconstitucional.pt
(13) Neste sentido veja-se a fundamentação do acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 90/88, Processo nº. 149/84, 2ª Secção, Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida, que a respeito da questão que nos ocupa diz ainda o seguinte: “Por outro lado, como o artigo 32.º, n.º 3, da Lei Fundamental não é directamente aplicável aos processos disci­plinares, nada impede que a sua aplicação, por via analógica, em certos casos, ao processo disciplinar militar, seja afastada sempre que se verifiquem situações especiais e ocorram circuns­tâncias extraordinárias que exijam que a acção disciplinar se possa efectuar de forma extremamente célere, de modo a permitir que a aplicação da pena se processe imediatamente”. Jurisprudência do Tribunal Constitucional. [Em linha]. Lisboa: TC, 2013. [Consult. 2013-02-15]. Disponível na www: <URL: www.tribunalconstitucional.pt
(14) D.G., I-A, 260 (01-12-1925), 1776-1794.
(15) Ac. n.º 33/02
(16) Ac. n.º 229/2012, Proc. n.º 82/10 (Plenário). Relator: Cons.ª Catarina Sarmento e Castro. Jurisprudência do Tribunal Constitucional. [Em linha]. Lisboa: Tribunal Constitucional, 2013. [Consult. 2013-02-15].
Disponível na www: <URL: www.tribunalconstitucional.pt
(17) The Soldier and the State: The Theory and Politics of Civil-Military Relations, Harvard, Belknap Press of Harvard University Press, 1981, p. 73.
(18) MIRA VAZ, Coronel, Lealdade e Obediência do Chefe Militar, Revista Militar, Maio de 2008, disponível na www:
<URL: http://www.revistamilitar.pt/modules/articles/article.php?id=529.
(19) No léxico lealdade é sinónimo de qualidade de leal; ora, o adjectivo leal significa alguém que não falta às suas promessas, sincero, franco, honesto, fiel, dedicado e conforme à lei. Cfr. Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-02-15].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa-aao/leal
(20) BELCHIOR VIEIRA, General, Liderança Militar, Academia Militar, Estado-Maior do Exército, 2002, p. 42, disponível na www:
<URL: https://dspace.ist.utl.pt/bitstream/2295/168161/1/ [
(21) Idem, ibidem, p. 22.
(22) Cfr. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-02-16].
Disponível na www:
<URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/levantamento
(23) Ob. cit., p. 78 (tradução nossa).
(24) Cfr. Ac. de 26-04-2012, rec. n.º 01194/11, Rel. Cons. Políbio Henriques. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo. [Em linha]. Lisboa: ITIJ, 2013. [Consult. 2013-02-15].
Disponível na www: <URL: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf?OpenDatabase.
(25) Ac. do STA de 23-09-2010, rec. n.º 058/10, Rel. Cons. Pais Borges. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo. [Em linha]. Lisboa: ITIJ, 2013. [Consult. 2013-02-15].
Disponível na www: <URL: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf?OpenDatabase.