Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3118/12.3BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:05/07/2020
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:REVERSÃO
GERÊNCIA DE FACTO
RENÚNCIA
CESSÃO QUOTAS
ATO ISOLADO
Sumário:I. Inexiste uma presunção legal da administração de facto, verificada que esteja a administração de direito de uma sociedade por determinada pessoa.
II. A gerência tem de ser demonstrada, não podendo consubstanciar-se em inferências decorrentes do falecimento dos sócios, quando, aliás, o óbito de um deles é posterior à data cessão da quota e inerente renúncia à gerência.
III. Da assinatura de um único requerimento de pagamento em prestações, não é viável, à luz das regras de experiência comum, extrair a conclusão de que o Oponente exerceu, de facto, a gerência da dita sociedade.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO


I-RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a oposição intentada por F….., no âmbito do processo de execução fiscal nº …..212 e apensos, inicialmente instaurada pelo Serviço de Finanças de Lisboa 5, contra a sociedade “M….., LDA”, e contra si revertida, para a cobrança coerciva de dívidas de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) e Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), do ano de 2009 e Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) referente aos períodos de maio, julho e agosto de 2009, tudo perfazendo a quantia global de €5.337,17.

A Recorrente, apresentou alegações tendo concluído da seguinte forma:

“A. Salvo o devido respeito, por opinião diversa, entende a Fazenda Pública que a sentença recorrida padece de erro de julgamento, dado que da prova produzida não se podem extrair as conclusões em que se alicerça a decisão proferida.

B. Na presente oposição, considerou o douto Tribunal que o facto da Fazenda Pública, apenas ter junto um requerimento em que o recorrido assina como gerente da devedora originária e no qual solicitava o pagamento da dívida exequenda em prestações e a apensação dos processos de execução fiscal, não são suficientes para concluir pela gerência de facto.

C. Salvo o devido respeito, por opinião contrária, não pode a Fazenda Pública concordar com tal decisão, pois o facto de apenas terem sido colhidos para os autos esses documentos, não significa que não existam outros.

D. Importa, contudo, reiterar que de acordo com a jurisprudência assente, a lei não exige que os gerentes, exerçam uma administração continuada, sendo apenas exigido que pratiquem atos vinculativos da sociedade, exercitando desse modo a gerência de facto.

E. No caso sub júdice acresce ainda o facto de que, após o falecimento de F….., em 25-10-2008, para a executada primitiva se vincular em todos os seus atos e contratos, era indispensável a intervenção do seu gerente único, o Oponente, ora recorrido.

F. O douto Tribunal não teve em atenção, salvo a devida vénia, que uma sociedade não pode permanecer em atividade sem que a única pessoa com exclusividade para a vincular o faça efetivamente, na documentação que houver para assinar, designadamente perante bancos, fornecedores, clientes, AT, Segurança Social, entre outras.

G. Perante tal quadro factual não pode a Fazenda Pública concordar com a desconsideração de tais funções percorrida na sentença em mérito, pois provando-se que a oponente foi nomeada gerente e que no período temporal a que se reportam as dívidas exequendas assinou documentos necessários ao giro comercial da sociedade, vinculando-a perante terceiros, tem-se por verificada a gerência de facto.

H. Assim e salvo o devido respeito, a prova ínsita nos autos e, as consequências necessárias que dali se aferem sustentam a posição da Fazenda Pública, enquanto titular do direito de reversão da execução fiscal contra o responsável subsidiário, devendo ser considerada legítima a reversão contra o recorrido.

I. Por todo o exposto, deveria determinar-se a improcedência da oposição pela convicção da gerência de facto do oponente/recorrido, formada a partir do exame crítico das provas, caso contrário

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue a oposição judicial totalmente improcedente, PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA!”


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O Recorrido optou por não apresentar contra-alegações.

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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“Com interesse para a decisão da causa, com base nos documentos existentes nos autos e no processo de execução, consideramos assente a seguinte factualidade:

A) A sociedade «M….., Lda.» foi registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa – 4.ª Secção, em 7 de Agosto de 1986, constando como sócios F….. e o Oponente, obrigando-se a sociedade com a assinatura de um gerente e tendo sido designados gerentes L….., F….. e o Oponente - cf. certidão permanente junta a fls. 27 e seguintes dos autos;

B) À data da constituição da sociedade mencionada em A), o sócio F….. era titular de uma quota no valor de € 4.900,00 e o Oponente era titular de uma quota no valor de € 100 - cf. certidão permanente junta a fls. 27 e seguintes dos autos;

C) Em 22 de Agosto de 1998 ocorreu o óbito de L….. – cf. informação constante da certidão permanente, a fls. 28 dos autos;

D) Foi elaborada acta da sociedade devedora originária, datada de 27 de Março de 2008, na qual se declara que o Oponente cedeu a totalidade da sua participação no capital social daquela e mencionada em B), ao sócio F….. - cf. documento “Acta n.º 30”, constante de fls. 81 e seguintes dos autos;

E) Consta ainda da acta mencionada em D) que o Oponente renunciou à gerência da devedora originária - cf. documento “Acta n.º 30”, constante de fls. 81 e seguintes dos autos;

F) A acta mencionada em D) tem apostos manuscritos os seguintes nomes: “F…..” e “F…..” - cf. documento “Acta n.º 30”, constante de fls. 81 e seguintes dos autos;

G) Em 25 de Outubro de 2008 ocorreu o óbito do sócio da devedora originária, F….. - cf. cópia da síntese cadastral constante de fls. 30 dos autos;

H)Em 23 de Março de 2010 foram declaradas em sede de registo comercial, a cessão de quotas e a renúncia à gerência mencionadas em D) e E) – cf. informação constante da certidão permanente, a fls. 29 dos autos;

I) A 25 de Março de 2010 o Oponente apresentou, no Serviço de Finanças de Lisboa - ….. e em nome da sociedade, requerimento datado de 24 de Março de 2010, no qual solicitou a apensação dos processos de execução fiscal em nome da devedora originária, constantes da tabela infra, e o pagamento da dívida exequenda em doze prestações mensais:





- cf. documento a fls. 31 dos autos e carimbo aposto no mesmo pelo Serviço de Finanças;

J) O requerimento mencionado em I) foi subscrito pelo Oponente e, no mesmo, foi aposto um carimbo contendo a descriminação da firma e sede da executada originária;

K) Em 24 de Agosto de 2012 foi registada, no âmbito do processo de execução fiscal n.º …..212, a penhora sobre o veículo de matrícula ….. da marca ….., do qual é proprietária a devedora originária – cf. print comprovativo dos bens penhorados e print do registo automóvel de encargos por matrícula, constantes de fls. 32 a 34 dos autos; L) Foi elaborada informação pelo Serviço de Finanças de Lisboa - ….. no sentido da reversão do processo de execução n.º …..212 contra o ora Oponente e que mereceu concordância por despacho do Chefe do Serviço, a 19 de Setembro de 2012 - cf. documento junto a fls. 16 a 17 dos autos;

M) Na mesma data foi proferido despacho de reversão contra o Oponente com o seguinte teor: «Face às diligências de fls. 50, e estando concretizada a audição do(s) responsável(veis) subsidiário(s), prossiga-se com a reversão da execução fiscal contra F….. (…) na qualidade de Responsável Subsidiário, pela dívida abaixo discriminada. Atenta a fundamentação infra, a qual tem de constar da citação, proceda-se à citação do(s) executado(s) por reversão, nos termos do artigo 160.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário para pagar no prazo de 30 (trinta) dias, a quantia que contra si reverteu sem juros de mora nem custas (n.º 5 do artigo 23.º da Lei Geral Tributária) (…)» – cf. cópia do despacho, constante de fls. 12 dos autos;

N) Em 19 de Setembro de 2012, na sequência do despacho mencionado em M), foi ordenada pelo Chefe de Finanças a citaçãodo Oponente – cf. cópia da citação, constante de fls. 14 a 15 dos autos;

O) Em 25 de Setembro de 2012, o ofício de citação para a reversão foi recepcionado por terceira pessoa no domicílio do Oponente - cf. ofício, detalhe da quantia exequenda revertida, certidões de dívida, talão dos CTT de aceitação de registo postal e A/R assinado e datado, constantes de fls. 25 dos autos e acordo, artigo 4.º da contestação;

P) Em 30 de Outubro de 2012, a presente petição de oposição foi remetida ao Serviço de Finanças Lisboa - ….. por via postal através de carta com aviso de receção - cf. carimbo constante do talão de aceitação dos CTT a fls. 43 dos autos;

Q) À data dos factos dos presentes autos, o Oponente desenvolvia a sua atividade profissional na área da publicidade, trabalhando para o G….. – cf. depoimento das testemunhas com sinais nos autos. R) Os processos de execução fiscal n.ºs …..807, …..206, …..977, …..262 e …..593 correm os seus termos por apenso ao processo n.º …..212, para cobrança coerciva de dívidas de IRS e IRC, referentes aos exercícios de 2009 e de IVA, referentes aos períodos de Maio, Julho e Agosto de 2009, perfazendo o montante total de € 5.337,17 - cf. informação dos serviços, constante de fls. 2 dos autos


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A decisão recorrida elencou como factualidade não provada o seguinte: “Não resultaram provados nos presentes autos os seguintes factos:

i) Foi exigido ao Oponente a assinatura do requerimento mencionado na alínea H) da matéria de facto provada, tendo este sido induzido em erro para o fazer, por parte de funcionário do Serviço de Finanças de Lisboa – 5;

ii) Para além do requerimento mencionado na alínea H) da matéria de facto provada, o Oponente praticou outros actos relacionados com a atividade da executada originária.

Com interesse para a decisão a proferir nada mais se provou.”


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Ficou consignado na decisão recorrida como motivação da matéria de facto provada, que a mesma “[a]ssenta no exame crítico dos documentos constantes dos autos e do processo de execução fiscal apenso, não impugnados e nos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Oponente, conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório, que depuseram de forma clara e convicta.

Dos factos mencionados o Tribunal não ficou convicto da intervenção do Oponente na gestão efectiva da devedora originária.

Com efeito, impendendo sobre a Fazenda Pública o ónus de provar a gerência de facto da devedora originária por parte do Oponente, o Tribunal concluiu que não foi produzida prova suficiente para a satisfação de tal ónus. Para tal apreciação contribuiu o facto de a Fazenda Pública, como prova dessa gerência, apenas ter junto um requerimento no qual o Oponente assina como gerente da devedora originária e no qual solicita o pagamento da dívida exequenda em prestações e a apensação dos processos de execução fiscal, não podendo o Tribunal concluir pela gerência de facto através da demonstração de um acto isolado.

Tendo a Fazenda Pública juntado aos autos prova do óbito dos outros dois gerentes da devedora originária, daí não se infere, sem mais, que terá sido o Oponente a exercer a gerência de facto desde o óbito do sócio F….. uma vez que não foi junta ao processo prova da prática de qualquer outro acto de gerência, para além do requerimento mencionado supra, posteriormente à data da renúncia à gestão do Oponente que consta no registo comercial ou à data do óbito do sócio F…...

No que se refere ao facto constante da alínea Q), a decisão da matéria de facto teve na sua base os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Oponente, a saber, o sogro do Oponente e uma amiga que fora sua vizinha entre o ano de 1998 ao ano de 2016, tendo ambas as testemunhas afirmado que o Oponente trabalhava na área da publicidade, especificamente, à data da inquirição das testemunhas, no G…...

Os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Oponente sobre o facto a que se fez referência na alínea Q) da matéria de facto provada mostraram-se congruentes e convincentes, tendo logrado convencer o Tribunal da sua veracidade.”


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a presente oposição deduzida contra o processo de execução fiscal nº …..212 e apensos, para a cobrança coerciva de dívidas de IRC e IRS, do ano de 2009 e IVA dos períodos de maio, julho e agosto de 2009, tudo perfazendo a quantia global de €5.337,17.

Cumpre, desde já, relevar que em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto importa, assim, decidir se ocorre o apontado erro de julgamento sobre a matéria de facto arguido pela Recorrente no sentido do Recorrido ter sido gerente de facto da sociedade devedora originária e, com base nesse julgamento, se deve ser revogada a sentença na medida em que, por virtude desse erro, conclui pela ilegitimidade daquele para contra si prosseguir a execução a que se opôs.

Vejamos, então.

A Recorrente sustenta que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, visto que face à prova carreada para os autos e de harmonia com o regime jurídico aplicável ter-se-ia de ter concluído que o Oponente, ora Recorrido, é parte legítima.

Aduz, para o efeito, que a lei não exige que os gerentes, exerçam uma administração continuada, bastando-se, tão-só, que pratiquem atos vinculativos da sociedade, exercitando desse modo a gerência de facto, o que sucedeu no caso vertente, dimanando tal asserção da assinatura do requerimento de pagamento em prestações.

Ademais, enfatiza, que após o falecimento de F….., em 25 de outubro de 2008, para a executada primitiva se vincular em todos os seus atos e contratos, era indispensável a intervenção do seu gerente único, o Oponente, ora recorrido, não tendo o Tribunal a quo, valorado, adequada e positivamente, tal circunstância de facto.

Concluindo, assim, que resultando provando que o Recorrido foi nomeado gerente e que no período temporal a que se reportam as dívidas exequendas assinou documentos necessários ao giro comercial da sociedade, vinculando-a perante terceiros, tem-se por verificada a gerência de facto.

Apreciando.

A oposição à execução fiscal funciona como contestação à pretensão do exequente e respeita aos fundamentos supervenientes que podem tornar ilegítima ou injusta a execução, devido a falta de correspondência com a situação material subjacente no momento em que se adotam as providências executivas, tendo por efeito paralisar a eficácia do ato tributário corporizado no processo executivo (1).

Sendo que, os fundamentos da execução fiscal são os taxativamente indicados nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT.

Quanto à questão da ilegitimidade, dispõe o artigo 204.º, n.º 1, al. b), do CPPT, que a oposição pode ter como fundamento a “[i]legitimidade da pessoa citada por esta não ser o próprio devedor que figura no título ou seu sucessor ou, sendo o que nele figura, não ter sido, durante o período a que respeita a dívida exequenda, o possuidor dos bens que a originaram, ou por não figurar no título e não ser responsável pelo pagamento da dívida”.

Encontramo-nos, assim, face a leis sobre a prova de atos ou factos jurídicos que simultaneamente afetam o fundo ou substância do direito, repercutindo-se, assim, sobre a própria viabilidade deste, pertencendo, por isso, ao direito substancial.

É, com efeito, pacífica a jurisprudência que a responsabilidade subsidiária dos gerentes é regulada pela lei em vigor na data da verificação dos factos tributários geradores dessa responsabilidade, e não pela lei em vigor na data do despacho de reversão nem ao tempo do decurso do prazo de pagamento voluntário dos tributos (2).

No caso sub judice, encontramo-nos face à reversão de dívidas de IRS e IRC do exercício 2009 e IVA dos períodos de maio, julho e agosto de 2009, sendo, por isso, aplicável o regime constante na Lei Geral Tributária (LGT), concretamente o consignado no artigo 24.º do citado diploma legal.

Convoquemos, então, o regime jurídico aplicável.

De harmonia com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, da LGT:

“[o]s administradores, diretores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.”

Do teor do normativo legal supra transcrito resultam dois regimes distintos da responsabilidade do gestor, classificados de acordo com o fundamento pelo qual o gestor é responsabilizado, a saber, a responsabilidade pela diminuição do património e a responsabilidade pela falta de pagamento.

Concretizando.

Enquanto, a responsabilidade pela diminuição do património se encontra regulada na alínea a), do nº1, do artigo 24.º da LGT, a responsabilidade pela falta de pagamento está consagrada na alínea b), do nº1, do artigo 24º da LGT.

O citado artigo 24.º da LGT, introduziu nas suas alíneas a) e b), uma repartição do ónus da prova da culpa, distinguindo entre:

- as dívidas vencidas no período do exercício do cargo relativamente às quais se estabelece uma presunção legal de culpa na falta de pagamento (cfr. a parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT);

- as demais previstas como geradoras de responsabilidade, concretamente, aquelas cujo facto constitutivo se tenha verificado no período do exercício do cargo (e não se vençam neste) e aquelas cujo prazo legal de pagamento ou entrega termine já após o termo do exercício do cargo. Nestas situações o ónus da prova impende sobre a Administração Tributária, ou seja, os gerentes ou administradores podem ser responsabilizados desde que seja feita prova de culpa dos mesmos na insuficiência do património social.

Convoque-se, neste particular, o Acórdão do STA proferido no recurso nº 0944/10, de 2 de março de 2011, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que refere que:

“I - Nos termos do artigo 24.º, n.º 1, da LGT, não basta para a responsabilização das pessoas aí indicadas a mera titularidade de um cargo, sendo indispensável que tenham sido exercidas as respetivas funções.

II - Não existe presunção legal que imponha que, provada a gerência de direito, por provado se dê o efetivo exercício da função, na ausência de contraprova ou de prova em contrário.

III - A presunção judicial, diferentemente da legal, não implica a inversão do ónus da prova.

IV - Competindo à Fazenda Pública o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária do gerente, deve contra si ser valorada a falta de prova sobre o efetivo exercício da gerência.”

Como doutrinado no citado Aresto, não existe presunção legal que imponha que, provada a gerência de direito, por provado se dê o efetivo exercício da função, na ausência de contraprova ou de prova em contrário, resultando apenas uma presunção legal, mas apenas da culpa do administrador pela insuficiência do património da sociedade originária devedora.

Visto o direito, atentemos, ora, no acervo probatório dos autos.

In casu, a 07 de agosto de 1986 -data da constituição da sociedade devedora originária- o capital social da mesma encontrava-se na titularidade de F….. e do, ora, Recorrido, tendo, nessa mesma data, sido designados gerentes F….., L….., e F…...

Mais dimana do probatório que, em 27 de março de 2008, o Recorrido cedeu a sua participação social a F….., tendo, igualmente, renunciado à mencionada gerência, cujo registo na Conservatória do Registo Comercial ocorreu a 23 de março de 2010.

Pelo que, importa, desde já, relevar que contrariamente ao defendido pela Recorrente os factos tributários e respetivo prazo legal de pagamento das dívidas, ora, objeto de cobrança coerciva não ocorreram no período que mediou entre a nomeação e a renúncia à gerência. Com efeito, atentando no probatório verifica-se que os factos tributários e consequentemente os respetivos prazos legais expiraram em data posterior à renúncia, logo sem subsunção jurídica na alínea b), do nº1 do artigo 24.º da LGT, donde em sentido inverso ao vertido no despacho de reversão.

De todo o modo, como visto, para efeitos de preenchimento dos pressupostos da reversão é curial a demonstração inequívoca da gestão por parte do gerente de direito, cujo ónus se circunscreve na esfera jurídica da Administração Tributária.

Sendo que, in casu, o Tribunal a quo entendeu que face à prova carreada aos autos a Administração Tributária não tinha logrado provar a gerência de facto que o Recorrido nega.

E, de facto, não se vislumbra qualquer erro de julgamento, tendo o Tribunal a quo interpretado adequada e corretamente os pressupostos da reversão à realidade fática dos autos e efetuado um correto exame crítico da prova produzida, permitindo-nos concluir pela falta de prova da gerência de facto da sociedade executada originária, por parte do Oponente no período a que se reportam as dívidas exequendas revertidas enquanto pressuposto da reversão das execuções fiscais contra o responsável subsidiário.

Atentemos, então, nas razões que nos permitem concluir pelo acerto da decisão recorrida.

Para o efeito, importa, desde logo, relevar que contrariamente ao sustentado pela Recorrente nas suas alegações, mormente, no ponto 13, o Recorrido ao longo de toda a p.i. nega, de forma expressa, a gerência de facto da sociedade devedora originária, alocando-a a uma data específica, ou seja, a partir da sua renúncia, não tendo a Administração Tributária carreado para os autos elementos de prova que permitam extrair, de forma inequívoca e segura, que o mesmo exerceu, efetivamente, a gerência da sociedade devedora originária.

É certo que a Recorrente sustenta que o Recorrido assinou em data ulterior à sua renúncia um requerimento de pagamento em prestações, e que tal facto, per se, permite retirar que a renúncia apenas foi aparente e que o mesmo nunca se desvinculou da esfera societária.

Mas a verdade é que, ainda que tal realidade fática se encontre refletida no probatório, concretamente, na alínea I), o certo é que, contrariamente ao sustentado pela Recorrente, não permite, per se, inferir a gerência de facto, desde logo, por se traduzir num ato isolado.

Neste particular, atente-se no doutrinado no Aresto do TCA Norte, proferido no processo no processo nº 01210/07.5, de 30 de abril de 2014, do qual se extrai, designadamente, o seguinte:

“[N]ão se olvida que no dia 26-03-2004 deu entrada no Serviço de Finanças de Matosinhos 2 um pedido de pagamento em prestações em nome da executada M…, em que o oponente assina, na qualidade de gerente, conforme carimbo aposto - fls. 66-68. Todavia, afigura-se-nos que esse (único) facto provado, e embora possa constituir um indício no sentido do exercício efectivo da gerência por parte do ora Recorrido, por si só, não é suficiente para permitir a conclusão de que o mesmo exerceu a gerência de facto da devedora originária no período em questão. Como se decidiu no acórdão deste TCAN de 20/12/2011, proferido no processo 639/04.5BEVIS-AVEIRO, www.dgsi.pt, “[d]e um acto isolado praticado pelo Oponente, em que, aparentemente, terá agido em representação da executada originária num momento concreto […] não é viável, à luz das regras de experiência comum, extrair a conclusão de que o mesmo exerceu, de facto, a gerência da dita sociedade…”.

Logo, da assinatura de um único ato pontual pelo Recorrido, não é viável, à luz das regras de experiência comum, extrair a conclusão de que o mesmo exerceu, de facto, a gerência da dita sociedade.

De facto, que para se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, não podendo a mesma ser atestada pela prática de atos isolados, mas antes pela existência de uma atividade continuada. Dir-se-á, portanto, que a gerência é, assim, antes do mais, a investidura num poder (3).

É certo, outrossim, que a Recorrente aduz, em abono da sua pretensão, que com o falecimento dos outros dois sócios, a renúncia do Oponente significaria deixar a sociedade totalmente desprovida de gestão e bem assim, sendo sócio e não existindo estipulação em contrário, seria também gerente, em ordem ao consignado no artigo 191.º do CSC.

Porém, sem razão.

E isto porque, descura, desde logo, a factualidade inerente à cedência da participação social, ou seja, que no dia 27 de março de 2008, ato contínuo, o Recorrido cede a sua quota e renuncia à gerência, pelo que contrariamente ao sustentado pela Recorrente, o mesmo já não era sócio, tendo a totalidade do capital social ficado na esfera de F….., o qual só faleceu em data ulterior, concretamente, 25 de outubro de 2008. Pelo que, como é bom de ver, não assiste razão à Recorrente em nada relevando o preceituado no artigo 191.º do CSC.

Ademais, e conforme já evidenciado anteriormente e no sentido propugnado pelo Tribunal a quo, a gerência não se presume tem, efetivamente, de ser cabalmente demonstrada, não podendo, por isso, consubstanciar-se em inferências decorrentes do falecimento dos sócios, quando, aliás, o óbito de F….. é posterior à data cessão da quota e inerente renúncia à gerência.

Com efeito, dir-se-á, que o Tribunal a quo não descura que tais atos só foram objeto de registo em 2010, mas a verdade é que, conforme é jurisprudência unânime o registo da renúncia não é elemento constitutivo desta, sendo que em ordem ao consignado no artigo 228.º, nº3 do CSC “a transmissão de quota entre vivos torna-se eficaz para com a sociedade logo que lhe for comunicado por escrito ou ela reconhecida, expressa ou tacitamente.”

Mais importa sublinhar que o Tribunal ad quem está ciente que ficou consignado que não resultou provado que “foi exigido ao Oponente, ora Recorrido, a assinatura do requerimento constante na alínea H) da factualidade assente, tendo este sido induzido em erro para o fazer, por parte de funcionário do Serviço de Finanças de Lisboa-…..”, mas este facto não provado não permite extrapolar a realidade inversa e inferir pela prática voluntária e reiterada de atos de gestão, quando, ademais, já não era sócio, nem tão-pouco gerente de direito.

Na alínea C) das suas conclusões, é evidenciado pela Recorrente que “[n]ão pode a Fazenda Pública concordar com tal decisão, pois o facto de apenas terem sido colhidos para os autos esses documentos, não significa que não existam outros”, mas a verdade é que, alegadamente, existindo esses documentos tinham de ser carreados para os presentes autos, porquanto a gerência de facto não se presume tendo, ao invés de ser, efetiva e inequivocamente, demonstrada pela parte que está onerada com esse ónus, ou seja, pela Recorrente.

Ora, em face do referido, e conforme resulta expresso da factualidade provada, é manifesto que a Entidade Exequente não alegou, nem provou factos, que indiciem, de forma segura e inequívoca, o exercício da gerência de facto.

Acresce que da demais documentação carreada para os autos e dos elementos constantes no processo de execução fiscal, não resulta qualquer documento que permita extrair a conclusão de que o Recorrido exerceu, de facto, a gerência da sociedade à data da prática dos factos tributários e do seu vencimento, tendo, inclusive, resulta provado e não impugnado que, à data dos factos tributários, o Oponente, ora, Recorrido desenvolvia a sua atividade na área da publicidade, trabalhando para o G…...

Note-se que a gerência de facto de uma sociedade comercial consiste no efetivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam pela vinculação e representação da sociedade, nomeadamente, através das relações com os clientes, com os fornecedores, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade. Porquanto, para se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo facto, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros.

Resulta, assim, que face à prova produzida nos autos, a Administração Tributária não estava legitimada a efetivar a reversão contra o Recorrido devido a falta de prova dos pressupostos da reversão no âmbito do processo de execução fiscal nº …..212 e apensos, assim se devendo confirmar a decisão recorrida.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

-NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.

Custas pela Recorrente.

Registe. Notifique.



Lisboa, 07 de maio de 2020


(Patrícia Manuel Pires)

(Cristina Flora)

(Tânia Meireles da Cunha)




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(1) Cfr. Ac. do Supremo Tribunal Administrativo datado de 04/06/2008, proferido no recurso n.º 179/08, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

(2) vide, designadamente, Acórdãos do Pleno do STA, proferidos nos processos nºs 58/09, e 945/09, datados de 24.03.2010 e 07.07.2010.

(3) Sobre o traço distintivo entre gerente de direito e gerente de facto, vide, designadamente, Acórdão proferido pelo TCA Norte, no processo01417/05.0BEVIS, de 16 de abril de 2015