Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3557/15.8BEBRG-S1
Secção:CA
Data do Acordão:11/18/2021
Relator:PAULA FERREIRINHA LOUREIRO
Descritores:NULIDADE DE CITAÇÃO- REPRESENTAÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO- ARTIGO 219.º CRP
Sumário:I- As normas constantes dos art.ºs 11.º, n.º 1 e 25.º, n.º 4 do CPTA não padecem de inconstitucionalidade material, dado que não afrontam o consagrado no artigo 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

II- Procedendo à interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa e considerando que nem desta Lei Fundamental nem do Estatuto do Ministério Público resulta que a representação do Estado não possa ser atribuída a outrem que não o Ministério Público, deve concluir-se que, efetivamente, inexiste qualquer fundamento para a recusa de aplicação dos art.ºs 11.º, n.º 1 e 25.º, n.º 4 do CPTA ao caso concreto.

III- Não ocorre nulidade da citação dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado quando numa na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, quando numa ação seja demandado o Estado, ou quando na mesma ação sejam demandados diversos ministérios e o Estado.

IV- Por essa razão não ocorre nulidade derivada da falta de citação do Ministério Público.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


I. RELATÓRIO
O Ministério Público (Recorrente) vem interpor recurso jurisdicional da decisão proferido pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa em 19/04/2021, pela qual foi indeferida a arguição de nulidade da citação invocada pelo Recorrente na ação administrativa proposta por J..., S.A. contra o Ministério da Administração Interna (Recorridos).

Nesta ação administrativa, a Recorrida particular veio peticionar a condenação do Ministério a pagar-lhe uma indemnização na quantia de 293.159,91 Euros, decorrentes de trabalhos de empreitada realizados e medidos, mas não pagos.
Tendo a citação do Estado Português sido dirigida, em 22/01/2021, ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, veio o Recorrente Ministério Público arguir a nulidade por falta de citação, sustentando tal na pretensão de recusa de aplicação do disposto nos art.ºs 11.º, n.º 1 e 25.º, n.º 4 do CPTA ao caso posto em virtude da inconstitucionalidade material destas normas por violação do prescrito nos art.ºs 219.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
Em 19/04/2021, foi proferida decisão respeitante à invocada nulidade por falta de citação do Ministério Público, decisão essa que indeferiu a arguida nulidade.
Inconformado com o assim julgado, o Recorrente apela a este Tribunal Central Administrativo, imputando erro de julgamento à decisão recorrida e, consequentemente, clamando, pela revogação da mesma e inerente procedência do pedido de declaração da nulidade da citação.

As alegações do recurso que apresenta culminam com as seguintes conclusões:
“Em conclusão:
1-Vem o presente recurso interposto do douto despacho, proferido a 17 de Junho de 2020, que indeferiu o requerimento do Ministério Público no qual eram arguidas respetivamente a inconstitucionalidade material das normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11.º e do nº 4 do artigo 25.º do CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, de 17/09, emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do nº 1 do artigo do nº 1 do artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do n.º 2 desta mesma disposição e a declaração de nulidade por falta de citação do legal representante do réu Estado (artigos 188.º, nº 1, al. a) e 187.º, als. a) e b) do CPC.
2- Nos presentes autos foi citado o Centro de Competências Jurídicas do Estado para contestar a presente acção.
3- Ora, a Constituição da República Portuguesa, no seu art.º 219.º, nº1, atribui ao Ministério Público competência para representar o Estado e defender a legalidade democrática.
4- O Estatuto do Ministério Público aprovado pela Lei 68/2019, de 27 de Agosto, no art.º 4.º, n.º1, alínea a), determina que ao Ministério Público compete, especialmente, defender a legalidade democrática e, na alínea b), representar o Estado.
5- Por sua vez, o art.º 51.º do ETAF, no Capítulo VII, sobre o Ministério Público, sob a epígrafe “Funções” preceitua que compete ao Ministério Público representar o Estado e defender a legalidade democrática.
6- Logo, o Ministério Público tem legitimidade para em nome próprio, agindo em defesa da legalidade, arguir, como fez, incidentalmente a inconstitucionalidade das normas do CPTA, peticionando a sua desaplicação, no caso concreto, com esse fundamento e a nulidade de citação do Réu.
7- E, contrariamente, ao sustentado no despacho recorrido, das mencionadas normas legais resulta que o Ministério Público tem igualmente legitimidade para requerer a nulidade da citação na qualidade de representante do Estado português, tendo nessa qualidade intervenção principal no processo, como decorre do artigo 9.º, n.º1, a), do Estatuto do Ministério Público.
8- Dispõe o n.º4 do artigo 25.º do CPTA, na redação conferida pela Lei nº 118/2019:
“Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo".
9- Sob uma aparência puramente procedimental e regulamentar — o que bastaria para a considerar deslocada num diploma sobre processo administrativo —, introduz-se uma norma inovadora e que vem colocar em crise o quadro jurídico-constitucional vigente, sobretudo quando conjugada com o disposto na parte final do n.º 1 do art.º 11.º do CPTA, na redação igualmente conferida pela mesma Lei n.º 118/2019.
10- Por isso, através desta intervenção, o Ministério Público, agindo na qualidade de defensor da legalidade, bem como de natural representante judiciário do Estado, pretendeu submeter ao controlo difuso, concreto e incidental deste Tribunal (cfr. art.º 204.º da Constituição) a questão da inconstitucionalidade material das citadas normas insertas na parte final do n.º 1 do art.º 11.º e no n.º 4 do art.º 25.º do CPTA, ambas na versão da Lei n.º 118/2019, por sustentar a desconformidade (cfr. artigos 3.º , nº3 e 277.º nº1, da Constituição da República Portuguesa) desse conjunto normativo com o parâmetro da parte inicial do n.º 1 do art.º 219.º da Constituição, em cujos termos “ao Ministério Público compete representar o Estado".
11- A norma do art.º 219.º, nº1 da CRP, consubstancia um «imperativo constitucional, uma imposição de legislar, tendo por destinatário o legislador e por conteúdo o ditame da atribuição de competência ao Ministério Público para representar o Estado».
12- O legislador constitucional faz uso, no aludido preceito constitucional, da palavra «representação», termo técnico «com conteúdo já fixado no discurso e nas instituições judiciárias». Não utilizou qualquer das expressões «patrocínio judiciário», «assistência por advogado», «mandato» ou «patrocínio forense» como ocorre em lugares paralelos constitucionais (artigos 20.º nº2, 32.ºnº3 e 208.º).
13- A Constituição não prevê, nem expressa nem sistematicamente, qualquer limite ou condição na atribuição ou exercício desta competência constitucional de representação (judiciária) do Estado (administração central).
14- A atribuição constitucional de competência ao Ministério Público para representar o Estado não é uma decisão constituinte conjuntural e contingente, mas antes intencional e estrutural, na linha de uma longa tradição jurídica nacional.
15- Essa atribuição constitucional tem de ser considerada como «coerente», foi realizada em função e visando avocar e pôr em prática, no contencioso judiciário, os atributos constitucionais do Ministério Público, de uma «magistratura gozando de autonomia, nos termos da lei», a qual preceitua a respetiva vinculação a critérios de legalidade e objetividade» (Estatuto do Ministério Público, abreviadamente EMP, art.º 2º nºs 1 e 2).
16- Sendo o Ministério Público, segundo o mandato constitucional, o «representante» (e não patrono, ou advogado ou mandatário) do Estado (administração central), para efeitos do respetivo contencioso (neste caso administrativo) só por intermédio do Ministério Público o Estado poderá estar em juízo, quer como autor quer como réu.
17- É ao Ministério Público, enquanto seu órgão judiciário, que institucionalmente compete exprimir a «vontade judiciária» do Estado e conduzir o processo nos seus aspectos de política e de técnica processual, no quadro de autonomia (nos termos da lei) e da vinculação a critérios de legalidade e objetividade e sem prejuízo de poderes de disposição da relação material controvertida, pelos órgãos superiores do Governo.
18- O Centro de Competências Jurídicas do Estado (JurisApp) não é um órgão (menos ainda um órgão superior da administração pública) mas sim um serviço central da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa (Dec-Lei nº 149/2017, de 6 de dezembro, art.º 1.º nº1).
19- Contudo, por força dos efeitos jurídicos e práticos da conjugação dos artigos 11.º, nº1 e 25.º, nº4 do CPTA, o Estado (administração central) passa a ser representado, em sede do contencioso das ações administrativas, pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado, ao qual é atribuída a competência para determinar se a citação será ou não, transmitida ao Ministério Público, para efeitos de este assegurar na lide a representação judiciária do Estado intervindo como parte principal e não meramente acessória.
20- A lei não estabelece qualquer critério, expresso e objetivo, que conforme a decisão do JurisApp na escolha do representante judiciário legal e o modo como coordenará «os termos da respetiva intervenção em juízo», o que significa que a determinação do «se» e do «como» da representação judiciária do Estado, nos termos do art.º25º, n.º4 do CPTA, procederá de uma escolha «livre» do JurisApp: será uma decisão de «mérito», «oportunidade» ou «conveniência», desta forma instituindo a própria lei « a sua deslegalização, em matéria de reserva de lei».
21-Decorridos cerca de 22 anos após o inicio de vigência da Constituição de 1976, a Lei n.º 60/98 (EMP) alargou e concretizou o âmbito da representação do Estado por parte do Ministério Público.
22- Em 01-01-2020 entrou em vigor o 4° Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019 e publicado em 27 de Agosto, menos de um mês antes da publicação da Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro, que contém as normas cuja inconstitucionalidade se invoca.
23- Este novo diploma orgânico (EMP) continua a confiar a representação do Estado ao Ministério Público (art.º 4.º/1/a)) e a prever a existência de "departamentos de contencioso do Estado", os quais passarão a intervir também em matéria "tributária", cível e administrativa (art.º 61.º/1/2).
24- No âmbito específico da jurisdição administrativa o ETAF vigente, na redacção da Lei n.º 114/2019, publicada em 12 de Setembro, dispõe no art.º 51.º que «compete ao Ministério Público representar o Estado».
25- Do ordenamento jurídico-constitucional português resulta que a representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da lei ordinária, ao Ministério Público (com a única excepção da hipótese residual contemplada na parte final do n.º 1 do art.º 24.º do vigente CPC);
26- Essa representação, nas áreas cível, administrativa e até tributária, subsistirá no futuro, por se encontrar inequivocamente prevista em diplomas recentíssimos e de uma evidente centralidade na conformação dos nossos sistemas jurídico e judiciário.
27- A norma do n.º 1 do art.º 219.º da Constituição, que confia ao Ministério Público a representação judiciária do Estado-Administração (central) possui natureza auto-exequível, incondicionada, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária, confígurando-se como uma intencional e estrutural opção constitucional, em consonância com a tradição jurídica do país.
28- Por isso, a representação do Estado nos tribunais-incluindo os tribunais administrativos- por parte do Ministério Público é configurável como um verdadeiro princípio judiciário constitucional, com alcance material.
29- Porém, em flagrante contradição sistémica e teleológica, a parte final do n.º 1 do art.º 11.º do CPTA, na redação conferida pelo art.º 6.º da Lei n.º 118/2019, vem dispor que:
"Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código de Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público".
30 -A nova redação limita-se a acrescentar o substantivo "possibilidade", mas desse modo transforma a regra da "representação do Estado pelo Ministério Público" numa simples possibilidade/eventualidade.
31- Não tendo a reforma administrativa de 2019, na qual se inclui aquele preceito, introduzido, paralelamente, alterações no art.º 51º do ETAF.
32 -Do confronto da fórmula usada no CPTA (parte final do n.º 1 do art.º 11º: "sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público") com a acolhida no CPC (n.º 1 do art.º 24.º: "O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio..."), resulta segura a conclusão de que, no âmbito do primeiro diploma, a representação do Estado por parte do Ministério Público nos tribunais administrativos tem carácter eventual ao passo que na jurisdição comum constitui a regra, só passível de afastamento por lei concreta.
33- Na revisão do CPTA de 2015, operada pelo D.L. n.º 214-G/2015, o respetivo projeto previa a introdução, precisamente no art.º11.º de uma redação que, à semelhança do CPC, acentuava a representação-regra do Estado pelo Ministério Público.
34- Surpreendentemente, a nova redação conferida à parte final do n.º 1 do art.º 11.° CPTA, torna meramente possível a intervenção do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo.
35- Dificilmente a norma se compatibiliza com o princípio judiciário constitucional da representação do Estado nos tribunais através do Ministério Público, imposta pelo primeiro segmento do n.º1 do art.º 219.º da Constituição.
36 - Na verdade, mesmo que admitindo que o citado preceito constitucional não confere ao Ministério Público um monopólio ou exclusivo de representação do Estado em juízo, como se considerou no Parecer n° 8/82 da Comissão Constitucional (numa argumentação talvez demasiado finalística, como se intenta demonstrar no voto de vencido), sempre haveria que ponderar o seguinte considerando aí formulado:
“Esta Comissão adianta, desde já, que o seu entendimento sobre a matéria é o seguinte:O Ministério Público não detém o monopólio da representação do Estado em juízo; O facto de essa representação lhe pertencer, em regra, não exclui que, nalguns casos, possa ela ser atribuída, por lei, a outras entidades;
(...)O legislador não pode privar, totalmente, o Ministério Público das funções de representação do Estado, em juízo, cometendo-as, por inteiro, a outras entidades.
A representação do Estado pelo Ministério Público terá que constituir sempre a regra.» (destaque nosso)
37-Ora, a norma do art.º 11.º CPTA, na redação da Lei n.º 118/2019, não assegura, bem antes pelo contrário, que "a representação do Estado pelo Ministério Público (...) constituir(á) sempre a regra", o que não se harmoniza com o parâmetro constitucional invocado.
38- A desarmonia dessa norma com a Constituição da República Portuguesa torna-se ainda mais clara quando se proceda à sua interpretação conjugada com a do n.º 4.º do art. º 25.º, também aditado pela referida Lei n.º 118/2019.
39- No que se reporta ao Estado, a norma destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o réu Estado-Administração é "unicamente" citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação e não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal).
40- Com efeito, nos termos do art.º 2.º n.º 1 do D.L. n.º 149/2017, que aprova a respetiva orgânica, o Centro de Competências Jurídicas do Estado (JurisApp), "tem por missão prestar consultoria, assessoria e aconselhamento jurídicos, bem como informação jurídica em matéria de contratação pública, procedimentos contraordenacionais e procedimentos disciplinares, aos membros do Governo, ficando, igualmente, responsável por assegurar a representação em juízo do Conselho de Ministros, do Primeiro- Ministro e de qualquer outro membro do Governo organicamente integrado na Presidência do Conselho de Ministros ou que beneficie dos respetivos serviços partilhados".
41- Nenhuma norma lhe confere poderes representativos do Estado em juízo, poder - dever atribuído ao Ministério Público — desde logo por força da norma constitucional que se tem invocado como parâmetro ofendido pelas normas cuja conformidade com a Constituição se questiona.
42- O Ministério Público não pode ser afastado, ainda que potencialmente, da representação do Estado no domínio do contencioso administrativo sem que daí resulte uma flagrante ofensa da primeira proposição do n.º 1 do art.º 219.º da Constituição.
43- No processo civil, a regra da intervenção do Ministério Público na jurisdição comum, como defensor dos interesses do Estado-Administração subsiste, em consonância com os dados da História legislativa, mas, como há já vinte anos muito bem intuía SÉRVULO CORREIA, o alargamento do âmbito da jurisdição administrativa reduz a bem pouco o número de possíveis litígios que aí poderão ser conhecidos.
44- Só um construtivismo artificial e pré-ordenado pode sustentar a legitimidade constitucional da opção do legislador ordinário, creditando-a na faculdade de a Assembleia da República definir a competência do Ministério Público (cfr. art.º 165.º/1/p) da Constituição).
45-A norma do n.º 4 do art.º 25.º CPTA, na redação da Lei n.º 118/2019, vem atribuir ao Centro de Competências Jurídicas do Estado a competência para coordenar “os termos da (...) intervenção em juízo" dos "serviços” a quem aquele entenda "transmitir" a citação.
46- Podendo, se e quando lhe aprouver, confiar a representação judiciária do Estado ao Ministério Público — tratado como mero "serviço" administrativo — e coordenar “os termos da respetiva intervenção em juízo".
47- Não se questiona que o Ministério Público não pode, sponte sua, realizar negócios processuais que consubstanciem a disponibilidade dos interesses estaduais litigiosos. Por isso, o art.º 101.º/1/b) do EMP estabelece que a celebração desses negócios depende de autorização do membro do Governo responsável pela área da justiça, ouvido o departamento governamental competente.
48 –E a al. a) do mesmo preceito confere ao Ministro da Justiça o poder de "transmitir, por intermédio do Procurador-Geral da República, instruções de ordem específica nas ações cíveis e nos procedimentos tendentes à composição extrajudicial de conflitos em que o Estado seja interessado".
49- Mas a norma ínsita na parte final do novo n.º 4 do art.º 25.º CPTA vai muito mais longe, conferindo à JurisApp competência para coordenar os próprios "termos" da intervenção em juízo.
50-Sendo gravemente ofendido o princípio da autonomia (externa) do Ministério Público, consignado no n.º 2 do art.º 219.º da Constituição.
51- Em suma: as normas constantes do segmento final do n.º 1 do art.º11.º e do n.º 4 do art.º 25.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redação da Lei n.º 118/2019, são inconstitucionais, por violação do disposto no art.º 219.º da Constituição, n.º 1, primeira proposição ("Ao Ministério Público compete representar o Estado") e n.º 2 ("O Ministério Público goza de (...) autonomia..."').
52- Pelo que deveria a Mmª Juiz “a quo” ter recusado a aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do n.º 1 do art.º 11.º e do n.º 4 do art.º25.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redação da Lei n.º 118/2019, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do n.º 1 do art.º 219.º da Constituição e do n.º 2 desta mesma disposição e declarado a nulidade da falta de citação do réu Estado (artigos 188.º/1/a) e 187.ºa) e b) CPC, subsidiariamente aplicáveis), anulando-se o processado posterior ao despacho que ordenou a citação do Estado e ordenando-se a citação do Ministério Público para, em representação do Réu Estado Português, contestar a acção.
53- Não o tendo feito e indeferindo expressamente o requerido pelo MºPº a decisão incorre em erro de julgamento, devendo ser revogada.”

Notificados os Recorridos, querendo, para apresentarem as respetivas contra-alegações, os mesmos nada disseram.


*
Vem o processo submetido à Conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.


II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, consubstanciam-se em apreciar se a sentença recorrida padece de erros de julgamento quanto à interpretação e aplicação do disposto no art.º 219.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 25.º, n.º 4 e 11.º, n.º 1 do CPTA, na sua versão atual.


III- FACTUALIDADE PROVADA
Perscrutado o processado nos presentes autos, encontram-se demonstrados os seguintes factos:
1. O Recorrido J…, Ld.ª propôs a presente ação administrativa contra o Ministério da Administração Interna, formulando pedido de condenação deste no pagamento do montante de 293.159,91 Euros, a título de pagamento pelos trabalhos de empreitada realizados a pedido do Recorrido Ministério, trabalhos esses realizados e medidos, mas não pagos.
2. Por oficio de 22/01/2021 foi citado o Centro de Competências Jurídicas do Estado para contestar a ação.
3. Tendo sido entregue ao Ministério Publico, junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, cópia da petição inicial e respetiva documentação, nos temos previstos no art.º 85.º, n.º 1 do CPTA.
4. Nesse seguimento, o Ministério Púbico apresentou requerimento, peticionando a este Tribunal:
“A- A recusa de aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do n.º 1 do artigo 11.º e do n.º 4 do artigo 25.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, na redação da Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição e do n.º 2 desta mesma disposição;
B- A declaração de nulidade da falta de citação do Réu Estado (artigos 188.º/1/a) e 187.º, a9 e b) do CPC subsidiariamente aplicáveis), anulando-se o processado posterior ao Despacho Judicial de 21 de janeiro de 2021 e ordenando-se a citação do Ministério Público, em representação do Réu Estado Português”.
5. Por decisão de 19/04/2021, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa indeferiu o descrito no ponto antecedente.


IV- APRECIAÇÃO DO RECURSO
O Recorrente imputa à decisão recorrida erro de julgamento, especificamente, a violação do art.º 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Todavia, não obstante a compreensão de todo o argumentório aduzido, a verdade é que o seu ataque à decisão recorrida não pode deixar de soçobrar integralmente.
Vejamos porquê.
Na sua essencialidade, entende o Recorrente que, da conjugação das atuais redações dos art.ºs 25º, n.º 4 e 11º, n.º 1 do CPTA, resulta que a representação do Estado pelo Ministério Público passou de regra a exceção, esvaziando o essencial da sua função nos tribunais administrativos e violando assim o art.º 219º, n.º 1 da CRP, preceito constitucional que considera que é ainda violado atenta a competência conferida ao Jurisappp para coordenar os termos da sua (do Ministério Publico) intervenção em juízo.
Foi, aliás, nestes termos que fundamentou a sua pretensão perante o Tribunal recorrido no sentido de ver desaplicadas as normas em questão e declarada a nulidade da falta de citação do Estado.

A questão essencial em discussão tem sido objeto de tratamento pelos Tribunais Centrais Administrativos, sendo que destacamos o julgamento realizado em 03/07/2020, no processo n.º 00902/19.0BEPNF-S1, pelo Tribunal Central Administrativo Norte que, a este propósito, consagrou o seguinte:
“(…)
A questão essencial que vem colocada em recurso é a de saber se as normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na redação dada pela L ei nº 118/2019, de 17 de setembro, deviam ter sido desaplicadas, por materialmente inconstitucionais, em termos que ao invés da citação ter sido dirigida ao CENTRO DE COMPETÊNCIAS JURÍDICAS DO ESTADO devia ter sido dirigida ao MINISTÉRIO PÚBLICO por ser este quem deve representar na ação o demandado ESTADO PROTUGUÊS, e se, assim, o Tribunal a quo devia ter deferido a arguição de nulidade da falta de citação do réu ESTADO PORTUGUÊS.
3.2 A questão surge na decorrência das alterações introduzidas ao CPTA pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro que a nova versão dada aos artigos 11º e 25º do CP TA operou no que toca à representação do E S TADO nos processos nos Tribunais Administrativos.
Sendo que, naturalmente, a aferição da eventual inconstitucionalidade daquelas normas por violação do artigo 219º nºs 1 e 2 da CRP, que foi suscitada na arguição da nulidade por falta de citação do réu ESTADO PORTUGUÊS, relevará apenas na medida em que se for de concluir pela invocada inconstitucionalidade das indicadas normas, a sua aplicação deve ser recusada (cfr. artigo 204º da CRP).
3.3 Atentemos, então, nas normas em causa.
3.4 Dispõe o seguinte o artigo 219º da CRP:
“Artigo 219º
Funções e Estatuto
1. Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
2. O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei.
3. (…)
4. (…)
5. (…). ”
O artigo 11º do CP TA na sua versão original (a da L ei nº 15/2002, de 22 de fevereiro), dispunha o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos processos da competência dos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de advogado.
2 - Sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objecto relações contratuais e de responsabilidade, as pessoas colectivas de direito público ou os ministérios podem ser representados em juízo por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, cuja actuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.
3 - Para o efeito do disposto no número anterior, e sem prejuízo do disposto nos dois números seguintes, o poder de designar o representante em juízo da pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, do ministério compete ao auditor jurídico ou ao responsável máximo pelos serviços jurídicos da pessoa colectiva ou do ministério.
4 - Nos processos em que esteja em causa a actuação ou omissão de uma entidade administrativa independente, ou outra que não se encontre integrada numa estrutura hierárquica, a designação do representante em juízo pode ser feita por essa entidade.
5 - Nos processos em que esteja em causa a actuação ou omissão de um órgão subordinado a poderes hierárquicos, a designação do representante em juízo pode ser feita por esse órgão, mas a existência do processo é imediatamente comunicada ao ministro ou ao órgão superior da pessoa colectiva.”
Com a revisão operada ao CP TA pelo DL . nº 214-G/2015, de 2 de outubro os nºs 1 e 2 daquele artigo 11º foram alterados e aditado ainda um novo nº 6, os quais passaram a dispor o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público.
2 - No caso de o patrocínio recair em licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, a referida atuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.
3 – (…).
4 - (…).
5 - (…).
6 - O s agentes de execução desempenham as suas funções nas execuções que sejam da competência dos tribunais administrativos.”
A L ei n.º 118/2019, de 17 de setembro, que veio mais recentemente, modificar os regimes processuais no âmbito da jurisdição administrativa e tributária, procedendo a diversas alterações legislativas, alterou a redação do nº 1 do artigo 11º do CPTA, a qual passou a dispor o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público.
(…)”
Simultaneamente também o artigo 25º do CPTA foi modificado.
Na versão original do CP TA (que veio a resultar da L ei nº 4-A/2003, de 19 de fevereiro) dispunha o seguinte:
“Artigo 25º
Citações e notificações
Sem prejuízo do que, neste Código, especificamente se estabelece a propósito da citação dos contra-interessados quando estes sejam em número superior a 20, é aplicável o disposto na lei processual civil em matéria de citações e notificações.”
E com a revisão operada pelo DL. nº 214-G/2015 passou a dispor o seguinte:
“Artigo 25º
Citações e notificações
1 - Salvo disposição em contrário, as citações editais são realizadas mediante a publicação de anúncio em página informática de acesso público, nos termos a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
2 - E m todas as formas de processo, todos os articulados e requerimentos autónomos e demais documentos apresentados após a notificação ao autor da contestação do demandado são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte nos termos da lei processual civil.
3 - A notificação determinada no número anterior pode realizar-se por meios eletrónicos, nos termos de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.”
E com a L ei n.º 118/2019, de 17 de setembro, assumiu a atual versão, com a modificação da redação dos nºs 3 e 4, os quais passaram a dispor o seguinte:
“1 – (…)
2 – (…)
3 - A notificação determinada no número anterior realiza-se por via eletrónica, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
4 - Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.”
3.5 Na atual versão dos dispositivos do artigos 11º e 25º do CP TA resulta que a presentação do ESTADO nas ações em que este seja parte demandada (por a ele lhe pertencer a legitimidade passiva nos termos do artigo 10º do CPTA) fica agora apenas garantida a possibilidade da sua representação em juízo ser assegurada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, e não já, como acontecia anteriormente, que essa representação a si lhe pertença. Simultaneamente, a citação do ESTADO deixou de se operar «na pessoa do magistrado do Ministério Público» na usual fórmula utilizada, e passou a ser dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, serviço central da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa, que se integra na P residência do Conselho de Ministros e está sujeito ao poder de direção do Primeiro-Ministro ou do membro do Governo em quem aquele o delegar (cuja orgânica foi aprovada pelo DL. nº 149/2017, de 6 de dezembro, e posteriormente alterada pelo DL. nº 91/2019, de 5 de julho).
3.6 A questão está em saber se estes dispositivos, na sua atual redação, atentam a Constituição nos termos invocados pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.
3.7 Mas estão aqui em causa duas vertentes da representação da pessoa coletiva ESTADO no âmbito do contencioso administrativo: uma a vertente orgânica (funcional), outra na vertente de patrocínio judicial.
3.8 Ora, se o que importa aferir é se ocorreu a invocada falta de citação do ESTADO, por a citação ter sido dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado nos termos atualmente previstos no artigo 25º nº 4 do CPTA (e não ao MINISTÉRIO PÚBLICO, como acontecia na solução legal anterior), não relevam aqui, e para a utilidade do presente recurso, os argumentos tecidos em torno da questão da invocada subalternização do MINISTÉRIO PÚBLICO à vontade da Administração, nem da invocada afronta à autonomia do MINISTÉRIO PÚBLICO decorrente do artigo 219º nº 2 da CRP e legalmente definida no respetivo Estatuto (à data da instauração da ação o aprovado pela L ei nº 47/86, de 15 de outubro, atualmente o aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto, cuja entrada em vigor ocorreu em 01/01/2020 – cfr. artigo 287º), os quais se prendem já com o papel do MINISTÉRIO PÚBLICO enquanto “advogado” do ESTADO.
Essa questão (atinente já ao patrocínio judiciário e representação em juízo) colocar-se-á a jusante da que agora nos interessa.
3.9 A que agora releva e importa é saber se a opção do legislador infraconstitucional, de fazer operar a citação da pessoa coletiva ESTADO, quando este seja demandado no âmbito dos processos nos tribunais administrativos, através do Centro de Competências Jurídicas do Estado, fere ou não o artigo 219º nº 1 da CRP.
Sabendo-se que a citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender (cfr. artigo 219º nº 1 do CPC, ex vi do artigo 1º do CPTA).
3.9 E a resposta tem que ser negativa.
3.10 É sabido que a questão do carater necessário ou não da representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO no âmbito das ações sobre contratos ou relativas à responsabilidade civil não é de hoje.
Aliás, a opção legislativa acolhida pelo CPTA (na reforma do contencioso administrativo operada em 2002-2004) havia sido já amplamente debatida no debate universitário que antecedeu aquela reforma do contencioso administrativo, e continuou a sê-lo posteriormente.
A tal respeito, vide, designadamente, Vieira de Andrade, defendendo fim do patrocínio do Estado pelo Ministério Público, em especial nas acções de responsabilidade, in, “Reforma do Contencioso Administrativo – O debate universitário (trabalhos preparatórios), Vol. I, Coimbra Editora, 2003, pág. 70, e in, “A Justiça Administrativa (L ições)”, 5ª E dição, Almedina, 2004, pág. 267. No mesmo sentido, associando-se à critica de continuar a atribuir-se ao MINISTÉRIO PÚBLICO a representação do ESTADO, Pedro Gonçalves, in, “A acção administrativa comum” – “A Reforma da Justiça Administrativa”, STVDIA IVRIDICA nº 86, Boletim da Faculdade De Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Dezembro 2005, pág. 167 (n. 90). Veja-se, ainda, Maria Isabel F . Costa, in, "O Ministério Público no contencioso administrativo - Memória e "Razão de S er"", Revista do Ministério Público, Ano 28, Abr-Jun 2007, pág. 28, destacando ser função nuclear do MINISTÉRIO PÚBLICO a defesa da legalidade democrática, com expressão na acção penal e na ação pública do contencioso administrativo.
3.11 O certo é que se manteve, na reforma do contencioso administrativo operada em 2002- 2004 a regra da representação do E S TADO nas ações sobre contratos e relativas à responsabilidade civil. Opção legislativa que foi agora alterada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro.
3.12 Mas a questão objeto do recurso não é a de saber se o ESTADO, demandado que foi como réu na ação, se encontra ou não regularmente representado em juízo (enquanto pressuposto processual).
A questão é a de saber se ocorreu nulidade (falta) de citação (enquanto nulidade processual), se ao abrigo do artigo 25º nº 4 do CPTA, na sua versão atual, a citação foi dirigida ao CENTRO DE COMPETÊNCIAS JURÍDICAS DO ESTADO, por dever ser recusada a aplicação dessa norma com fundamento em inconstitucionalidade. E se, assim, deve ser anulado todo o processado, e determinada a citação do ESTADO através do MINISTÉRIO PÚBLICO.
Atenha-se que nos termos do artigo 188º nº 1 alínea b) do CP C, aplicável ex vi do artigo 1º do CPTA, há falta de citação “…quando tenha havido erro de identidade do citado”.
3.13 É sabido que o nomini nomine «ESTADO» tem várias aceções. Mas neste âmbito, a que essencial releva é a pessoa coletiva ESTADO, em especial na sua vertente Estado-administração, fazendo-o distinguir-se das outras pessoas coletivas públicas dotadas de personalidade jurídica (e, por conseguinte, também, judiciária).
Sendo que a qualificação do ESTADO como pessoa coletiva decorre da própria Constituição, designadamente dos seus artigos 3º nº3, 5º nº 3, 18º nº 1, 22º, 27º nº 5, 38º nº 2, 41º nº 4, 204º nº 1 alínea b) e nº 2, 269º nºs 1 e 2, 271º nºs 1 e 4 ou 276º nº 4, sendo particularmente significativas, neste conspecto, as disposições onde se atribuem direitos ou deveres ao ESTADO e às outras pessoas coletivas públicas – vide, a este respeito, Diogo Freitas do Amaral, in, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. I, II edição, Almedina, pág. 213 ss.
3.14 Na versão anterior do CPTA o chamamento do ESTADO à ação sobre contrato ou relativa a responsabilidade civil que contra ele tivesse sido instaurada fazia-se através da citação dirigida ao MINISTÉRIO PÚBLICO, que era quem também, quem atuava na ação em sua representação legal.
Como refere Alexandra Leitão, in, “A Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos”, JULGAR, nº 20, 2013, pág. 13 ss. tratava-se aí de uma representação legal e não propriamente, como representação orgânica, como vinha sendo entendido em alguma doutrina “(…) enquanto a representação orgânica decorre da própria natureza das coisas — é, por assim dizer, lógica e ontológica —, a representação legal decorre de uma opção do legislador. Por outras palavras: seria possível optar-se por não cometer ao Ministério Público a representação em juízo do Estado, mas seria impossível determinar que a pessoa coletiva deixasse de ser representada por um ou mais dos seus órgãos, pela simples razão que as pessoas coletivas são entidades imateriais que carecem sempre de um ou mais órgão(s) e do(s) seu(s) titular(es) para manifestar a sua vontade. Este é o cerne da distinção entre representação orgânica e legal.”
3.15 A circunstância de a expressão «representação», usada nas normas em causa, não é, assim unívoca, sendo aplicada com aceções diferentes. As suas repercussões são, aliás, explicitadas, no âmbito da versão original do CPTA, por Esperança Mealha, in, “Personalidade Judiciária e Legitimidade Passiva das Entidades Públicas”, CEDIPRE ONLINE I2, novembro 2010, pág. 29, na análise que ali se efetua quanto à medida em que a representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO interferia com os critérios de atribuição de personalidade judiciária vertidos no artigo 10º CPTA (…)
3.16 Não vemos como a representação orgânica da pessoa coletiva ESTADO nos tribunais administrativos, em defesa dos seus interesses patrimoniais, que são os que estão em causa nas ações sobre contratos e relativas à responsabilidade, esteja constitucionalmente acometida ao MINISTÉRIO PÚBLICO.
Mas será que o artigo 219º nº 1 da CRP ao determinar, sob a epígrafe “Funções e Estatuto” que “ao Ministério Público compete representar o Estado”, lhe reserva a ele a representação legal do ESTADO nessas mesmas ações?
3.17 As justificações para a solução infraconstitucional adotada pela Lei n.º 118/2019, de 17
de setembro podem ser muitas. Mas uma delas advirá, com certeza, da circunstância aos dois meios processuais principais - a «ação administrativa comum» e a «ação administrativa especial», cujos respetivos âmbitos e regras processuais eram distintas (cfr. artigos 35º, 37º, 42º e 46º do CPTA, na versão original) – com a revisão operada pelo DL. nº 214-G/2015, ter resultado o abandono daquele modelo dualista de meios processuais principais não urgentes, através do estabelecimento de uma única forma de processo declarativo não urgente, a «ação administrativa», na qual passaram a poder ser cumulados pedidos que anteriormente pertenciam a cada uma daquelas distintas formas de processo. Daí emergindo múltiplas dificuldades ao nível da determinação da legitimidade passiva, resultando, não raras vezes, em decisões de forma, com absolvição da instância, e sem possibilidade de aproveitamento do ato de citação, nem da respetiva interrupção da prescrição ou da caducidade, a verificar-se. Podendo, até, raiar em situações de denegação de justiça, com prejuízo dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
3.17 Assim se explicará que a citação deva ser dirigida uma única citação ao Centro de Competências Jurídicas do Estado quando numa na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, quando numa ação seja demandado o ESTADO, ou quando na mesma ação sejam demandados diversos ministérios e o ESTADO, sendo que foi aliás esta última hipótese que sucedeu nos autos. E com essa citação, que o ESTADO (e/ou os Ministérios que sejam também demandados) é chamado à ação, e a instância fixada, nos termos do artigo 260º do CPC, ex vi do artigo 1º do CPTA (sem prejuízo das eventuais modificações que possam vir a ocorrer nos termos que processualmente sejam admitidos).
3.18 Não cabe aqui fazer qualquer juízo quanto ao melhor acerto da opção legislativa adotada na Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, já que num Estado de Direito assente no primado da Lei (cfr. arts. 2.º e 3.º, n.ºs 1 e 2 da CRP) na sua aplicação aos casos concretos têm de ser acatados os juízos de valor legislativamente formulados, quando não ofendam normas de hierarquia superior nem se demonstre violação de limitações legais de carácter geral “…não podendo o intérprete sobrepor à ponderação legislativa os seus próprios juízos sobre o que pensa que deveria ser regime legal, mesmo que os considere mais adequados e equilibrados que os emanados dos órgãos de soberania com competência legislativa.” (cfr., por todos, o Acórdão do Pleno do STA de 13/11/2007, Procº nº 01140/06, in, www.dgsi.pt/jsta).
3.19 Ainda que sejam de reportar as dificuldades da sua articulação com outras normas do sistema jurídico infraconstitucional.
Designadamente as decorrentes da o Estatuto do MINISTÉRIO PÚBLICO (à data da instauração da ação o aprovado pela Lei nº 47/86, de 15 de outubro, atualmente o aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, cuja entrada em vigor ocorreu em 01/01/2020 – cfr. artigo 287º), se referir à intervenção principal do MINISTÉRIO PÚBLICO quando representa o ESTADO, as REGIÕES AUTÓNOMAS ou as AUTARQUIAS LOCAIS, simultaneamente dispondo que “…em caso de representação de região autónoma, de autarquia local ou, nos casos em que a lei especialmente o permita, do Estado, a intervenção principal cessa quando for constituído mandatário próprio” (cfr. artigo 5º nº 1 alíneas a) e b) e nºs do Estatuto antigo e artigo 9º do Estatuto novo) e de prever a existência de departamentos de contencioso do ESTADO enquanto órgão de coordenação e de representação do ESTADO em juízo em matéria cível, administrativa e tributária (cfr. artigo 51º do Estatuto antigo e 61º do Estatuto novo) aos quais compete (cfr. artigo 52º nº 1 do Estatuto antigo e 61º nº 1 do Estatuto novo) a “…representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais, em casos de especial complexidade ou de valor patrimonial particularmente relevante, mediante decisão do Procurador-Geral da República (alínea a)); “…organizar a representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais” (alínea b)); “…assegurar a defesa dos interesses coletivos e difusos” (alínea c)); “…preparar, examinar e acompanhar formas de composição extrajudicial de conflitos em que o Estado seja interessado” (alínea d)), e ainda “…apoiar os magistrados do Ministério Público na representação do Estado em juízo” (nº 2).
3.19 Sendo certo que por outro lado, e no que toca às ações cíveis, o CPC atual dispõe no seu artigo 24º, a respeito da representação do ESTADO que este é nelas “…representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que este esteja constituído” (nº 1), ressalvando que “…se a causa tiver por objeto bens ou direitos do Estado, mas que estejam na administração ou fruição de entidades autónomas, podem estas constituir advogado que intervenha no processo juntamente com o Ministério Público, para o que são citadas quando o Estado seja réu; havendo divergência entre o Ministério Público e o advogado, prevalece a orientação daquele”.
Não podendo deixar de se estranhar, que quando estejam em causa ações da mesma natureza, mas por não integrarem a área da competência da jurisdição administrativa e fiscal (cfr. artigo 4º do ETAF), estejam submetidas à jurisdição dos tribunais comuns, a representação do ESTADO possa ser feita de modo tão diametralmente distinto.
3.20 Claro que o inciso da parte final do nº 4 do artigo 25º do CPTA na sua versão atual, no qual, referindo-se ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, se diz que este “assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo” poderá criar dúvidas quanto à forma como será assegurada, em tal caso, a garantia da autonomia do MINISTÉRIO PÚBLICO, nos termos do artigo 219º nº 2 da CRP e do respetivo Estatuto, em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local (cfr. artigo 2º do Estatuto antigo e 3º do Estatuto novo). Mas não é despiciente relembrar que nos termos Estatuto antigo (aprovado pela Lei nº 47/86) não só era contemplada a interligação entre a atuação judicial do MINISTÉRIO PÚBLICO em representação do ESTADO e os demais serviços do Estado, cuja atuação estivesse implicada, como se previa que ao Ministro da Justiça competia transmitir, ainda que por intermédio do Procurador-Geral da República, instruções de ordem específica nas ações cíveis e nos procedimentos tendentes à composição extrajudicial de conflitos em que o Estado fosse interessado ou autorizar o Ministério Público, ouvido o departamento governamental de tutela, a confessar, transigir ou desistir nas ações cíveis em que o Estado fosse parte (cfr. artigo 80º alíneas a) e b) do Estatuto antigo).
3.21 E recentrando-nos na invocada desconformidade das normas em causa, temos que reafirmar a análise feita pela 1ª instância quanto à convocação do artigo 219º nº 1 da CRP, nos termos da qual “ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”. Dando por renovados os entendimentos doutrinais ali citados a tal respeito. Os quais evidenciam que a discussão em torno da representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO se encontra atualmente já limitada. Na medida em que é aceite, sem reservas, a conformidade constitucional com o inciso “ao Ministério Público compete representar o Estado” constante da primeira parte do nº 1 do artigo 219º da CRP, quanto às demais opções legais em que a representação do ESTADO, e a defesa dos interesses patrimoniais deste, não são feitas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, mas pelas entidades ou órgãos integrados na administração direta ou indireta do Estado (tenham ou não personalidade jurídica), quando nos termos da lei processual aplicável lhes é reconhecida personalidade e capacidade judiciária.
O que significa que restam apenas em discussão as ações relativas a contratos e a responsabilidade civil extracontratual em que o ESTADO seja demandado nos Tribunais Administrativos. E não se vê em como possam estas considerar-se núcleo essencial das funções do MINISTÉRIO PÚBLICO referidas no nº 1 do artigo 219º da CRP.
3.22 E por último sempre importará ainda dizer que independentemente de estar ou não a matéria em causa, regulada nos dispositivos dos artigos 11º e 24º do CPTA na versão dada pela Lei nº 118/2019, de 17 de setembro, no âmbito da reserva relativa da assembleia da república nos termos do artigo 165º nº 1 da CRP, também apontado como violado, o certo é que essa competência legislativa foi observada.
3.23 Aqui chegados, tem pois que concluir-se, dever ser negado provimento ao recurso e manter-se, com a antecedente fundamentação, a decisão do Mmº Juíza quo que indeferiu a arguição de nulidade de falta da citação. (…).».
(…)”

Acolhemos na íntegra esta fundamentação que nenhum reparo nos merece, não tendo sido suscitada a apreciação de qualquer outra questão para além da que foi reiteradamente apreciada de forma que se pode considerar uniforme pelos Tribunais Centrais Administrativos.
Realce-se que, neste Tribunal Central Administrativo Sul a questão em dissídio foi já apreciada no âmbito dos processos n.ºs 213/20.9BEALM-S1, em 26/11/2020, 216/20.3BEALM-S1, em 21/01/2021, 221/20.0BEALM-S1, também em 21/01/2021 e, mais recentemente, no processo n.º 59/21.7BEALM-S2, em 17/06/2021. O Tribunal Central Administrativo Norte apreciou a mesma questão nos processos n.º 902/19.0BEPNF-S1, em 03/07/2020, 1240/19.4BEPNF-S1, em 18/09/2020, 895/20.1BEPRT-S1, em 18/12/2020, 1031/19.2BEAVR-S1, em 18/12/2020, 714/19.1BECBR-S1, em 22/01/2021, 952/20.4BEPRT-S2, em 19/02/2021, 22/20.5BEPRT-S1 e 240/20.6BEPNF-S1, em 09/04/2021.
Assinale-se, em derradeiro lugar, que o Supremo Tribunal Administrativo negou a admissão da revista nos processos 902/19.0BEPNF-S1, em 24/09/2020, 92/20.6BELSB-S1, em 10/12/2020, 1240/19.4BEPNF-S1, em 11/03/2021, 213/20.9BEALM-S1, em 25/03/2021, 216/20.3BEALM-S1, em 13/05/2021, 1031/19.2BEAVR-S1, 271/20.6BEVIS e 895/20.1BEPRT-S1, em 27/05/2021, 714/19.1BECBR-S1 e 732/19.0BECBR-S1, em 09/06/2021 e 952/20.4BEPRT-S1, em 24/06/2021. [todos os acórdãos identificados estão publicados em www.dgsi.pt (à exceção dos dois primeiros deste Tribunal Central) e todos (os acórdãos dos Tribunais Centrais) incidem sobre a questão que constitui o objeto deste processo e decidem-na em termos idênticos e com os quais se concorda (apenas no último acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte identificado- de 09/04/2021- não existiu consenso no julgamento da questão tendo sido proferido voto de vencido].
Em suma, procedendo à interpretação conforme à Constituição nos termos em que à mesma se alude na decisão recorrida, e considerando que nem da Lei Fundamental nem do Estatuto do Ministério Público resulta que a representação do Estado não possa ser atribuída a outrem que não o Ministério Público, deve concluir-se que, efetivamente, inexiste qualquer fundamento para a recusa de aplicação das normas em questão.
Acresce que, como se evidenciou no recente acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 09/04/2021 (processo 00240/20.6BEPNF-S1), a possibilidade de representação do Estado em juízo pelo Ministério Público não é vedada por o Centro de Competências Jurídicas do Estado ter incumbência de coordenar termos de intervenção em juízo, pois que (i) é possibilidade de representação não excluída, (ii) e sendo efetiva, em sã leitura tem de se entender que essa coordenação só vale com relação aos “serviços competentes” dos “diversos ministérios” demandados; o que, assim se entendendo, dota a lei do sentido constitucionalmente conforme, coincidindo com aquele que o recorrente entende merecer preservação.

Quer isto significar, por conseguinte, que as normas constantes da alínea dos art.ºs 11.º, n.º 1 e 25.º, n.º 4 do CPTA não violam o consagrado no artigo 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Desta feita, atento o enquadramento legal em que se movimenta o caso em análise, apresenta-se inequívoco que a decisão a quo não padece do erro de julgamento que lhe é assacado, antes revelando acerto insuscetível de ser abalado pelo vertente recurso jurisdicional.
Pelo que, em conformidade, terá de negar-se provimento ao presente recurso e confirmar-se a decisão recorrida.


V- DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em Conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente, sem prejuízo da isenção de que beneficia.

Registe e Notifique.

Lisboa, 18 de novembro de 2021,

____________________________

Paula Cristina Oliveira Lopes de Ferreirinha Loureiro- Relatora



____________________________

Jorge Pelicano



____________________________

Celestina Castanheira