Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1222/25.7T8BRG.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO GONÇALVES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO DE FAMÍLIA DE MENORES
JUÍZO CENTRAL CÍVEL
INVENTÁRIO
DIVÓRCIO
BEM PRÓPRIO
RECONHECIMENTO
DIREITO DE PROPRIEDADE
CRÉDITO
RECURSO PER SALTUM
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
PRESSUPOSTOS
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
ESPECIAL COMPLEXIDADE
Apenso:
Data do Acordão: 09/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
I. A competência de um tribunal afere-se em função dos termos em que a ação é configurada pelo autor, ou seja, em função do pedido e da causa de pedir formulados.

II. Os Tribunais de Família e Menores são competentes para tramitar os processos de inventário para partilha de bens comuns na sequência de processo de divórcio.

III. Os mesmos tribunais são competentes, em razão da matéria, para conhecer de ações autónomas, resultantes da remessa para os meios comuns, relativamente a questões suscitadas no processo de inventário e respeitantes à partilha dos bens do ex-casal, ou seja, de matérias que lhe incumbe apreciar.

IV. A separação da meação que o inventário preconiza, trata-se de uma decorrência direta da dissolução da sociedade conjugal, por via do divórcio, matéria que se integra na competência dos juízos de família.

V. A remessa para os meios comuns, em ação autónoma, justificar-se-á pela necessidade de uma maior indagação de factos, pela adoção dos prazos correspondentes a uma ação declarativa, mas não deixa de se tratar de uma ação que tem na sua génese um processo de inventário, o qual, por uma questão de maior garantia para as partes, não se coaduna com o caráter mais simplista e célere que lhe é normalmente peculiar.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


1-Relatório:

O autor, AA intentou ação declarativa contra a ré, BB, pedindo que se reconheça e declare que o prédio urbano, composto de casa rés-do-chão e andar para habitação, com logradouro junto, sito na Rua 1, União de Freguesias de Real, Dume e Semelho, concelho de Braga é um bem próprio seu, excluído do acervo patrimonial de comunhão do extinto casal formado por Autor e Ré e que esta seja condenada a reconhecer a propriedade exclusiva daquele sobre esse bem e seja condenada a abster-se de qualquer conduta que viole ou perturbe o exercício do referido direito de propriedade do Autor.

Subsidiariamente, que seja reconhecido ao A. um crédito sobre a Ré, consistente do que se vier a apurar que este despendeu a mais do que a Ré, com dinheiro ou fundos próprios, na aquisição do prédio urbano.

Alega, para tanto, que foi casado com a Ré no regime de comunhão de adquiridos; foi decretado o divórcio em 13 de Junho de 2022; instaurou processo de inventário que corre termos no Juízo de Família e Menores de Braga, J2; apresentou relação de bens, relacionando o bem imóvel que identifica como sendo bem próprio seu, alegando que a proveniência do dinheiro utilizado na sua aquisição era de rendimentos próprios, auferidos no estado de solteiro; a Ré reclamou; por decisão de 7 de Julho de 2023, a juíza

titular do processo de inventário remeteu os interessados para os meios comuns quanto a essa matéria.

O autor foi notificado para se pronunciar quanto à competência material do Juízo Central Cível.

Veio a ser proferida decisão, com o seguinte teor:

«Nesta conformidade, julga-se o Juízo Central Cível de Braga incompetente em razão da matéria e, consequentemente, absolve-se a Ré da instância».

Inconformado interpôs o autor, recurso de revista, per saltum, para este STJ., concluindo as suas alegações:

I.A douta sentença recorrida considerou o Juízo Central Cível de Braga materialmente incompetente para preparação e julgamento da presente causa, atribuindo tal competência aos Juízos de Família e Menores, ao abrigo do artigo 122.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (LOSJ).

II. Contudo, salvo o devido respeito, não assiste razão à douta sentença recorrida, pois interpretou e aplicou mal os artigos 117º e 122º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei nº 62/2013, de 26/8, bem como violou o artigo 40.º do mesmo normativo legal.

III. Ora, os juízos de família e menores exercem competência nos processos de inventário decorrentes de divórcio (art. 122.º, n.º 2 LOSJ), mas esta competência restringe-se ao âmbito do inventário propriamente dito.

IV. A presente ação, intentada na sequência de remessa para os meios comuns no âmbito do Inventário n.º 5818/22.0T8BRG, constitui uma ação declarativa autónoma de reconhecimento de propriedade/crédito.

V. A remessa para os meios comuns implica que a questão, dada a sua complexidade ou natureza, deve ser apreciada fora do processo de inventário e perante o tribunal materialmente competente segundo as regras gerais.

VI. Não faria sentido que, após a remessa para os meios comuns, a ação viesse a correr no mesmo juízo que se considerou incapaz de a dirimir no âmbito do inventário.

VII. A jurisprudência mais recente e maioritária tem vindo a consolidar o entendimento de que a competência para ações autónomas desta natureza, quando remetidas para os meios comuns, pertence aos juízos cíveis.

VIII. Conforme Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/02/2025 (Proc. 1277/23.9T8PBL.C1) e de 21/05/2024 (Proc. 2944/23.2T8LRA), a competência para decidir questões de direito de propriedade ou crédito, surgidas em inventário, mas remetidas para os meios comuns, é dos juízos cíveis, por extravasar a jurisdição específica da família e menores.

IX. A própria sentença recorrida faz menção ao douto Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 16/01/2025 que atribuiu a competência para ações desta natureza aos juízos cíveis.

X. Pelo exposto, e atendendo à natureza dos pedidos formulados pelo Autor, a presente ação deve correr os seus termos no Tribunal a quo, ou seja, no Juízo Central Cível de Braga.

XI. Assim, deve ser revogada a douta sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos.

XII. O presente recurso é admissível tendo em consideração o valor da causa, o valor da sucumbência, a legitimidade do recorrente, assim como o teor da decisão recorrida e o facto de o objeto do recurso se restringir a questões de direito, não se verificam obstáculos à admissibilidade do recurso de revista per saltum (cfr. arts. 678.º, n.ºs 1 e 3, 644.º, n.º 1, alínea a), e 674.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).

Foram colhidos os vistos.

2- Cumpre apreciar e decidir:

As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.

Da admissibilidade do recurso

Nos termos do disposto no nº. 1 do art. 678º do CPC., as partes podem requerer, nas conclusões da alegação, que o recurso interposto das decisões referidas no nº. 1 do artigo 644º suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça, desde que, cumulativamente:

- O valor da causa seja superior à alçada da Relação;

- O valor da sucumbência seja superior a metade da alçada da Relação;

- As partes, nas suas alegações, suscitem apenas questões de direito;

- As partes não impugnem, no recurso da decisão prevista no nº. 1 do artigo 644º, quaisquer decisões interlocutórias.

Ora, na situação vertente encontram-se preenchidos todos os enunciados requisitos, admitindo-se o recurso.

A questão a dirimir consiste em aquilatar qual o tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer do litígio.

A factualidade pertinente para a decisão é a constante do presente relatório para o qual se remete e, ainda, a seguinte:

- O autor foi casado com a ré, tendo sido decretado o divórcio de ambos em 2022.

- Foi instaurado processo de inventário, para partilha dos bens do dissolvido casal, que corre termos no Juízo de Família e Menores de Braga.

- Por decisão proferida naqueles autos, em 7-7-2023, foram os interessados remetidos para os meios comuns, para apuramento da titularidade do imóvel.

Vejamos:

Insurge-se o recorrente relativamente ao decidido, quanto à incompetência em razão da matéria, do Juízo Central Cível de Braga, para conhecer do litígio.

Com efeito, está em causa aquilatar qual o tribunal competente para apreciar de questão remetida para os meios comuns, quando corria os seus termos o processo de inventário para separação de meações após o decretamento do divórcio.

A competência de um tribunal afere-se em função dos termos em que a ação é configurada pelo autor, ou seja, em função do pedido e da causa de pedir formulados.

Dizendo Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 91 «A competência material do tribunal afere-se em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida».

O pedido é a pretensão do autor, a tutela jurisdicional que solicita, o efeito jurídico que o autor pretende obter.

A causa de pedir consiste no facto juridicamente relevante do qual dimana a pretensão ou pedido, ou seja, será o ato ou facto jurídico do qual emerge o direito que o autor se propõe valer.

A petição inicial é o articulado em que o autor propõe a ação e ao propor a ação, o autor formulará a pretensão de tutela jurisdicional que visa obter e exporá as razões de facto e de direito em que se fundamenta (cfr. Manual de Processo Civil, Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora).

Assim, será da configuração da causa de pedir e do pedido que se aferirá da competência do tribunal para o respetivo conhecimento.

No caso em apreço, o Autor pediu que se reconheça e declare que o prédio urbano composto de casa rés-do-chão e andar para habitação, com logradouro junto, seja um bem próprio seu, excluído do acervo patrimonial de comunhão do extinto casal formado por si e Ré e que esta seja condenada a reconhecer a propriedade exclusiva do Autor sobre esse bem e seja condenada a abster-se de qualquer conduta que viole ou perturbe o exercício do referido direito de propriedade do Autor.

Caso assim não se entenda, subsidiariamente, que seja reconhecido ao A. um crédito sobre a Ré, consistente do que se vier a apurar que este despendeu a mais do que a Ré, com dinheiro ou fundos próprios, na aquisição do indicado prédio urbano.

Ora, nos termos do disposto no art. 64º do CPC., são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Dispondo no mesmo sentido, o nº. 1 do art. 40º da LOSJ que, os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Dizendo o art. 65º do CPC. que, as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.

De acordo com a LOSJ (Lei 62/2013, de 26 de agosto), no que se reporta à competência relativa ao estado civil das pessoas e família, consta nos termos do art. 122º o seguinte:

1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:

a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;

b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;

c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;

d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;

e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;

f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;

g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

2 - Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.

Por seu turno, dispõe o artigo 117º do mesmo diploma legal:

1 - Compete aos juízos centrais cíveis:

a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;

b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;

c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;

d) Exercer as demais competências conferidas por lei.

2 - Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos.

3 - São remetidos aos juízos centrais cíveis os processos pendentes em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência.

Sucede que, a Lei nº. 117/2019, de 13 de setembro, com entrada em vigor a 1-1-2000, reintroduziu o processo de inventário judicial no Código de Processo Civil, abrangendo o art. 1082º ao art. 1135º.

O nº. 1 do art. 1083º do CPC., indica os casos em que o processo de inventário é da exclusiva competência dos tribunais judiciais, sendo que, será o caso, sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.

Por seu turno, o nº. 1 do art. 1133º do CPC., dispõe que, decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para a partilha dos bens comuns.

Porém, a questão de saber a que tribunal incumbe a tramitação dos processos de inventário instaurados na sequência de separação de pessoas e bens ou divórcio, tem sido alvo de alguma divisão jurisprudencial, embora com elevado pendor para a atribuição da competência em razão da matéria, aos juízos de família e menores.

Com efeito, neste sentido, nomeadamente, a decisão de conflito de competência do TRL, datada de 27-2-2024, Acs. do TRP., de 25-5-2021, 7-4-2022, Acs. do TRC. de 23-2-2021, 4-5-2021 e de 8-7-2021, Acs. do TRG de 4-1-2023, 27-4-2023, 10-7-2023 e Acs. TRE. de 9-6-2022, 14-7-2020, todos in www.dgsi.pt.

Em sentido de conferir a competência aos juízos cíveis, nomeadamente, TRP. de 26-10-2020, TRE. de 11-5-2023, in www.dgsi.pt.

Como aludem, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, Código de processo Civil, Anotado, vol. II, Almedina, pág. 527 «Agora, que foi restaurada a competência dos tribunais judiciais para a tramitação dos processos de inventário, faz todo o sentido que o processo de inventário subsequente a sentenças declarativas de divórcio ou separação, ou de anulação do casamento, proferidas no âmbito de processos judiciais seja tramitado nos tribunais judiciais e que, ademais, corra por apenso a tais processos (competência por conexão), nos termos do art. 206º, nº2».

No mesmo sentido, Pedro Pinheiro Torres, in Cadernos do CEJ, Inventário, o novo regime, maio de 20220, pág. 31, onde se escreveu: «O órgão em que tiver ocorrido o processo de divórcio, sendo competente para o inventário subsequente ao divórcio decretado judicialmente, o tribunal em que este foi decretado, devendo o processo de inventário correr por apenso àquele, de que é dependente, nos termos do nº. 2 do artigo 206º do CPC».

Ora, também nos inserimos na corrente jurisprudencial e doutrinal que atribui a competência para a tramitação dos processos de inventário subsequente a ações de divórcio, aos juízos de família e menores.

Efetivamente, verifica-se a existência de conexão entre o inventário para separação de meações e a ação de divórcio que o precedeu, como resulta do disposto no nº. 2 do art. 206º do CPC., ou seja, nos termos desta disposição, as causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.

De realçar, a própria letra da lei, já que, o artigo 122º da LOSJ, dispõe no seu nº 2, que é conferido aos tribunais de família e menores, a competência para os processos de inventário.

E sendo esta uma orientação com apoio legal, entende-se que se verifica uma conexão entre o inventário para separação de meações e a antecedente ação de divórcio, incumbindo aos tribunais de Família e Menores, a sua respetiva tramitação.

Mas, sendo o Tribunal de Família competente para o inventário para partilha de meações será, de igual modo, competente para a presente ação?

Na situação em concreto, o Autor pediu que se reconheça e declare que o prédio urbano que identificou, seja um bem próprio seu, excluído do acervo patrimonial de comunhão do extinto casal formado por si e Ré e que esta seja condenada a reconhecer a propriedade exclusiva do Autor sobre esse bem e seja condenada a abster-se de qualquer conduta que viole ou perturbe o exercício do referido direito de propriedade do Autor.

Subsidiariamente, que seja reconhecido ao A. um crédito sobre a Ré.

Ora, o objeto da ação em apreço, concretamente, o pedido formulado e a causa de pedir subjacente, não deixa de estar relacionado com o processo de inventário e com a partilha a efetuar.

Nos termos da al. d) do art. 1082º do CPC., o processo de inventário, cumpre, entre outras, a função de partilhar bens comuns do casal.

Dispondo o nº. 1 do art. 1092º do CPC. que, sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância:

(…)

b) Se, na pendência do inventário, se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas.

Em princípio, no inventário serão apreciadas todas as questões de facto e de direito pertinentes, sem a necessidade de recurso aos meios processuais comuns.

Porém, poderá haver no inventário, casos que revistam uma maior indagação ou complexidade, ou seja, que necessitem de um regime mais aprofundado que se não compadeça com uma maior simplificação da tramitação, havendo então que remeter para os meios comuns, para não reduzir qualquer garantia das partes.

Como consta do Ac. do STJ. de 16-12-1980, in BMJ, nº. 302, pág. 257 «É a necessidade de uma larga, aturada e complexa indagação, que não se compadece com uma instrução sumária, que justifica a remessa das partes para os meios comuns».

Desta feita, a remessa para os meios comuns, em ação autónoma, justificar-se-á pela necessidade de uma maior indagação de factos, pela adoção dos prazos correspondentes a uma ação declarativa, mas não deixa de se tratar de uma ação que tem na sua génese um processo de inventário, o qual, por uma questão de maior garantia para as partes, não se coaduna com o caráter mais simplista e célere que lhe é normalmente peculiar.

A remessa para os meios comuns, só por si, não retira competência aos tribunais de família e menores, especialmente vocacionados para apreciar estas matérias, ou seja, como aludem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, pág.505, Universidade de Coimbra «matérias que contendam com as tradicionais e marcantes particularidades do estado de casado e as especificidades da comunhão conjugal».

A remessa para os meios comuns implica a sua apreciação fora do processo de inventário, mas sem implicar inevitavelmente a sua extrapolação para outro tribunal, ou seja, ser decidido fora do processo de inventário, não significa ser decidido por outro tribunal, alheio ao tribunal onde corre o inventário.

A complexidade da questão motivadora da remessa dos autos para os meios comuns, ou para uma ação autónoma, não deixa de se tratar de uma ação que surge na sequência do processo de inventário, no âmbito dos poderes de competência do tribunal de família.

Face ao disposto no nº. 1 do art. 91º do CPC., o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.

A resolução destas questões integra-se nas atribuições gerais de qualquer juiz, em qualquer processo.

Qualquer questão relacionada com o processo de inventário terá de ser decidida no próprio inventário, ou seja, neste devem ser dirimidas todas as questões controvertidas que se revelem necessárias para proceder à partilha dos bens do dissolvido casal.

O tribunal competente para conhecer dos incidentes que se levantem deve dirimir todas as questões suscitadas e controvertidas que se revelem indispensáveis para alcançar o fim do processo, ou seja, uma partilha equitativa da comunhão hereditária (cfr. O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil, Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, Almedina, pág. 49).

No caso em apreço está em discussão se o bem imóvel em causa é bem próprio de um dos ex-cônjuges ou não, o que influencia inequivocamente, a partilha dos bens.

Ora, a separação da meação que o inventário preconiza, trata-se de uma decorrência direta da dissolução da sociedade conjugal, por via do divórcio, matéria que se integra na competência dos juízos de família.

A questão a dirimir circunscreve-se a apurar a quem imputar a titularidade de um bem imóvel, com vista a alcançar se se trata de um bem próprio ou comum do ex casal, decisivo para efeitos da partilha do seu património.

A decisão de remessa para os meios comuns foi tomada no próprio processo de inventário e caso assim não tivesse sido entendido, a competência para decidir nos autos, sempre se manteria no juízo de família.

Do art. 122º da LOSJ., não se extrai qualquer limitação de competência aos juízes de família, pois, se fosse intenção do legislador que a competência destes se circunscrevesse estritamente ao processo de inventário, tê-lo-ia assumido expressamente, o que não fez.

Mas também, não se afigura a necessidade de recurso a qualquer interpretação extensiva, pois, o preceito estabelece, em termos gerais, as competências dos juízos de família e menores, precisamente no que se reporta a processos de inventário instaurados em consequência de divórcio.

Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. nº. 3 do art. 9º do Código Civil).

Com diferente entendimento identificamos o acórdão deste STJ. de 16-1-2025, in www.dgsi.pt., quando alude «Carecer de fundamento uma interpretação extensiva da norma prevista no art. 122º, nº. 2, da LOSJ, que conduza a integrar no seu âmbito as ações declarativas, respeitantes à determinação dos bens que compõem o património comum do ex casal que se encontra a ser partilhado em sede de processo de inventário judicial intentado na sequência da ação de divórcio».

Dir-se-á, ainda, que de acordo com o princípio da especialização, que norteia o nosso sistema judiciário, os tribunais de família e menores, estarão melhor posicionados para conhecer das matérias inerentes às questões da partilha dos bens do casal, imprimindo uma maior celeridade ao processado, ainda que relativamente a estas questões possam também surgir situações de maior complexidade.

Aqui chegados, urge retirar como ilações que, os Tribunais de Família e Menores são competentes para tramitar os processos de inventário para partilha de bens comuns na sequência de processo de divórcio.

De igual modo, os mesmos tribunais são competentes, em razão da matéria, para conhecer de ações autónomas, resultantes da remessa para os meios comuns, relativamente a questões suscitadas no processo de inventário e respeitantes à partilha dos bens do ex-casal, ou seja, de matérias que lhe incumbe apreciar.

Neste sentido, nomeadamente, Acs. da R.C. de 16-5-2023, 4-5-2021, 10-10-2024, 10-7-2024, todos in www.dgsi.pt.

Sendo a competência de atribuir ao Tribunal de Família e Menores, o Juízo Central Cível, não dispõe de competência, em razão da matéria, para conhecer do litígio.

Destarte, não merece censura o acórdão recorrido, decaindo a pretensão do recorrente.

Sumário:

- A competência de um tribunal afere-se em função dos termos em que a ação é configurada pelo autor, ou seja, em função do pedido e da causa de pedir formulados.

-Os Tribunais de Família e Menores são competentes para tramitar os processos de inventário para partilha de bens comuns na sequência de processo de divórcio.

- Os mesmos tribunais são competentes, em razão da matéria, para conhecer de ações autónomas, resultantes da remessa para os meios comuns, relativamente a questões suscitadas no processo de inventário e respeitantes à partilha dos bens do ex-casal, ou seja, de matérias que lhe incumbe apreciar.

- A separação da meação que o inventário preconiza, trata-se de uma decorrência direta da dissolução da sociedade conjugal, por via do divórcio, matéria que se integra na competência dos juízos de família.

- A remessa para os meios comuns, em ação autónoma, justificar-se-á pela necessidade de uma maior indagação de factos, pela adoção dos prazos correspondentes a uma ação declarativa, mas não deixa de se tratar de uma ação que tem na sua génese um processo de inventário, o qual, por uma questão de maior garantia para as partes, não se coaduna com o caráter mais simplista e célere que lhe é normalmente peculiar.

3- Decisão:

Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista.

Custas a cargo do recorrente.

Lisboa, 23-9-2025

Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)

Ricardo Costa

Cristina Coelho