Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:164/23.5BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/11/2024
Relator:MARIA TERESA CAIADO FERNANDES CORREIA
Descritores:INFRAÇÕES DISCIPLINARES
IDADE
CONDENADO
LEI DA AMNISTIA
Sumário:I- As infrações disciplinares não dependem de qualquer limite em razão da idade do infrator para poderem ser a ser declaradas amnistiadas, assim não se passando, todavia, no caso concreto: cfr. art. 1º, art. 2º n.º 2 al. b) e art. 6° todos da referida Lei 38-A/2023, de 2 de agosto.
II- Isto porque, como resulta dos autos, o recorrido (nascido em 1982-01-16), tinha 38 (trinta e oito) anos, à data da prática das infrações disciplinares que, no caso, constituíam simultaneamente ilícitos penais, mas ilícitos penais que não seriam suscetíveis de ser amnistiados, exatamente, porque à data em que o recorrido praticou tais factos ilícitos já tinha mais de 30 (trinta) anos: cfr. art. 1º, art. 2º n.º al. b) e art. 6° todos da referida Lei 38-A/2023, de 2 de agosto.
III- Destarte, quando os factos que levaram à aplicação da sanção disciplinar sejam passíveis de integrar um ilícito criminal não amnistiado não pode esse ilícito disciplinar ser abrangido pela amnistia, como desacertadamente concluiu o despacho arbitral n.º 5 recorrido: cfr. art. 1º, art. 2º e art. 6° todos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto; art. 9º nº 1 do CC, Vol. I. anotado por Antunes Varela e Pires de Lima.
IV- Por outro lado, e com relevo para o caso concreto é, exatamente, neste art. 7º n.º 1, al. a), v) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto que se encontram, elencados os crimes que cujos factos imputados ao recorrido são suscetíveis de consubstanciar crimes contra a liberdade sexual e contra a autodeterminação sexual das jovens atletas que o recorrido treinava, previstos nos art. 163. ° a art. 176. °-B todos do CP, a saber: coação sexual; violação; abuso sexual; fraude sexual; procriação artificial não consentida; lenocínio; importunação sexual; atos sexuais com adolescentes; recurso à prostituição de menores; lenocínio de menores; pornografia de menores, aliciamento de menores para fins sexuais e organização de viagens para fins de turismo sexual com menores.
V- Ponto é que no art. 7º n.º 1, al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, onde o Legislador usou a palavra «condenado» a letra da Lei terá de ser interpretada de forma textual, sistemática, racional e hodierna, tal significando que onde se lê: «condenado» tal deverá ser entendido como «sujeito» (não sendo, por isso, necessário que exista condenação com trânsito em julgado, mas a possibilidade de existir condenação): cfr. art. 7º n.º 1, al. a), v) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto; art. 9º nº 1 do CC, Vol. I. anotado por Antunes Varela e Pires de Lima; Coleção STVDIVM, Temas Filosóficos, Jurídicos e Sociais, Interpretação e Aplicação das Leis, FRANCESCO FERRARA, 4ª Edição, Arménio Amado – Editor Sucessor, Coimbra – 1987; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2024-01-24, processo n.º 477/22.3GAPMS.C1, disponível em www.dgsi.pt;
VI- Donde, desacertadamente, concluiu ainda o despacho arbitral n.º 5 recorrido quando, literalmente, entendeu que ao recorrido não era aplicável o disposto no art. 7º n.º 1, al. a), v) da Lei da Amnistia por não resultar dos autos que este tivesse sido condenado pelos factos passíveis de constituir crimes previstos nos citados art. 163. ° a art. 176. °-B do CP.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais: Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO acordam os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul – Subsecção Social:

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I. RELATÓRIO:
M………., com os demais sinais dos autos, intentou no Tribunal Arbitral do Desporto – TAD, contra a FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL – FPF ação que foi julgada improcedente, por Acórdão do TAD, de 2023-07-10, que: “…não julgando provada a nulidade e as anulabilidades invocadas (…), em consequência…” manteve: “…na íntegra a decisão recorrida…”, que havia condenado o Demandante na sanção única de suspensão pelo período de 35 (trinta e cinco) meses, isto é, 1050 (mil e cinquenta) dias, e, cumulativamente, na sanção única de multa fixada em 50 UC, ou seja, €5.100,00 (cinco mil e cem euros).

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O Demandante, inconformado, interpôs então recurso de tal decisão arbitral, tendo, a Entidade Demandada apresentado também as suas contra-alegações.

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Sucede que antes de proferir despacho que verificasse da admissibilidade do supra identificado recurso, o TAD constatou a entrada em vigor da Lei n° 38-A/2023, de 2 de agosto, que determinou o perdão de penas e a amnistia de infrações e, por despacho n° 4, determinou que fossem as partes notificadas para se pronunciarem sobre a eventual aplicação dessa Lei ao caso concreto, prerrogativa que ambas as partes utilizaram.

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Destarte, o TAD proferiu o despacho nº …., a qual considerou abrangidas pela amnistia as infrações pelas quais o Demandante havia sido condenado, declarando-as extintas, tendo ainda determinado a não subida do recurso interposto em 2023-07-27 pelo Demandante.

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Inconformada tal decisão arbitral, a Entidade Demandada, ora recorrente, interpôs o presente recurso de apelação para este Tribunal Central Administrativo - TCA Sul, no qual peticionou, o provimento do recurso e a revogação do despacho n° …. recorrido, para tanto, concluindo, como se segue: “…
1. O presente recurso tem por objeto o Despacho proferido pelo Colégio Arbitral, constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto no âmbito do processo n.º ……../2022, notificado em 18 de Outubro de 2023, que deliberou - por maioria - no sentido de amnistiar as infrações pelas quais o Demandante foi condenado, declarando as mesmas extintas;
2. Em concreto, o presente recurso versa sobre a decisão do Colégio Arbitral em amnistiar as infrações pelas quais o Demandante foi condenado, e nessa medida revogar a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol de condenar o Demandante pela prática de 5 (cinco) infrações disciplinares previstas e sancionadas pelo art. 125.º, n.º 1, ex vi art. 183.º n.º1 ambos do RDFPF, sendo-lhe aplicada: (/) pela prática, por uma vez, da infração disciplinar prevista e sancionada pelo art. 125.º, n.º1, do RDFPF, a sanção de suspensão pelo período de 9 (nove) meses, isto é, 270 (duzentos e setenta dias) dias, e, cumulativamente, a sanção de multa fixada em 10 UC, ou seja, € 1.020,00 (mil e vinte euros); (//) e, por cada uma das demais 4 (quatro) infrações disciplinares previstas e sancionada pelo art. 125.º, n.º 1, do RDFPF, por si praticadas a sanção de suspensão pelo período de 6 (seis) meses e meio, ou seja, de 195 (cento e noventa e cinco) dias, e, cumulativamente, a sanção de multa fixada em 10 UC, ou seja, € 1.020,00 (mil e vinte euros), pelo que, em cúmulo material, na sanção única de suspensão pelo período de 35 (trinta e cinco) meses, isto é, 1050 (mil e cinquenta) dias, e, cumulativamente, na sanção única de multa fixada em 50 UC, ou seja, € 5.100,00 (cinco mil e cem euros);
3. A decisão que ora se impugna é passível de censura porquanto se verifica erro de julgamento na interpretação e aplicação do Direito invocado, a saber, das normas constantes na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto doravante Lei da Amnistia), designadamente dos seus artigos 2.2, 6.2 e 7.2;
4. O Recorrido e o Tribunal a quo não colocam em causa a matéria de facto dada como provada, reconhecendo que que as mensagens em crise nos autos foram por Recorrido escritas e enviadas às jogadoras questão, dando-se como assente a factualidade dada como provada;
5. Em causa nos presentes autos estão comportamentos do Recorrido que foi sancionado em virtude de por diversas comunicações mantidas com as suas jogadoras, seduzi-las e ultrapassar a mera ligação profissional e desportiva entre treinador e jogadoras, o que deixou as jogadoras nervosas, desconfortáveis, tristes, sentindo-se humilhadas e constrangidas na sua liberdade e na sua dignidade pessoal, além de impotentes para contrariar aquelas condutas, tendo em conta a posição de superioridade hierárquica assumida pelo treinador principal relativamente às suas jogadoras”, e bem assim, “ao insistir, reiteradamente, em questões e temáticas que colocavam uma tónica mais pessoal e íntima nas conversas e interações mantidas com as suas jogadoras, mesmo quando as jogadoras demonstravam não se sentir confortáveis ou à vontade com tais questões, o agente da prática das aludidas infrações evidenciou um tom algo persecutório, limitativo e castrador da liberdade pessoal daquelas jogadoras e, em última análise, da sua dignidade - procurando constrangê-las a adotar o comportamento que ele pretendia e que se traduziria numa aproximação mais íntima e afetiva;
6. A matéria dos presentes autos assume especial relevância no que diz respeito aos mais elementares direitos constitucionalmente consagrados, designadamente os princípios da dignidade humana – art. 1.2 da CRP - da igualdade – art. 13.2 da CRP - da proteção de qualquer forma de discriminação-artigo 26.2 da CRP -e da prevenção de fenómenos de violência no desporto – art. 79.2 da CRP.
7. No plano desportivo, o legislador ordinário elegeu a ética desportiva como princípio basilar da construção do sistema legal, no âmbito do qual a prevenção da violência assume lugar de destaque - LBAFD, havendo que registar 0 disposto no art. 12.2, n.2s 1 e 2 do RDFPF,
8. As manifestações de discriminação como as em crise nos presentes autos integram as "patologias” com que o Desporto se tem deparado e que urge erradicar de forma preventiva e de forma repressiva, quando necessário, como é o caso dos presentes autos;
Prosseguindo,
9. O tribunal a quo erra ao considerar que "no que respeita ao âmbito de aplicação da Lei da Amnistia, esta esclarece claramente no art. 2º, no seu nº1, que as sanções penais abrangidas são só as praticadas por pessoas com idade entre os 16 e os 30 anos de idade, isto é, a contrario, efetuam uma exclusão de aplicação quanto aos sancionados criminalmente que tenham mais de 30 anos, enquanto que, no seu nº 2, a lei abrange quer as sanções acessórias, quer as infrações disciplinares, não as limitando no que se refere à sua aplicação, a pessoas de determinadas idades", errando o Tribunal a quo ao considerar que, no que respeita a infrações disciplinares - como a que está em crise nos presentes autos - não se aplica o limite subjetivo da idade do autor da infração - dos 16 aos 30 anos;
10. Da redação do art. 2.5 da Lei da Amnistia, não podem resultar dúvidas de que foi intenção do legislador restringir aos "jovens" com 16 a 30 anos, os efeitos da referida Lei;
11. Tal enquadramento é aliás conferido pela Exposição de Motivos da referida Lei, onde se afirma expressamente que "Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens (...) jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.";
12. O próprio título da iniciativa legislativa não permite equívocos: "Estabelece perdão de penas e amnistia de infrações praticadas por jovens";
13. A redação inicial da Proposta de Lei 97/XV/l previa, sem margem para dúvidas, que o âmbito de aplicação da Lei, abrangendo ilícitos penais, contraordenacionais e disciplinares, se aplicava a pessoas singulares entre o 16 e 30 anos, para infrações praticadas até às 00h de dia 19 de julho de 2023;
14. Pese embora a redação final do diploma tenha sido distinta da inicialmente prevista, tal não impede que a melhor interpretação da norma seja a de que apenas serão amnistiadas as infrações disciplinares praticadas até às 00:00 horas de dia 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prtica do facto;
15. Enquanto o n.º 1 do artigo 2.º refere os ilícitos penais e limita subjetivamente o âmbito de aplicação da Lei, restringindo a pessoas singulares entre os 16 e os 30 anos de idade à prática do facto, o n.º 2, nada dispondo sobre tal âmbito subjetivo, visa, apenas alargar o âmbito de infrações a que a Lei se pode aplicar: contraordenacionais e também infrações disciplinares;
16. Esta é a única interpretação conforme ao espírito legislativo e à própria razão de ser da aprovação desta Lei da Amnistia em específico;
17. Em concreto, o perdão e a amnistia de penas devem ser sempre vistos e aplicados com um enquadramento de exceção, ademais quando determinada por razões de clemência religiosa;
18. Eximir alguém das suas responsabilidades penais ou sancionatórias em virtude da visita ao país de um líder religioso, apenas pode ser admitido de forma restrita sob pena de se violar o próprio Estado de Direito;
19. A melhor interpretação, atento o exposto, é que a referida Lei apenas se aplica a jovens, desde logo porque foram as Jornadas Mundiais da Juventude que fundamentaram a iniciativa legislativa em causa, mas também porque é em relação a este grupo de pessoas que pode haver esperança numa readaptação e reinserção, razão pela qual, refira-se aliás, se tem vindo a entender que mesmo em matéria disciplinar sancionatória não pode ser aplicada a Lei da Amnistia a reincidentes;
20. Estes são elementos interpretativos fornecidos pelo próprio legislador e nessa medida, sem margem para grandes extrapolações e com uma conclusão possível: A Lei da Amnistia visa aplicar- se a jovens entre os 16 e os 30 anos;
21. Mas se tal elemento interpretativo não se considerar suficiente, apesar de ser conferido por quem pensou e redigiu as normas aqui em crise, refira-se que as mais diversas entidades que se pronunciaram sobre a referida Lei, alinham em interpretação idêntica, talvez "à boleia" das pistas interpretativas que o legislador forneceu, caminho que, com o devido respeito, o Tribunal a quo deveria ter seguido;
22. No âmbito dos trabalhos parlamentares, o Conselho Superior do Ministério Público, o Conselho Superior de Magistratura, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e a Ordem dos Advogados, emitiram Pareceres cuja interpretação contraria a interpretação do Tribunal a quo, como resulta das presentes alegações e aqui e dá por reproduzido;
23. Da análise comparativa com outros diplomas emanados pelo Estado Português por ocasião de visitas papais - a saber a Lei nº 17/82 de 2 de julho e a Lei n- 29/99, de 12 de maio - é possível concluir que o critério subjetivo da idade foi já usado, sem as reservas e exceções que o Tribunal a quo faz constar no Despacho de que se recorre;
24. Tal exercício interpretativo de uma Lei que se "pretende" aplicar deve ser levado a cabo pelo julgador do caso concreto e com o devido respeito, o Tribunal a quo falhou ao não o fazer, errando na aplicação da Lei da Amnistia no caso em crise nos presentes autos;
25. À data da prática dos factos, o Recorrido, nascido em 16.01.1982, conforme decorre do processo disciplinar junto aos autos, tinha 38 anos, pelo que, não pode beneficiar do regime previsto nesta Lei n.9 38-A/2023;
26. Nessa medida, tendo assentado entendimento diferente, incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento na interpretação e aplicação da Lei da Amnistia, designadamente do seu art. 2.9, o que deve ser reconhecido pelo presente Tribunal, com vista a uma melhor aplicação do direito, devendo o despacho de que se recorre ser revogado;
Sem prescindir,
27. O Tribunal a quo entende que "nas exclusões de aplicação previstas no apontado art. 7º, a lei em causa é extremamente clara ao dizer que no âmbito dos crimes contra as pessoas não beneficiam os condenados: por outras palavras, só não beneficiam da amnistia ou perdão "OS CONDENADOS" por determinados crimes, nos quais, realmente, se poderiam vir a incluir, em termos abstratos, as atuações pelas quais o Demandante foi condenado disciplinarmente", errando na interpretação e aplicação dos art. 6º e 7ºda Lei da Amnistia;
28. O mencionado diploma - Lei da Amnistia - abrange quer os ilícitos penais, quer as sanções acessórias relativas a contraordenações e as sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares;
29. No que toca às infrações disciplinares, para poderem estar abrangidas pela amnistia, não podem constituir, em simultâneo, ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável seja superior a suspensão ou prisão disciplinar - cfr. al. a) do n. º2 do art. 2.º e art. 6.º, ambos da Lei n.º 38-A/2023;
30. No elenco previsto no art. 7.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, constam os crimes "contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos art. s 163.º a 176.º-B do Código Penal";
31. Não resulta da Lei que as exclusões do art. 7º só operam, se tiver havido condenação penal pelos crimes previstos naquele artigo, porquanto, o que o art. 6.º prevê é que "são amnistiadas as infrações disciplinares (...) que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei", não fazendo qualquer referência à condenação em processo criminal;
32. Os ilícitos criminais não amnistiados pela presente Lei são os constantes no art. 7.2 e ali constam os crimes "contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal", onde perfeitamente se subsumem os factos provados, conforme o próprio Tribunal a quo admite;
33. Se o legislador pretendesse afastar a Amnistia por via do disposto no art. 6.º da Lei da Amnistia, apenas nos casos em que se verificasse uma condenação penal, tê-lo-ia previsto naquela norma em concreto e não o fez, porque não pretendeu fazê-lo;
34. No entanto, o Tribunal o quo, opta por essa interpretação, que não encontra qualquer correspondência com o texto da Lei, e acima de tudo, com o espírito da Lei, não sendo possível concluir da letra da Lei, que o agente de um facto que foi condenado em infração disciplinar, só não beneficiará da amnistia, se pelos mesmos factos tiver sido condenado em processo criminal e se o crime em concreto estiver no rol dos que constam no art. 7.º da Lei da Amnistia, não se verificando o primeiro dos pressupostos na previsão legal;
35. Nos termos da Exposição de Motivos da Lei da Amnistia afirma-se que "é fixado um regime de amnistia, que compreende (...) as infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei";
36. Também nesta sede, no âmbito dos trabalhos parlamentares, a Ordem dos Advogados, emitiu parecer cuja interpretação contraria a interpretação do Tribunal a quo, como resulta das presentes alegações e aqui e dá por reproduzido;
37. Da análise comparativa com outros diplomas emanados pelo Estado Português por ocasião de visitas papais - a saber a Lei nº 29/99, de 12 de maio - é possível concluir que se verificou a opção de não amnistiar infrações disciplinares, cujos factos que estiveram na base de tal condenação, pudessem constituir simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pelas referidas leis, independente de condenação penal;
38. O que prevê o art. 7.º da Lei da Amnistia é que não beneficiam do perdão e da amnistia os condenados pelos crimes ali previstos, porquanto como é evidente, apenas os condenados podem ser perdoados;
39. Não existe qualquer remissão legal que nos permita concluir que só não haverá amnistia de infrações disciplinares no caso de condenação pelos crimes previstos no art. 7;
40. Em caso de se verificar uma infração disciplinar, desde que os factos em crise se possam subsumir nos crimes previstos no art. 7.9, não se verifica qualquer amnistia, não se aplicando a Lei da Amnistia;
41. Essa é a única interpretação coincidente com a letra do art. 6.º: "São amnistiadas as infrações disciplinares (...) que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei (...)";
42. Apela-se aqui a uma categoria objetiva de ilícios penais (os excluídos pelo art. 4.º e os elencados no art. 7.º) e não ao sujeito que os praticou (condenado ou não por tais crimes);
43. A opção do legislador foi a de "deixar de fora" do perdão e amnistia os factos praticados que possam subsumir-se na prática daqueles ilícitos penais excluídos pelo art. 4.º e dos crimes previstos no art. 7°;
44. A vingar a interpretação do Tribunal o quo, é possível um sujeito já condenado nos tribunais criminais por factos praticados exatamente nos mesmos moldes e no mesmo momento, não ver a infração disciplinar correspondente ser amnistiada, mas o Recorrido sim, em virtude de um mero acaso incontrolável por qualquer dos intervenientes, isto é, a existência de uma condenação; tal seria claramente violador do princípio da igualdade;
45. O legislador pretendeu com a elaboração e aplicação da Lei da Amnistia associar a visita de um líder religioso a uma espécie de indulto de condutas de pequena gravidade;
46. A sociedade não espera que em virtude da visita de Sua Santidade Papa Francisco, alguém que pratique factos subsumíveis em crimes "contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.9 a 176.9-B do Código Penal", seja amnistiado;
47. Não é essa a doutrina da Igreja Católica, não é essa a Mensagem do Papa Francisco, que tem condenado publicamente os abusos sexuais, inclusivamente os perpetrados por elementos da Igreja Católica, e é com base nestes pressupostos, que o legislador aprova uma Lei da Amnistia;
48. A vingar a tese do Tribunal a quo, o resultado prático seria um desencorajar das vítimas de crimes "contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos art. 163.9 a 176.9-B do Código Penal" de denunciarem quem os pratica, como sucedeu, recorde-se, no caso concreto dos presentes autos, o que resultaria em terreno fértil para que este tipo de comportamentos se tornasse ainda mais sistémico e transversal, o que a Sociedade e os Tribunais devem procurar de evitar;
Em suma,
49. verificando-se erro de julgamento na interpretação e aplicação do art. 6.º e 7.º da Lei da Amnistia, o que deve ser reconhecido pelo presente Tribunal, com vista a uma melhor aplicação do direito, devendo o despacho de que se recorre ser revogado…”.

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O Demandante não apresentou contra-alegações.

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O recurso foi admitido em 2023-11-21.

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Subindo os autos a este TCA Sul, foi dado cumprimento ao disposto no art. 146º e art. 147º ambos do Código do Processo nos Tribunais Administrativos - CPTA, tendo o Digno Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitido parecer, no qual concluiu dever: “… ser dado provimento ao presente recurso, reconhecendo-se o vício apontado pela Recorrente…”.
Este parecer foi notificado às partes, sobre o qual nada mais disseram: cfr. fls. 73 a 74.

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Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente (cfr. art. 36º nº 2 do CPTA), mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos Juízes Desembargadores Adjuntos, vem o processo à conferência para julgamento.

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II. OBJETO DO RECURSO:
Delimitadas as questões a conhecer pelo teor das alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, e respetivas conclusões (cfr. art. 635°, n° 4 e art. 639°, n°1, nº. 2 e nº 3 todos do Código de Processo Civil – CPC ex vi artº 140° do CPTA), importa apreciar e decidir agora se a decisão sob recurso padece do assacado:
  • erro de julgamento de direito, ao considerar que a Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, no que às infrações disciplinares respeita, não consagra qualquer limitação em razão da idade para a sua aplicação,
e;
  • erro de julgamento de direito, ao formular o entendimento de que tais infrações disciplinares, quando simultaneamente constituam ilícitos penais, apenas não são amnistiadas se tiver havido efetiva condenação pela prática de tais crimes.

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III. FUNDAMENTAÇÃO:
A – DE FACTO:
O despacho arbitral n.º …… recorrido considerou assente a seguinte factualidade:
“… O Colégio Arbitral desconhece, (…) a existência de qualquer processo-crime, muito menos uma condenação, que paire sobre o Demandante,
(…)
o Demandante foi condenado no processo disciplinar em causa: "pela prática de 5 (cinco) infrações disciplinares previstas e sancionadas pelo art. 125.°, n.º 1, ex vi art. 183.°, n.º 1, ambos do RDFPF, sendo-lhe aplicada: (i) pela prática, por uma vez, da infração disciplinar prevista e sancionada pelo art. 125.°, n.º1, do RDFPF, a sanção de suspensão pelo período de 9 (nove) meses, isto é, 270 (duzentos e setenta dias) dias, e, cumulativamente, a sanção de multa fixada em 10 UC, ou seja, € 1.020,00 (mil e vinte euros); (ii) e, por cada uma das demais 4 (quatro) infrações disciplinares previstas e sancionada pelo artigo 125.°, n.º 1, do RDFPF, por si praticadas e por que vem condenado, a sanção de suspensão pelo período de 6 (seis) meses e meio, ou seja, de 195 (cento e noventa e cinco) dias, e, cumulativamente, a sanção de multa fixada em 10 UC, ou seja, €1.020,00 (mil e vinte euros). Pelo que, em cúmulo material, condena-se o arguido M…… na sanção única de suspensão pelo período de 35 (trinta e cinco) meses, isto é, 1050 (mil e cinquenta) dias, e, cumulativamente, na sanção única de multa fixada em 50 UC, ou seja, € 5.100,00 (cinco mil e cem euros);
Condenação essa mantida pelo acórdão deste Tribunal Arbitral [de 2023-07-10].
As infrações foram praticadas antes de 19 de junho de 2023 (…)
A pena aplicada em cúmulo material no processo disciplinar foi de suspensão, ou seja, não foi aplicável pena superior a suspensão (…).
(…) não sendo este também reincidente, de acordo com o seu cadastro disciplinar constante nos autos disciplinares e que o Tribunal Arbitral verificou…”.

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B – DE DIREITO:
DO ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO (art. 2º n.º 2 al. b) e art. 6° da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto):
Como se retira do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo: n.º 778/23.3T8PDL-A. L1-4, disponível em www.dgsi.pt: “… a amnistia, embora sem definição legal, está prevista no Código Penal - CP, Título V (Da Extinção da responsabilidade criminal), Capítulo III (Outras causas de extinção).
Nos termos do n.º 1 do art. 124.º do CP, “A responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto.”
E de acordo com o n.º 2 do art. 128.º do CP, “A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.”
Nos termos do art. 161.º al. s. c) e f) da Constituição da República Portuguesa - CRP, compete à Assembleia da República: “Fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo” e: “Conceder amnistias e perdões genéricos;”
A amnistia, é assim, uma medida de clemência emanada da vontade do poder político.
E como se afirma no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.12.2023, Proc. n.º 2436/03.6PULSB-D. L1, consultável em www.dgsi.pt, “A amnistia e perdão são medidas penais que concedem a graça inerente, ou seja, amnistiando certos crimes e/ou perdoando certas penas, de determinada natureza e dentro de determinados limites, como ali se imponha.
Enquanto reminiscências históricas e manifestação de soberana vontade de quem assim podia dispor dos poderes do Estado, chega aos nossos dias sobretudo com um âmbito que, ainda por conceder uma vantagem decorrente de uma circunstância não especificamente judiciária, se prefigura mais como a oportunidade de esbater os efeitos da generalidade e abstração das normas legais.”
Por outro lado, há que ter presente que as Leis de Amnistia têm um carácter excecional pelo que não comportam aplicação analógica (art.11.º do Código Civil). E como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.11.2023, Proc. 24/21.4PEPRT-B. P1, consultável em www.dgsi.pt, “II – (..) desde há muito que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentado que, como providências de exceção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.”
(…)
A Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto (Lei da Amnistia) que entrou em vigor no dia 1 de setembro de 2023, estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigos 15.º e 1.º) …”.


Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 2° da referida Lei 38-A/2023, de 2 de agosto: “… 1- Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.
2 — Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;
b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º…”
O art° 6° do mesmo diploma dispõe que: “… São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.”


Aqui chegados, dir-se-ia que a Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, no que às infrações disciplinares respeita - diversamente do que se passa quanto aos ilícitos penais -, não fazendo expressa referência a qualquer limite de idade do infrator, não consagra, por isso, qualquer limitação em razão da idade, e sendo conhecido o brocardo "ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus" (onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir), impor-se-ia, à primeira vista, afirmar que a conclusão a retirar seria a de que a referida Lei não consagra qualquer limitação em razão da idade do infrator.


Mas dizemos à primeira vista porque não será exatamente sempre assim: cfr. art. 1º, art. 2º n.º 2 al. b) e art. 6° todos da referida Lei 38-A/2023, de 2 de agosto.


Dito de outro modo, genericamente, desde que reunidos os demais requisitos, as infrações disciplinares não dependem de qualquer limite em razão da idade do infrator para poderem ser a ser declaradas amnistiadas, assim não se passando, todavia, no caso concreto: cfr. art. 1º, art. 2º n.º 2 al. b) e art. 6° todos da referida Lei 38-A/2023, de 2 de agosto.


Isto porque, como resulta dos autos, o recorrido (nascido em 1982-01-16), tinha 38 (trinta e oito) anos, à data da prática das infrações disciplinares que, no caso, constituíam simultaneamente ilícitos penais, mas ilícitos penais que não seriam suscetíveis de ser amnistiados, exatamente, porque à data em que o recorrido praticou tais factos ilícitos já tinha mais de 30 (trinta) anos: cfr. art. 1º, art. 2º n.º al. b) e art. 6° todos da referida Lei 38-A/2023, de 2 de agosto.


Vale isto por dizer que: “… não desconhecemos que a amnistia é um direito de graça (…). E é pela natureza excecional de tais normas que é pacífico o entendimento jurisprudencial e doutrinal de que se encontra afastada a analogia, e mesmo a interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que o que queria) ou restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que o que queria). (…) Não esqueçamos, contudo, que, toda a fonte necessita de interpretação que desvele a regra que encerra. (…) Portanto, além do teor verbal hão-de ser considerados «a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos» (ou seja, a interpretação lógico-sistemática), assim como «a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica», bem assim «a história da génese do preceito», que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e finalmente o «fim particular da lei ou do preceito em singular» (ou seja, a interpretação teleológica)» - cf. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 3.ª ed., p. 111»…”: cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2024-01-24, processo n.º 477/22.3GAPMS.C1, disponível em www.dgsi.pt.


Assim, interpretando a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto em conformidade com as regras da interpretação da Lei, concluímos que as infrações disciplinares não dependem de qualquer limite em razão da idade do infrator para poderem ser a ser declaradas amnistiadas, desde que, com tal circunstância não consubstanciem ilícitos penais que sejam suscetíveis de ser simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei da Amnistia de 2023 em razão da idade (recorde-se: entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto): cfr. art. 1º, art. 2º e art. 6° todos da referida Lei 38-A/2023, de 2 de agosto; art. 9º nº 1 do Código Civil - CC, Vol. I. anotado por Antunes Varela e Pires de Lima.


Ou seja, quando os factos que levaram à aplicação da sanção disciplinar sejam passíveis de integrar um ilícito criminal não amnistiado não pode esse ilícito disciplinar ser abrangido pela amnistia, como desacertadamente concluiu o despacho arbitral n.º 5 ora recorrido: cfr. art. 1º, art. 2º n.º 2 al. b) e art. 6° todos da referida Lei 38-A/2023, de 2 de agosto; art. 9º nº 1 do CC, Vol. I. anotado por Antunes Varela e Pires de Lima.


Termos em que a decisão arbitral sob recurso padece do assacado erro de julgamento de direito.


DO ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO (art. 7º n. º1, al. a), v) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto):
Como bem assinala o EMMP: “… insurge-se a Recorrente quando ao segmento decisório da decisão recorrida, imputando-lhe de erro de julgamento de direito, ao formular o entendimento de que as infrações disciplinares, quando simultaneamente constituam ilícitos penais, apenas não são amnistiadas se tiver havido efetiva condenação pela prática de tais crimes.
Entende a Recorrente, salvo melhor opinião, bem, que as infrações disciplinares não são amnistiadas desde que a factualidade praticada, seja, abstratamente, suscetível de configurar a prática de crimes, no caso de crimes contra a contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos art. s 163° a 176°-B. do Código Penal, independentemente de ter havido, ou não, condenação em sede penal.
Como bem se refere no voto de vencido exarado no despacho do Colégio Arbitral «A Lei n ° 38-A/2023, que entrou em vigor no passado dia 1 de setembro de 2023, estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (cfr. o seu art. 1. °).
O mencionado diploma abrange quer os ilícitos penais, quer as sanções acessórias relativas a contraordenações e as sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares.
No que respeita às infrações disciplinares, para poderem estar abrangidas pela amnistia, não podem constituir, em simultâneo, ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável seja superior a suspensão ou prisão disciplinar (cfr. a al. a) do 2 do art. 2° e art. 6. ° da referida Lei). Por outras palavras, quando os factos que levaram à aplicação da sanção disciplinar sejam passíveis de integrar um ilícito criminal não amnistiado não pode esse ilícito disciplinar estar abrangido pela amnistia.
(...)
Os factos em causa no presente processo, considerados provados por este Tribunal Arbitral na decisão, são passíveis de constituir ilícitos penais enquadráveis em crimes previstos nos art. s 163. ° a 176. °-B do Código Penal.
Deste modo, entendemos não poder esta Lei da Amnistia ser aplicada ao caso presente» …”.


Valendo aqui mutatis mutandis tudo o supra aduzido sobre a interpretação da letra da Lei, é novamente esta a questão que agora se coloca, desta feita, no segmento de saber o qual o concreto significado da palavra condenados utilizado na al. a) n.º 1 do art. 7º da Lei da Amnistia quando, expressamente, refere: “… 1 — Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: a) No âmbito dos crimes contra as pessoas, os condenados por...”.


Ora, resulta dos autos que, até 2023-06-19, o recorrido praticou factos que constituíam simultaneamente ilícitos penais não suscetíveis de serem amnistiados (atenta a idade que tinha à data da pratica dos facto, recorde-se: 38 anos) e ilícitos disciplinares, desconhecendo-se ainda, nos autos, se o recorrido foi, ou não, condenado, no âmbito de um processo-crime por referência a tais ilícitos penais: cfr. art. 1º, art. 2º n.º 2 al. b), art. 6° e art. 7º n.º 1, al. a), v) todos da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto; art. s 163. ° a 176. °-B do Código Penal.


O desenhado quadro fáctico, enquadrado pelas disposições legais aplicáveis permite, desde já, inferir igual resposta de verificação do invocado erro de julgamento do despacho arbitral recorrido no que à não aplicação do ponto v) al. a) do n.º 1 do art. 7º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto respeita.


Na exata medida em que, em que por via da aplicação ao caso concreto do disposto no ponto v) al. a) do n.º 1 do art. 7º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto o recorrido não podia beneficiar da amnistia.


Vejamos:


Sobressai do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2024-01-24, processo n.º 477/22.3GAPMS.C1, disponível em www.dgsi.pt: “… pode ler-se na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, in DAR II série A n.º 245, 2023.06.19, que esteve na origem da Lei n.º 38-A/2023, de 2.8:
«Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina. Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação. Adicionalmente, é fixado um regime de amnistia, que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda €1.000, exceto as que forem praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, as infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar e as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa».
E, foi no artigo 7.º da referida Lei que o Legislador elencou os crimes que considerou incluídos na criminalidade muito grave
(…)
Destacamos as seguintes sugestões: Artigo 7.º Alínea l) do n.º 1 Considerando que as restantes alíneas do presente número referem sujeitos (condenados, reincidentes, funcionários, membros das forças armadas, das forças policiais e de segurança): Onde se lê: «l) No âmbito das contraordenações, as que forem praticadas sob influência de álcool (…)» Sugerese: «l) Os responsáveis pelas”, denota que não ocorreu, atrevemo-nos a dizer, a devida cautela na escolha dos termos a usar.
Ou seja, desta leitura extraímos que a única preocupação nessa data, na redação da Lei e no uso dos vocábulos a incluir no referido artigo, foi a de que o artigo 7.º falasse de sujeitos. E daí decorre, inclusive a alteração à alínea l). Pelo que, por esta via, entendemos que nem o argumento de que o Legislador pretendeu distinguir arguido e condenado - pois usou nessa alínea o termo responsável - pode ser tida em linha de interpretação quanto à sua concreta intenção».
Não faria, aliás, qualquer sentido que, nos termos da al. l) do n.º 1 do art.º 7.º da referida Lei, não beneficiassem da amnistia «Os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo», mas que no âmbito dos crimes contra a vida em sociedade (al. d) do n.º 1 do art.º 7.º), entre os quais se encontram os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (ii) se exigisse a condenação (transitada em julgado).
Enfim.
Não obstante no artigo 7.º n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, o Legislador ter usado o vocábulo «condenado», a letra da Lei terá de ser interpretada de forma coerente com o processo legislativo, com o elemento histórico e com a unidade do sistema jurídico…”


Com relevo para o caso concreto é, exatamente, neste art. 7º n.º 1, al. a), v) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto que se encontram, elencados os crimes que cujos factos imputados ao recorrido são suscetíveis de consubstanciar crimes contra a liberdade sexual e contra a autodeterminação sexual das jovens atletas que o recorrido treinava, previstos nos art. 163. ° a art. 176. °-B todos do CP, a saber: coação sexual; violação; abuso sexual; fraude sexual; procriação artificial não consentida; lenocínio; importunação sexual; atos sexuais com adolescentes; recurso à prostituição de menores; lenocínio de menores; pornografia de menores, aliciamento de menores para fins sexuais e organização de viagens para fins de turismo sexual com menores: cfr. art. 7º n.º 1, al. a), v) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto.


Com efeito, tendo, no art. 7º n.º 1, al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, o Legislador usado a palavra «condenado» a letra da Lei terá de ser interpretada de forma textual, sistemática, racional e hodierna, tal significando que onde se lê: «condenado» tal deverá ser entendido como «sujeito» (não sendo, por isso, necessário que exista condenação com trânsito em julgado, mas a possibilidade de existir condenação): cfr. art. 7º n.º 1, al. a), v) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto; art. 9º nº 1 do CC, Vol. I. anotado por Antunes Varela e Pires de Lima; Coleção STVDIVM, Temas Filosóficos, Jurídicos e Sociais, Interpretação e Aplicação das Leis, FRANCESCO FERRARA, 4ª Edição, Arménio Amado – Editor Sucessor, Coimbra – 1987; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2024-01-24, processo n.º 477/22.3GAPMS.C1, disponível em www.dgsi.pt.


Donde, desacertadamente, concluiu ainda o despacho arbitral n.º …. recorrido quando, literalmente, entendeu que ao recorrido não era aplicável o disposto no art. 7º n.º 1, al. a), v) da Lei da Amnistia por não resultar dos autos que este tivesse sido condenado pelos crimes previstos nos citados art.163. ° a art. 176. °-B do CP: cfr. art. 7º n.º 1, al. a), v) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto; art. 9º nº 1 do CC, Vol. I. anotado por Antunes Varela e Pires de Lima; Coleção STVDIVM, Temas Filosóficos, Jurídicos e Sociais, Interpretação e Aplicação das Leis, FRANCESCO FERRARA, 4ª Edição, Arménio Amado – Editor Sucessor, Coimbra – 1987.


Termos em que a decisão arbitral sob recurso padece outrossim do assacado erro de julgamento de direito.

***
III. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Administrativo – Subsecção Social deste TCAS em julgar procedente o recurso interposto e, consequentemente, em revogar o despacho arbitral n.º 5 recorrido e a ordenar a remessa dos presentes autos ao TAD para, se a tal nada mais obstar, se verificar então da admissibilidade do recurso interposto em 2023-07-27.
Custas a cargo do recorrido.

11 de abril de 2024
(Teresa Caiado – relatora)
(Rui Pereira – 1º adjunto)
(Mª Helena Filipe – 2ª adjunta)