Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9/21.0YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DO CONTENCIOSO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REFORMA DE ACÓRDÃO
CONHECIMENTO DO MÉRITO
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AÇÃO ADMINISTRATIVA
Decisão: INDEFERIDO O PEDIDO DE REFORMA.
Sumário :
I - É pressuposto da reforma da sentença ou acórdão ao abrigo do disposto no art. 616.º, n.º 2, do CPC, além de não caber recurso da decisão, a existência de lapso manifesto na determinação da norma aplicável, na qualificação jurídica dos factos ou na desconsideração de documentos com força probatória plena ou outros meios de prova com efeito semelhante, com influência direta e causal no resultado, se atendidos.
II – O lapso manifesto tem de ser evidente e incontroverso, revelado por elementos exteriores à sentença ou acórdão reformandos, não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido.
III - Não é permitida a reforma do acórdão quando apenas é fundada em manifestações de discordância do julgado e se pretende a alteração do decidido.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 9/21.0YFLSB

Acordam, em conferência, na secção de contencioso do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

Notificado do acórdão, do passado dia 23 de Setembro, que julgou improcedente a presente acção administrativa de condenação à prática de acto administrativo, por si proposta, tendo por base a deliberação do Conselho Plenário do Conselho Superior da Magistratura (CSM) de 23/02/2021, veio o autor, AA, requerer a reforma do mesmo, invocando o disposto no art.º 616.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil (CPC) e no art.º 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicáveis ex vi do art.º 173.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), por, no seu entender, não ter tido em consideração os meios de prova e os fundamentos legais que invocou, os quais impunham decisão diversa daquela que foi tomada no acórdão reformando.

O réu/requerido respondeu, pronunciando-se pela manifesta improcedência do pedido de reforma, que apenas visa a reapreciação do objecto da ação, o que está legal e processualmente vedado.

II. Fundamentação

Apreciando:

O art.º 616.º, n.º 2, do CPC (também aplicável aos acórdãos proferidos nas acções administrativas por força das remissões dos art.ºs 666.º, n.º 1, e 685.º, ambos do mesmo Código, e no art.º 1.º do CPTA, este ex vi do art.º 173.º do EMJ) dispõe que “[n]ão cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida”.

São pressupostos da aplicação desta norma que não haja lugar a recurso e que tenha ocorrido lapso manifesto:

- na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos [(al. a)];

- na omissão de consideração de “documentos ou outros meios de prova plena que, só por si, implicasse decisão diversa da proferida” [al. b)].

O lapso manifesto a que se reporta esta norma “tem de ser evidente e incontroverso, revelado por elementos que são exteriores ao despacho”, sentença ou acórdão (acrescentamos nós), “não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido”.[1]

Não se trata de “erros revelados pelo próprio contexto da sentença ou de peças do processo para que ela remete, nem de omissões sem consequência no conteúdo da decisão, mas de erro revelado por recurso a elementos que lhe são exteriores[2].

No mesmo sentido tem decidido a jurisprudência deste Supremo Tribunal como se pode ver no acórdão de 18/03/2021, prolatado no processo n.º 1012/15.5T8VRL-AU.G1-A.S1[3], onde se escreveu:

É pressuposto desta reforma a existência de “lapso manifesto”, ou na determinação da norma aplicável, ou na qualificação jurídica dos factos (alíneas a) e b)), ou, finalmente, (alínea b)) na desconsideração de elementos de prova (documental ou outra) constantes dos autos e que, se atendidos, implicariam necessariamente decisão diversa da proferida.

(…)

A reforma da decisão não é um recurso – nem na modalidade de reapreciação ou reponderação, nem da de reexame (aqueles, ao contrário destes, sem possibilidade de “jus novarum”), pelo que não pode servir para mera manifestação de discordância do julgado, mas apenas, e sempre perante o juízo decisor – tentar suprir uma deficiência notória.

Ainda no mesmo sentido, o Acórdão do STA, de 1/7/2020, processo n.º 0153/07.7BECTB[4], onde consta:

A possibilidade de reforma de decisão judicial, ao abrigo do preceituado nos arts. 613.º, n.º 2 e 616.º, n.º 2, do CPC, constitui um limite ao princípio estruturante consagrado no art. 613.º, n.º 1, do mesmo Código, que impõe a extinção do poder jurisdicional do juiz depois de proferida a decisão.

Essa possibilidade está rigorosamente circunscrita às situações delimitadas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 616.º do CPC: quando, «por manifesto lapso do juiz», «[t]enha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos» ou quando «[c]onstem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem, necessariamente, decisão diversa da proferida».

Como este Supremo Tribunal tem vindo a afirmar repetidamente, a reforma do acórdão, que possui carácter excepcional, não abrange as situações em que o requerente se limita a manifestar a sua discordância com a decisão tomada, mas aquelas situações em que a decisão enferme de erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor ou autores da decisão, não fora a interposição de circunstância acidental ou uma menor ponderação tê-la levado ao desacerto.”.

Alega o autor/requerente que os meios de prova e os fundamentos legais invocados nos autos conduziriam necessariamente a decisão diversa daquela que foi tomada no acórdão cuja reforma agora reclama.

Tece razões de discordância relativamente à análise efectuada a propósito da requerida condenação à prática de acto devido, chamando à colação o disposto no n.º 2 do art.º 66.º e o n.º 1, alínea c) do art.º 67.º, ambos do CPTA.

Reitera a argumentação expendida na sua petição inicial em matéria de determinação da sua antiguidade, designadamente e em suma:

- que a declaração de caducidade do procedimento administrativo de iniciativa oficiosa do CSM decidida no acórdão do STJ, de 17/05/2018, proferido no processo n.º 76/17.1YFLSB, impede o CSM de voltar a decidir pelo desconto, na sua antiguidade, do período compreendido entre 15/12/2014 e 14/05/2018.

- que, não obstante e ao arrepio do ali decidido, o CSM tem vindo, de forma ad hoc, a fixar a antiguidade do autor, quer para efeitos de movimentos judiciais, quer para efeitos de concursos curriculares de acesso aos Tribunais da Relação.

Percorrido o acórdão reformando, verifica-se que o STJ se pronunciou detalhada e fundamentadamente sobre todas as questões suscitadas nos autos, designadamente sobre a alegada violação do caso julgado ou do princípio da obrigatoriedade das decisões judiciais, bem como sobre a pretensão de condenação à prática de ato devido.

Por outro lado, compulsado o requerimento do requerente, constata-se que este não alicerça verdadeiramente o seu pedido de reforma em nenhuma das circunstâncias previstas no mencionado art.º 616.º (erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ou existência no processo de documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida), mas, antes, na discordância do julgado.

Com efeito, repetindo argumentos constantes da sua petição inicial, o requerente tece várias considerações que mais não são do que a manifestação de desacordo relativamente ao acórdão reformando, sem apontar ou demonstrar qualquer erro manifesto, palmar ou evidente quanto ao decidido.

Nestes termos, não se vislumbra que tenha ocorrido qualquer “lapso manifesto”, na acepção do n.º 2 do art.º 616.º do CPC, que sustente a pretendida reforma do acórdão[5].

        

O que o requerente pretende é, a todo o custo, a alteração da decisão.

Mas isso está-nos vedado.

Para além de estarmos cientes da legalidade e justeza da decisão proferida no acórdão, este não pode ser alterado, visto que se extinguiu o nosso poder jurisdicional com a sua prolação, nos termos do n.º 1 do art.º 613.º, e porque não ocorre qualquer caso previsto no seu n.º 2, designadamente na invocada alínea b) do n.º 2 do art.º 616.º, aplicáveis por força do n.º 1 do art.º 666.º e 685.º, todos do CPC.

A pretensão do requerente tem, assim, que improceder.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes Conselheiros que constituem a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a pretendida reforma do acórdão.

*

           

Custas do incidente pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC e art.º 7.º, n.º 4, do RCP e tabela II anexa).

*

Lisboa, 2 de Dezembro de 2021

Relator:

Fernando Samões

Adjuntos:

Catarina Serra

Conceição Gomes     

Eduardo Loureiro

Maria Olinda Garcia

Ferreira Lopes

           

Presidente da Secção:

Maria dos Prazeres Beleza

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[1] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 739.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 742.
[3]http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/60a4f704d59058fc802586cb00817133
[4]http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/33ec8d894920a6ee8025859d00556086
[5] No mesmo sentido veja-se o Acórdão do STJ, de 30/06/2021 (processo n.º 8/19.2YFLSB),
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/85af62a6891823e08025867e00522414