Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2043/11.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:05/04/2023
Relator:MARIA CARDOSO
Descritores:CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO
CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Sumário:I. O caso julgado tem como objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior; visa obstar a que a mesma questão jurídica, materializada na formulação da mesma pretensão com base na mesma factualidade seja objecto de duas ou mais acções que tenham os mesmos pólos subjectivos
II. A função positiva do caso julgado, designada por autoridade do caso julgado, tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão (cfr. artigos 619.º e 621.º do CPC) e implica o acatamento da decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve como pressuposto indiscutível no objecto de uma acção posterior, obstando a que a relação jurídica definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa, não exigindo a tríplice identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir.
III. A falta de notificação da liquidação no prazo de caducidade no processo de impugnação é uma ilegalidade invalidante do acto de liquidação, enquanto na oposição à execução fiscal é determinante da inexigibilidade da dívida exequenda.
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
*

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a 1.ª Subsecção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO

1. A FAZENDA PÚBLICA, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, proferida em 10/11/2022, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por H......, LD.ª, na sequência de indeferimento parcial de recurso hierárquico apresentado contra a liquidação adicional de imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), do exercício de 2004, no valor de € 170.335,81.

2. A Recorrente apresentou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

«I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo, que julgou procedente a impugnação deduzida por por H......, LD.ª. NIPC 9……., do ato de indeferimento parcial de recurso hierárquico apresentado contra a liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), do exercício de 2004, no valor de € 170.335,81.

II. Por sentença datada de 10-11-2022, ora recorrida, veio a Mm. ª Juiz do Tribunal a quo, estribando-se na factualidade dada como assente em III, conceder provimento à Impugnação apresentada e, em consequência, determinar a anulação da liquidação porque verificada a caducidade do direito à liquidação.

III. A Fazenda Pública considera que a douta decisão do Tribunal a quo ora recorrida, não faz, salvo o devido respeito, uma correta apreciação da matéria de facto relevante no que concerne à aplicação do artigo 39.º CPPT e 45.º LGT.

IV. Visa o presente recurso demonstrar à evidência o desacerto a que chegou a douta sentença recorrida, relativamente ao modo como logrou concluir pela inválida notificação da liquidação adicional ao sujeito passivo, ora Recorrida, o qual com o respeito, deriva não só da incorreta perceção e valoração da prova, mas também da desacertada interpretação jurídica que fez ao disposto no artigo 38°, n° 3, do CPPT, na redação dada peia Lei 55 - B/2004 de 30 de dezembro que aprovou o Orçamento de Estado para 2005.

V. O art. 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, o art. 77.º, n.º 6, da Lei Geral Tributária (LGT) e o art. 36.º, n.º 1, do CPPT, exigem a notificação ao contribuinte de todos os atos em matéria tributária que afetem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes, designadamente, dos atos de liquidação de impostos, e faz depender da notificação a produção de efeitos em relação ao contribuinte.

VI. Sobre a Recorrida recaía a obrigação de participar alteração do seu domicílio fiscal à Administração Tributária, pois de harmonia com o preceituado no artigo 19º, al. b) da LGT, o domicílio fiscal das pessoas coletivas salvo indicação em contrário é o da sua sede ou direção efetiva ou, na falta destas, do seu estabelecimento estável em Portugal sendo obrigatória a comunicação á administração fiscal do domicílio do sujeito passivo (nº 2 do mesmo preceito).

VII. Por sua vez, o artigo 43º do CPPT faz recair sobre os interessados em processos fiscais a obrigação de comunicarem no prazo de 20 dias, qualquer alteração do seu domicílio. E, o n.º 2 daquele preceito determina como consequência da falta de tal comunicação, a não oponibilidade à Administração Tributária a falta de recebimento de qualquer aviso ou comunicação, sem prejuízo do que a lei dispõe quanto à obrigatoriedade da citação e da notificação e dos termos por que devem ser efetuadas. Este n.º 2 está em consonância com o preceituado no artigo 19º, n.º 3 da LGT em que se preceitua que “é ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária.”.

VIII. In casu, podemos concluir que aceitando-se que não possa em princípio ser presumida a notificação efetiva da liquidação, apenas por consideração das regras do artº 39º do CPPT, ainda assim a mesma, nos termos em que foi feita, ou mesmo a falta dela é inoponível à Administração Fiscal pois que a sociedade destinatária deixou de ter domicílio no local indicado, tendo omitido a obrigação legal de comunicar as alterações àquela.

IX. Era à Recorrida (Sociedade impugnante) que incumbia, na situação em apreço, o «ónus probandi» de que mudara de domicílio fiscal, mas que transmitira, aprazadamente, tal facto à Administração Fiscal. Não o tendo feito, acarreta com as consequências que são a inoponibilidade da falta de notificação da liquidação do tributo que lhe está a ser exigido.

X. É que a falada inoponibilidade só se verifica no caso de ser desenvolvido todo o processo de notificação previsto na lei mas nunca na ausência deste procedimento.

XI. Os princípios da legalidade e igualdade e o dever de colaboração do contribuinte com a administração fiscal impõem esta interpretação sob pena de nos afastarmos daquilo que é expresso pela própria letra da lei e cairmos no absurdo de consentir soluções que premeiem o sujeito passivo não cumpridor e, por isso, infrator das normas tributárias.

XII. Reitera-se que o facto de não estar provado que os serviços dos correios deixaram aviso, no caso em apreço, não deve ser considerado relevante para a decisão de mérito que no caso se impõe, porquanto a Impugnante, ora Recorrida, se mudou, sem, contudo, cumprir dentro do prazo a que legalmente estava obrigada o seu dever de comunicar o novo domicílio ou sede à Administração Tributária.

XIII. Conforme consta da matéria factual assente, a notificação da liquidação adicional de IRC e da demonstração de compensação foi efetuada em dezembro de 2008, momento em que os elementos que obrigatoriamente têm de ser declarados à administração fiscal não indicavam qualquer representante fiscal nomeado. Apenas em 12-03-2009, a Recorrida veio indicar como seu representante a sociedade H...... Ld.ª, indicando agora a seguinte morada: Rua D. Nuno Álvares Pereira,…... Pol. ACT. Económicas – Parque Oriente BI ½ Piso….., 2695.165 Bobadela.

XIV. É entendimento da Fazenda Pública que a Administração Fiscal fez tudo quanto estava ao seu alcance para notificar as liquidações, cumprindo o disposto no art. 39º do C.P.P.T e dando, assim, satisfação à 2ª parte do nº 2 do artº 43º do CPPT, condição de eficácia do estatuído na primeira parte do mesmo preceito ou seja, a operância da inoponibilidade ali prevista.

XV. Assim, a alegada não efetivação das notificações é imputável ao notificando, que provocou tal situação com a mudança de sede sem comunicar tal facto à dita Administração sendo que, sempre seria, no caso, irrelevante que o agente dos serviços postais tivesse deixado aviso para levantamento das cartas registadas com aviso de receção pois o resultado seria o mesmo por o objetivo que se pretende com o seu depósito na caixa do correio - dar conhecimento ao notificando da existência da carta registada com aviso de receção - não poder ser adquirido por um sujeito passivo que se “mudou”.

XVI. O assumido incumprimento por parte da Recorrida dos deveres legais de comunicar o seu domicílio e/ou indicar o seu representante legal no país não a pode beneficiar, enquanto infratora que foi das normas legais previstas para a alteração de domicílio fiscal, o que lhe era exigível à luz dos princípios da cooperação e verdade do declarado pelos contribuintes.

XVII. Conclui-se, assim, salvo melhor opinião, que a Administração fiscal observou as regras legais exigidas para a notificação, endereçando-as para o domicílio fiscal que a Recorrida havia declarado para esse efeito, e que o fez dentro do prazo previsto na lei, atento o regime legal previsto nos nºs 1 e nº 6 do art. 45º da LGT, não obstante a devolução das cartas que continham as liquidações, as mesmas não deixaram de produzir os seus efeitos. E, ponderada a matéria de facto fixada temos de considerar que não ocorreu falta da notificação da liquidação do tributo no prazo de caducidade.

XVIII. Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, requer-se a V.ªs Ex.ªs se dignem julgar PROCEDENTE o presente recurso, por totalmente provado e, em consequência, ser a douta sentença ora recorrida, revogada e substituída por outra que julgue improcedente a impugnação judicial.

TERMOS EM QUE, CONCEDENDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DEVE A DOUTA SENTENÇA, ORA RECORRIDA, SER REVOGADA, ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!»

3. A recorrida, H......, apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

«1ª.

A questão sub iudice, e que foi a única decidida pelo Tribunal a quo atento o facto de todas as demais questões suscitadas pela impugnante e ora recorrida terem ficado prejudicadas na sua apreciação, é a de saber se, aquando da notificação à impugnante da liquidação adicional de IRC, respeitante ao exercício de 2004, se encontrava ou não já caducado o direito à liquidação.

2ª.

Esta mesmíssima questão foi já decidida, por sentença que se encontra já transitada em julgado, que julgou, à semelhança do que foi decidido nos presentes autos, que a notificação da liquidação de IRC em causa, à aí Oponente e aqui Impugnante, ocorreu em 8.01.2009, data em que se encontrava já ultrapassado o prazo de caducidade do direito de liquidar – cfr. sentença no âmbito do Proc. de Oposição nº 1177/09.5BELRS, que correu termos pela UO 3 do Tribunal Tributário de Lisboa, acessível via SITAF (processos findos) através da refª 007092833 (Nº Documento).

3ª.

No referido processo de Oposição nº 1177/09.5BELRS, a Fazenda Pública (doravante abreviadamente FP), reconhecendo que a liquidação aí em causa – e que é a mesmíssima em causa também nos presentes autos – só fora notificada depois de caducado o direito de liquidar, não recorreu dessa decisão que julgou caducado o direito de liquidar. Sem nenhuma razão que possa justificar a diferente atitude processual da aqui recorrente, nos presentes autos a FP já parece não querer reconhecer essa caducidade, mas sem que lhe assista a mais pequena réstia de razão.

4ª.

No que respeita ao objeto do presente recurso, apesar de a FP começar por referir, na Conclusão III, que a douta decisão recorrida «não faz, salvo o devido respeito, uma correta apreciação da matéria de facto relevante no que concerne à aplicação do artigo 39.º CPPT e 45.º LGT», acaba por não concretizar quais os factos que considera erradamente dados como provados, pois, na verdade, não vem recorrer da matéria de facto mas sim da aplicação do Direito aos factos.

5ª.

A liquidação aqui em causa é feita na sequência de uma ação de inspeção externa à H......, S.A., efetuada ao exercício de 2004, que gerou as correções aritméticas à matéria tributável que geraram a liquidação adicional aqui em causa (FACTOS PROVADOS 8 E 13), que já foi levada a cabo, toda ela, nos escritórios da H......, Lda. sitos na Bobadela, mais concretamente na Estrada Nacional 140, Polígono Atividades Económicas – Parq. Oriente Bloco….., Bobadela, no concelho de Loures (FACTO PROVADO 9).

6ª.

As correções geradas por essa inspeção externa foram notificadas pela FP, sob a forma de projeto de relatório de inspeção tributária, para os referidos escritórios da H......, Lda. sitos na Bobadela em 29.10.2008 (FACTOS PROVADOS 10 E 11).

7ª.

E, depois, o relatório final de inspeção da impugnante foi notificado, de modo pessoal, na mesma morada onde decorreu toda a inspeção externa, nos já referidos escritórios da H......, Lda. sitos na Bobadela em 18.11.2008 (FACTOS PROVADOS 12, 13 E 14).

8ª.

Do próprio relatório final da inspeção tributária notificado à impugnante consta expressamente que a FP sabe que os atuais (à data dos factos) escritórios da H......, Lda. (que era a empresa cessionária da atividade em Portugal da impugnante depois de esta ter deixado de ter atividade em Portugal) eram situados na Bobadela.

9ª.

Assim, a partir do momento em que a própria FP notifica a impugnante, por mais do que uma vez, para a morada correta na Bobadela e que comunica à impugnante que conhece que o atual escritório da impugnante se situa na Bobadela, esse comportamento anterior da FP incutiu na impugnante uma situação objetiva de confiança de que a Autoridade Tributária tinha perfeito conhecimento da sua atual (à data dos factos) morada, para onde poderia ser notificada em Portugal e que a Autoridade Tributária passaria a expedir todas as futuras notificações para essa morada sita na Bobadela, tal como já estava a fazer.

10ª.

A posterior atuação da FP, ao notificar a impugnante da liquidação adicional de IRC para as anteriores instalações sitas em Alverca, que bem sabia estarem encerradas, consubstancia um manifesto lapso, que apenas é imputável à própria FP e que portanto lhe é evidentemente oponível.

11ª.

Acresce que a atuação da FP, notificando a impugnante da liquidação adicional de IRC para as anteriores instalações sitas em Alverca, que bem sabia estarem encerradas, depois de já ter notificado a impugnante, por várias vezes, para a nova morada sita na Bobadela e depois de já lhe ter inclusivamente comunicado que tinha conhecimento de que os seus atuais escritórios se situavam na Bobadela, configura ainda uma atuação em abuso de direito, mais propriamente um venire contra factum proprium, nos termos do art. 334º do Código Civil.

12ª.

Acresce que, quando as cartas de notificação da liquidação adicional e do acerto de contas são devolvidas à Administração Tributária com a menção “Mudou-se” (FACTOS PROVADOS 16 E 18), a Administração Tributária tem perfeito conhecimento de que os atuais (à data dos factos) escritórios onde se encontrava toda a documentação relativa à atividade da impugnante e onde eram recebidas as notificações respeitantes à impugnante, se localizavam na já referida morada sita na Bobadela.

13ª.

Pelo que, em face da devolução das cartas de notificação da liquidação adicional e acerto de contas com a menção “Mudou-se”, era absolutamente exigível que a Administração Tributária tivesse encetado novas diligências para notificar a impugnante nos mesmos escritórios onde já anteriormente a tinha notificado, sitos na Bobadela, enviando dentro dos 15 dias seguintes uma 2ª notificação à impugnante.

14ª.

Não o tendo feito, é totalmente imputável à Administração Tributária a falta de notificação da impugnante dentro do prazo de caducidade do direito de liquidar, sendo-lhe totalmente imputável:

1.º o lapso em que incorreu ao ter expedido a notificação da liquidação adicional sub iudice para as antigas instalações da impugnante e que já sabia estarem encerradas; e

2.º a inércia em que se deixou ficar ao constatar que a notificação enviada se frustrara, ao ter recebido devolvidas as cartas de notificação com a menção “Mudou-se”.

15ª.

A atuação da FP assenta ainda numa errada interpretação das normas legais aplicáveis ao caso, pois, tendo as cartas de notificação sido devolvidas com a menção “Mudou-se”, verifica-se a inoperância da presunção de notificação constante do art. 39º nº 1 do CPPT, já que essa presunção, como vem sendo entendimento pacífico da jurisprudência3 e da doutrina4, só opera se não tiver havido essa devolução.

16ª.

E não só tal entendimento é frontalmente contraditado pela Jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Administrativo e pela Doutrina como sempre seria manifestamente violador do direito à notificação efetiva por parte dos administrados, constitucionalmente protegido no art. 268º nº 3 da CRP, inconstitucionalidade que se invoca para todos os devidos efeitos legais.

17ª.

Acresce que a H...... S.A., que é uma sociedade de direito espanhol, relativamente a quem foi feita a liquidação adicional aqui em causa (FACTO PROVADO 1), não mudou de domicílio fiscal, encerrou sim a sua atividade em Portugal, tendo encerrado a sua representação permanente que possuía na Estrada Nacional 10, Km 127, em Alverca do Ribatejo, o que consta da matéria de facto provada (FACTO PROVADO 4).

18ª.

Pelo que, na verdade, nem sequer é aplicável ao caso sub iudice o disposto nos arts. 19º e 43º do CPPT, não estando em causa a alteração de domicílio fiscal da impugnante.

19ª.

Pelo que nunca se poderia, no caso sub iudice, pretender sustentar, com base em tal regime inaplicável, a inoponibilidade à Administração Fiscal de uma pretensa falta de comunicação da alteração de domicílio fiscal que nunca existiu (e por isso não consta da matéria de facto provada qualquer falta de comunicação de alteração de domicílio).

20ª.

Por todo o exposto, necessário é concluir que o Tribunal a quo não incorreu em qualquer erro de julgamento, tendo julgado adequadamente a matéria de facto e aplicado corretamente o Direito ao caso, devendo improceder totalmente o recurso interposto pela FP e manter-se integralmente a decisão recorrida.»

4. Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo Sul, e dada vista à Exma. Procuradora – Geral Adjunta, emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso.

5. Colhidos os vistos legais, vem o processo à Conferência para julgamento.


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II – QUESTÕES A DECIDIR:

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir se a sentença incorreu em erro de julgamento por ter concluído pela falta de notificação da liquidação adicional de IRC do exercício de 2004, no prazo de caducidade, em violação dos artigos 39.º do CPPT e 43.º da LGT.

Previamente apreciar-se-á da questão suscitada pela Recorrida concernente por à prolação de sentença transitada em julgado, no âmbito do processo de oposição n.º 1177/09, que correu termos no Tribunal Tributário de Lisboa, que declarou a caducidade do direito à liquidação em crise nos presentes autos.


*

III - FUNDAMENTAÇÃO

1. DE FACTO

A sentença recorrida proferiu a seguinte decisão relativa à matéria de facto:

«1. A Impugnante é uma sociedade de direito Espanhol que exerce, a título principal, o comércio por grosso de múltiplos produtos de limpeza – facto não impugnado.

2. A sede da Impugnante, em Espanha, situa-se na Calle Corcega, n.º….., 08025 Barcelona. – facto não impugnado.

3. Não obstante ter a sua sede e direção efetiva em Espanha e pertencer ao Grupo económico multinacional alemão H......, a ora Impugnante possuía uma sucursal em Portugal; – facto não impugnado, prova testemunhal.

4. Em 02/01/2007, a impugnante procedeu ao encerramento da representação permanente que possuía na Estrada Nacional 10, km 127, em Alverca do Ribatejo, tendo deixado de ali ter qualquer presença; – cfr. docs. 5 e 6 juntos à p.i.; prova testemunhal.

5. A Impugnante procedeu ao reinício de atividade para efeitos de IVA, junto das autoridades fiscais portuguesas, no dia 5 de dezembro de 2007. – cfr. docs. 5 e 6 juntos à p.i.; prova testemunhal.

6. A sede da H...... passou a estar situada na Estrada Nacional 10, Km 140, 2, Polígono Atividades Económicas, Parque Oriente, Bloco ……, na Bobadela, no concelho de Loures, filial da Impugnante em Portugal; – cfr. docs. 5 e 6 juntos à p.i.; prova testemunhal.

7. Pela AP. 84/20071019, foi registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, mudança de sede e alteração ao contrato de sociedade, tendo sido registada como morada da sede da Impugnante: ¯Estrada Nacional n.º 10, Km 140, 2, Polígono de Atividades Económicas – Parque Oriente, Bloco……, Bobadela. – cfr. certidão permanente a fls. 99 e ss dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

8. Através da ordem de serviço n.º 01200708543, foi a Impugnante alvo de inspeção tributária, efetuada ao exercido de 2004, pela Direção de Finanças de Lisboa. – cfr. relatório de inspeção junto aos autos.

9. A inspeção tributária externa em apreço decorreu na sede da empresa cessionária da atividade anteriormente exercida pela Impugnante em Portugal, sua filial e representante fiscal, a H......, na Estrada Nacional 10, Km 140, 2, Polígono Atividades Económicas, Parque Oriente, Bloco ….., na Bobadela, no concelho de Loures; – cfr. relatório de inspeção junto aos autos, prova testemunhal.

10. Em 29/10/2008, a Impugnante foi notificada através do Ofício n.º 081814, de 28 de Outubro de 2008, do respetivo projeto de relatório de inspeção tributária, no qual se propuseram correções incidentes sobre o IRC do exercício de 2004, as quais determinaram um acréscimo à matéria tributável da Impugnante no montante de € 934.950,03;– cfr. projeto de relatório de inspeção junto aos autos, prova testemunhal.

11. A Impugnante foi notificada do supra mencionado projeto de relatório de inspeção tributária, por via postal, para a sede da sua filial H......, na Estrada Nacional 10, Km 140, 2, Polígono Atividades Económicas, Parque Oriente, Bloco…., na Bobadela, no concelho de Loures; – cfr. projeto de relatório de inspeção junto aos autos, prova testemunhal.

12. Em 27/10/2008 foi elaborado o relatório final de inspeção tributária, notificado à Impugnante no dia 18 de novembro de 2008, mediante o Ofício n.º 89126, de 18 de novembro de 2008, mantendo as correções propostas no projeto de relatório de inspeção tributária e do qual consta, entre o mais, o seguinte:

(…) Foi aberta Ordem de Serviço n.º OI2007085543 de 2007/12/03, para o sujeito passivo H...... … com sede em Estrada Nacional 10, Km 127 – Alverca do Ribatejo (atualmente o escritório situa-se em Estrada Nacional 140, Polígono Atividades Económicas – Parq. Oriente Bloco……) relativamente ao exercício de 2004.

(…)

De acordo com o despacho exarado em 2008/08/05, o procedimento inspetivo foi alargado por um período de 3 meses nos termos da previsão e do estatuído no artigo 57.º n.º 1 da Lei Geral Tributária…

A prorrogação do prazo do procedimento inspetivo foi comunicada ao sujeito passivo através do ofício n.º 60881 datado de 2008/08/11 e por faz no dia 2008/08/14.

– cfr. relatório de inspeção e fls. 148 a 187 do processo de reclamação graciosa apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

13. Da inspeção tributária resultaram correções à matéria coletável no montante de € 934.950,03 – cfr. relatório de inspeção e fls. 148 a 187 do processo de reclamação graciosa apenso aos autos.

14. Em 18/11/2008, a Impugnante foi notificada do relatório final de inspeção, de modo pessoal, na mesma morada onde decorreu todo o procedimento externo na sede da sua filial e cessionária da atividade anteriormente exercida pela Impugnante em Portugal – a H...... -, sita na Estrada Nacional 10, Km 140, 2, Polígono Atividades Económicas, Parque Oriente, Bloco….., na Bobadela, no concelho de Loures; - cfr. mandado junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

15. Pelo Serviço de Finanças de Vila Franca de Xira - 2, foi remetida à Impugnante carta sob registo RY472124589PT, para a Estrada Nacional 10 Klm 127, 2615 – 000 Alverca do Ribatejo, no sentido de notificar a mesma da demonstração de liquidação de IRC n.º 20088510038484, relativa ao ano de 2004. – cfr. doc. 9 junto à p.i., fls. 187 a 190 dos autos

16. A carta a que se refere o n.º anterior foi devolvida ao remetente com a menção ¯Mudou-se. – cfr. informação constante no verso do invólucro, doc. 9 junto à p.i. e informação dos CTT a fls. 288 dos autos, doc. 20 junto à p.i.

17. Pelo Serviço de Finanças de Vila Franca de Xira - 2, foi remetida à Impugnante carta sob registo RY47206187PT, para a Estrada Nacional 10 Klm 127, 2615 – 000 Alverca do Ribatejo, no sentido de notificar a mesma da demonstração da demonstração de acerto de contas relativa ao ano de 2004. – cfr. doc. 9 junto à p.i.

18. A carta a que se refere o n.º anterior foi devolvida ao remetente com a menção ¯Mudou-se. – cfr. informação constante no verso do invólucro, doc. 9 junto à p.i. e informação dos CTT a fls. 289 dos autos, doc. 20 junto à p.i.

19. Após pedido de informações, por ofício n.º 980 de 21/01/2009, o Serviço de Finanças de Vila Franca de Xira 2 informou a Impugnante, entre o mais, de que: (…) a notificação obedeceu aos critérios impostos pelo n.º 3 do art. 38.º do CPPT, o que significa que a mesma é efetuada por carta registada. Após consulta ao sistema informático constata-se que a firma foi presumida notificada em 2008-12-05, de acordo com o estipulado pelo n.º 1 do art. 39.º do CPPT (…). – cfr. doc. de fls. 192 dos autos.

20. Da correção efetuada e da liquidação, veio o Sujeito Passivo apresentar reclamação graciosa na parte das correções à matéria coletável no total de € 934.950,03. – cfr. doc. junto aos autos e p.a. apenso.

21. No âmbito da reclamação graciosa. foi deferido parcialmente o pedido, sendo que no que se refere aos custos corrigidos com deslocações e estadas no montante de 6 281.885,55, foram os mesmos aceites como custos, contudo, foram considerados despesas de representação, pelo que foram sujeitos a tributação autónoma à taxa de 5%, no montante de € 14.094,28. – cfr. doc. junto aos autos e p.a. apenso.

22. A Impugnante apresentou recurso hierárquico, tendo o mesmo sido deferido parcialmente por Despacho da Diretora de serviço do IRC de 2011/06/17, nos seguintes termos:

– cfr. doc. junto aos autos e p.a. apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

23. Da Informação n.º 2515/2010, de 03/11/2010, que fundamentou o despacho de deferimento parcial do recurso hierárquico consta, entre o mais:

(…)

4.2 – Apreciação do recurso

(…)

Caducidade do direito à liquidação

(…)

98 – Segundo a informação que consta do sistema informático da DGSI, a liquidação adicional de IRC e a respetiva demonstração de compensação têm data de registo nos CTT de 2008/12/03 e 2008/12/05, respetivamente.

99 – As notificações da liquidação adicional e da demonstração de compensação foram feitas através da carta registada, uma vez que as liquidações de tributos que resultem de correções à matéria tributável que tenha sido objeto de notificação para efeitos do direito de audição, devem ser efetuadas por este meio, conforme prevê o n.º 3 do artigo 38.º do CPPT.

100 – Por sua vez, o n.º 1 do artigo 39.º do CPPT determina que “as notificações efetuadas nos termos do n.º 3 do artigo anterior (i.e. art. 38.º n.º 3) presumem-se feitas no 3.º dia posterior ao do registo ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando esse dia não seja útil”.

101 – Esta presunção só poderá ser ilidida pelo notificado quando não lhe seja imputável o facto de a notificação ocorrer em data posterior à presumida (n.º 2 do art. 39.º do CPPT), sendo esta questão que importa analisar.

102 – Sobre o domicílio fiscal, atente-se no disposto no artigo 19.º da LGT.

1 – O domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário:

a) …

b) Para as pessoas coletivas, o local da sede ou direção efetiva ou, na falta destas, do seu estabelecimento estável em Portugal.

2 – É obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária.

3 – É ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária

4 - … as pessoas coletivas e outras entidades legalmente equiparadas que cessem a atividade devem, para efeitos tributários, designar um representante com residência em território nacional

103 – Através da análise às declarações de cessação de atividade entregues pelo contribuinte, obtemos os seguintes elementos:

- Na declaração entregue em 10/01/2017, a recorrente veio declarar a cessação da sua atividade, para efeitos de IVA e IR,indicando como cessionário do estabelecimento a sociedade H...... Ld.ª, contribuinte n.º 50……. A morada do cessionário indicada na declaração é a Estrada Nacional, 10 Km, 127, 2615, 134 – Alverca , que corresponde precisamente à sede da recorrente;

- Posteriormente, em 12/03/2009, a recorrente veio indicar como seu representante a sociedade H...... Ld.ª, indicando agora a seguinte morada: Rua D. Nuno Álvares Pereira,…... Pol. ACT. Económicas – Parque Oriente BI ½ Piso…., 2695.165 Bobadela.

104 – Ora, a notificação da liquidação adicional de IRC e da demonstração de compensação foi efetuada em dezembro de 2008, momento em que os elementos que obrigatoriamente têm de ser declarados à administração fiscal não indicavam qualquer representante fiscal nomeado. Por conseguinte, as notificações processadas de forma automática pelo sistema informático só poderiam ser remetidas para a sede do contribuinte, conforme os elementos por si declarados.

105 – Perante os acontecimentos anteriormente identificados, não se poderá acompanhar a pretensão da recorrente em ilidir a presunção prevista no n.º 1 do artigo 39.º do CPPT.

106 – Assim, conclui-se que a liquidação adicional de IRC e da demonstração de compensação foram validamente notificadas no início de Dezembro de 2008, ou seja, antes do término do prazo de caducidade do direito à liquidação.

(…) – cfr. fls. 83 e 84 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

24. A Impugnante foi notificada da decisão do deferimento parcial do processo de recurso hierárquico em 20/07/2011. – cfr. doc. junto aos autos e p.a. apenso.

25. Em 20/10/2011, foi apresentada, neste Tribunal, a petição inicial dos presentes autos.

FACTOS NÃO PROVADOS

Nada mais se provou com interesse para a decisão.

O Tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na análise crítica e conjugada dos documentos constantes dos processos administrativos apensos, bem como com base na prova testemunhal, conforme identificado nos factos provados.

A testemunha M...... declarou ser TOC, agora na reforma, e que trabalhou para a H....... Disse que acompanhou o processo de inspeção, o início e a alteração de atividade da H...... SA., Sucursal em Portugal, atividade que se manteve até final de 2006; O início da atividade da "H......, Lda." foi efetuado no início de 2007. Declarou ainda que, no início, tinham a morada em Alverca, na EN n.º 10, Km 127, depois mudaram as instalações para Sacavém-Bobadela na EN n.º 10, Km 140, e que todas estas alterações foram feitas por ela. Também referiu que todas as notificações da Inspeção foram feitas em Sacavém, exceto a última notificação que foi dirigida a Alverca. Acrescentou que depois de ter sido feita a cessação, alguma correspondência foi enviada para Espanha.

A testemunha A......, declarou que fazia o serviço externo da impugnante, nomeadamente os serviços que implicavam deslocações a bancos, finanças e afins. Disse ainda que foi ele que foi buscar uma notificação ao Serviço de Finanças de Alverca, mas desconhece que tipo de notificação se trata.»


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2. ADITAMENTO OFICIOSO À MATÉRIA DE FACTO ASSENTE

Ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, adita-se ao probatório os seguintes factos, os quais resultam provados:

22. A Impugnante deduziu oposição à execução fiscal instaurada para cobrança da liquidação identificada no ponto 15 supra, que correu termos no Tribunal Tributário de Lisboa, com o n.º 1177/09.5BELRS (cfr. do processo electrónico na plataforma digital SITAF).

23. Na oposição referida no ponto anterior foi suscitada a inexigibilidade da divida exequenda por falta de notificação da liquidação no prazo de caducidade (cfr. processo electrónico na plataforma digital SITAF).

24. Em 14/04/2021 foi proferida sentença no processo de oposição identificado em 22., que aqui se dá por integralmente reproduzida, na qual se concluiu que tendo a notificação da liquidação adicional de IRC do ano de 2004 ocorrido em 08/01/2009, nessa data estava já ultrapassado o prazo de caducidade, em consequência, julgou procedente a oposição e determinou a extinção da execução fiscal instaurada contra a Oponente (cfr. processo electrónico na plataforma digital SITAF).

25. Para decidir pela procedência da oposição a sentença, para além do mais, ponderou-se o seguinte:

«Estamos perante uma liquidação de IRC (imposto periódico) do exercício de 2004.

É, portanto, inequívoco, que o prazo de caducidade é de 4 anos e se conta a partir de 31.12.2004.

Na ausência de qualquer causa suspensiva, o prazo completar-se-ia a 31.12.2008.

Sucede, não obstante, que a Oponente foi sujeita a uma acção de inspecção externa, que constitui causa de suspensão do prazo de caducidade, se a mesma se concluir no período de 6 meses.

Neste ponto, e doutrina e jurisprudência assente que a ampliação do prazo de inspecção não determina que a suspensão da caducidade seja também alargada, isto é, não têm as prorrogações das inspecções qualquer efeito para obstar à cessação da suspensão (cfr. José Maria Fernandes Pires (Coord.), LGT Comentada e Anotada, 215, Almedina, pág. 422 e Leite de Campo/ Silva Rodrigues/Lopes de Sousa, LGT Anotada e Comentada, 4ª Ed., 2012, Encontro da Escrita Editora, pág. 385/386).

Neste sentido, também é esclarecedor, entre outros, o recente acórdão do STA de 25.09.2019, processo nº 02304/13.3BEPRT que sumariou: “O prazo de caducidade do direito à liquidação suspende-se com a notificação ao contribuinte do início de acção inspectiva externa, mas esse efeito suspensivo cessa, e o prazo conta-se do seu início, caso a inspecção ultrapasse seis meses contados a partir daquela notificação” e para cuja fundamentação se remete.

Ora, como resulta do probatório, o início da inspecção à Oponente ocorreu em 20.02.2008, com a assinatura da ordem de serviço; a acção de inspecção prorrogada por um período de 3 meses, tendo sido notificado o Relatório final de Inspecção em 18.11.2008 [cfr. alíneas G), F) e K) supra].

Verifica-se, de forma notória, que a acção de inspecção à Oponente ultrapassou o prazo de 6 meses, pelo que cessou o seu efeito suspensivo, contando-se o prazo de caducidade como se a mesma não tivesse existido.

Com efeito, não existindo prova de qualquer outro facto suspensivo, o prazo de 4 anos conta-se linearmente, o qual terminou a 31.12.2008.

Considerando que a notificação da liquidação de IRC em causa, à Oponente, ocorreu em 08.01.2009 (como demonstrado supra), é de concluir que nessa data estava já ultrapassado o prazo de caducidade.

Tal fundamento subsume-se à alínea e) do nº 1 do artigo 204º do CPPT, o qual, gerando inexigibilidade da dívida exequenda, determina a extinção da execução fiscal, o que se determinará.»

26. Da sentença referida nos pontos anteriores não foi interposto recurso, tendo transitado em julgado (cfr. processo electrónico na plataforma digital SITAF).

27. Em 10/11/2022 foi proferida sentença nos presentes autos.


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2. DE DIREITO

Insurge-se a Recorrente contra a decisão recorrida, por entender que a mesma padece de erro de julgamento relativo à decisão da caducidade do direito à liquidação, referindo que a mesma nos termos em que foi feita, ou mesmo a falta dela é inoponível à Administração Tributária, por a sociedade destinatária ter deixado de ter domicilio fiscal no local indicado e omitido a obrigação legal de comunicar as alterações àquela.

A sentença recorrida julgou procedente a impugnação e anulou a liquidação impugnada, na consideração que não está provado nos autos que a AT tenha notificado o contribuinte da liquidação no respetivo prazo de caducidade, que ocorreria no final de 2008 e, assim, deu por verificada a caducidade do direito à liquidação.

A questão suscitada pela Recorrente é, então, a de saber, se a sentença recorrida errou ao anular a liquidação adicional de IRC do ano de 2004 por ter sido notificada após o termo do prazo de caducidade.

Nas contra-alegações a Recorrida alega que a questão a apreciar nos presentes autos foi já decidida por sentença que se encontra já transitada em julgado, que à semelhança do que foi decidido nos presentes autos decidiu que a notificação da liquidação de IRC em causa, ocorreu em 08/01/2009, data em que se encontrava já ultrapassado o prazo de caducidade do direito de liquidar, e que a Fazenda Pública não recorreu dessa decisão (cfr. conclusões 2 e 3).

Impõe-se, assim, apreciar, em primeiro lugar, a repercussão da sentença já transitada em julgado que julgou verificada a caducidade do direito à liquidação em crise nos presentes autos, ou seja, se existe ou não ofensa de caso julgado, cujo conhecimento é oficioso, por obstar a que o Tribunal conheça do mérito do recurso.

Entendemos ser desnecessário, no caso em apreço, determinar a notificação prévia da Recorrente para se pronunciar sobre a referida excepção, sendo certo que a Recorente foi oportunamente notificada da sentença proferida no âmbito do processo de oposição (cfr. artigo 3.º, n.º 3 do CPC).

Vejamos, então, se se verificam ou não os pressupostos de que depende a verificação da excepção dilatória do caso julgado.

De harmonia com o preceituado nos artigo 580.º n.º 1 e 581.º n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), o caso julgado – como a litispendência - tem como pressuposto a repetição de uma causa, repetindo-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

O caso julgado tem como objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior; visa obstar a que a mesma questão jurídica, materializada na formulação da mesma pretensão com base na mesma factualidade seja objecto de duas ou mais acções que tenham os mesmos pólos subjectivos (cfr. artigo 580.º n.º 2, do CPC e António Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II volume, 3ª edição, p. 326 e segs.).

A noção de trânsito em julgado da sentença é dada pelo artigo 619.º do CPC, ao preceituar que transitada em julgado a sentença (…) que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.

De referir ainda o disposto na primeira parte do artigo 621.º do CPC, segundo o qual «A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).»

Nos termos do artigo 577.º, alínea i) CPC a excepção dilatória de caso julgado é do conhecimento oficioso.

Julgada em termos definitivos certa matéria numa acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objecto desta primeira causa, sobre essa precisa questio judicata, impõe-se necessariamente em todas as outras acções que venham a correr termos entre as mesmas partes, mesmo incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação depende decisivamente do objecto previamente julgado, perspetivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda acção (cfr. acórdão do STJ de 24/04/2015, processo n.º 7770/07, disponível em www.dgsi.pt/).

Nas palavras de Manuel de Andrade, o caso julgado material «consiste em a definição dada à relação material controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão.» (in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 305).

A figura do caso julgado tem protecção constitucional alicerçada, quer no disposto no artigo 282.º, n.º 3, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2.º, ambos da Constituição da República Portuguesa (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 15/2013, de 17/06/2013, disponível no www.tribunalconstitucional.pt/).

Quanto ao que deva entender-se por identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, é o artigo 581.º n.ºs 2, 3 e 4, que fornece a resposta.

Assim, há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.

Entre o presente processo de impugnação e o processo de oposição n.º 1177/09 existe identidade de sujeitos - “H......, Lda.” e Fazenda Pública -, pelo que são condizentes e portadores do mesmo interesse substancial.

A causa de pedir em ambas as acções é a falta de notificação da liquidação adicional de IRC do ano de 2004 no prazo de caducidade.

Por último, o efeito jurídico pretendido pela impugnante nos presentes autos é a anulação da liquidação adicional de IRC do ano de 2004, enquanto na oposição é a inexigibilidade da dívida exequenda.

Consideramos assim que a questão jurídica suscitada a título principal nesta impugnação - ilegalidade da liquidação de IRC do ano de 2004, por falta de notificação no prazo de caducidade - é a mesma questão suscitada a título principal na oposição n.º 1177/09.

Porém, a falta de notificação da liquidação no prazo de caducidade no processo de impugnação é uma ilegalidade invalidante do acto de liquidação, enquanto na oposição à execução fiscal é determinante da inexigibilidade da dívida exequenda.

Efectivamente, de acordo com a jurisprudência consolidada do STA, a ilegalidade da falta de notificação da liquidação no prazo da caducidade constitui ilegalidade não só invalidante do acto de liquidação enquanto fundamento de impugnação, como também fundamento de oposição determinante da inexigibilidade da dívida decorrente desse acto (vide por todos neste sentido acórdão do STA de 28/10/2020, processo n.º 07/09, disponível em www.dgsi.pt/).

Assim sendo, não se verifica a enunciada identidade quanto ao pedido.

Decorre do exposto que a excepção do caso julgado não abrange integralmente o objecto da presente acção, apesar dos seus efeitos se repercutirem no destino da presente acção.

No que respeita à eficácia do caso julgado tanto a doutrina, como a jurisprudência têm distinguido duas vertentes «a) – uma função negativa, reconduzida a exceção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura; b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução neste compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.» (cfr. acórdão do STJ, de 22/06/2017, processo n.º 2226/14.0TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt/).

A função positiva do caso julgado, designada por autoridade do caso julgado, tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão (cfr. artigos 619.º e 621.º do CPC) e implica o acatamento da decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve como pressuposto indiscutível no objecto de uma acção posterior, obstando a que a relação jurídica definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa, não exigindo a tríplice identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir.

No caso sub judice, como se viu, está excluída a possibilidade de recorrer à excepção do caso julgado.

Nesta conformidade, importa trazer à colação a figura da autoridade de caso julgado, decorrente da prolação de uma decisão anterior.

A excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado; pela excepção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida. (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil, anotado, vol. 2º, 2ª edição, pág. 354).

Assim sendo, a força e autoridade do caso julgado, enquanto qualidade ou valor jurídico intrínseco às decisões judiciais, visa obstar a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por uma anterior decisão, e portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados (Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil” Coimbra Editora, 1976, pág. 317).

A autoridade do caso julgado justifica-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas, não sendo retirada, nem posta em causa mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado correctamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei: no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça (cfr. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. III, pág. 94).

Sobre a autoridade do caso julgado pronunciou-se, entre outros, o STJ de 13/09/2018, proferido no processo n.º 687/17.5T8PENG.S1, sumariado nos seguintes termos:

«I. A autoridade de caso julgado formado por decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obsta que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionada no artigo 581.º do Código de Processo Civil. (disponível em www.dgsi.pt/).

Aqui chegados, já se afigura possível vislumbrar que a solução a dar à presente impugnação não pode divergir da que foi dada à oposição n.º 1177/09.

De facto, a autoridade do caso julgado da decisão aí proferida impor-se-á, na medida em que o respectivo objecto constitui questão prejudicial na segunda acção, a presente, constituindo pressuposto necessário da decisão de mérito que aqui há-de ser proferida.

Ora, a sentença proferida na oposição n.º 1177/09.5BELRS já transitada, julgou procedente a oposição por ter concluído que a notificação adicional de IRC do ano de 2004 ocorreu depois do prazo de caducidade da liquidação.

O reconhecimento da falta de notificação da liquidação em crise nos presentes autos no prazo de caducidade no processo de oposição à execução fiscal impõe que a presente impugnação seja julgada procedente, anulando-se a liquidação impugnada, por os efeitos jurídicos daquela decisão judicial projectarem-se nos presente autos.

Importa reconhecer a autoridade do caso julgado da decisão proferida na oposição n.º 1177/09, a qual determina o destino da presente impugnação judicial.

Caso se admitisse aqui nova apreciação, seria por um lado um acto inútil e por outro implica fazer tábua rasa do caso julgado da decisão proferida no identificado processo de oposição à execução fiscal.

Pelo exposto, cumpre em função da fundamentação e decisão constante da sentença proferida em 14/04/2021, no âmbito do processo de oposição n.º 1177/09, concluir no sentido da ilegalidade do acto de liquidação em crise por falta de notificação no prazo de caducidade.

Termos em que deve confirmar-se a decisão recorrida de anulação da liquidação impugnada por falta de notificação da liquidação no prazo de caducidade, com a presente fundamentação.

Assim, resta apenas julgar o recurso improcedente.


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Conclusões/Sumário:

I. O caso julgado tem como objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior; visa obstar a que a mesma questão jurídica, materializada na formulação da mesma pretensão com base na mesma factualidade seja objecto de duas ou mais acções que tenham os mesmos pólos subjectivos

II. A função positiva do caso julgado, designada por autoridade do caso julgado, tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão (cfr. artigos 619.º e 621.º do CPC) e implica o acatamento da decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve como pressuposto indiscutível no objecto de uma acção posterior, obstando a que a relação jurídica definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa, não exigindo a tríplice identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir.

III. A falta de notificação da liquidação no prazo de caducidade no processo de impugnação é uma ilegalidade invalidante do acto de liquidação, enquanto na oposição à execução fiscal é determinante da inexigibilidade da dívida exequenda.


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IV – DECISÃO

Termos em que, face ao exposto, acordam as juízas da 1.ª Subsecção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, com a fundamentação supra.

Custas pela Recorrente

Notifique.

Lisboa, 4 de Maio de 2023.



Maria Cardoso - Relatora
Lurdes Toscano – 1.ª Adjunta
Ana Cristina Carvalho – 2.ª Adjunta
(assinaturas digitais)