Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7414/09.9TBVNG.P2.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
RESPONSABILIDADE
SÓCIO
LEI APLICÁVEL
Data do Acordão: 03/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - DIREITO SUBSIDIÁRIO - LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE/ REGISTO - SOCIEDADES POR QUOTAS.
Doutrina:
- Almeida Costa, Obrigações, 3ª edição, pp. 228 e 229.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 879.º, AL. C), 1020.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC), APROVADO PELO DL N.º 262/86, DE 02-09: - ARTIGOS 1.º, 2.º, 146.º, N.º1, 160.º, N.º2, 163.º, 197.º.
RJPADLEC: - ARTIGO 11.º, N.º4.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 15-11-2007, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 23-4-2008, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 26-6-2008, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Uma vez extinta uma sociedade comercial, os antigos sócios respondem pelo passivo social, mas só até ao montante que receberam na partilha, sendo que incumbe ao credor alegar e provar que os sócios receberam bens na partilha do património da sociedade.

II - As disposições do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo DL n.º 262/86, de 02-09, devem aplicar-se às sociedades comerciais (art. 1.º). Somente em casos que este Código não preveja (lacunas) e na impossibilidade de aplicação da analogia, é que serão aplicáveis as normas do Código Civil reguladoras do contrato de sociedade. E mesmo esta aplicação será de afastar se os dispositivos correspondentes forem contrários aos princípios gerais do CSC ou “aos princípios informadores do tipo (de sociedade) adoptado” (art. 2.º do CSC).
Decisão Texto Integral:                                         

      Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

                       

                       

                       

                        I- Relatório:

                        1-1- AA, S. A., com sede no ..., apartado ..., ..., Vila Nova de Gaia, propôs a presente acção com processo ordinário contra BB e mulher CC, residentes na Rua ..., Lote ..., ..., Lisboa, pedindo a condenação destes a pagar-lhe a quantia de 51.392,80 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal desde 29-12-2007 até efectivo e integral pagamento, calculando os vencidos em 8,487,56 €.

                        Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que se dedica à indústria e ao comércio de equipamentos industriais, máquinas e ferramentas, sendo que os RR. foram os únicos sócios da sociedade por quotas com a firma “DD – …, Ldª”, que se dedicava à importação e comércio de equipamentos para automóveis. Foi assim que forneceu à “DD”, a pedido desta, diversa mercadoria que descrimina, cujo pagamento não foi efectuado no prazo devido, nem posteriormente, não obstante as interpelações feitas nesse sentido. Acontece que, em 29/08/2008, foi instaurado procedimento administrativo, com vista à dissolução da dita “DD”, por esta não ter procedido ao aumento do capital social para o mínimo legal, apesar de ter sido instada para o fazer. Notificados, nenhum dos sócios apresentou qualquer contestação ou sequer se pronunciou, vindo a ser proferida decisão final de dissolução e o encerramento da liquidação da indicada sociedade, em 17/11/2008, nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 11º e 12º, ambos do RJPADLEC, a qual não foi impugnada judicialmente, vindo a ser registada em 10/12/2008 e, por oficio com a mesma data, foi cancelada a matrícula da “DD Ldª”. Os RR. foram os únicos sócios desta sociedade, estando a gerência da mesma a cargo do R. marido. Assim, conclui, nos termos dos artºs 1020º e 997º, nº1, ambos do C.C., o pagamento dos valores pedidos, são da responsabilidade dos RR., pessoal e solidariamente.

                       

                        O R. BB contestou, invocando, para além do mais, que a sua quota era de € 3.750,00, na extinta sociedade, correspondendo a 75% do capital social desta e só nesta medida responderá perante terceiros, o mesmo sucedendo com a sua co-ré.

                        Disse, ainda, que parte do preço pedido pela A. já havia sido pago.

                         

                        O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido o despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e se organizou a base instrutória, se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu à base instrutória e se proferiu a sentença.

                        Nesta julgou-se a acção procedente por provada e, em consequência, condenou-se os RR. no pedido.

                         1-2- Não se conformando com esta decisão, dela recorreu o R. BB de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, tendo-se aí, por acórdão de 11-9-2012, considerado procedente o recurso, julgando-se improcedente a acção e absolvendo-se os RR. do pedido.

                       

                        1-3- Irresignada com este acórdão, dele recorreu a A. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.

                       

                        1-4- A recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:

                        I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos em referência, a qual, julgou procedente o Recurso apresentado pelo Recorrente, determinando a consequente revogação da decisão proferida em 1ª instância, favorável à ora Recorrente.

                        II. Ressalvado o devido respeito por melhor opinião, afigura-se à Recorrente que o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto não representa uma decisão justa, não fazendo uma correcta aplicação do direito aos factos.

                        III. Desconsidera tudo quanto considerado foi pela 1ª instância, consubstanciando que "a pretensão da A. (. . .) carece de factos sustentatórios suficientes e, por isso, não pode proceder".

                        IV. Não concebendo a Recorrente se a decisão nega o direito da mesma em ser ressarcida pela quantia inerente ao contrato de compra e venda celebrado e nunca tradicionado; se, nem o poderá ser exigido junto dos RR..

                        V. Relembre-se a que, num primeiro momento ambas as empresas - a da aqui Recorrente e a "DD" - se interligavam numa relação comercial;

                        VI. Ambas as sociedades tinham entre si relações comerciais.

                        VII. Pelo que a Recorrente fornecia alguns produtos à Recorrida/Recorridos, a pedido destes.

                        VIII. Sucede que, das vendas tituladas por facturas e letras, o pagamento do preço não foi efectuado.

                        IX. O que despoletou numa tentativa de ressarcimento judicial da mesma por parte da Recorrente.

                        X. Os Recorridos deveriam ter procedido ao aumento de capital social da sociedade para o mínimo legal, sendo que não o fizeram.

                        XI. Com efeito, a 29 de Agosto de 2008 fora instaurado na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, procedimento administrativo para encerramento e liquidação da Sociedade.

                        XII. E ainda que notificados para contestarem ou impugnarem o procedimento administrativo de encerramento e liquidação, nenhum dos sócios se manifestou.

                        XIII. Em face do exposto, parece resultar do descrito a manifesta má-fé dos Recorridos no seu silêncio perante o procedimento.

                        XIV. Tão-somente aquando notificados para a presente acção, para pagamento da quantia reclamada in casu, é que os Recorridos, devidamente notificados para os efeitos, manifestaram-se por todos os articulados processuais permitidos.

                        XV. No decurso da presente acção, alegaram os Recorridos que as suas responsabilidades de sócios para com o passivo da Sociedade, era-o na medida e nos termos do artigo 163º do Código Comercial, que limita a responsabilidade dos sócios ao montante que estes receberam na partilha.

                        XVI. O que, de facto, poderá ir ao encontro do dito no Acórdão Tribunal da Relação Coimbra: "Como decorre das mencionadas disposições legais, mormente conjugação dos arts. 160°, nº 2, 162° e 163°, nºs 1 e 2, dissolvida a sociedade e efectuado o registo do encerramento da liquidação, esta considera-se extinta, facto este que determina a perda da personalidade jurídica e judiciária (cfr. art. 5° do CPC)."

                        XVII. Contudo, de imediato refutado no mesmo Acórdão: "(. . .) como também decorre dessas disposições, mormente do art. 163°, nº 1, a extinção da sociedade não determina a extinção dos créditos, não satisfeitos ou acautelados aquando da liquidação, de que sejam titulares os credores sociais".

                        XVIII. Em matéria de Direito então, confronta a Recorrente o preceito 1020° do Código Civil que, na trilha do mesmo assunto prevê: "encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios, continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação. ".

                        XIX. Por considerar que o mesmo, deverá prosseguir.

                        XX. E mais acrescenta: "Com este normativo, se bem se ajuíza, o interesse do legislador em acautelar os credores sociais, dignos de protecção, que poderiam ficar sujeitos a prejuízos graves, causados por uma partilha precipitada, que os próprios sócios provocassem, em muitos caos malevolamente”

                        XXI. Reforçando, na esteira o mesmo Acórdão: "Manifestamente, por isso, falece a razão (. . .) quando identificam a relevância jurídica da suposta declaração falsa de inexistência de dívida, quer com a impossibilidade de satisfação e/ou reclamação judicial do crédito quer com a cessação da obrigação por via da extinção da sociedade: declarada ou não a dívida, o direito do credor perdura e pode ser judicialmente exigível mesmo para além da liquidação e extinção da sociedade”.

                        XXII. Concluindo-se que são estes, os Recorridos, responsáveis na generalidade das suas responsabilidades como sócios ainda que depois de um processo de encerramento e liquidação - conforme preceito referenciado do Código Civil.

                        XXIII. Em face do exposto deverão os Recorridos ser considerados responsáveis pela presente dívida que ora se reclamou, porquanto, no sulco dos preceitos citados, assim se interpreta.

                        XXIV. E assim, o presente Recurso julgado procedente e consequentemente condenados os Recorridos ao pagamento da quantia reclamada em 1ª instância.       

                         

                        Não foram produzidas contra-alegações.

                       

                        Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

                       

                        II- Fundamentação:

                        2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 684º nº 3 e 685º A nº 1 do C.P.Civil).

                        Nesta conformidade, será a seguinte a questão a apreciar e decidir:

                        - Se os RR. devem ser responsabilizados pela dívida da sociedade extinta, nos termos do art. 1020º do C.Civil.

                       

                        2-2- Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:

                        (a) A autora é uma sociedade anónima, que se dedica à indústria e ao comércio de equipamentos industriais, máquinas e ferramentas – alínea A) da Matéria de Facto Assente.

                        (b) Por seu turno, os RR. foram os únicos sócios da sociedade por quotas com a firma “DD – …, Lda” – alínea B) da Matéria de Facto Assente.

                        (c) Que se dedicava à importação e comércio de equipamentos para automóveis – alínea C) da Matéria de Facto Assente.

                        (d) No desenvolvimento das respectivas actividades, a A. forneceu à sociedade “DD, Lda.”, a pedido desta, as mercadorias constantes das facturas que infra se discriminam: a) Factura n.º …, datada de 29-11-2007, no valor de 6.068,45€ ( Doc. 2 ); b) Factura n.º …, datada de 5-12-2007, no valor de 2.092,70€ ( Doc. 3 ); c) Factura n.º …..., datada de 12-2-2008, no valor de 10.587,50€ ( Doc. 4 ); d) Factura n.º …, datada de 11-3-2008, no valor de 707,85€ ( Doc. 5 ); que se encontram juntas com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais – alínea D) da Matéria de Facto Assente.

                        (e) Esses fornecimentos importam a quantia de 19.456,50€, correspondentes à soma das sobreditas facturas – alínea E) da Matéria de Facto Assente.

                        (f) As mercadorias constantes dessas facturas foram entregues pela A. à “DD, Lda.” nas datas delas constantes – alínea F) da Matéria de Facto Assente.

                        (g) Que a “DD, Lda.” conferiu e achou conformes ao encomendado à A., no que à quantidade, qualidade e preço dizem respeito – alínea G) da Matéria de Facto Assente.

                        (h) Nada tendo reclamado à A. – alínea H) da Matéria de Facto Assente.

                        (i) Por acordo das partes, o pagamento dos fornecimentos devia ser efectuado a 30 dias a contar da emissão das respectivas facturas – alínea I) da Matéria de Facto Assente.

                        (j) Para além disso, a A. é dona e legítima possuidora das seguintes letras de câmbio: a) Letra de Câmbio n.º …, emitida em 28-8-2008, no valor de 7.162,00 €, com vencimento em 30-10-2008 (Doc. 6); b) Letra de Câmbio n.º…, emitida em 23-6-2008, no valor de 11.185,00€, com vencimento em 30-11-2008 (Doc. 7); c) Letra de Câmbio n.º …, emitida em 18-9-2008, no valor de 8.948,00 €, com vencimento em 30-12-2008 (Doc. 8), que se encontram juntas com a petição inicial e cujo teor se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais – alínea J ) da Matéria de Facto Assente.

                        (k) As referidas letras, no montante global de 27.295,00 €, foram emitidas na sequência de outras transacções comerciais e foram sacadas pela A. e aceites pela “DD, Lda.” e por aquela endossadas para cobrança ao Banco ..., sendo por este apresentadas a pagamento da data do seu vencimento.

                        (l) Tendo as mesmas letras sido devolvidas pelo B... à A. na sequência do referido em K) – alínea L) da Matéria de Facto Assente.

                        (m) Teve a A. despesas das letras de câmbio e de cheques devolvidos na quantia de 4.641,30 € – alínea M) da Matéria de Facto Assente.

                        (n) Acontece que, em 29-8-2008, foi instaurado pela Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, procedimento administrativo autuado sob o n.º …  com vista à dissolução da “DD Lda.”, por esta não ter procedido ao aumento do capital social para o mínimo legal, apesar de ter sido instada para o fazer – alínea N) da Matéria de Facto Assente.

                        (o) Notificados para, querendo, dentro dos prazos legais contestar o referido procedimento, nenhum dos sócios apresentou qualquer contestação ou sequer se pronunciou – alínea O) da Matéria de Facto Assente.

                        (p) Tendo sido decidido o referido procedimento, procedente por provado, e consequentemente, proferido em 17-11-2008, despacho de final de dissolução e o encerramento da liquidação da sociedade “DD – …, Lda.”, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 11º e 12º ambos do RJPADLEC. A referida decisão não foi impugnada judicialmente – alínea P) da Matéria de Facto Assente.

                        (q) Foi a dissolução e o encerramento da liquidação da predita sociedade registada em 10-12-2008, através da apresentação AP. 626/20081210 – alínea Q) da Matéria de Facto Assente.

                         (r) Sendo que, por oficio de 10-12-2008, foi cancelada a matrícula da “DD Lda.” através da inscrição 3. (idem) – alínea R) da Matéria de Facto Assente. -------------------------

                        2-3- No douto acórdão recorrido depois de se terem caracterizado os contratos em causa como de compra e venda (em que foram intervenientes a A., como vendedora e a firma “DD” como compradora), afirmou-se que dada a característica sinalagmática de tais contratos, um dos seus efeitos é, precisamente, o pagamento do preço – art. 879º, al. c), do C.Civil, decorrente da obrigação de entrega da coisa (al. b), deste mesmo normativo). Tendo-se apurado que esta obrigação foi satisfeita pela A., sem que tenha havido qualquer reclamação por banda da “DD”, deveria esta pagar o respectivo preço. Acrescentou-se que “não resultou provado o pagamento do correspondente preço ou de parte do mesmo, conforme oportunamente alegado pelos RR. e, considerando os termos em que a acção está perspectivada, a prova desse pagamento (parcial ou total), era da incumbência dos últimos, face ao disposto no nº 2, o art. 342º, o que não fizeram”.

                        Isto é, reconheceu-se no douto acórdão recorrido, quando aos aludidos contratos, que pese embora a A. tenha entregue os referenciados bens à DD, esta não efectuou o respectivo pagamento, sendo que a prova desta solvência lhe cabia.

                        Disse-se depois no aresto que, conforme estipula o art. 1020º do C.Civil, encerrada a liquidação e extinta a sociedade, como aqui sucede, os antigos sócios, os RR., continuam responsáveis perante terceiros, designadamente perante a A., pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação, sendo essa responsabilidade pessoal e solidária, nos termos do art. 997º. A “DD” deixou de existir como pessoa colectiva, perdendo, por isso, a sua personalidade jurídica e judiciária, mas os RR. passaram a ser legalmente entendidos com os seus sucessores legais, para os indicados fins, uma vez que as relações jurídicas das quais aquela era titular mantiveram-se, não obstante a referida extinção. Porém, face ao estipulado no art. 163º do C. S. Comerciais (diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem), a responsabilidade dos antigos sócios da extinta sociedade (sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada, o que não é o caso), está limitada ao montante que estes receberam na partilha, uma vez encerrada a liquidação subjacente. 

                        Por isso e não obstante o reconhecimento derivado do citado art. 1020º do C.Civil, a procedência do pedido formulado pela A. (parcial ou total), com a consequente condenação dos RR., sempre estaria dependente da alegação e prova de factos donde fosse possível concluir que, à data da referida extinção, a indicada sociedade tinha bens e que os mesmos haviam sido partilhados pelos RR., enquanto seus sócios, sendo que dos factos assentes, nada disto resulta. Dado que esses factos devem ser entendidos como constitutivos do direito, o ónus de alegação e de prova incumbia à A., o que não fez.

                        Por conseguinte, concluiu-se que a pretensão da A., consubstanciada no pedido formulado na p.i., carecia de factos sustentatórios suficientes e, por isso, considerou-se a apelação procedente e a acção improcedente.

                        No presente recurso, em contrário, a recorrente sustenta que os recorridos deveriam ter procedido ao aumento de capital social da sociedade para o mínimo legal, sendo certo que não o fizeram. Por isso, parece resultar a sua manifesta má-fé perante o procedimento instaurado que se referenciou.

                        No decurso da presente acção, alegaram os recorridos que as suas responsabilidades de sócios para com o passivo da Sociedade, era-o na medida e nos termos do artigo 163º do Código Comercial, que limita a responsabilidade dos sócios ao montante que receberam na partilha. O Acórdão Tribunal da Relação Coimbra, que indica, referiu que "como decorre das mencionadas disposições legais, mormente conjugação dos arts. 160°, nº 2, 162° e 163°, nºs 1 e 2, dissolvida a sociedade e efectuado o registo do encerramento da liquidação, esta considera-se extinta, facto este que determina a perda da personalidade jurídica e judiciária (cfr. art. 5° do CPC)." Acrescentou-se nesse acórdão que “(…) como também decorre dessas disposições, mormente do art. 163°, nº 1, a extinção da sociedade não determina a extinção dos créditos, não satisfeitos ou acautelados aquando da liquidação, de que sejam titulares os credores sociais".  Nos termos do 1020° "encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios, continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação", acrescentando o dito aresto que "com este normativo, se bem se ajuíza, o interesse do legislador em acautelar os credores sociais, dignos de protecção, que poderiam ficar sujeitos a prejuízos graves, causados por uma partilha precipitada, que os próprios sócios provocassem, em muitos caos malevolamente”. Reforçando, na esteira o mesmo Acórdão refere que "manifestamente, por isso, falece a razão (. . .) quando identificam a relevância jurídica da suposta declaração falsa de inexistência de dívida, quer com a impossibilidade de satisfação e/ou reclamação judicial do crédito quer com a cessação da obrigação por via da extinção da sociedade: declarada ou não a dívida, o direito do credor perdura e pode ser judicialmente exigível mesmo para além da liquidação e extinção da sociedade”.

                        Conclui, assim, dizendo que os RR. recorridos deverão ser considerados responsáveis pela dívida reclamada, nos termos dos preceitos citados, pelo que o presente recurso deve ser julgado procedente e consequentemente condenados os demandados ao pagamento da quantia pedida.

                        Vejamos:

                        Como ponto prévio diremos que não se nos afigura existir qualquer dúvida sobre a circunstância de a A. por um lado e a “DD” pelo outro, terem celebrado diversos contratos de compra e venda em relação aos bens indicados. Tendo-se apurado que a obrigação de entrega das coisas foi satisfeita pela A. AA S.A., a extinta “DD”, deveria ter efectuado o pagamento do respectivo preço, o que não fez (art. 879º al. c) do C.Civil).

                        Porque isento de controvérsia, entendemos não haver de necessidade de desenvolver este tema.

                        O preço dos bens permanece, assim, por pagar à A., sendo a devedora a “DD”. É com vista a receber o preço dos RR. (como únicos sócios da devedora) que a A. intentou a presente acção.

                        A sociedade devedora foi dissolvida e o encerramento da liquidação dela, registada em 10-12-2008 (através da apresentação AP. 626/20081210), na sequência de procedimento administrativo desenvolvido pela Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, procedimento derivado de a sociedade não ter procedido ao aumento do capital social para o mínimo legal, apesar de ter sido instada para o fazer, sendo que os RR. (sócios únicos da sociedade) não contestaram, nem sequer se pronunciaram sobre o assunto[1].

                        A questão que se coloca será a de saber se os RR., como sócios da sociedade devedora, deverão ser chamados a solver os compromissos desta, dada a sua dissolução e extinção.

                         E, como se viu, as instâncias deram respostas diversas ao tema.

                       

                        Ficou provado, para além da sociedade ter sido dissolvida, foi (ainda) declarada a sua liquidação (por dos elementos constantes do processo resultar a inexistência de activo e passivo a liquidar – vide art. 11º nº 4 do RJPADLEC referenciado em nota de rodapé -)

                        Diz a A. recorrente, num primeiro momento, que os recorridos deveriam ter procedido ao aumento do capital social da sociedade para o mínimo legal, sendo que não o fizeram, pelo que parece resultar manifesta má-fé da sua parte.

                        Segundo cremos, actuar de boa fé, por contraposição a uma acção de má fé, traduz-se em agir segundo um comportamento leal e de correcção, assim se contribuindo para a realização dos interesses legítimos determinativos da realização do negócio[2].

                        Ora, como é bom de ver, os autos não fornecem elementos que nos possam levar a concluir que os RR., ao não procederem como a recorrente entende ter sido sua obrigação agir, tiveram um comportamento desleal, doloso e fraudulento. Somente se provou que, nos termos do referenciado procedimento administrativo (instaurado com vista à dissolução da “DD Lda” por esta não ter procedido ao aumento do capital social para o mínimo legal, apesar de ter sido instada para o fazer), os RR., como sócios, foram notificados para, querendo, contestar o procedimento, o que não fizeram, circunstância que, patentemente, não é suficiente para denunciar uma pérfida e dolosa acção da sua parte.

                        Acresce que a recorrente não fundamenta a acção no pressuposto de má fé dos recorridos, pelo que a correspondente alegação (somente) na presente revista se afigura destituída de relevância.

 

                        Dissolvida uma sociedade comercial, deve seguir-se imediatamente a sua liquidação, como resulta do disposto no art. 146º nº 1. Todavia, no caso vertente, isso não sucedeu visto que do procedimento administrativo instaurado resultou a inexistência de activo e passivo a liquidar e, consequentemente, foi declarada, para além da dissolução, o encerramento da liquidação da sociedade. Como foi registado este encerramento (registo de 10-12-2008), a sociedade deve ter-se com extinta a partir deste momento (art. 160 nº 2)

                        Quer isto dizer que quando a presente acção deu entrada em juízo (Julho de 2009) já a sociedade devedora se encontrava dissolvida, liquidada e extinta[3].

                        No douto acórdão recorrido entendeu-se que, quanto à essencial questão da responsabilidade dos sócios pelas dívidas da sociedade, face ao estipulado no art. 163º, a responsabilidade (sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada, o que não é o caso) dos antigos sócios da extinta sociedade, está limitada ao montante que estes receberam na partilha, uma vez encerrada a liquidação subjacente. Por isso, o reconhecimento da sua responsabilidade e condenação em solver as dívidas sociais, estaria (sempre) dependente da alegação e prova de factos donde fosse possível concluir que, à data da referida extinção, a indicada sociedade tinha bens e que os mesmos haviam sido partilhados pelos RR., enquanto seus sócios, sendo que dos factos assentes, nada disto resulta.

                       

                        Estabelece o art. 163º nº 1 que “encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo quanto aos sócios de responsabilidade ilimitada”.

                        No caso dos autos tratava-se de uma sociedade por quotas, pelo que a responsabilidade ilimitada dos sócios se deve ter por excluída. Com efeito, nos termos do art. 197º, neste tipo de sociedades, o capital social está dividido em quotas; os sócios são solidariamente responsáveis por todas as entradas convencionadas no contrato social, mas não são obrigados a outras prestações, excepto quando a lei ou o contrato, autorizado por lei, assim o estabeleçam; só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade, embora seja lícito estipular no contrato que um ou mais sócios, além de responderem nos termos referidos, respondem também perante os credores sociais até determinado montante. Ora, como não se encontra alegado e demonstrado que do contrato social se tenha estipulado algo sobre o agravamento da responsabilidade dos sócios relativamente aos credores sociais, a conclusão a retirar será que a responsabilidade social dos sócios de encontra limitada por aqueles parâmetros.

                        Assim, os sócios responderão pelo passivo social não satisfeito (ou não acautelado), até ao montante que receberam na partilha. Neste sentido afirmou-se no acórdão deste STJ de 26-6-2008 (www.dgsi.pt/jstj.nsf) que “…os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha. A sua responsabilidade pessoal (falamos de sócios de sociedades de responsabilidade limitada) não excede, pois, as importâncias que hajam recebido em partilha dos bens sociais: eles são responsáveis até esse montante. O n.º 1 do art. 163º pressupõe que a liquidação esteja encerrada e extinta a sociedade – só neste caso é que se verifica a substituição da sociedade pela generalidade dos sócios”.

                        No caso dos autos não se sabe se existiu partilha dos bens sociais. É certo que se refere na decisão do procedimento administrativo instaurado[4] que “do procedimento resulta a inexistência de activo e passivo”. Porém, a nosso ver, isto não significa que, na realidade, não tenha existido uma partilha de bens entre os sócios. Apenas se poderá ter como assente o que consta da declaração, mas não a sua exactidão[5].

                        Nesta conformidade, caberia à A. alegar e provar que, liquidada a sociedade, os RR. procederam à partilha de bens sociais, devendo responder até ao preenchimento dos montantes que receberam. Isto porque se devem considerar estes factos como constitutivos do seu direito (art. 342º nº 1 do C.Civil). Como se diz no Acórdão deste STJ de 26-6-2008 (www.dgsi.pt/jstj.nsf), estando a responsabilidade dos sócios legalmente definida “cumpria à autora … alegar e provar aqueles factos, que se apresentam como constitutivos do seu direito a obter deles o montante do seu crédito, «até ao montante que receberam na partilha». No mesmo sentido decidiu o acórdão deste STJ de 23-4-2008 (www.dgsi.pt/jstj.nsf) “para que os sócios pudessem ser condenados com base no disposto no art.º 163.º era necessário que se tivesse provado que a sociedade tinha bens e que esses bens foram por eles partilhados. E no contexto da acção, a prova desses factos incumbia à autora, por se tratar de factos constitutivos do direito à reparação que contra eles peticionou (art.º 342º n.º 1, do C.C.)”. Também no acórdão deste Supremo de 15-11-2007 (www.dgsi.pt/jstj.nsf) se refere em idêntico sentido que “extinta a referida sociedade por dissolução e operado o seu registo comercial e o da liquidação antes da propositura da acção em causa contra ela, a responsabilidade dos recorridos dependia de terem recebido, na partilha, bens suficientes para operarem o mencionado ressarcimento lato sensu. … Incumbia aos recorrentes o ónus de prova de factos reveladores de que os recorridos receberam bens ou outros direitos na partilha do património societário, o que não lograram…”.

                        Em síntese: Uma vez extinta uma sociedade comercial, os antigos sócios respondem pelo passivo social, mas só até ao montante que receberam na partilha, sendo que incumbe ao credor alegar e provar que os sócios receberam bens na partilha do património da sociedade.

                        Como a A., ora recorrente, não alegou e demonstrou as aludidas circunstâncias, inexiste fundamento legal para que ela possa realizar o seu direito de crédito contra os recorridos.

                        Quer dizer que o acórdão recorrido merece confirmação.

                        A recorrente sustenta e baseia o seu entendimento de que os RR. são responsáveis perante as dívidas sociais em questão, no que dispõe o art. 1020º do C.Civil.

                        Estabelece este dispositivo que “encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação”.

                        Quer dizer, perante esta disposição os únicos sócios da “DD” (já liquidada e extinta) devem responder pelo pagamento de débitos da sociedade a terceiros, como se não tivesse havido liquidação.

                        Não equaciona, pois, esta norma, a limitação a que se refere o dito art. 163º nº 1, isto é, que os antigos sócios respondem (somente) pelo passivo social não satisfeito (ou acautelado), até ao montante que receberam na partilha. Não contendo o art. 1020º nº 1 do C.Civil este limite, segundo a recorrente, os antigos sócios da sociedade extinta devem responder perante os credores sociais irrestritamente.

                        Não podemos concordar com esta posição. É que o disposto no C.S.Comerciais, aprovado pelo Dec-Lei 262/86 de 2 de Setembro, deve aplicar-se às sociedades comerciais (art. 1º). Apenas nos casos em que este Código não preveja (lacunas) e na impossibilidade de aplicação da analogia às normas da mesma Lei, é que será aplicável o disposto no C.Civil. E mesma esta aplicação será de afastar se os dispositivos correspondentes forem contrários aos princípios gerais do C.S.Comerciais ou “aos princípios informadores do tipo (de sociedade) adoptado” (art. 2º deste Código).

                        Isto é, segundo este art. 2º, o recurso às normas do C.Civil reguladoras do contrato de sociedade (arts. 980º a 1021º) só terá lugar em relação aos casos não previstos pelo C.S.Comerciais e quanto às normas que não contrariem os princípios gerais deste Código e/ou os princípios informadores do tipo de sociedade em causa.

                        Tendo sido a R. uma sociedade comercial e prevendo-se a situação controvertida no art. art. 163º nº 1 do C.S.Comerciais, deve ser esta norma aplicável ao caso e não o dito art. 1020º do C.Civil.

                       

                        Só mais umas breves palavras para dizer que, segundo cremos, o entendimento dos acórdãos das Relações que indicou a recorrente, não desmente a doutrina do presente aresto, visto que os arestos dizem respeito a diversa realidade. É que nas próprias palavras da A. “declarada ou não a dívida, o direito do credor perdura e pode ser judicialmente exigível mesmo para além da liquidação e extinção da sociedade”, circunstância não discutida no caso (a dívida foi reconhecida, mas entendeu-se que os RR., pelas indicadas razões, não responderiam por ela).

                        O recurso é, pois, improcedente.

                        Nos termos dos arts. 713º nº 7 e 726º do C.P.Civil, elabora-se o seguinte sumário:

                        Uma vez extinta uma sociedade comercial, os antigos sócios respondem pelo passivo social, mas só até ao montante que receberam na partilha, sendo que incumbe ao credor alegar e provar que os sócios receberam bens na partilha do património da sociedade.

                        As disposições do C.S.Comerciais, aprovado pelo Dec-Lei 262/86 de 2 de Setembro, devem aplicar-se às sociedades comerciais (art. 1º). Somente em casos que este Código não preveja (lacunas) e na impossibilidade de aplicação da analogia, é que serão aplicáveis as normas do C.Civil reguladoras do contrato de sociedade. E mesma esta aplicação será de afastar se os dispositivos correspondentes forem contrários aos princípios gerais do C.S.Comerciais ou “aos princípios informadores do tipo (de sociedade) adoptado” (art. 2º do C.S.Comerciais).

                        III- Decisão:

                        Por tudo o exposto, nega-se a revista.

                        Custas pela recorrente.

Lisboa, 12 de Março de 2013

Garcia Calejo (Relator)

Helder Roque

Gregório Silva Jesus

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[1] No procedimento administrativo deu-se cumprimento ao disposto no art. 11º nº 4 do RJPADLEC (Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais) que estabelece que “se do requerimento apresentado, do auto elaborado pelo conservador ou dos demais elementos constantes do processo resultar a inexistência de activo e passivo a liquidar, o conservador declara simultaneamente a dissolução e o encerramento da liquidação da entidade comercial”.
[2] Vide a propósito de boa fé contratual, entre outros, Almeida Costa em Obrigações, 3ª edição, págs. 228 e 229.

[3] Daí que os créditos da A. se devam considerar como supervenientes.
[4] Documento junto pela A. e não impugnado pela parte contrária.

[5] Note-se que os factos provados desmentem a declaração, no que toca à inexistência de passivo social.