Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7793/09.8T2SNT.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANO ESTÉTICO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PEDIDO
LIMITES DA CONDENAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
FACTO NEGATIVO
Data do Acordão: 01/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO COMERCIAL - CONTRATO DE SEGURO.
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL / FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL.
Doutrina:
- Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, 2015, p. 69 e ss..
- Rita Lynce, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Univ. Católica Editora, 2014, p. 812.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 8.º, N.º3, 342.º, N.º1, 376,º, N.º 1, 494.º, 496.º, N.ºS 1 E 4, 562.º, 564.º, N.º1, 566.º.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 426.º.
DECRETO-LEI N.º 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO: - ARTIGO 21.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 31 DE JANEIRO DE 2012, PROC. N. º 875/05.7TBILH.C1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 10 DE OUTUBRO DE 2012, PROC. N.º 632/2001.G1.S1, WWW.DGSI.PT
-DE 18 DE DEZEMBRO DE 2013, PROC. N.º 1749/06.0TBSTS.P1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 20 DE MARÇO DE 2014, PROC. N.º 7782/10.0TDPRT.P1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 7 DE MAIO DE 2014, PROC. N.º 436/11.1TBRGR.L1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 20 DE NOVEMBRO DE 2014, PROC. N.º 5572/05.0TVLSB.L1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 19 DE FEVEREIRO DE 2015, PROC. N.º 99/12.7TCGMR.G1.S1, WWW.DGSI.PT
-DE 6 DE ABRIL DE 2015, PROC. Nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, COM REMISSÃO PARA O ACÓRDÃO DE 28 DE OUTUBRO DE 2010, PROC. Nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, E PARA O ACÓRDÃO DE 5 DE NOVEMBRO DE 2009, PROC. N.º 381/2002.S1, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 4 DE JUNHO DE 2015, PROC. N.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, DE 19 DE FEVEREIRO DE 2015, PROC. N.º 99/12.7TCGMR.G1.S1, DE 7 DE MAIO DE 2014, PROC. N.º 436/11.1TBRGR.L1.S1, DE 10 DE OUTUBRO DE 2012, PROC. N.º 632/2001.G1.S1, E DE 20 DE OUTUBRO DE 2011, PROC. N.º 428/07.5TBFAF.G1.S1, TODOS EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 9/2015, EM WWW.STJ.PT .
Sumário :
I. A exigência prevista, em termos gerais, no art. 342.º, n.º 1, do CC, abrange tanto a prova de factos positivos como de factos negativos, sem que a dificuldade da prova dos factos negativos constitua fundamento de diferente distribuição do ónus da prova.

II. A expressão “dano biológico” tem sido utilizada na lei, na doutrina e na jurisprudência nacionais com sentidos nem sempre coincidentes.

III. A lesão físico-psíquica é o dano-evento que pode gerar danos-consequência, os quais se distinguem na tradicional dicotomia de danos patrimoniais e danos não patrimoniais.

IV. O aumento da penosidade e esforço para realizar as tarefas diárias pode ser atendido no âmbito dos danos patrimoniais (e não apenas dos danos não patrimoniais), na medida em que tenha como consequência provável a redução da capacidade de obtenção de proventos no exercício da actividade profissional ou de outras actividades económicas.

V. Tendo ficado provado que, em consequência de acidente de viação, o lesado, então com 17 anos de idade, sofreu uma lesão de um membro inferior que o deixou incapacitado para a sua profissão habitual, da qual se reformou, e com uma incapacidade geral permanente de 23%, atenta a esperança de vida média à data do acidente (70 anos para os homens nascidos em 1977), e uma vez que teria ainda pela frente várias décadas com a oportunidade de “progredir na vida” - mesmo desconhecendo-se as suas habilitações, mas havendo indícios de que as mesmas não seriam elevadas - considera-se adequado fixar, a título de indemnização por danos patrimoniais derivados da perda de capacidade de ganho, o valor de €50.000,00, o qual se reduz para €45.186,50, devido à limitação do pedido.

VI. Resultando, no mais, da factualidade provada que, em consequência do acidente, o lesado foi submetido a quatro operações, padeceu de dores intensas, antes e após as intervenções cirúrgicas a que foi submetido, esteve internado por longos períodos, teve de efectuar tratamentos de reabilitação e que terá ainda de se submeter a mais duas operações, tendo ficado com uma cicatriz com 50cm de comprimento - o que lhe determinou a atribuição de um quantum doloris de grau 5 numa escala de 7 e de um dano estético de grau 4 numa escala de 7 - justificar-se-ia fixar uma indemnização por danos não patrimoniais total no valor de €40.000,00, a qual, no entanto, deve ser reduzida para €12.420,06, por apenas ter sido pedida uma indemnização parcial pelo quantum doloris e pelo dano estético, e devido à limitação do pedido.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA intentou, em 8 de Maio de 1997, acção contra Fundo de Garantia Automóvel, BB, e CC pedindo indemnização nos seguintes montantes: 1.890.000$00, o que equivale a €9.427,28, por salários não recebidos; 2.000.000$00, o que equivale a €9.975,96, pelas dores sofridas; 20.000.000$00, o que equivale a €99.759,58, pela incapacidade funcional de que ficou a sofrer; 600.000$00, o que equivale a €2.992,78, pelo dano estético. Peticiona ainda o pagamento de despesas hospitalares cujo valor depende de liquidação posterior. Alegou que foi vítima de acidente de viação quando conduzia um veículo (SNT) que foi embatido pelo veículo QC, conduzido pelo R. BB, de tal forma que fez com que, saindo da sua mão, fosse embater num terceiro veículo. Mais alegou que o veículo QC circulava sem qualquer seguro de responsabilidade civil.

Por despacho de 5 de Dezembro de 2000, foi ordenada a apensação do processo, juntamente com outros, instaurados pelos diferentes lesados no mesmo acidente, ao processo nº 224/1997, instaurado em 15 de Abril de 1997. A 14 de Abril de 2009, a acção foi registada com o nº 7793/09.8T2SNT.

Por sentença de fls. 801, a acção foi julgada parcialmente procedente, condenando-se o R. BB ao pagamento da indemnização de €4.200,00 pelas dores sofridas, de €450,00 pelo dano estético, de €52.000,00 pela incapacidade funcional, e ao pagamento das despesas hospitalares futuras decorrentes do acidente de viação. Os valores indemnizatórios foram actualizados à data da sentença. Absolveu-se o R. BB do pagamento dos “salários não recebidos” no montante de €9.427,28. Absolveu-se o R. Fundo de Garantia Automóvel e o R. CC.


2. O A. e o R. BB recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa. Por acórdão de fls. 987, tanto a apelação do A. como a apelação do R. BB foram julgadas improcedentes. Foi confirmada a condenação do R. BB ao pagamento dos montantes indemnizatórios fixados pela 1ª instância, com juros de mora vencidos desde a prolação da sentença recorrida e vincendos até integral e efectivo pagamento.

A condenação do R. BB foi fundamentada nos termos seguintes:

“Do acidente dos autos resultaram directa e necessariamente danos de vária natureza cometidos a vários lesados.

O responsável vem a ser o condutor do QC.

Estão verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar – artigo 483º, 1 do CC.

É certo que por via do contrato de seguro a responsabilidade pela circulação de tal veículo se transferiu para a Interveniente DD, SA. Porém esta não vem demandada por todos os Autores. Alguns destes demandaram o condutor do QC, EE [rectius: BB]. Esse facto explica a condenação nos autos dos dois demandados, a Interveniente e EE [rectius: BB].”

Os valores indemnizatórios arbitrados foram confirmados pela Relação com a seguinte fundamentação:

Quanto à indemnização por perda de salários verifica-se que o ISSS pagou ao Autor AA pensões de invalidez absoluta de 5-3-2008 a 31-10-2011 – cfr. certidão de fls. 771.

Na sentença recorrida entendeu-se nada ser devido ao Autor a este título uma vez que pago pela Segurança Social, pelo que não poderia receber a mesma quantia duas vezes.

Em recurso o Autor diz que só começou a receber a pensão por invalidez a partir de 5 de Março de 2008, e que os valores peticionados dizem respeito a salários anteriores a essa data.

Que dizer?

A certidão de fls. 771 apenas refere o montante pago a título de pensão por invalidez absoluta de 5-3-2008 a 31-10-2011, não esclarecendo a que período de invalidez essa pensão diz respeito. Acontece que os interessados formulam o pedido, mais tarde é deferido, e os pagamentos reportam-se ao início da situação, portanto a momento anterior.

O Sr. Juiz, certamente que melhor informado pois teve a oportunidade de o conseguir durante o julgamento, fundamentou indicando preceitos legais.

Se os pagamentos efectuados se não reportam a momento anterior a 5-3-2008 cabia ao Apelante deslindar, carreando para o processo a necessária prova documental.

Não o fez.

Não há assim que alterar o sentido da decisão recorrida, que se mostra fundamentada, inexistindo, por outro lado, prova documental da nova situação invocada.

O segmento do dispositivo – que é absolutório – é de manter.

Quanto à compensação pelos danos morais (dores).

Vale a seguinte factualidade:

TTT. O Autor AA esteve internado no Hospital FF até 15 de Junho de 1994;

UUU. Sendo posteriormente transferido para o Hospital GG, do qual teve alta em 15 de Julho de 1994;

VVV. Voltando a ser internado no Hospital FF, e após no Hospital Distrital de … para ser operado uma segunda vez ao abdómen;

WWW. Em consequência do acidente o Autor AA ficou com sequela do traumatismo craniano encefálico, e com monoparelesia do membro inferior esquerdo;

XXX. Não tendo força em tal perna;

YYY. O Autor AA vai ser operado no dia 13 de Maio de 1997 à perna para lhe serem retirados os ferros que tem fixados no fémur da perna esquerda;

ZZZ. O Autor AA foi sujeito a tratamento no centro de Medicina de Reabilitação da Santa Casa da Misericórdia de …;

AAAA. Em consequência do acidente o Autor AA teve dores intensas antes, durante e após as intervenções cirúrgicas a que foi submetido;

BBBB. … (alterado na Relação)

CCCC. Não tendo força na perna afectada que lhe permitia exercer a actividade que à data do acidente exercia;

DDDD. O funcionamento cerebral do Autor ficou afectado por desmemorização;

EEEE. Não se lembrando de muitos factos passados, e não memorizando os actuais;

FFFF. Perdendo capacidade de iniciativa sobre as coisas simples do dia-a-dia;

GGGG. Auferindo, na data do acidente, a quantia mensal de Esc. 45.000$00 sob ordens, direcção e fiscalização de HH;

Resulta do exame de clínica médico-legal que as lesões a este Autor provocadas lhe demandaram (fls.568-569)

-uma Incapacidade Geral Temporária Absoluta de 15-5-1994 a 17-7-1994 e de 14-5-1995 a 15-5-1995, a que acresce mais um período de 30 dias aquando da extracção de material de osteossíntese;

-uma Incapacidade Geral Temporária Parcial fixável numa média de 60% de 16-7-1994 a 13-5-1995;

-uma Incapacidade Geral Temporária Parcial fixável numa média de 30% de 16-5-1995 a 21-12-1995;

-uma Incapacidade Profissional Temporária Absoluta durante todo o período de Incapacidade Temporária fixável numa média de 60% de 16-7-1994 a 13-5-1995, a que acresce mais um período de 30 dias aquando da extracção de material de osteossíntese em 21-4-1997 e 11-3-2005.

A data de consolidação é 21-12-1995; o quantum doloris fixável em 5 numa escala crescente de 7 pontos.

Na 1ª instância atribuiu-se € 4.200,00. Em sede de recurso insiste na atribuição da totalidade do peticionado - € 9.975,96.

O montante judicado mostra-se correcto, sensato, justo e de acordo com os parâmetros de actuação da pátria Jurisprudência, sendo consequentemente de manter. 

Quanto à compensação pelo dano estético.

O Autor peticionou € 2.992,78. Foi a este título arbitrado € 450,00.

Resulta do exame de clínica médico-legal que as lesões a este Autor provocadas lhe demandaram (fls.568-569) um dano estético fixável em 4 numa escala crescente de 7 pontos. O grau é médio. O Autor insiste na totalidade do pedido.

Tudo ponderado, o montante judicado mostra-se correcto, sensato, justo e de acordo com os parâmetros de actuação da pátria Jurisprudência, sendo consequentemente de manter. 

Quanto à indemnização pela incapacidade funcional.

O Autor peticionou € 100.000,00. Foi a este título arbitrado € 52.000,00.

Resulta do exame de clínica médico-legal que as lesões a este Autor provocadas lhe demandaram (fls. 568-569) sequelas uma Incapacidade Geral Permanente fixável em 23%. Tal incapacidade é compatível com o exercício de actividades profissionais no âmbito da sua preparação técnica, embora exija esforços acrescidos para o seu desempenho. É incompatível com todas as actividades que exijam esforços violentos com os membros e/ou faculdades de equilíbrio.

O Autor nasceu a 9-11-1976. Ao tempo do acidente tinha 17 anos de idade. 

Auferia na data do acidente, a quantia mensal de Esc. 45.000$00 sob ordens, direcção e fiscalização de HH. Está reformado por invalidez pela Segurança Social desde pelo menos 5-3-2008. Ao tempo do exame médico de fls. 561 trabalhava como empregado de uma firma. Nas conclusões das alegações refere não encontrar emprego compatível com a sua incapacidade.

O Autor insiste na totalidade do pedido- € 100.000,00.

Tudo ponderado, o montante judicado mostra-se correcto, sensato, justo e de acordo com os parâmetros de actuação da pátria Jurisprudência, sendo consequentemente de manter. 

Relativamente aos montantes fixados na sentença recorrida, a mesma declara-se como decisão actualizadora.

Nela se escreve, com relevo: cfr. fls. 882:

«Nos presentes autos, nenhum dos Autores pediu a condenação dos Réus nos montantes correspondentes aos juros vencidos e vincendos contabilizados sobre o valor em dívida, pelo que haverá assim lugar a um cálculo actualizado dos valores pelos quais os Réus foram condenados.

Todavia, é de referir que tal cálculo das indemnizações a pagar pelos Réus condenados a tal, foi efectuada tendo em atenção o valor que as mesmas indemnizações têm em conformidade com o poder de compra actual, o valor da moeda em 2013, pelo que não há necessidade de se proceder a qualquer outro ajustamento dos montantes aqui em estudo.

Atendeu-se assim aos bens e aos serviços que o valor correspondente às indemnizações atribuídas pode comprar ou adquirir em 2013, critério esse que presidiu à decisão aqui em causa.

O ajustamento foi assim feito aquando da determinação concreta dos valores indemnizatórios tal como mencionados supra, pelo que nada mais há a determinar nesta matéria.»

Não há motivo para proceder na Relação à introdução de outro qualquer factor actualizador dos valores arbitrados.

 

2. O A. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“Artigo 1°

O facto constante da alínea A) (única) da Matéria Assente não pode ser usado contra o recorrente pois que a sua fixação, no despacho Saneador, não foi precedida de contraditório.

E o princípio do contraditório é, no nosso sistema jurídico-processual, princípio basilar que não pode ser postergado.

Mostra-se violado, nas decisões das instâncias que não acolheram, neste particular, a pretensão do autor-recorrente, o disposto nos artigos 3°, n° 3 e 17°, ambos do Código de Processo Civil anterior.

Artigo 2°

Da apensação do processo intentado pelo aqui recorrente a outro processo em que nenhuma intervenção teve antes não pode resultar para ele prejuízo ou menor protecção.

E esta é mais uma razão que depõe no sentido de que aquele facto fixado no despacho saneador não lhe é oponível.

Artigo 3°

Acresce que a apólice do seguro, fazendo prova do mesmo, contudo, não o prova plenamente.

Donde, tendo o autor aqui recorrente demandado com invocação de inexistência de seguro, a mera junção da apólice não permite que a existência do seguro seja dada por assente no despacho saneador.

Conferindo à apólice de seguro junta aos autos a qualificação de documento que faz prova plena do facto que refere o Exmo. Juiz que elaborou o despacho saneador e, depois, o Tribunal da Relação que não acolheu a pretensão do recorrente neste particular violaram o disposto no n° 1 do artigo 371º do Código Civil.

Artigo 4°

O artigo 23° da Base Instrutória deveria ter obtido resposta, no segmento em que se perguntava se «Em 1994.05.15 o QC-...-... dispunha de seguro» pois que nesta forma de alegar se não contém matéria conclusiva, antes constitui maneira adequada de invocar a inexistência de seguro.

E, por outro lado, saber se determinada fórmula envolve matéria de natureza conclusiva constitui, em si mesmo, matéria de direito.

Artigo 5°

As instâncias, sem razão, absolveram o Fundo de Garantia Automóvel dos pedidos relativos ao autor aqui recorrente.

É que o FGA tinha a possibilidade, e portanto o dever, de averiguar, antes de contestar a acção, se existia, ou não, seguro para o QC-...-... (cf. alínea s) do n° 2 do artigo 5° do D-L 251/97, de 26/9 e n° 3 do artigo 39° do D-L 130/94, de 19/5).

E daí, alegando que não sabia, se sim ou não, existia seguro para o QC-...-..., o FGA não cumpriu adequadamente o ónus de impugnação especificada do nº 3 do artigo 490º do Código de Processo Civil anterior.

E, então, no processo instaurado pelo autor recorrente deve ter-se por confessada, pelo FGA, a existência [rectius: inexistência] de seguro.

Portanto, o FGA deve responder pelos danos que do acidente resultaram para o autor aqui recorrente.

Artigo 6°

A absolvição do FGA, nas circunstâncias concretas do processo, equivale a frustrar a sua função protectora das vítimas de acidente provocado por quem circula sem seguro.

Artigo 7°

Ademais, tendo o Fundo ressarcido alguns dos danos decorrentes do acidente, nomeadamente os relativos à perda do veículo em que seguia o autor recorrente, desse mesmo passo reconheceu a sua responsabilidade e fez no processo estabilizar a convicção da sua responsabilidade, convicção que mais se acentua se se tiver em conta aquele dever de o FGA averiguar se existia, ou não, seguro para o QC-...-....

Sem prescindir,

Artigo 8°

Provada a inexistência de seguro para o QC-...-..., forçoso é concluir que a ré Seguradora alterou a verdade de facto pessoal relevante.

E, então, impunha-se - e impõe-se - a condenação da Seguradora como litigante de má fé, também em indemnização ao autor aqui recorrente pelos danos que para ele decorreram do acidente, ao menos na medida em que não possam ser cobrados do réu BB (alínea b) do na 2 do artigo 542º e alínea b) segunda parte, do na 1 do artigo 543º, ambos do Código de Processo Civil).

Artigo 9°

Os montantes fixados como indemnização ao autor recorrente dos danos pelas dores sofridas (€ 4.200,00), pela perda de natureza estética (€ 450,00) e pela perda da capacidade funcional devem elevar-se para os montantes peticionados ou, pelo menos, aproximar-se deles, pois que só assim se cumprirão adequadamente os dispositivos dos artigos 496°, n" 1, 562°, 564° e 566°, nºs 1 e 2, todos do Código Civil.

Artigo 10°

Os termos da certidão de fls. 771, não legitimam, ao contrário do entendimento da Relação, a conclusão de que a quantia aí mencionada se reporta também ao pagamento relativo aos salários em atraso.

Artigo 11°

Ademais, tendo o autor alegado que não lhe foram pagos os salários que lhe eram devidos à data da propositura da acção, porque tal constitui alegação de facto negativo, justifica-se a inversão do ónus da prova e teriam os réus que provar o pagamento.

Artigo 12º

Então, deve condenar-se no pagamento dos salários em atraso, peticionados pelo montante de € 1.890.000$00.

Artigo 13°

E esta quantia, bem como as que forem fixadas conforme concluído no artigo 9°, todas devem ser actualizadas de conformidade com a desvalorização monetária ocorrida desde a data da propositura da acção.

Artigo 14°

Julgando como julgou o Tribunal da Relação violou, nomeadamente, o disposto nos dispositivos legais que se deixaram identificados nos antecedentes artigos 1°, 3°, 5°, 8° e 9°.”


Os recorridos não contra-alegaram.


Cumpre decidir.


3. Vêm provados os seguintes factos:

1. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº …44 foi transferida para a interveniente “DD - Companhia Portuguesa de Seguros, S.A.” a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel de matrícula QC-...-...;

2. No dia 15 de Maio de 1994, cerca das 01h30, na Estrada Nacional nº 247, concelho de Sintra, ocorreu um acidente de viação entre os veículos de matrícula QC-...-..., 2-SNT-...-... e 75-96-...;

3. Provado apenas que o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula QC-...-... era conduzido pelo Réu BB;

4. No sentido Sintra/Ericeira;

5. À sua frente seguia um veículo de 3 rodas - triciclo com motor e caixa, matrícula 2-SNT-...-..., conduzido pelo Autor AA;

6. No sentido Ericeira/Sintra seguia pela sua faixa de rodagem o veículo de matrícula 75-96-..., conduzido pelo Autor II;

7. O veículo de matrícula QC-...-..., ao Km 64, na zona de Terrugem, embateu com a sua parte da frente na traseira do 2-SNT-...-...;

8. O qual, devido ao embate, saiu da sua faixa de rodagem;

9. Indo embater na frente do 75-96-... que circulava em sentido contrário;

10. O QC-...-... não conseguindo parar, foi embater novamente, já na faixa contrária, na traseira do 2-SNT-...-...;

11. O qual ficou entalado entre o QC-...-... e o 75-96-...;

12. Na ocasião do acidente o estado de tempo era chuvoso;

13. O piso estava molhado;

14. A visibilidade era boa;

15. Provado apenas que o piso estava molhado;

16. No 2-SNT-...-... circulavam quatro pessoas;

17. Em consequência do acidente o Autor AA sofreu politraumatismo;

18. Um traumatismo crânio-encefálico com perda de conhecimento durante 17 dias;

19. Fractura do fémur esquerdo, a que foi operado no Hospital FF no dia 15 de Maio de 1994;

20. Tendo-lhe sido feito um encavilhamento e de que resultou uma cicatriz com 50 cm de comprimento;

21. Um traumatismo abdominal, a que foi operado no Hospital FF no dia 09 de Junho de 1994, por hérnia abdominal interna traumática;

22. Voltando a ser operado aos intestinos no Hospital Distrital de … em 03 de Setembro de 1995, em consequência do traumatismo abdominal;

23. O Autor AA esteve internado no Hospital FF até 15 de Junho de 1994;

24. Sendo posteriormente transferido para o Hospital GG, do qual teve alta em 15 de Julho de 1994;

25. Voltando a ser internado no Hospital FF, e após no Hospital Distrital de … para ser operado uma segunda vez ao abdómen;

26. Em consequência do acidente o Autor AA ficou com sequela do traumatismo craniano encefálico, e com monoparelesia do membro inferior esquerdo;

27. Não tendo força em tal perna;

28. O Autor AA vai ser operado no dia 13 de Maio de 1997 à perna para lhe serem retirados os ferros que tem fixados no fémur da perna esquerda;

29. O Autor AA foi sujeito a tratamento no centro de Medicina de Reabilitação da Santa Casa da Misericórdia de …;

30. Em consequência do acidente o AutorAA teve dores intensas antes, durante e após as intervenções cirúrgicas a que foi submetido;

31. Não tendo força na perna afectada que lhe permitia exercer a actividade que à data do acidente exercia;

32. O funcionamento cerebral do Autor ficou afectado por desmemorização;

33. Não se lembrando de muitos factos passados, e não memorizando os actuais;

34. Perdendo capacidade de iniciativa sobre as coisas simples do dia-a-dia;

35. Auferindo, na data do acidente, a quantia mensal de Esc. 45.000$00 sob ordens, direcção e fiscalização de HH;

36. Na cabine do triciclo seguiam AA e JJ e na caixa do mesmo KK e LL.


4. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, estão em causa neste recurso as seguintes questões:

- Oponibilidade ao A. da prova da existência do contrato de seguro transferindo para a DD Seguros, S.A. a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel de matrícula QC-...-...;

- Resposta ao artigo 23º da base instrutória;

- Força probatória da apólice de seguro;

- Responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel;

- Condenação da DD Seguros, S.A. por litigância de má fé;

- Fixação dos montantes indemnizatórios.


5. Invoca o Recorrente que, apesar de nos autos ter sido feita prova da existência de seguro, essa prova não lhe é oponível por ter sido fixada no despacho saneador sem precedência de contraditório, em resultado de ter sido a apólice de seguro junta a processo ao qual a acção do A. foi apensada.

        Não pode o A. considerar-se prejudicado pela apensação dos processos. Dispunha de todos os meios processualmente admissíveis para, em devido tempo, apresentar as suas provas e controlar a produção de prova feita em todos os processos apensados.


6. Pretende o A. que seja alterada a resposta ao artigo 23º da base instrutória, invocando:

“No artigo 23° da Base Instrutória perguntava-se: «Em 1994.05.15 o QC-...-... não dispunha de seguro válido e eficaz?». Recebeu em 1ª instância esta resposta: «Não se responde por se tratar de matéria conclusiva e/ou de direito».

O recorrente impugnou, por entender que apenas o segmento «válido e eficaz» justificava tal resposta, já que a alegação de que naquela data o QC-...-... não dispunha de seguro é forma adequada de alegar a inexistência do seguro. O Tribunal da Relação julgou, em quase concordância com ala instância, que a pergunta do artigo 230 é de «cariz conclusivo» e que «não cabe responder-lhe».

Discorda-se. E, porque saber se determinado facto é, ou não, «de cariz conclusivo» é, em si, matéria de direito, requere-se, naturalmente, que se ordene às instâncias que respondam a este facto.”

     Tendo sido feita prova da existência do contrato de seguro pela junção da apólice aos autos, qualquer que fosse a resposta (provado/não provado) ao artigo 23º da base instrutória não teria tido relevância para a decisão do caso.


7. A responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel (art. 21º, nº 2, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, em vigor à data do acidente) tem como pressuposto a inexistência de contrato de seguro de responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel cujo condutor foi julgado único responsável pelo acidente. Nos termos gerais (art. 342º, nº 1, do CC) “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, exigência que abrange tanto a prova de factos positivos como de factos negativos. Na verdade, contrariamente ao alegado pelo A., “A dificuldade da prova dos factos negativos não constitui (…) fundamento de distribuição do ónus da prova, afastando assim o princípio segundo o qual ‘negativa non sunt probanda’” (Rita Lynce, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Univ. Católica Editora, 2014, pág. 812).

À data do acidente estava em vigor a exigência de forma escrita para a celebração do contrato de seguro, nos termos do art. 426º do Código Comercial, que dispunha que “O contrato de seguro deve ser reduzido a escrito num instrumento, que constituirá a apólice de seguro.” O documento “apólice” constituía um requisito ad substanciam e ad probationem da existência de seguro. A sua junção aos autos faz prova plena da existência de seguro (art. 376º, nº 1, do CC). Não pode sequer colocar-se a hipótese de existência de prova confessória em contrário.

 Em conclusão, não só não foi feita prova da inexistência de seguro como foi feita prova do contrário, isto é, da existência de seguro. Não se verifica, pois, um dos pressupostos essenciais da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel.


8. Não sendo a DD Seguros, S.A., parte na acção, não pode ser apreciada a pretensão recursória do A. na sua condenação por litigância de má fé.


9. Tendo transitado em julgado a condenação do R. BB, há que apreciar as pretensões do Recorrente; (i) De que sejam pagos os salários não anteriores à interposição da acção; (ii) De que sejam aumentados os montantes indemnizatórios fixados pela 1ª instância e confirmados pela Relação; (iii) De que todas as quantias indemnizatórias “devem ser actualizadas à data da propositura da acção.”

Relativamente aos salários não recebidos, o conteúdo da Certidão da Segurança Social (fls. 771), documento com força probatória plena não permite concluir como as instâncias fizeram. Com efeito, dela consta o seguinte: “ao beneficiário …95 - AA, foi pago por este Centro o montante de €14.519,09 (Catorze Mil quinhentos e dezanove Euros e vinte e seis Cêntimos), referente a pensões de invalidez absoluta de 2008.03.05 a 2011. 10. 31.” Está, pois, em causa o pagamento de pensões de invalidez correspondentes ao período compreendido entre os anos 2008 e 2011 e não salários do período compreendido entre a data do acidente (15/05/1994) e a data da interposição da acção (08/05/1997).

Não sendo possível concluir, como as instâncias, que o valor dos salários peticionado foi pago ao A. pela Segurança Social, tal valor – 1.890.000$00, o que equivale a €9.427,28 – é devido pelo R. BB.


10. Antes de passar à apreciação da indemnização por incapacidade funcional, pelo quantum doloris e pelo dano estético, há que recordar os seguintes critérios gerais a seguir:

- O princípio geral da obrigação de indemnizar consiste na reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º, do CC). A reconstituição natural é substituída pela indemnização em dinheiro quando se verificar alguma das situações do nº 1, do art. 566º, do CC: “sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”. A indemnização deve abranger os danos emergentes e os lucros cessantes (art. 564º, nº 1, do CC) e o seu cálculo deve ser feito segundo a fórmula da diferença, prevista no nº 2, do art. 566º, do CC (“a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”). Contudo, se o montante dos danos for indeterminado e, por isso mesmo, a fórmula da diferença não puder ser aplicada, “o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados” (nº 3, do art. 566º, do CC);

- A compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º, nº 1, do CC), não pode – por definição – ser feita através da fórmula da diferença. Deve antes ser decidida pelo tribunal segundo um juízo de equidade (art. 496º, nº 4, primeira parte, do CC), tendo em conta as circunstâncias previstas na parte final do art. 494º, do CC;

- Como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 6 de Abril de 2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28 de Outubro de 2010, proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, proc. nº 381/2002.S1, todos em www.dgsi.pt), “a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito»”; se é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não lhe “compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»”;

- A sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto. Nos termos do acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Janeiro de 2012, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1, www.dgsi.pt, “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição”. Exigência plasmada também no art. 8º, nº 3, do CC: “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”;

- A afectação da integridade físico-psíquica (em si mesma um dano evento, que, na senda do direito italiano, tem vindo a ser denominado “dano biológico”) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial. Na primeira categoria não se compreende apenas a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais (neste sentido, decidiram os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Junho de 2015 (proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1), de 19 de Fevereiro de 2015 (proc. nº 99/12.7TCGMR.G1.S1), de 7 de Maio de 2014 (proc. nº 436/11.1TBRGR.L1.S1), de 10 de Outubro de 2012 (proc. nº 632/2001.G1.S1), e de 20 de Outubro de 2011 (proc. nº 428/07.5TBFAF.G1.S1), todos em www.dgsi.pt.).

Tendo presentes os critérios gerais que aqui sumariámos, passamos a aplicá-los ao caso dos autos.


11. Quanto à indemnização pela “incapacidade funcional”, saliente-se que, em geral, a reparação dos danos patrimoniais futuros de vítimas muito jovens. como a dos autos oferece, nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Outubro de 2012 (proc. nº 632/2001.G1.S1, www.dgsi.pt) “problemas particularmente delicados nos casos (…) em que o lesado se encontrava ainda numa fase inicial da sua vida profissional, seriamente afectada pelas irremediáveis sequelas das lesões físicas sofridas – envolvendo a necessidade de realizar previsões que abrangem muitíssimo longos períodos temporais, lidando com dados que – nos planos social e macro económico – são, em bom rigor, absolutamente imprevisíveis no médio e longo prazo (por ex., evolução das taxas de inflação ou da taxa de juro, alterações nas relações laborais e níveis remuneratórios, possíveis ganhos de produtividade ao longo de décadas, etc.)”.

No caso sub judice, tal tarefa está, contudo, simplificada pela circunstância de, tendo o A. sido reformado por invalidez em 2008 e tendo o julgamento em 1ª instância terminado apenas em 2013, os danos patrimoniais serem, parcialmente, passados em relação ao momento da prolação da sentença.

Vejamos em que termos.

Foi provado que o A. ficou a padecer de incapacidade geral permanente (IGP) fixada em 23%, e de incapacidade total permanente para o exercício da sua profissão habitual. A sua incapacidade geral permanente era, ainda assim, compatível com o exercício de actividades profissionais no âmbito da sua preparação técnica, embora exigisse esforços acrescidos para o seu desempenho. Mas era incompatível com todas as actividades que exigissem esforços violentos com os membros e/ou faculdades de equilíbrio.

Se, em teoria, a incapacidade geral permanente de 23% do A. não o impedia de exercer outra actividade profissional – e ainda que não se saiba qual a concreta profissão que exercia à data do acidente –, há prova feita de que a lesão sofrida o obrigou ao abandono da profissão habitual pela qual recebia uma remuneração inferior ao salário mínimo à data do acidente e de que a dita lesão passou a impedi-lo de exercer actividades que exigissem esforço físico, dados que indiciam uma impossibilidade prática de encontrar alternativas profissionais efectivas. Deste modo, a fixação da indemnização por danos patrimoniais deve incluir a perda de salários pelo período de tempo compreendido entre a interposição da acção (08/05/1997) e a data da reforma por invalidez (05/03/2008). O que corresponde aproximadamente ao valor de €52.000, que as instâncias fixaram como indemnização pela “incapacidade funcional”, valor que se considera ser justo e equitativo.


12. Para além dos danos patrimoniais consistentes em perda de rendimentos laborais da profissão habitual, segue-se a orientação deste Supremo Tribunal, supra referida, de procurar ressarcir as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade laboral para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais. Trata-se das consequências patrimoniais do denominado “dano biológico”, expressão que tem sido utilizada na lei, na doutrina e na jurisprudência nacionais com sentidos nem sempre coincidentes. Na verdade, a lesão físico-psíquica é o dano-evento, que pode gerar danos-consequência, os quais se distinguem na tradicional dicotomia de danos patrimoniais e danos não patrimoniais (cfr. tratamento mais desenvolvido pela relatora do presente acórdão, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, 2015, págs. 69 e segs.). Com esta precisão, a indemnização pela perda da capacidade de ganho, tem a seguinte justificação, nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012, cit.: “a compensação do dano biológico [dentro das consequências patrimoniais da lesão físico-psíquica] tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.”

        Entende-se que o aumento da penosidade e esforço para realizar as tarefas diárias pode ser atendido no âmbito dos danos patrimoniais (e não apenas dos danos não patrimoniais), na medida em que tenha como consequência provável a redução da capacidade de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.

“A perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável - e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, - erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais” (acórdão do Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012, cit.).

No caso sub judice, está comprovada uma elevada repercussão da incapacidade geral permanente do A. na capacidade para o exercício de outras actividades profissionais e/ou económicas, pois, após o acidente, não encontrou profissão alternativa e veio a reformar-se por invalidez, com apenas 31 anos de idade, com uma pensão de valor extremamente reduzido (€303,23, no ano 2008).

 Na jurisprudência deste Supremo Tribunal (acórdãos de 4 de Junho de 2015, cit., de 19 de Fevereiro de 2015, cit., de 7 de Maio de 2014, cit., de 10 de Outubro de 2012, cit. e de 20 de Outubro de 2011, cit.) a atribuição ou confirmação de uma indemnização por tal incapacidade, seguindo o critério da equidade, conforme previsto no art. 566º, nº 3, do CC, variou essencialmente em função dos seguintes factores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho em profissão ou actividade económica alternativa, aferidas, em regra, pelas suas qualificações.

No caso dos autos, é certo que, ainda que não se saiba quais eram as habilitações do A., há indícios (o reduzido valor da sua remuneração laboral à data do acidente; o facto de a lesão de um membro inferior o ter incapacitado para o exercício da sua profissão habitual) de que não seriam elevadas. Mas, por outro lado, o facto de ter apenas 17 anos de idade à data do acidente (1994) e de a esperança de vida, nessa data, dos homens nascidos em 1977 se situar aproximadamente pelos 70 anos, não pode deixar de se considerar que ainda teria pela frente – durante quatro, cinco ou seis décadas – muitas oportunidades de “progredir na vida”, oportunidades que, não por mera conjectura, mas pela certeza resultante do facto de, entretanto ter passado à situação de reforma por invalidez aos 31 anos, lhe foram cerceadas.

Não tendo as instâncias considerado esta vertente da indemnização, considera-se que seria justo e equitativo atribuir uma indemnização de €50.000. Devido à limitação do pedido, fixa-se esta indemnização em €45.186,50.


13. No que respeita aos danos não patrimoniais, limitou-se o A. a peticionar apenas compensação pelo quantum doloris e pelo dano estético.

A indemnização pelo quantum doloris (de grau 5 na escala de 7) foi fixada pelas instâncias em €4.200,00. O A. pretende que seja aumentada para o valor peticionado: €9.975,96.

Foi provado que o A. foi submetido a quatro operações, que padeceu “dores intensas antes, durante e após as intervenções cirúrgicas a que foi submetido”, que esteve internado por longos períodos, que teria ainda de se submeter a mais duas operações com os correspondentes períodos de internamento, que teve de efectuar tratamentos de reabilitação.

Relativamente ao dano estético (de grau 4 na escala de 7), o A. peticionou €2.992,78. Pelas instâncias foram arbitrados €450,00.

Os factos relevantes são os seguintes: “Fractura do fémur esquerdo, a que foi operado no Hospital FF no dia 15 de Maio de 1994”; “Tendo-lhe sido feito um encavilhamento e de que resultou uma cicatriz com 50 cm de comprimento”.

A jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal não tem autonomizado o quantum doloris e o dano estético dentro dos danos não patrimoniais. Mas o A. apenas peticionou indemnização por estas duas componentes dos danos não patrimoniais.

Não obstante, há ter em conta a jurisprudência em matéria de danos não patrimoniais decorrentes de lesões físicas de gravidade. Indicam-se em seguida algumas decisões:

- Manteve-se a compensação de €30.000 por danos não patrimoniais, tendo em atenção que: o autor sofreu diversas fracturas no membro superior e teve de ser operado; esteve internado durante um mês e foi acompanhado com consultas durante vários meses; teve de usar um colete ortopédico; apresenta limitações das mobilidades do braço; (iv) ficou com duas cicatrizes; teve um quantum doloris de grau 4 numa escala ate 7; sofreu ansiedade, medo e angústia (acórdão de 18 de Dezembro de 2013, proc. nº 1749/06.0TBSTS.P1.S1, www.dgsi.pt);

- Fixou-se em €70.000 o montante da compensação por danos não patrimoniais , tendo em conta as lesões advindas para a lesada na sequência de acidente de viação, sua natureza, características e localização, sequelas, internamentos, intervenções cirúrgicas, tratamentos, dores, incómodos notórios, sendo que a lesada correu risco de vida, e durante alguns meses, movimentou-se em cadeira de rodas, voltou-lhe a incontinência, passando a usar fralda, e deixou de tripular viaturas a motor na via pública, necessitando de ajuda parcial de terceira pessoa para as tarefas domésticas (acórdão de 20 de Março de 2014, proc. nº 7782/10.0TDPRT.P1.S1, www.dgsi.pt);

- Considerou-se adequado o montante compensatório dos danos não patrimoniais de € 80.000, relativamente a pessoa de 25 anos que: sofreu lesões que demandaram período longo até à estabilização; ficou com paralisia parcial, com parestesias nos dedos da mão esquerda, na metade esquerda dos líbios, hemilíngua e hemiface esquerda; passou a sentir dormência na cara e ponta dos dedos e lado esquerdo, com dificuldades em comer e mastigar principalmente do lado esquerdo; perdeu força na mão, braço e perna esquerdas; tem desequilíbrios na perna esquerda; abandonou o desporto e a dança; sofre irritabilidade, insónias, alguma perda de memória e coordenação de ideias, tendo momentos de grande depressão e ansiedade; ficou com duas cicatrizes de 6x2 cm na face anterior duma das pernas, não indo, por isso, à praia, nem usando calções e saias (acórdão de 7 de Maio de 2014, proc. nº 436/11.1TBRGR.L1.S1, www.dgsi.pt);

- Manteve-se em €10.000 o montante da compensação por danos não patrimoniais de lesada que, sendo saudável e com 24 anos à data do acidente, sofreu dores, teve de ser assistida e fazer tratamentos, suportando limitações na sua vida habitual durante cerca de um mês, teve insónias e pesadelos (acórdão de 20 de Novembro de 2014, proc. nº 5572/05.0TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt);

- Considerou-se adequada a quantia de €20.000, arbitrada a título de danos não patrimoniais, tendo em atenção que: à data do acidente o autor tinha 43 anos de idade; em consequência do acidente sofreu fracturas no braço; foi submetido a exames radiológicos e sujeito a imobilização do ombro; foi seguido clinicamente e submetido a uma intervenção cirúrgica; foi submetido a tratamento fisiátrico; mantém material de osteossíntese no osso escafóide; teve de permanecer em repouso; ficou com cicatriz com 5 cms, vertical, na face anterior do punho; teve dores no momento do acidente e no decurso do tratamento; e as sequelas de que ficou a padecer continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodos e mal-estar que o vão acompanhar toda a vida, tendo o quantum doloris sido fixado em 4 numa escala até 7 (acórdão de 19 de Fevereiro de 2015, 99/12.7TCGMR.G1.S1, www.dgsi.pt);

- Confirmou-se a compensação dos danos não patrimoniais por €40.000, tendo em consideração: as circunstâncias do acidente, o sofrimento que implicou, os tratamentos médicos, intervenções, internamentos e períodos que se lhe seguiram que se prolongaram no tempo, tendo a lesada tido alta mais de 4 anos depois do acidente; a repercussão não patrimonial da incapacidade parcial permanente fixada à autora; as sequelas do acidente, as repercussões estéticas, as dores e demais sofrimentos que se prolongarão pela vida da autora, que à data do acidente era saudável e tinha apenas 17 anos; e, finalmente, o grau de culpa da condutora do veículo causador do acidente, que resultou de uma infracção séria às regras de circulação automóvel (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 4 de Junho de 2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, dgsi.pt).

Reafirma-se que não é possível fazer uma comparação directa do caso dos autos com estas decisões, uma vez que só foi peticionada indemnização parcial dos danos não patrimoniais, em concreto, pelo quantum doloris e pelo dano estético, no valor conjunto de €12.420,06.

Mas pode concluir-se que, se o A. tivesse pedido indemnização pela totalidade dos danos não patrimoniais, o valor adequado de compensação situar-se-ia em não menos que €40.000. Parte significativa dos quais pelas duas variáveis de danos peticionados. É pois adequado elevar o montante da compensação até ao valor do pedido: €12.420,06.


14. Pretende o A. que todas as quantias indemnizatórias “devem ser actualizadas de conformidade com a desvalorização monetária ocorrida desde a data da propositura da acção”. Porém, como foi entendido no acórdão recorrido, os valores de indemnização arbitrados pela 1ª instância e confirmados pela Relação, foram actualizados à data da sentença, como resulta da seguinte passagem: “Todavia, é de referir que tal cálculo das indemnizações a pagar pelos Réus condenados a tal, foi efectuada tendo em atenção o valor que as mesmas indemnizações têm em conformidade com o poder de compra actual, o valor da moeda em 2013, pelo que não há necessidade de se proceder a qualquer outro ajustamento dos montantes aqui em estudo.

Atendeu-se assim aos bens e aos serviços que o valor correspondente às indemnizações atribuídas pode comprar ou adquirir em 2013, critério esse que presidiu à decisão aqui em causa.

O ajustamento foi assim feito aquando da determinação concreta dos valores indemnizatórios tal como mencionados supra, pelo que nada mais há a determinar nesta matéria.”

      Em consequência, os montantes indemnizatórios relativos à “incapacidade funcional” e aos danos não patrimoniais invocados consideram-se devidamente actualizados à data da sentença.

     Distinto tem de ser o tratamento do valor dos “salários não recebidos” (€9.427,28), correspondentes ao período compreendido entre a data do acidente (15/05/2015) e a data da interposição da acção (08/05/1997), que, não tendo sido aceites pelas instâncias, não foram objecto de qualquer actualização.

Recorrendo aos índices de inflação do INE, sem custos de habitação, respeitantes ao período assinalado, o valor actualizado à data da sentença corresponde a €12.449,36.


15. Não tendo sido petecionados juros de mora sobre qualquer das parcelas indemnizatórias, não são devidos juros desde a data de prolação da sentença, nos termos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 9/2015, que estabelece: “Se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros”.


16. Concede-se parcialmente a revista, mantendo-se a absolvição do Fundo de Garantia Automóvel, e mantendo-se a condenação do R. BB, com alteração dos montantes de indemnização devidos: €12.449,36 (pelos salários não recebidos); €52.000 (por perda de rendimentos entre a data da interposição da acção e a data da reforma por invalidez); €45.186,50 (por perda de capacidade de ganho); €12.420,06 (pela parcela dos danos não patrimoniais peticionados), no total do valor peticionado: €122.055,82.


Custas pelo Recorrido BB.


Lisboa, 28 de Janeiro de 2016


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Bettencourt de Faria

João Bernardo