Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
283/21.2YHLSB-C.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: TIBÉRIO NUNES DA SILVA
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
DEPOIMENTO DE PARTE
FALTA DE COMPARÊNCIA
OFENSA DO CASO JULGADO
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
REQUISITOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
OBJETO DO RECURSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (PROPRIEDSDE INTELECTUAL)
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Não se assume como recusa de meio de prova (depoimento de parte) o despacho que, aferindo da impossibilidade de comparência dos depoentes, cuja falta dá por justificada, e considerando, ainda, razões de urgência do procedimento e a necessidade de prolação de decisão final, nega a designação de nova data para a continuação da audiência de julgamento, visando a prestação dos depoimentos.

II. Não há, através desse despacho, ofensa de caso julgado relativamente a anterior despacho que admitiu os depoimentos de parte, se não se questionam ou revêem os pressupostos da admissibilidade legal desses depoimentos.

III. Para que haja oposição de julgados tem de verificar-se uma situação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão da Relação que é objecto do recurso e aquele que sirva de contraponto.

IV. Sendo, no âmbito de um procedimento cautelar, interposto recurso com base na ofensa do caso julgado e em contradição jurisprudencial, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhecerá dessas matérias e não de outras questões eventualmente alegadas, pois é apenas isso que consente a norma que, nesses casos, amplia a recorribilidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I



I.1.

Malo Clinic, SA requereu, no Tribunal da Propriedade Intelectual, contra AA (1º), BB (2ª), CC (3ª), DD (4ª), EE (5ª), P... Unipessoal, Lda. (6ª), M... Unipessoal Lda (7ª), G... Lda (8ª), S..., Lda (9ª) e M..., Lda. (10ª), o decretamento, ao abrigo do disposto no art. 345º do Código da Propriedade Industrial, das seguintes providências cautelares:

«a) Serem os RR. solidariamente condenados a, directamente ou por interposta pessoa, se absterem de usar as marcas ou denominações “Malo Dental”, “P Malo Dental Clinic”, “Paulo Malo Dental”, “Malo Dental International” ou outras similares, de forma isolada ou em combinação com outras designações, designadamente, nas paredes, muros e interior de estabelecimentos, toldos, tabuletas, letreiros, pinturas em montras ou vitrines, sinalética, fotografias, viaturas, brochuras, publicidade, cartões, sacos, embalagens, rótulos, documentação comercial, incluindo faturas, em correio electrónico, na Internet, incluindo quaisquer redes sociais nesta existentes, nomeadamente, Facebook e Linked In, ou por qualquer outro meio;

b) Serem os RR. solidariamente condenados a retirar de suas propriedades e/ou estabelecimentos que sejam por si detidos, locados, ou, de qualquer forma por si explorados, todos os suportes com as expressões “Malo Dental”, “P Malo Dental Clinic”, “Paulo Malo Dental”, “Malo Dental International” ou outras similares, de forma isolada ou em combinação com outras designações;

c) Serem os RR. solidariamente condenados a destruir todos os suportes existentes com as designações “Malo Dental”, “P Malo Dental Clinic”, “Paulo Malo Dental”, “Malo Dental International” ou outras similares, nomeadamente em publicidade, cartões, folhetos, cartazes, embalagens, assim como quaisquer materiais, produtos ou documentos que reproduzam as marcas da A.;

d) Subsidiariamente aos pedidos formulados em a), b) e c), ser judicialmente ordenado o encerramento de todos os estabelecimentos explorados pelos RR. em que sejam empregues as designações “Malo Dental”, “P Malo Dental Clinic”, “Paulo Malo Dental”, Malo Dental International” ou outras similares;

Em qualquer caso,

e) Serem os RR. solidariamente condenados a abster-se de proferir quaisquer declarações públicas, nos meios de comunicação social ou fora destes, em que se associem, seja a que título for, à A., às suas marcas e à sua imagem empresarial;

f) Serem os RR. solidariamente condenados a abster-se da prática de quaisquer actos de desorganização empresarial da A., ainda que sobre a forma tentada, nomeadamente, emissão ou difusão de falsas declarações, pública ou privadas, a respeito da A. e de sua reputação empresarial, aliciamento de trabalhadores e/ou prestadores de serviços da A., desvio de pacientes da A., e uso abusivo de dados pessoais ou outros de pacientes da A. a que eventualmente possam ter acesso;

g) Serem os RR. solidariamente condenados no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 10.000,00 (dez mil euros) por cada dia posterior ao trânsito em julgado da sentença, em que não cumpram qualquer uma das injunções referidas nas alíneas em a) a f) supra;

h) Serem os RR. solidariamente condenados no pagamento de uma indemnização em montante a fixar com recurso à equidade, e em sede de execução de Sentença, relativa a danos causados com os seus comportamentos desleais, e que tenha por base de cálculo, no mínimo, 51% do valor total das prestações de serviços realizadas através do emprego da marca “Malo Dental”, ponderados os investimentos realizados pela A. no âmbito da reputação das marcas registadas de que é titular;

i) Serem os RR. solidariamente condenados no pagamento de uma indemnização de quantia não inferior a €30.750,00 (trinta mil setecentos e cinquenta euros) destinada a cobrir os encargos já suportados pela Requerente com a protecção dos seus direitos de propriedade industrial e com a investigação e cessação da conduta lesiva desses direitos por parte dos RR.;

j) Ser ordenada, a expensas dos RR., a publicitação do conteúdo dispositivo da sentença em jornal nacional, diário ou semanal, de grande tiragem, nomeadamente os jornais Expresso, Público ou Diário de Notícias;

k) Ser invertido o contencioso, ficando a Requerente dispensada do ónus de propositura da acção principal».


Foi requerido o depoimento de parte de todos os RR..

I.2.

 Em 14-03-2022, foi proferido despacho do seguinte teor:

«Fls. 1041-1060: uma vez que ainda não houve pronúncia sobre a prestação de depoimentos de parte de todos os requeridos 10 requeridos, requerida no requerimento inicial (R.I.), admitem-se os requeridos depoimentos de parte dos requeridos sobre os factos pessoais ou de que os depoentes devam ter conhecimento eventualmente contida nos artigos do R.I. respectivamente indicados para cada um deles no correspondente segmento do requerimento probatório da requerente.

Atento o número elevado de depoimentos a prestar pelos requeridos, que deverão preceder a inquirição de testemunhas da requerente e requeridos nos termos do artigo 604º, nº 3, al. a) do CPC, serão estes prestados na data aprazada (1.04.2022), designando-se para prosseguimento da audiência com a inquirição das testemunhas e alegações o dia 22.04.2022, pelas 9h30 (e não antes por indisponibilidade de agenda).»

I.3.

A prestação dos depoimentos de parte iniciou-se em 01-04-2022, tendo sido ouvidos o 1º Requerido e a 3ª Requerida.

Verificou-se a ausência, entre outros Requeridos, da 2ª Requerida, BB, do legal representante da 6ª Requerida, FF, e do legal Representante da 10ª Requerida, GG.

I.4.

Na sessão de 22-04-2022, prestou depoimento a 4ª Requerida, por si e como representante das 7ª e 9ª Requeridas e também prestou depoimento a 5ª Requerida, por si e na qualidade de Legal Representante da 8ª Requerida.

Registou-se a ausência da 2ª Requerida, do legal representante da 6ª Requerida e do legal representante da 10ª Requerida.

I.5.

Em 29-04-2022, proferiu-se despacho, no qual, entre o mais, se exarou o seguinte:

«Fls. 1122-1132, 1143-1143v e requerimento da requerente na sessão de 22.04.2022 da audiência final:

Por requerimento de 18.04.2022 (ref.ª ...29, fls. 1143-1143v), a requerida M..., Lda. informa que o seu gerente GG ‘se encontra ausente há meses na China, sem data prevista para vir a Portugal, razão pela qual não poderá comparecer no Tribunal para prestar declarações de parte no […] dia 22.04.2022’, referindo ainda a procuração conferida pelo dito único gerente da requerida M..., Lda., HH, ‘a dois procuradores a fim de ser assegurada a representação funcional e administrativa constantes no documento junto com o requerimento de 04/04/2022 Ref. ...27, e por isso com a limitação de poderes que o “Depoimento de parte” a prestar ao Tribunal o exigem, ficando assim ao critério do Tribunal outro entendimento, no que respeita ao vínculo dos depoimentos por terceiros, eventualmente a prestar.

Em requerimento ditado para a acta na sessão de 22.04.2022 da audiência final, a requerente pronuncia-se pela constatação da ausência injustificada do legal representante da requerida M..., Lda., pedindo que daí se extraiam as legais consequências, designadamente nos termos dos artigos 417º do CPC.

Vejamos.

Resulta dos autos que o legal representante da sociedade requerida M..., Lda., HH, é cidadão chinês e reside nesse país, onde com data de 6.07.2021 passou perante notário a procuração junta aos autos com o requerimento de 4.04.2022 (ref.ª ...97, fls. 1122-1132), através da qual a referida sociedade (aí referida como “Mandante”) confere poderes a dois procuradores aí identificados, designadamente para ‘Representar a Mandante perante todos os […] tribunais […]’.

Nos termos do artigo 453º, nº 2, do CPC, ‘Pode requerer-se o depoimento de […] pessoas colectivas ou sociedades; porém, o depoimento só tem valor de confissão nos precisos termos em que […] estes possam obrigar os seus representados [ênfase aditado]’.

Não se mostrando da procuração junta que pela mesma hajam sido conferidos poderes especiais, designadamente para confessar ou transigir em tribunal, designadamente nos presentes autos, não pode o depoimento ser prestado pelos procuradores aí mencionados.

De resto, nos termos do artigo 454º, nº 1, do CPC, ‘O depoimento só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento’ (ênfase aditado), pelo que não sendo tais procuradores o depoente nem o seu representante legal, nunca estariam em condições de depor em lugar deste.

Deve, pois, considerar-se o legal representante da requerida M..., Lda. como ausente da sessão de 22.04.2022 da audiência final, para a qual estava regularmente notificada para prestação de depoimento de parte, ausência que considero justificada em razão da extremamente longa distância geográfica entre o local de residência deste e o tribunal onde tal deveria ocorrer tal depoimento.

Fls. 1147-1149v e requerimento da requerente na sessão de 22.04.2022 da audiência final:

Por requerimento de 21.04.2022 (ref.ª ...09, fls. 1147-1149v), os requeridos P..., Lda. (adiante ‘P...’) e BB (adiante ‘BB’) requerem que as suas ausências na sessão de 22.04.2022 da audiência final onde deviam prestar depoimentos de parte sejam consideradas justificadas, no caso da requerida P... por o seu legal representante residir actualmente em Angola e não ter disponibilidade para viajar a Portugal nos próximos meses, e no caso da requerida BB por se encontrar com incapacidade temporária para o trabalho conforme atestado médico que junta.

Em requerimento ditado para a acta na sessão de 22.04.2022 da audiência final, a requerente pronuncia-se pela constatação da ausência injustificada do legal representante da requerida P... e da requerida BB, pedindo que daí se extraiam as legais consequências, designadamente nos termos dos artigos 417º do CPC.

Vejamos.

Resulta dos autos que o legal representante da sociedade requerida P..., FF, é cidadão angolano e reside nesse país, onde com data de 13.10.2021 lhe foi emitido ‘Cartão de Munícipe’ atestando a sua residência no município ..., província do ..., Angola, junto aos autos com o requerimento de 21.04.2022 (ref.ª ...09, fls. 1148v).

Deve, pois, considerar-se a ausência do legal representante da requerida P... na sessão de 22.04.2022 da audiência final, para a qual estava regularmente notificada para prestação de depoimento de parte, como justificada em razão da extremamente longa distância geográfica entre o local de residência deste e o tribunal onde deveria ocorrer tal depoimento.

Quanto à ausência da requerida BB, considera-se igualmente justificada em razão da doença de que se mostra afectada, designadamente depressão grave com bloqueios cognitivos, que a impossibilita designadamente de se ausentar da sua habitação salvo para tratamento, cfr. atestado médico junto com o requerimento de de 21.04.2022 (ref.ª ...09, fls. 1148v).»

I.6.

Na sessão da audiência de julgamento de 27-05-2022, igualmente se registou em acta a ausência da 2ª Requerida e dos legais representantes da 6ª Requerida e da 10ª Requerida.


Resulta da acta que os Mandatários desses Requeridos expuseram os fundamentos dessa ausência, nos termos que ficaram gravados e foi proferido o seguinte despacho:

«Atenta à identidade e motivos que determinaram a ausência das partes na presente audiência, nada há a acrescentar ao despacho precedentemente proferido sobre a matéria, tentando-se novamente a notificação para a próxima sessão de audiência das mesmas partes cujo depoimento ainda não ocorreu.»

1.7.

Na sessão de 04-07-2022, igualmente se fez constar da acta a ausência das mesmas partes, bem como terem os respectivos Mandatários exposto os motivos dessa ausência, tendo sido proferido o seguinte despacho:

«Não se mostrando qualquer novidade excepto a reiteração quanto à situação objecto do despacho já proferido a 29/04/2022 – referência ...38, no que toca à situação e circunstâncias que motivaram a ausência das partes a depor, reitera-se o teor do referido despacho, indeferindo-se a requerida designação de nova data atento o caracter urgente da presente providência e o tempo já decorrido.»


Após a produção da prova, pelo Mm.º Juiz foi ordenada a conclusão dos autos para prolação de sentença.

Dessa sentença, que julgou improcedente o procedimento cautelar, foi interposto recurso.

I.8.

Inconformado, a Requerente interpôs recurso do despacho proferido na sessão de 04-07-2022, sendo proferido acórdão, no Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou a apelação improcedente.


Ainda irresignada, a Requerente recorreu para este Supremo Tribunal, concluindo as alegações da revista pela seguinte forma:

«A. A Recorrente recorre da decisão que julgou totalmente improcedente o recurso de apelação confirmando integralmente o despacho recorrido em virtude da mesma decisão: (a) violar o caso julgado, a respeito de decisão proferida nos autos a 14.03.2022, que admitiu como meios de prova os depoimentos de parte solicitados; (b) contrariar jurisprudência anterior, já transitada em julgado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, em concreto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.11.1997 (RELATOR: CONSELHEIRO JOAQUIM DE MATOS), no processo n.º 623/97, nos termos do qual “o poder de livre apreciação do tribunal, de que se fala no n.º 1 do art. 655 do CPC, poderá exercer-se no que se refere à admissibilidade dos meios de prova propostos pelas partes e no que respeita, uma vez produzidas as provas, à determinação do seu valor probatório, sendo porém de notar que, para além das excepções legais, não é licito ao juiz recursar meios probatórios que as partes hajam oferecido e pretendam produzir”; e, (c) ser nula por contradição entre a decisão e os seus fundamentos.

B. A Requerente apresentou Recurso de Apelação da decisão proferida em 04.07.2022, que indeferiu a designação de nova data de audiência de julgamento para prestação dos depoimentos de parte das Requeridas BB, P... Unipessoal, Lda., e M..., Lda., tendo, a final, ordenado a conclusão dos autos para prolação de Sentença – cfr. a Ata (Ref.ª CITIUS ...54, de 11.07.2022) e as Alegações (Ref.ª CITIUS ...15 (102299), de 08.07.2022).

C. Foi neste momento que, pela primeira vez, foi recusada designação de nova data para a prestação dos depoimentos de parte oportunamente peticionados – e judicialmente admitidos – das três Requeridas M..., Lda., P..., Lda. E BB, rejeitando-se os depoimentos de parte em questão (que haviam sido anteriormente admitidos por decisão judicial transitada em julgado).

D. Os depoimentos de parte peticionados pela Recorrente foram judicialmente admitidos por Despacho Judicial proferido pelo Tribunal de 1.ª instância, em 14.03.2022, transitado em julgado a 01.04.2022, por aplicação do disposto no art. 644.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil – cfr. a Petição Inicial (Ref.ª CITIUS ...35 (90586), de 20.08.2021) e o Despacho Judicial da mesma data (Ref.ª CITIUS ...64, de 14.03.2022).

E. Existe caso julgado quanto à admissão do depoimento de parte das Requeridas desde 01 de abril de 2022, em virtude do trânsito em julgado do referido Despacho Judicial de 14.03.2022 (ignorado pelo Tribunal da Relação de Lisboa).

F. Ao proferir decisão que contraria questão já decidida pelo Tribunal de 1.ª instância, o Tribunal da Relação de Lisboa ofendeu o caso julgado formal assente na prévia decisão que admitiu os depoimentos de parte das Requeridas, o que determina a revogação da mesma decisão – cfr. os arts. 620.º, n.º 1, 625.º, n.ºs 1 e 2, 629.º, n.º 2, alínea a), e 671.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil; e, na jurisprudência, os acs. do Supremo Tribunal de justiça de 06.05.2021 (RELATOR: TIBÉRIO NUNES DA SILVA) e de 08.03.2018 (RELATOR: FONSECA RAMOS).

G. O fundamento do acórdão em crise reside na putativa existência de caso julgado formal sobre a matéria em questão através do Despacho Judicial proferido pelo Tribunal de 1.ª instância, em 29.04.2022 – cfr. o Acórdão (Ref.ª CITIUS ...19, de 26.10.2022).

H. A decisão judicial proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, em 29.04.2022, julgou, tão-somente, justificada a falta das depoentes na sessão de audiência de julgamento realizada em 22.04.2022, não tendo versado concretamente sobre os depoimentos de parte das Requeridas, nem, tão pouco, rejeitado tais meios de prova [os quais se encontravam admitidos desde 14.03.2022, por Despacho Judicial que transitou em julgado a 01.04.2022 (!)] – cfr. a Ata (Ref.ª CITIUS ...45, de 29.04.2022) e o Despacho (Ref.ª CITIUS ...38, de 29.04.2022).

I. Tal decisão não é suscetível de recurso nos termos do disposto no art. 644.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil, por não configurar uma rejeição de meios de prova, nem, tão pouco, de formar caso julgado sobre a admissibilidade dos referidos meios de prova; este já existia, sim, a respeito da admissibilidade de tais meios de prova.

J. O comportamento de todos os intervenientes processuais (Tribunal, Secretaria Judicial e Partes) sanciona tal realidade, sendo as Partes e seus mandatários sucessivamente convocadas pela Secretaria Judicial para prestarem depoimento de Parte (!), existindo Despachos subsequentes que ordenam a sua comparência em juízo para tal efeito (!!), e sendo as próprias Partes a justificar a sua falta a respeito do depoimento para o qual estavam convocadas (!!!) – cfr. os actos processuais de 20.05.2022, 27.05.2022, 06.06.2022 e 04.07.2022.

K. Considerar, perante tal realidade fáctica, que existe um Despacho Judicial prévio (datado de 29.04.2022) que indeferiu tais meios de prova é, apenas e só, fantasiar a realidade.

Por outra via,

L. Constata-se inexistir fundamento ontológico para o acórdão em crise, porquanto:

a) A interpretação sufragada pelo Tribunal da Relação para o Despacho Judicial de 29.04.2022 não possui um mínimo de correspondência no texto da referida decisão judicial – cfr. os arts. 236.º, n.º 1, 238.º, n.º 1, do Código Civil, aplicáveis ex vi o art. 295.º do mesmo diploma legal; e, na jurisprudência, os acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 17.02.2022 (RELATOR: NUNO PINTO OLIVEIRA); de 01.07.2021 (RELATOR: ROSA TCHING); de 24.11.2020 (RELATOR: RICARDO COSTA); e

b) Nenhum dos atos processuais subsequentes se coadunam – ainda que remotamente – com a existência de uma putativa decisão de rejeição dos depoimentos de parte em causa a 29.04.2022 – cfr. o Despacho, com a Ref.ª CITIUS ...47, de 20.05.2022); as Notificações, com as Ref.ªs CITIUS ...39, ...40, ...41, ...66 e ...67, de 20.05.2022); a Ata, com a Ref.ª CITIUS ...78, de 03.06.2022); e as Notificações, com as Ref.ªs CITIUS ...65, ...66 e ...67, de 06.06.2022).

M. Facto que aliás se explica, pura e simplesmente, por o meio de prova em questão haver sido admitido por Despacho Judicial cujo trânsito em julgado ocorreu 29 dias antes de tal Despacho (…).

N. Tal determina que o inexistente fundamento acórdão se encontre em directa oposição com a decisão proferida, o que conduz, necessariamente, a decisão diferente daquela que foi proferida no douto acórdão, e que gera a nulidade do mesmo acórdão – cfr. o art. 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi o art. 666.º, n.º 1, do mesmo diploma normativo; e, na jurisprudência, nomeadamente, os acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 20.05.2021 (RELATOR: NUNO PINTO OLIVEIRA), de 03.03.2021 (RELATOR: LEONOR CRUZ RODRIGUES), e de 09.02.2017 (RELATOR: RIBEIRO CARDOSO).

O. Foram violados os arts. 236.º, n.º 1, 238.º, n.º 1, e 295.º, do Código Civil, bem como os arts. 577.º, alínea i), 580.º, 581.º, 615.º, n.º 1, alínea c), 620.º, n.º 1, 625.º, n.ºs 1 e 2, 644.º, n.º 2, alínea d), e 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Nestes termos e nos demais de Direito julgados aplicáveis, deverá ser concedido provimento ao presente Recurso (Ordinário) de Revista interposto pela Recorrente, e consequentemente, ser revogado o acórdão proferido que julgou totalmente improcedente o Recurso de Apelação interposto pela Requerente, confirmando integralmente o despacho recorrido, sendo o mesmo substituído por decisão que conceda provimento ao referido Recurso, com revogação do Despacho Judicial proferido pelo Tribunal de 1.ª instância, em 04.07.2022, sendo, em consequência, (1) determinada a designação de nova data para a realização de audiência de julgamento final a fim de serem prestados os depoimentos de parte das Requeridas BB, P... Unipessoal, Lda., e M..., Lda. que foram admitidos por Despacho Judicial de 14.03.2022, e ilegalmente recusados pelo Despacho em crise; e (2) serem anulados todos os termos subsequentes do processo judicial, incluindo a Sentença judicialmente proferida em 31.07.2022 (…)».

Contra-alegaram CC, BB E P..., UNIPESSOAL, LDA, considerando que deverá concluir-se que não estão verificados os pressupostos referidos na al. a) e b), do n.º 2, do art. 671.º do CPC e, consequentemente, recusar-se a admissibilidade do presente recurso, nos termos do n.º 2, al. a) do art. 629.º do CPC, ou, caso assim não se entenda, deverá o recurso apresentado ser julgado improcedente.


*


Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, verifica-se que, in casu, emanam das conclusões as questões da ofensa de caso julgado e da contradição de acórdãos (por referência ao identificado Ac. do STJ de 13-11-1997, de que se juntou certidão), sendo invocada ainda a nulidade do acórdão impugnado.



II


Os elementos a considerar são os que os resultam do relatório feito em I.

Defende a Recorrente que o Acórdão recorrido ofende o caso julgado (caso julgado formal, de acordo com o preceituado no art. 620º, nº1, do CPC) decorrente do despacho, transitado em julgado, que admitiu os depoimentos de parte dos três identificados Requeridos (além dos restantes).


O despacho que admitiu os depoimentos de parte, foi, como resulta do antecedente relatório (I.2.), proferido em 14-03-2022.

O despacho de que foi interposto recurso para o Tribunal da Relação e que se pretende ver revogado, na sequência também da revogação do acórdão impugnado, foi proferido na acta da sessão da audiência de 04-07-2022.

Na apelação, a Recorrente considerou que esse despacho consubstanciou a recusa ilegal de um meio de prova, o que determina a nulidade de tal decisão e de todos os termos subsequentes, de acordo com o disposto no art. 195.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

O Tribunal da Relação entendeu ser claro que o despacho recorrido tinha como pressuposto a prolação de despacho anterior: aquele que foi proferido em 29-04-2022 (que reproduzimos no ponto I.5.).

Ponderou o Tribunal recorrido:

«Salvo o devido respeito, julgamos que o presente recurso está condenado ao insucesso por força do caso julgado que se formou sobre o despacho proferido pelo Sr. Juiz da 1ª instância, datado de 29-04-2022 e que aqui citamos.

Com efeito, a aqui Recorrente nenhuma atitude processual adoptou sobre tais despachos, nomeadamente instaurando o recurso de que ora, tardiamente, lançou mão.

Na verdade, esses despachos versaram concretamente sobre os meios de prova em causa (os depoimentos de parte das aqui Recorridas, quer da recorrida BB, quer das sociedades recorridas – estas na pele dos seus representantes legais) e deviam ter sido alvo do pertinente recurso – visto o interesse e desiderato processuais da aqui Recorrente.

Mas esta assim não diligenciou processualmente. O que fez?

Tardiamente (repetimos), veio novamente apresentar idêntico requerimento, na acta da audiência de julgamento datada de 4-07-2022, por forma a tentar que o tribunal voltasse a apreciar a sua pretensão de designar nova data por forma a serem efectivamente prestados os depoimentos de parte em apreço.

Todavia, o Sr. Juiz da 1ª instância, nessa acta, proferiu o despacho supra citado onde, em suma, refere que nada há de novo pelo que mantém os fundamentos já vertidos no despacho datado de 29-04-2022.

Tendo decorrido o prazo legal para a aqui Recorrente recorrer do despacho datado de 29-04-2022, que se debruçou em concreto sobre os pretendidos depoimentos de parte em causa e subsequente designação de nova data para esse efeito (em sede de audiência de julgamento), este recurso esbarra, de forma flagrante, no caso julgado formal que se formou nos autos sobre esse despacho datado de 29-04-2022.

Ou seja, esta matéria (dos pretendidos depoimentos de parte e o seu indeferimento com base no aludido despacho judicial) cristalizou-se nos autos, tendo-se formado caso julgado formal sobre essa matéria (vide arts. 620º e 628º do CPC).

Na verdade, até por força do disposto no art. 620º, nº 1 do CPC, tal despacho datado de 29-04-2022 e o seu conteúdo fica tendo força obrigatória no processo (vide, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28-10-2015, in www.dgsi.pt).»

(…)

Com efeito, estamos perante despacho que recaiu sobre a relação processual, designadamente sobre meios de prova (depoimentos de parte), pelo que se cristalizou sobre o mesmo caso julgado formal face à inércia de reacção processual, por banda da aqui Recorrente.

Assim sendo, este recurso não pode vingar por esbarrar perante o caso julgado formal referido.

Aliás, o recurso contra o despacho datado de 29-04-2022, que rejeitou o meio de prova em questão (os depoimentos de parte das ora Recorridas), cai sob a alçada do disposto no art. 644º, nº 2, al. d) do CPC, sendo recorrível no prazo de 15 dias (vide art. 638º, nº 1 do CPC); caso fosse instaurado tempestivamente teria a mesma forma de subida deste recurso: subia em separado e com efeito meramente devolutivo (vide arts. 645º, nº 2 e 647º, nº 1 do citado código).

Contra este entendimento, não pode ser arvorada a circunstância da aqui Recorrente ter usado de “teimosia” processual, na medida em que na acta datada de 4-07-2022, voltou novamente a insistir em novo requerimento com o mesmo desiderato processual que já havia recebido resposta negativa por efeito do despacho judicial datado de 29-04-2022.

Com efeito, o Sr. Juiz da 1ª instância limitou-se a decidir indeferir por nada haver de “novidade” e ter sido apreciado o requerido já no aludido despacho datado de 29-04-2022.

Ora, este despacho significa, em termos processuais, que o Sr. Juiz nem sequer podia apreciar tal requerimento por se ter esgotado o seu poder jurisdicional sobre a matéria em apreço por força do seu despacho datado de 29-04-2022. É esta a doutrina que ressalta, de forma cristalina, do disposto no art. 613º, nºs 1 a 3 do CPC; que é aplicável aos despachos como resulta desse seu nº 3.

Por outras palavras, o Sr. Juiz da 1ª instância podia ter despachado o requerimento apresentado (de forma insistente) na acta datada de 4-07-2022, apenas no sentido de nada ter a apreciar por se ter esgotado o seu poder jurisdicional com a prolação do despacho datado de 29-04-2022.

Nesta conformidade, o presente recurso naufraga por estar impedida a pretensão processual em causa por força do caso julgado formal referido.

Nesta medida, mostra-se prejudicada a apreciação do demais reclamado em via recursória, por força da regra prevista no art. 608º, nº 2, ex vi 663º, nº 2, ambos do CPC.»


A Recorrente discorda da posição assumida pelo Tribunal da Relação no sentido de que se formou caso julgado sobre o despacho de 29-04-2022, conforme decorre das conclusões H) a J), cujo teor aqui se recorda:

«H. A decisão judicial proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, em 29.04.2022, julgou, tão-somente, justificada a falta das depoentes na sessão de audiência de julgamento realizada em 22.04.2022, não tendo versado concretamente sobre os depoimentos de parte das Requeridas, nem, tão pouco, rejeitado tais meios de prova [os quais se encontravam admitidos desde 14.03.2022, por Despacho Judicial que transitou em julgado a 01.04.2022 (!)] – cfr. a Ata (Ref.ª CITIUS ...45, de 29.04.2022) e o Despacho (Ref.ª CITIUS ...38, de 29.04.2022).

I. Tal decisão não é suscetível de recurso nos termos do disposto no art. 644.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil, por não configurar uma rejeição de meios de prova, nem, tão pouco, de formar caso julgado sobre a admissibilidade dos referidos meios de prova; este já existia, sim, a respeito da admissibilidade de tais meios de prova.

J. O comportamento de todos os intervenientes processuais (Tribunal, Secretaria Judicial e Partes) sanciona tal realidade, sendo as Partes e seus mandatários sucessivamente convocadas pela Secretaria Judicial para prestarem depoimento de Parte (!), existindo Despachos subsequentes que ordenam a sua comparência em juízo para tal efeito (!!), e sendo as próprias Partes a justificar a sua falta a respeito do depoimento para o qual estavam convocadas (!!!) – cfr. os actos processuais de 20.05.2022, 27.05.2022, 06.06.2022 e 04.07.2022.»


Concorda-se com a Recorrente neste aspecto. Na verdade, e com todo o respeito por tese diversa, do despacho de 29-04-2022 não resulta a rejeição do meio de prova (depoimento de parte) antes admitido. O que se fez foi considerar justificadas as faltas da 2ª Requerida e dos representantes legais das 6º e 10ª Requeridas. E tanto não houve rejeição que, no despacho de 27-05-2022, mantendo-se a justificação nos termos do anterior despacho, pela persistência da situação que presidiu àquele despacho, se exarou o seguinte: «(…) tentando-se novamente a notificação para a próxima sessão de audiência das mesmas partes cujo depoimento ainda não ocorreu».

Por não se tratar de um despacho de rejeição de meio de prova, entende-se que não caberia recurso autónomo desse despacho, não se preenchendo, assim, a previsão do art. 644º, nº2, d), do CPC, razão por que não será também de falar de caso julgado formal relativamente ao que nele se decidiu.

Coloca-se o problema de saber se com o despacho de 04-07-2022 e com o acórdão que não o revogou se ofendeu o caso julgado relativamente ao despacho de 14-03-2022, que admitiu os depoimentos de parte (decisão, essa sim, contemplada no art. 644º, nº2, d), por se tratar de admissão de um meio de prova).

Do despacho de 04-07-2022 também não se retira, salvo o devido respeito, a rejeição do meio de prova em apreço. Nele não se dá o dito por não dito, por referência ao despacho de 14-03-2022, entendendo-se, por exemplo, não se preencherem os requisitos exigíveis por lei para a prestação dos depoimentos, ou seja, revendo o que, de forma positiva, se dissera no despacho de admissão. O que se fez foi consignar que se verificava a reiteração quanto à situação objecto do despacho já proferido a 29/04/2022 – referência ...38, no que toca à situação e circunstâncias que motivaram a ausência das partes a depor e, igualmente, reiterar o teor do referido despacho, indeferindo-se a requerida designação de nova data atento o carácter urgente da presente providência e o tempo já decorrido.

O que ressalta deste despacho é a constatação da impossibilidade de se recolherem os depoimentos, face a uma situação – por doença, num dos casos, com os contornos especificados no despacho de 29-04-2022, e, nos outros, por ausência, em Angola e na China, dos representantes legais das 6ª e 10ª Requeridas –,  que se mantinha e era justificativa das ditas faltas, tendo, para mais, em conta a urgência do procedimento e o tempo decorrido, com a necessidade de, produzida a restante prova, se proferir a sentença, o que veio a verificar-se, em seguida.

Sobre a situação de doença de uma parte chamada a depor, impeditiva da comparência no tribunal (sem prejuízo de ocorrer a impossibilidade, aí também aventada, da própria prestação do depoimento), rege o art. 457º do CPC.

No que concerne à ausência da parte em país estrangeiro (neste caso, no que concerne aos referidos representantes legais, em Angola e na China), importará citar aqui o que referem, em anotação ao art. 456º do CPC (que, incidindo sobre o momento e o lugar do depoimento, contempla, entre o mais, o caso de o depoente estar impossibilitado de comparecer no tribunal), Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, no Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 522:

«No que tange à impossibilidade de comparência em tribunal por residência no estrangeiro, a parte poderá, em princípio, depor com recurso a teleconferência, se residir na União Europeia (cf art. 10º, nº 4, do Regulamento (CE) nº 1206/2001, de 28-5). Caso a parte resida noutro país, a mesma não pode ser obrigada a compa­recer em audiência para prestar depoimento (STJ 7-1-93,83082».


Estas referências não se destinam a avaliar a bondade do despacho, mas a identificar a sua natureza, tendo como pano de fundo o quadro legal aplicável, não se configurando, a nosso ver, como um despacho que contrarie aquele que admitiu os depoimentos (não negou, em momento algum, os pressupostos dessa admissibilidade). O seu conteúdo assenta na afirmação da persistência da situação que já justificara as anteriores ausências e que, por se manter, inviabilizava, no entendimento do Tribunal, a tomada dos ditos depoimentos de parte, tratando-se de uma sessão da audiência em que se ultimava a produção da prova (da restante, que se apresentava como possível) e vista a urgência do procedimento e a necessidade da prolação de decisão final. Daí o indeferimento da designação de nova data para a continuação da audiência.

Considera-se, assim, que não houve ofensa do caso julgado, reportado ao despacho que admitiu os depoimentos de parte.


A Recorrente defende ainda que o acórdão recorrido entra em contradição com o Ac. do STJ de 13.11.1997, Rel. Joaquim de Matos, no Proc. n.º 623/97, no qual se concluiu que “o poder de livre apreciação do tribunal, de que se fala no n.º 1 do art. 655 do CPC, poderá exercer-se no que se refere à admissibilidade dos meios de prova propostos pelas partes e no que respeita, uma vez produzidas as provas, à determinação do seu valor probatório, sendo porém de notar que, para além das excepções legais, não é licito ao juiz recusar meios probatórios que as partes hajam oferecido e pretendam produzir”.

Salvo o devido respeito, também aqui não assiste razão à Recorrente.

Importa contextualizar o trecho citado, que tem a ver com a valor a conferir, em cotejo com outras provas (ou na ausências delas), a um depoimento de parte.

No douto aresto em apreço, escreveu-se, a propósito dessa questão, o seguinte:

«Diz o recorrente que "os factos dados como provados no n° 14 não podem ter por base apenas o depoimento de parte de um sócio interessado na destitui­ção do recorrente. Pois que a «Mobil» depois de ter expulsado violentamente das instalações da recorrida, o recorrente, sem que se fizesse qualquer inventário aos stocks existentes, devolveu a este vários milhares de contos".

Estando-se, como se está, de algum modo ainda perante mera questão de facto, não pode, porém, deixar de salientar-se que, embora a realidade dos factos deva ser objecto de prova nos termos e pelos meios indicados nos artigos 349° a 396° do CCiviL não pode também esquecer-se, dado o estabelecido no artigo 655° do CPCivil - na redacção anterior à revisão de 1995/96 - que "o tribunal ... aprecia livremente as provas e responde segundo a convicção que tenha formado acerca de cada facto quesitado" ou - na sua actual redacção - que "o tribunal ... aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convic­ção acerca de cada facto".

E o que vem de dizer-se tem também cabal aplicação no que se refere à matéria dada como provada no n° 15 dos factos dados como provados.

É que, como bem se diz no douto Acórdão recorrido, "nada impede que o tribunal atenda o depoimento de parte de interessado na destituição do reque­rente" e isso porque "não se pode partir do princípio de que, mesmo que se te­nha interesse na causa, não se é capaz de «dizer toda a verdade e só a verdade» como o exige o artigo 559°do CPCivil”.

De lembrar aqui, por ser extremamente oportuno dada a argumentação do recorrente, que o poder de livre apreciação do tribunal de que se fala no n° 1 do artigo 655° poderá exercer-se no que se refere à admissibilidade dos meios de prova propostos pelas partes e no que respeita, uma vez produzidas as provas, à determinação do seu valor probatório, sendo porém de notar que, para além das excepções legais, não é licito ao juiz recusar meios de prova que as partes hajam oferecido e pretendam produzir (Cfr. Vaz Serra, in "Provas", BMJ, 110° - 61).»


Não estamos – parece-nos nítido – perante a mesma questão de direito (conforme explica Abrantes Geraldes, em Recursos em Processo Civil, 6ª edição,  Almedina, Coimbra, 2020, p. 74, deve verificar-se, para que haja contradição jurisprudencial, uma situação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão da Relação que é objecto do recurso e aquele que sirva de contraponto), pois o que estava em jogo, no mencionado segmento do acórdão apresentado como fundamento, era, como dele ressalta, saber em que medida poderia atender-se ao depoimento de parte, para efeitos de apuramento da pertinente factualidade, mesmo considerando o seu interesse na causa. No presente caso, não é isso que está em discussão, como decorre do que se tem vindo a explanar, sendo certo que nem consideramos que tenha, aqui, havido uma recusa de meios de prova.

Não se verifica, pelo exposto, a invocada contradição.


Estando-se perante procedimento cautelar, a regra é não caber recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que seja sempre admissível (art. 370º, nº 2, do CPC), sucedendo que, como se viu, a Recorrente assentou o seu recurso de revista na ofensa do caso julgado (art. 629º, nº2, al. a), do CPC) e na contradição com acórdão do STJ (art. 671º, nº 2, b), do mesmo Código), para além de ter invocado a nulidade do acórdão.

Concluindo-se pela inexistência de caso julgado ou de oposição de julgados, isto é, dos fundamentos que asseguravam a recorribilidade, não tem este Supremo Tribunal de conhecer do mais que se alegou, maxime no que toca à arguida nulidade do acórdão recorrido, que terá de ser conhecida pelo Tribunal da Relação (arts. 615º, nº4 e 617º, nº5, do CPC).

Conforme refere Abrantes Geraldes, relativamente ao caso julgado, «[a] norma que amplia a recorribilidade apenas pode servir para confrontar o tribunal superior com a discussão da alegada ofensa de caso julgado, excluindo-se outras questões cuja impugnação fica submetida às regras gerais» (Recursos em Processo Civil, 6ª edição,  Almedina, Coimbra, 2020, p. 54), ou, no que tange à contradição jurisprudencial, «a admissão de recurso (…) tem como único objectivo o de reapreciar o acórdão recorrido a partir da resposta que seja dada à questão essencial de direito, ficando afastadas as demais questões que se sujeitam à regra geral» (ibid., p. 75).


Vejam-se, a propósito, os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, todos publicados em www.dgsi.pt::

- Ac. do STJ de 13-07-2017 (Rel. Lopes do Rego), Proc. 669/10.8TBGRD-B.C1.S1 (“ II. O objecto do recurso fundado na al. d) do nº2 do art. 629º do CPC está circunscrito ao preciso tema acerca do qual se verifica o apontado conflito jurisprudencial – não podendo abordar-se numa revista com esse específico fundamento outras questões, mesmo que enunciadas pelo recorrente ao longo da sua alegação”);

- Ac. STJ de 24-05-2018, Rel. António Joaquim Piçarra, Proc. 4175/12.8TBVFR.P1.S1 (III. A admissibilidade do recurso estribada no art. 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, não abarca todas as decisões que incidam sobre o caso julgado, mas apenas aquelas de que alegadamente resulte a sua “ofensa”);

- Ac. STJ de 28-06-2018, Rel. Ilídio Sacarrão Martins, Proc. 3468/16.0T9CBR.C1.S1 (“I. A admissibilidade excepcional do recurso pela via atípica prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 629º nº 2 do Código de Processo Civil não abarca todas as decisões que incidam sobre a excepção dilatória de caso julgado, mas apenas aquelas de que alegadamente resulte a “ofensa” do caso julgado já constituído”);

- Ac. STJ de 22-11-2018, Rel. Rosa Ribeiro Coelho, Proc. 408/16.0T8CTB.C1.S1 (III – Sendo o recurso de admitir ao abrigo da al. a) do nº 2 do art. 629º do CPC – nomeadamente com fundamento na ofensa de caso julgado –, o seu objeto fica limitado à apreciação da impugnação que esteve na base da sua admissão, não podendo alargar-se a outras questões».


*

Sumário (da responsabilidade do relator)



I. Não se assume como recusa de meio de prova (depoimento de parte) o despacho que, aferindo da impossibilidade de comparência dos depoentes, cuja falta dá por justificada, e considerando, ainda, razões de urgência do procedimento e a necessidade de prolação de decisão final, nega a designação de nova data para a continuação da audiência de julgamento, visando a prestação dos depoimentos.

II.  Não há, através desse despacho, ofensa de caso julgado relativamente a anterior despacho que admitiu os depoimentos de parte, se não se questionam ou revêem os pressupostos da admissibilidade legal desses depoimentos.

III. Para que haja oposição de julgados tem de verificar-se uma situação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão da Relação que é objecto do recurso e aquele que sirva de contraponto.

IV. Sendo, no âmbito de um procedimento cautelar, interposto recurso com base na ofensa do caso julgado e em contradição jurisprudencial, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhecerá dessas matérias e não de outras questões eventualmente alegadas, pois é apenas isso que consente a norma que, nesses casos, amplia a recorribilidade.



III


Pelo que se deixou exposto, nega-se provimento à revista e ordena-se que os autos voltem ao Tribunal da Relação para conhecimento da invocada nulidade do acórdão recorrido.

- Custas pela Recorrente.


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Lisboa, 19-01-2023


Tibério Nunes da Silva (Relator)

Nuno Ataíde das Neves

Sousa Pinto