Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1223/13.8TBPFR-C.P1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO
CONSTITUIÇÃO
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
HIPOTECA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 12/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - MASSA INSOLVENTE E CLASSIFICAÇÕES DOS CRÉDITOS.
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / HIPOTECA.
Doutrina:
- Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Anotado, 3.ª ed., 298.
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª ed., 245.
- Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Anotado, 3.ª ed., 96.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, N.º1, 687.º.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 47.º, N.º 4 ALÍNEAS A), B)E C), 48.º, AL. A), 49.º, N.º 1, ALÍNEA B).
Sumário :
I. A alínea a) do art. 48.º do CIRE estabelece uma presunção inilidível.

II. Questão diversa da natureza da presunção, é a da definição da abrangência ou dos limites de aplicação dessa norma.

III. O conjunto normativo formado pelos art.ºs 48º, alínea a), 1ª parte, e 49º, alínea b) do CIRE deve ser interpretado restritivamente, de modo a abranger na sua previsão apenas os casos em que se possa estabelecer logica e razoavelmente um nexo temporal que coenvolva ou comprometa a razão de ser da norma (a pressuposta superioridade informativa do credor sobre a situação do devedor) com a condição insolvencial do devedor.

IV. Não tem aplicação tal conjunto normativo quando se mostra que a constituição do crédito está tão afastada no tempo do início do processo de insolvência que, dentro da normalidade das coisas, se trata de dois acontecimentos totalmente independentes, isto é, sem qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si.

V. É o que se passa quando o crédito foi constituído cerca de 12 anos antes do início do processo de insolvência, inclusivamente em momento em que a figura dos créditos subordinados ainda não existia legalmente.

Decisão Texto Integral:

Processo nº 1223/13.8TBPFR-C.P1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação do ...

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

Por sentença de10 de janeiro de 2014, foi decretada a insolvência de AA, fixando-se o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos.

Reclamados os créditos, apresentou o Administrador da Insolvência a lista dos créditos que considerou reconhecidos e não reconhecidos.

O credor BB, que havia reclamado, e como garantido por hipoteca voluntária, um crédito de €187.317,46 (capital de €124.699,47, mais juros vencidos e despesas), viu reconhecido apenas o crédito de €124.699,47, que foi qualificado pelo Administrador como subordinado.

Impugnou então tal credor a lista, nos termos do art. 130º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), pugnando pela verificação do seu crédito nos precisos termos (montante e garantia) em que o reclamou.

Foram apresentadas respostas à impugnação por parte de três outros credores (CC, DD e EE, S.A.), concluindo todos pela improcedência da impugnação.

Também o Administrador de Insolvência se pronunciou sobre a impugnação, mantendo o seu ponto de vista quanto ao montante e natureza do crédito.

Seguindo o processo seus termos, veio a ser proferida sentença (Sec. Comércio - Inst. Central - … - Comarca do …) que julgou parcialmente procedente a impugnação, fixando em €180.745,90 o montante do crédito do Impugnante, e que o qualificou como subordinado. De seguida, procedeu-se à graduação dos créditos.

Inconformado com o assim decidido no tocante à qualificação do crédito, apelou o Impugnante BB.

Fê-lo sem sucesso, pois que a Relação do …, por unanimidade e sem fundamentação essencialmente diferente, confirmou a sentença recorrida.

Mantendo-se inconformado, interpôs o Impugnante a presente revista excecional.

A formação de juízes a que alude o nº 3 do art. 672º do CPCivil admitiu a revista excecional, com fundamento em estar o acórdão recorrido em contradição com o acórdão da Relação de Coimbra de 21 de janeiro de 2014, proferido no processo nº 1365/13.0TBLRA.C1 (disponibilizado em www.dgsi.pt).

Da respetiva alegação extrai o Recorrente as seguintes conclusões (transcrevem-se apenas as que ainda mantêm utilidade para o caso):

15ª. O acórdão recorrido está em contradição com outro já transitado em julgado, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do Proc. 1365/13.0 TBLRA.C1, proferido a 21/01/2014 e publicado em www.dgsi.pt. sendo, as questões aí visadas exatamente iguais aquelas que aqui se pretendem ver tratadas.

16ª. No acórdão fundamento o que está em causa é saber se existe uma presunção inilidível relativamente a todos os créditos detidos por alguma pessoa especialmente relacionada com o devedor, desde que tal relação existisse à data da constituição do crédito.

17ª. Mais se refere no acórdão fundamento a questão da antiguidade da constituição do crédito em causa face à data da declaração de insolvência.

18ª. Os créditos constituídos pelo devedor nas cercanias do pedido de insolvência, com quaisquer das pessoas com ele especialmente relacionadas, visando beneficiá-lo e com isso prejudicar demais credores, devam ser considerados como subordinados, não permitindo a lei, por se tratar de presunção inilidível, prova em contrário.

19ª. Já assim não se deverá entender, como não entendeu o douto acórdão fundamento, naquele caso em concreto, em tudo similar ao dos presentes autos, visto que, sobretudo pela anterioridade da constituição do crédito (bastante anterior aos 2 anos a que alude a alínea a) do artigo 48º do CIRE), a relação familiar não releva para este efeito, na medida em que o crédito não emerge dessa relação familiar.

20ª. Nestes autos, a natureza do crédito do recorrente sobre o insolvente foi objeto de uma decisão da 1 ª instância no sentido do seu reconhecimento (reconhecimento operado por decisão judicial).

21ª. A relação familiar aqui em causa, nestes autos, como naqueles referidos no acórdão fundamento, sobretudo pela anterioridade temporal da constituição do crédito relativamente à data da declaração de insolvência (no caso ora em análise mais de 11 anos!!!)

22ª. E pelo reconhecimento operado por decisão judicial do crédito do credor sobre o insolvente (decisão tomada pela 1 ª instância e mantida pelo Tribunal da Relação do …, in casu) em tudo é semelhante à do acórdão fundamento.

23ª. Na continuação de tudo quanto acima ficou exposto, a questão que ora se coloca é a de saber se uma interpretação literal do quadro legal (artigos 48º, alínea a) e 49º nº 1 alínea b) do CIRE) nos levará a concluir pela existência de uma presunção inilidível quanto a todos os créditos detidos por qualquer pessoa especialmente relacionada com o devedor, devendo, por conseguinte, tais créditos, serem qualificados como subordinados.

24ª. Tal não pode ser a interpretação a dar à conjugação dos preceitos indicados, nos termos do artigo 9º do Código Civil.

26ª. Quando estamos perante situações como aquela dos presentes autos em que, por virtude de uma clara e evidente anterioridade do crédito por referência à data de entrada da petição de insolvência (mais de 11 anos, como se tem vindo de referir), acrescida do facto desse crédito ter até acabado por ser reconhecido pela própria sentença proferida em 1 ª instância,

27ª. Conduzirá, inelutavelmente, a que a relação especial entre o credor e o devedor não releve para o efeito pretendido, na medida em que o crédito não emerge de qualquer relação especial, tendo sido constituído em data em que ninguém, na sua perfeita e total boa-fé, imaginaria que o devedor pudesse vir a ser declarado insolvente 11 anos após!

28ª. A causa de ser da constituição do crédito (confissão de dívida emanada de uma escritura pública, transversal a dois irmãos, ambas garantidas por hipotecas voluntárias) é totalmente alheia a qualquer relação especial entre credor e devedor, não tendo sido realizada quando o devedor se encontrava numa situação de insolvência ou de pré-insolvência.

29ª. Assim sendo, tal crédito, pelos motivos expostos, nunca poderá ser qualificado como subordinado, mas, ao invés, deverá ser qualificado como comum e, neste caso, até, garantido pela hipoteca validam ente constituída.

30ª. Não podendo então ser considerada a presunção legal como inilidível, devendo, se assim se entendesse, ser dada a possibilidade ao credor de demonstrar as suas razões de facto, coisa que nunca se verificou nestes autos.

31ª. Efetuou o acórdão recorrido do Tribunal da Relação do … uma errada interpretação dos artigos 48º e 49º do CIRE, violando o disposto no artigo 9º do Código Civil.

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Não se mostra oferecida qualquer contra alegação.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

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É questão a conhecer:

- A da qualificação do crédito do ora Recorrente.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

De Facto:

Estão provados os factos seguintes, tal como indicados no acórdão recorrido:

1. Por escritura pública de confissão de dívida e hipoteca, celebrada em 28 de junho de 2002, o ora Insolvente AA e mulher CC confessaram-se devedores a BB da quantia de €124 699,47, que este lhes emprestou em 01 de junho de 2002, pelo prazo de 112 meses, sem quaisquer juros; mais se obrigaram a devolver a referida quantia em prestações mensais, iguais e sucessivas, pagando a quantia mensal de €1.113,39, vencendo-se a primeira no dia 8 de dezembro de 2002 e as demais em igual dia dos meses subsequentes, sendo que o não pagamento de duas prestações seguidas ou de quatro interpoladas implicava o imediato vencimento das prestações ainda em dívida. Declararam ainda que para garantia do bom pagamento do capital, dos juros de mora, bem como das despesas judiciais e extrajudiciais, que se fixaram para efeitos de registo em €5.000,00, constituíam hipoteca a favor do credor sobre a raiz ou nua propriedade do prédio urbano constituído de casa de rés-do-chão, dois andares, sótão e logradouro, sito no lugar de ..., da freguesia de ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de … sob o n.º 0181 e inscrito na matriz respetiva sob o artigo 0263.º;

2. O ora Insolvente AA é filho de BB e FF.

3. A referida hipoteca foi registada em 28 de setembro de 2012 (montante máximo assegurado: €129.699,47).

Mais está autenticamente documentado nos autos que:

- A insolvência do Devedor AA foi declarada em 10 de janeiro de 2014 e o processo de insolvência foi iniciado em 2013;

- Por escritura pública de 22 de agosto de 2008 o ora Insolvente declarou dar a BB, que por sua vez declarou receber, a título de dação em cumprimento, a supra referida nua propriedade, para pagamento integral da também referida quantia de €124.699,47 (certidão de fls. 80 e seguintes);

- Tal dação em cumprimento foi declarada nula, por simulação, mediante sentença de 4 de janeiro de 2012, confirmada por acórdão de 13 de setembro de 2012. (idem)

De Direito:

Está em causa a qualificação do crédito do ora Recorrente.

Diferentemente do que decidiram as instâncias, o Recorrente sustenta que o seu crédito não pode ser qualificado como subordinado.

Crédito esse que, recorde-se, é de €180.745,90, conforme estabelecido definitivamente na sentença da 1ª instância (nem na presente revista nem na apelação interposta para o tribunal ora recorrido foi posto em causa o decidido quanto à existência e montante desse crédito).

Regem para o caso os art.s 47º, nº 4, alíneas a) e b), 48º, alínea a) e 49º, nº 1, alínea b) do CIRE (diploma a que pertencem as normas adiante referidas sem menção a outra fonte), na certeza de que o credor em causa, o Recorrente, é ascendente (pai) do Insolvente.

Efetivamente, estabelece a alínea a) do art. 48º, no que interessa aqui, que:

- Consideram-se subordinados os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva aquisição.

Estabelece a alínea b) do nº 1 do art. 49º, no que também interessa aqui, que:

- São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa singular, os ascendentes.

Deste conjunto normativo retira-se, portanto, que os créditos detidos pelo pai daquele que é declarado insolvente se consideram subordinados, sendo assim graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência.

Da forma como o art. 48º (“Consideram-se subordinados…”) e o art. 47º nº 4 alínea b) («Subordinados», os créditos enumerados no artigo seguinte…) se encontram redigidos (elemento literal da interpretação), é de concluir que a hipótese da alínea a) do art. 48º não admite discussão factual que possa levar a outra qualificação do crédito. Por isso se tem entendido (embora não se trate de questão pacífica), e cremos que bem, que lidamos neste particular com uma presunção inilidível. Dizem a propósito Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª ed., p. 298) que “O que está aqui em causa é, precisamente, a presunção de os atos praticados pelo insolvente, para mais num período vizinho da abertura do processo de insolvência, com pessoas que, por uma razão ou outra, lhe são próximas, tenderem a beneficiá-las. Daí que, se de tais atos resultam créditos, estes, em caso de consumação da insolvência, devem ficar sujeitos a um tratamento menos favorável que a generalidade dos demais (…). Sublinhe-se, no entanto, que a presunção referida é inilidível (…) ”. Este ponto de vista quanto ao caráter iuris et de iure da presunção é partilhado por outros autores (assim, por exemplo, Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª ed., p. 96).

Porém, ponto diferente e não contraditório com o que acaba de ser dito, é saber se não haverá que proceder a uma interpretação restritiva das normas em questão.

Pensamos que sim.

Assim o impõe a boa interpretação da lei, aliás dentro do comando ao art. 9º nº 1 do CCivil.

Ora, interessa ter presente, no que respeita á razão de ser (elemento racional ou teleológico da interpretação) das estatuições da alínea a) do art. 48º e do nº 1 do art. 49º, o que consta do preâmbulo do DL nº 53/2004, diploma que aprovou o CIRE. Retira-se daí (ponto 25), na síntese de Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 245), que a filosofia subjacente à classificação como subordinados dos créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor deve-se «”à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor relativamente aos demais credores”, por um lado, e, por outro, ao aproveitamento dessas relações especiais feito pelo próprio devedor para frustrar as finalidades do processo de insolvência» (à semelhança, aliás, de outros mecanismos previstos no CIRE, como seja a resolução de atos em benefício da massa insolvente).

Sendo esta a razão de ser inerente à estatuição legal, logo se imporá interpretar os citados normativos de modo a abranger na sua previsão apenas (interpretação restritiva) os casos em que se possa estabelecer logica e razoavelmente um nexo temporal que de alguma forma coenvolva ou comprometa a suposta superioridade informativa (ou o aproveitamento feito pelo devedor) com uma futura condição insolvencial. O que é dizer, noutra formulação, só fará sentido considerar para o efeito um “período vizinho da abertura do processo de insolvência” (na expressão dos supra citados autores), e não já um qualquer período sem limite algum. A lei procura subalternizar os créditos daqueles de quem admite que possam ter agido de má-fé ou com ligeireza (estariam em condições de conhecer a situação em que se encontrava o devedor, logo é justo que vejam os seus créditos receberem um tratamento menos favorável) com reporte a uma atual ou futura situação económica deficitária do devedor, e isto só se concebe, com um mínimo de razoabilidade, quando, precisamente, exista alguma proximidade entre uma coisa e outra. A própria lei, no caso previsto na última parte da alínea a) do art. 48º, mostra-se sensível à necessidade de haver limites temporais (dois anos anteriores ao início do processo de insolvência), opção esta que, mutatis mutandis, bem pode aqui ser usada para reforçar a bondade da ideia de que também em caso como o vertente haverá que atender a algum tipo de limite temporal. (O mesmo se poderia dizer a partir das hipóteses da alínea a), 2ª parte e d) do art. 49º).

Podemos assim concluir que não têm aplicação a alínea a) do art. 48º e a alínea b) do nº 1 do art. 49º quando se mostra que a constituição do crédito está de tal forma afastada no tempo do início do processo de insolvência que, dentro da normalidade das coisas, se trata de dois acontecimentos totalmente independentes, isto é, sem qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si. Em um tal caso, a especial relação entre credor e devedor apresenta-se, para os fins ora em discussão, como indiferente ou irrelevante no que tange à constituição do crédito que virá depois a ser reclamado na insolvência. E isto afigura-se-nos ademais de realçar quando o crédito é reportado a momento tão distante que vai cair numa altura em que a figura dos créditos subordinados nem sequer existia ainda no plano legal, hipótese em que não seria exigível ao credor especialmente relacionado com o devedor que representasse a possibilidade de subalternização do seu crédito em caso de uma eventual insolvência do devedor (note-se que não estamos aqui a emitir qualquer juízo acerca da aplicação do CIRE no tempo, mas apenas a significar a ilogicidade de se interpretar a norma em causa sem levar em linha de conta o fator tempo).

Passando agora ao caso vertente:

Está provado que o crédito do ora Recorrente se formou ou constituiu em junho de 2002. Data esta, inclusivamente, anterior ao surgimento do CIRE e da figura dos créditos subordinados.

Está provado que a insolvência do Devedor foi requerida em 2013 e declarada em janeiro de 2014.

Entre aquele primeiro acontecimento e o conjunto destes dois últimos passaram cerca de 12 anos.

Donde, nada estando alegado ou provado factualmente que revele ou sequer sugira o contrário, a conclusão que se impõe, dentro do que é normal acontecer, é que estamos perante acontecimentos completamente independentes entre si, isto é, sem qualquer correlação, conotação, afinidade ou implicação recíproca. Efetivamente, é difícil conceber, ademais no contexto de um mundo moderno sempre em mudança e comandado por variáveis económicas imprevisíveis e incontroláveis, que a cerca de 12 anos de vista se possa representar relevantemente (isto é, com rebate numa possível futura insolvência e na justa liquidação do ativo no confronto de outros potenciais credores) o que quer que seja em termos de superioridade informativa sobre as condições do devedor relativamente aos demais credores.

Daqui que não pode ter-se como elegível para regular uma tal situação a alínea a) do art. 48º. A questão, anote-se, não é de ilisão de qualquer presunção juris tantum - já vimos que, ao invés, está em causa uma presunção juris et de jure - mas sim de definição dos limites ou abrangência da estatuição dessa norma em termos temporais. E tal definição, fundada na devida interpretação da lei, leva a abduzir de um caso como o vertente a aplicação da referida norma.

O que significa que o crédito do ora Recorrente não pode ser qualificado como subordinado.

O que significa também que procede o que se afirma nas conclusões 21ª, 26ª (exceto última parte), 27ª e 28ª.

Discordamos assim do acórdão recorrido, que opta por uma interpretação puramente literal da referida norma, abstraindo em parte da lógica que lhe está subjacente. Ao invés, afigura-se-nos que a boa interpretação da lei é a adotada no acórdão da Relação de Coimbra invocado como acórdão fundamento, aí onde se expressa algures que “a especial relação entre credores e devedores será totalmente alheia à constituição do crédito reclamado se este tiver sido constituído em data bastante anterior à declaração de insolvência do devedor”.

Não devendo o crédito do Recorrente ser qualificado como subordinado, qual então a qualificação que lhe compete?

O Recorrente vem dizer, numa formulação um pouco estranha, que o crédito “deverá ser qualificado como comum e, neste caso, até, garantido pela hipoteca validamente constituída “(sic, conclusão 29º).

Vejamos.

É verdade que foi convencionada coevamente à formação do crédito a constituição de uma hipoteca sobre bem do Devedor.

Contudo, estando a eficácia dessa hipoteca voluntária dependente do seu registo (art. 687º do CCivil), vemos que apenas em 28 de setembro de 2012 tal registo foi feito. Ou seja, o registo foi efetuado já nas proximidades da abertura do processo de insolvência e, ademais, apenas poucos dias após o proferimento do acórdão da Relação que confirmou a decisão que declarou nula, por simulação, a dação em cumprimento estabelecida entre o ora Recorrente e o Devedor e que compreendeu o bem que havia sido dado em hipoteca. Assim, da mesma forma que o crédito do Recorrente não podia ser havido como garantido se acaso tivesse sido constituído apenas em setembro de 2012 (aqui sim, cobrariam plena aplicação as supra citadas normas legais), também manda a lógica que não pode ser atendida uma hipoteca voluntária que passou a valer apenas na iminência da insolvência. A unidade do crédito e da sua garantia assim o impõe (v. a propósito a alínea b) do nº 4 do art. 47º).

Donde, o crédito do Recorrente deverá ser qualificado, por exclusão de partes, como comum (art. 47º nº 4 alínea c)). E não como garantido como, ao que parece, pretenderia o Recorrente. Neste segmento improcede a revista.

Impõe-se assim a revogação do acórdão recorrido.

                                                           +

Apurado que o crédito do Recorrente deve ser qualificado como comum, impõe-se, como consequência, alterar a graduação de créditos estabelecida na sentença da 1ª instância.

Deste modo, o crédito do Recorrente (€180.745,90) acresce ao elenco dos créditos comuns (ponto b) 1.º da decisão), e é suprimido do ponto b) 2.º

                                                           +

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcialmente a revista e, revogando o acórdão recorrido, qualificam o crédito do Recorrente como comum e graduam-no nos termos sobreditos.

Regime de custas:

Custas da revista, da apelação e da 1ª instância por Recorrente e credores que responderam à impugnação, na proporção de 20% para o primeiro e de 40% para cada um dos segundos.

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Sumário:

I. A alínea a) do art. 48.º do CIRE estabelece uma presunção inilidível.

II. Questão diversa da natureza da presunção, é a da definição da abrangência ou dos limites de aplicação dessa norma.

III. O conjunto normativo formado pelos art.ºs 48º, alínea a), 1ª parte, e 49º, alínea b) do CIRE deve ser interpretado restritivamente, de modo a abranger na sua previsão apenas os casos em que se possa estabelecer logica e razoavelmente um nexo temporal que coenvolva ou comprometa a razão de ser da norma (a pressuposta superioridade informativa do credor sobre a situação do devedor) com a condição insolvencial do devedor.

IV. Não tem aplicação tal conjunto normativo quando se mostra que a constituição do crédito está tão afastada no tempo do início do processo de insolvência que, dentro da normalidade das coisas, se trata de dois acontecimentos totalmente independentes, isto é, sem qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si.

V. É o que se passa quando o crédito foi constituído cerca de 12 anos antes do início do processo de insolvência, inclusivamente em momento em que a figura dos créditos subordinados ainda não existia legalmente.

                                                           ++

Lisboa, 6 de dezembro de 2016

José Rainho - Relator

Nuno Cameira

Salreta Pereira