Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
167/07.7TBVNC.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
ACTIVIDADES PERIGOSAS
ATIVIDADES PERIGOSAS
LANÇAMENTO DE FOGUETES
CONTRATO DE SEGURO
SEGURO FACULTATIVO
LIMITE DA RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
DEVER DE VIGILÂNCIA
CULPA
RISCO
EXPLOSIVOS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 01/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA REVISTA PARCIAL
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL ( POR FACTOS ILÍCITOS ) / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / SEGURO FACULTATIVO / SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
- ANTUNES VARELA, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 121.º, 1988/1989, 51.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º, 493.º, N.º 2, 497.º, 570.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, ALÍNEA D), 635.º, N.º 4, 639.º, N.º 3, 640.º, N.º 1, 662.º, 674.º, N.º 3.
REGULAMENTO SOBRE O FABRICO, ARMAZENAGEM, COMÉRCIO E EMPREGO DE PRODUTOS EXPLOSIVOS, APROVADO PELO DL N.º 376/84, DE 30 DE NOVEMBRO: - ARTIGOS 35.º, N.º1, 39.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 28 DE OUTUBRO DE 2014, PROCESSO N.º 1593/07.7TBPVZ.P1.S1, 5 DE JULHO DE 2012, N.º 1451/07.5TBGRD.C1.S1, E 9 DE OUTUBRO DE 2008, N.º 08A2669, TODOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Tendo a parte contrária e também a Relação compreendido o objeto da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, pode afirmar-se que, com a alegação do recorrente, mesmo sem o rigor requerido, foi alcançado o fim adstrito ao ónus de alegação, consubstanciado na especificação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados.

II - A atividade de pirotecnia, pela sua própria natureza, corresponde a uma atividade perigosa, para os efeitos do disposto no art. 493.º, n.º 2, do CC.

III - Quem, no âmbito da organização de evento festivo, se utiliza do exercício da atividade de pirotecnia está, por efeito da sua vontade, a criar uma situação de especial perigo.

IV - Age com culpa a pessoa da comissão de festas, quando, por ligeireza, não descortina um foguete por queimar, num caminho, a cerca de 100/110 metros do local do lançamento.

V - O art. 35.º, n.º 1, do Regulamento aprovado pelo DL n.º 376/84, de 30-11, não exclui a responsabilidade civil de outros agentes pelos danos causados pelo rebentamento de foguetes, nomeadamente dos organizadores de festas.

VI - O DL n.º 376/84 tem, como destinatários, as entidades dedicadas às atividades, designadamente, de emprego de produtos explosivos e de quem se requer uma adequada capacidade técnica e, por isso, um especial dever de cuidado com a utilização desses produtos.

VII - Para efeitos de aplicação do contrato de seguro de responsabilidade civil, releva o sinistro ser resultado do risco coberto.

VIII - A insuficiência do capital seguro, num contrato de caráter facultativo, tem apenas como consequência obrigar outros responsáveis a fim de se atingir o pagamento integral da indemnização.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – RELATÓRIO

AA, representado então por seus pais, BB e CC, instaurou, em 22 de maio de 2007, no então Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Cerveira (Juízo Central Cível de Viana do Castelo, Comarca de Viana do Castelo), contra DD, representada por EE, FF e GG, e ainda contra HH, II, Lda., e JJ, S.A., ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que os Réus fossem condenados, solidariamente, a pagar-lhe a quantia de € 369 000,00, acrescida de juros a partir da citação até efetivo pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que no dia 24 de maio de 2004, pelas 18:30 horas, ao regressar a casa, por um caminho pedonal, encontrou um foguete não queimado, proveniente dos foguetes das festas organizadas pela R. Comissão de Festas e projetados pelos RR. HH e II, Lda.; aproximando do foguete um isqueiro, adquirido na mercearia onde fora às compras a pedido da mãe, o foguete rebentou na sua mão esquerda, causando-lhe  enormes danos físicos e morais; os RR., por efeito da sua responsabilidade civil, estão obrigados a indemnizá-lo.

Contestou a R. JJ, S.A., alegando que o contrato de seguro terminara no dia 23 de maio de 2004, para além da sua responsabilidade estar excluída nos termos da apólice, por incumprimento do regulamento sobre o emprego de produtos explosivos, e concluindo pela sua absolvição do pedido.

Contestou, também, a R. II, Lda., concluindo pela improcedência da ação.

Contestaram os RR. GG e EE, eximindo-se a qualquer culpa no acidente e alegando incúria e imprudência do A., para concluírem pela improcedência da ação.

Contestou, igualmente, o R. FF, excluindo qualquer culpa e imputando negligência e imprudência ao A. e concluindo pela improcedência da ação.

Contestou ainda também o R. HH, que vendeu e procedeu à queima do fogo do meio dia e do final da festa, excluindo qualquer culpa, e concluindo pela sua absolvição do pedido.

Replicou ainda o A., concluindo como na petição inicial.

Prosseguindo o processo e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 12 de julho de 2013, sentença, a julgar a ação totalmente improcedente.

Inconformado, o A. apelou para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão de 2 de maio de 2016, dando parcial procedência ao recurso, condenou os RR. EE, FF, GG a e os Herdeiros incertos de HH a pagarem ao Autor a quantia de € 50 000,00, acrescida de juros sobre a quantia de € 26 000,00, desde a citação até integral pagamento.

Inconformado, o Autor recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:

a) A cláusula de exclusão da apólice é nula e deve ser considerada não escrita.

b) Por o contrato de seguro estar sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais são inaplicáveis as cláusulas de exclusão da responsabilidade.

c) A R. JJ, S.A., deve ser condenada na integral reparação dos danos.

d) O limite de € 25 000,00 deve ser considerado nulo, por violação da finalidade do contrato.

e) A R. JJ, S.A., violou o dever de informação.

f) O acórdão recorrido violou os arts. 9.º do DL n.º 176/95, de 26 de julho, 146.º, n.º 4, 148.º, n.º 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, 34.º, 35.º e 36.º do DL n.º 376/84, de 30 de novembro, 493.º, n.º 2, do Código Civil, 6.º, n.º 1, 12.º, 13.º e 18.º, alíneas a) e b), do DL n.º 446/85, de 25 de outubro, 5.º e 8.º do DL n.º 446/82, de 25 de outubro, 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC. 

Com a revista, o Recorrente pretende a condenação também da R. JJ, S.A., nomeadamente no montante constante do acórdão recorrido.

Recorreram também os Réus EE e FF e, tendo alegado, formularam em resumo as conclusões:

a) O acórdão alterou os pontos 8, 40 e 41, que não tinham sido pedidas pelo Recorrente.

b) Nenhuma das matérias é de conhecimento oficioso.

c) Foram, assim, violados os arts. 3.º, n.º 3, 4.º, 5.º, 639.º, n.º 2, 640.º, n.º 1, do CPC, e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

d) Devia ter sido excluída a responsabilidade da Comissão de Festas, por força do art. 35.º do DL n.º 376/84.

e) Sendo a culpa presumida, os Recorrentes deviam ter sido absolvidos de indemnizar, por força do art. 570.º, n.º 2, do CC.

Com a revista, pretendem os Recorrentes a revogação do acórdão recorrido e a sua absolvição do pedido.

Recorreu, ainda também, o Réu GG, que, tendo alegado, extraiu no essencial as conclusões:

a) O ponto 8 e 40 da matéria de facto não deviam ter sido alterados, pois não foram impugnados pelo A.

b) Não é matéria assente que o foguete que o A. incendiou fosse proveniente dos lançados nas festas.

c) Não pode funcionar a presunção do art. 493.º, n.º 2, do CC.

d) Se o foguete fosse proveniente das festas, a fogueteira II seria a única responsável por força dos arts. 35.º, n.º 1, do DL n.º 376/84, de 30 de novembro, e 1167.º do CC.

e) A ter culpa, esta só pode ser presumida, nos termos do disposto no art. 493.º, n.º 2, do CC.

f) Nos termos do art. 570.º, n.º 2, do CC, havendo culpa do lesado, o dever de indemnizar está excluído.

g) O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 640.º, n.º 1, 637.º, n.º 2, 639.º, n.º 1, 3.º, n.º s 1 e 3, 608.º, n.º 2, 609.º, n.º 1, 637.º, n.º 2, 662.º, n.º 1, 607.º, n.º 4, ex vi 663.º, n.º 2, 411.º, 635.º, n.º s 4 e 5, todos do CPC, 13.º e 203.º da CRP, 8.º, n.º s 2 e 3, 236.º, 1161.º, alínea a), ex vi 1156.º, 1167.º, 497.º, n.º 1, 523.º, 487.º, 570.º, 798.º, 493.º, n.º 2, todos do Código Civil, 18.º, 35.º, n.º 1, e 39.º, n.º 1, do DL n.º 376/84, de 30 de novembro.

Pretende o Recorrente, com o provimento do recurso, a revogação do acórdão recorrido e a sua absolvição do pedido.

Contra-alegou a R. JJ, S.A., no sentido da improcedência do recurso do A., para além da inadmissibilidade do recurso, por, quanto a si, ter transitado em julgado a sentença proferida pela 1.ª instância.

Contra-alegou ainda o A., pugnando pela improcedência dos recursos dos RR. GG, EE e FF.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Nestes recursos, para além da inadmissibilidade do recurso quanto à Seguradora, está essencialmente em discussão a alteração de matéria de facto não impugnada e a responsabilidade civil pelos danos causados pelo rebentamento de um foguete numas festas.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

1. Por acordo titulado pela apólice n.º 000000, a Comissão de Festas em honra de ............ e a R. JJ, S.A., ajustaram o acordo de seguro de fls. 292 a 313.

2. A R. II, Lda., ajustou com KK, Companhia de Seguros, S.A., um acordo, titulado pela apólice n.º 0000000, nos termos do qual a segunda assumiu o risco para terceiros decorrente da atividade pirotécnica da primeira (fls. 686 a 688).

3. Os RR. GG, EE e FF reuniram-se com a finalidade de organizarem e promoverem a realização das festas em honra de ............ de 2004.

4. As quais tiveram lugar nos dias 21, 22 e 23 de maio de 2004, no lugar de ............, Gondarém, Vila Nova de Cerveira.

5. Os RR. GG, EE e FF, no âmbito da Comissão de Festas, incumbiram os RR. HH e II, Lda., do lançamento de foguetes e fogo de artifício, não fiscalizando o modo do cumprimento do ajustado.

6. Choveu de forma abundante na freguesia de Gondarém, nos dias 23 e 24 de maio de 2004.

7. Nos dias 21, 22 e 23 de maio de 2004, no lugar referido, houve lançamento de foguetes e queima de fogo de artifício, no âmbito das festas em honra de .............

8. No dia 24 de maio de 2004, pelas 18:30 horas, o A., quando regressava da mercearia “Maria ......”, seguindo por um caminho pedonal, sito no lugar de ......, com um isqueiro que, entre outras coisas, tinha acabado de comprar na mercearia, incendiou um dos foguetes lançados nas festas ocorridas nos dias 21, 22 e 23 de maio, no lugar de Santarém, Gondarém, que tinha encontrado no referido caminho e que se encontrava por queimar (alterado pela Relação).

9. Nisto, esse foguete rebentou-lhe na mão esquerda, projetando-o contra uma parede, a cerca de dois metros, do local do rebentamento.

10. Em consequência, o A. sofreu esvaziamento do globo ocular direito, respetiva amaurose e feridas na face.

11. E cicatriz no tórax de 2x3cm.

12. E queloide na região para enternal esquerda superior.

13. E amputação do antebraço pela junção do terço médio com terço distal.

14. E lesões no tecido do olho esquerdo.

15. E suportou vários tac’s a nível cerebral do membro superior esquerdo e outros tantos exames a nível da face e da região external.

16. Na sequência do rebentamento, o A. deu entrada do serviço de urgências do CHAM.

17. Tendo aí permanecido até ao dia 5 de julho de 2004.

18. Onde suportou, no dia 24 de maio de 2004, intervenção cirúrgica de ortopedia, no âmbito da qual lhe foram desarticulados os ossos e ligamentos do pulso e com regularização das extremidades do coto resultante da amputação.

19. E uma outra intervenção cirúrgica, no dia 2 de julho de 2004, para limpeza dos tecidos já necrosados por efeito da respetiva decomposição.

20. Bem como uma intervenção cirúrgica para suturar a parte lacerada, com um excerto de tecido do A., no globo ocular direito.

21. Durante esses tratamentos, o A. esteve algaliado.

22. E de olhos vendados.

23. E passou por estados de consciência confusa.

24. Tendo sido assistido em tratamentos de pedopsiquiatria.

25. Em consequência do rebentamento, das lesões, dos tratamentos e das circunstâncias referidas em 21. a 23. o A. suportou dores.

26. O A. recusa-se a olhar para o coto resultante da amputação referida em 13.

27. À data do rebentamento, e antes deste, o A. era um rapaz tido por bonito e desenvolvido para a idade.

28. Sendo considerado alegre e cativante.

29. Hoje, e por força das consequências do rebentamento, apresenta-se triste, amargurado e envergonhado pelo seu aspeto e diminuição funcional.

30. O A., em face das lesões sofridas, não poderá ter profissão que implique fazer carga com as duas mãos e todo e qualquer trabalho para o qual necessite da mão esquerda.

31. O A. ficou com uma incapacidade de 55 pontos.

32. Em 24 de maio de 2004, o A. frequentava o 5.º ano de escolaridade, na Escola Secundária de Vila Nova de Cerveira.

33. Nos dias referidos em 7., a R. II, Lda., apenas lançou fogo de artifício (balonas, vulcões e candeias romanas).

34. E a cerca de trezentos metros do local referido em 8.

35. E com recurso a bancada/suporte que assegura que os mesmos são projetados para cima, alcançando apenas 60/70m de altura.

36. Sendo o fogo de artifício referido de fraca potência, por não composto por pólvora cloretada.

37. Nos dias referidos em 7., a R. II, Lda., procedeu à limpeza do recinto, onde decorreram as festas, e respetivas imediações.

38. Inclusive a zona referida em 8.

39. Nos dias 21, 22, 23 e 24 de maio de 2004, os RR. GG, EE e FF procederam à limpeza do recinto, onde decorreram as festas, e imediações.

40. O local de lançamento do fogo foi já usado em anos anteriores.

41. As Comissões de Festas de 2000, 2001, 2002 e 2003 obtiveram licença de lançamento de fogo de artifício e foguetes para o local onde foi lançado o fogo de 2004.

42. O R. GG, em nome da Comissão de Festas, pediu parecer aos Bombeiros de Vila Nova de Cerveira, quanto às regras a seguir no lançamento de fogo.

43. O R. HH vendeu à Comissão de Festas oito dúzias de foguetes simples.

44. O R. HH e seu irmão LL são pessoas tecnicamente habilitadas a tanto e procederam à queima do fogo do meio-dia e do final da festa.

45.  Por ser procedimento usual, no final de cada lançamento, o R. HH e LL procederam à inspeção do local.

46. Inclusive, apesar da chuva referida em 6., no dia 23 de maio de 2004.

47. O R. HH transportava para a festa apenas os foguetes necessários a cada dia de queima.

48.  E queimava diariamente todos os foguetes que transportava.

49. O local referido em 8. dista do local do lançamento de foguetes cerca de 100/110 metros.

2.2. A Relação, para além da alteração do facto descrito em 8., eliminou dois factos:

1 - Qualquer vestígio explosivo que no local houvesse teria sido inutilizado pela chuva referida em 6. (40.).

2 - As regras técnicas de lançamento de fogo de artifício, nos dias 21, 22 e 23 de maio de 2004, no âmbito das festas, foram cumpridas (41.).


***


2.3. Delimitada a matéria de facto provada, expurgada de redundâncias, importa conhecer, em conjunto, do objeto dos recursos, definido pelas correspondentes conclusões.

A Recorrida JJ, S.A., suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso do Autor, por a sentença, quanto a si, ter já transitado em julgado.

Todavia, tal ainda não ocorreu, porquanto, na apelação interposta, o A. pediu, expressamente, que fosse proferido “acórdão que dê a ação totalmente procedente” (fls. 2312v.).

Limitando-se a sentença a concluir pela ausência de responsabilidade civil do segurado e impugnando-se essa motivação, compreende-se que as conclusões da apelação, delimitadoras do objeto do recurso, se tivessem restringido à questão da responsabilidade civil do segurado, pois, afirmada esta na procedência do recurso, havia que retirar, também, os efeitos jurídicos emergentes do contrato de seguro (questão omissa na sentença), dado o pedido de, por efeito do provimento do recurso, a ação ser julgada totalmente procedente.

Neste contexto, não podia a sentença ter transitado em julgado em relação a qualquer dos RR., nomeadamente da R. JJ, S.A., sendo, por isso, admissível a revista interposta pelo A.

Assim, improcede a questão prévia suscitada pela Recorrida JJ, S.A.

2.4. O Recorrente/Autor arguiu a nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC), com a alegação da Relação não ter tido pronúncia acerca das questões da exclusão das cláusulas gerais e das cláusulas particulares, que, no seu entendimento, são nulas.

Efetivamente, por regra, o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, sem prejuízo de outras que a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, do CPC).

A questão da nulidade das cláusulas de exclusão, inseridas no contrato de seguro, não foi suscitada na ação nem, tão pouco, na apelação.

Por outro lado, a Relação, ao excluir a responsabilidade civil da Seguradora, por efeito da aplicação de cláusula de exclusão constante das condições gerais do contrato de seguro, afirmou, ainda que tacitamente, a validade das cláusulas, sendo certo que ninguém, no processo, arguira a sua nulidade.

Sendo entendimento da Relação a validade das cláusulas do contrato de seguro e não tendo sido suscitada qualquer nulidade, não houve qualquer omissão de pronúncia.

Nestes termos, manifestamente, improcede a nulidade da sentença.

2.5. Tanto os Recorrentes/RR. EE e FF, como o Recorrente/R. GG suscitaram a questão da delimitação da matéria de facto, alegando, fundamentalmente, que a Relação não a devia ter alterado, por não ter sido impugnada na apelação do A., o que consubstanciou uma violação da lei, designadamente da processual.

Referem-se os Recorrentes, especificamente, ao facto descrito sob o n.º 8. e também aos factos descritos sob os n.º s 40. e 41., que foram eliminados.

O ónus de alegação do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto encontra-se devidamente plasmado no art. 640.º, n.º 1, do CPC.

Por outro lado, as conclusões, a delimitar o objeto da apelação (art. 635.º, n.º 4, do CPC), devem especificar os factos impugnados, sendo certo ainda que o recurso em relação à matéria de facto não admite despacho de aperfeiçoamento, sendo inaplicável o disposto no art. 639.º, n.º 3, do CPC.

Embora o então Apelante não tivesse sido rigoroso na identificação da matéria de facto, omitindo a sua enumeração completa, o certo é que, pela alegação desenvolvida, percebe-se, facilmente, sem esforço de interpretação, que quis impugnar a matéria de facto descrita sob os n.º s 8 e 40, especialmente a referente à origem do foguete que provocou o acidente, sendo certo que, em relação à matéria descrita sob o n.º 41, está identificada, nomeadamente na conclusão 21.ª (fls. 2309v.).

De resto, qualquer um dos então Apelados compreendeu bem o alcance da impugnação da matéria de facto, produzindo alegações em sentido contrário, e sem a invocação do desrespeito do ónus de alegação consagrado no art. 640.º, n.º 1, do CPC.

Tendo a parte contrária e também a Relação compreendido o objeto da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, pode afirmar-se que, com a alegação do Apelante, ainda sem o rigor requerido, foi alcançado o fim adstrito ao ónus de alegação, consubstanciado na especificação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados.

Os Apelados puderam então exercer o contraditório, como bem entenderam, e a Relação identificou, adequadamente, o objeto da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e do qual conheceu, no âmbito do poder conferido pelo disposto no art. 662.º do CPC.

Garantido, assim, o fim do ónus de alegação sobre a matéria de facto, e não obstante alguma imperfeição, o Apelante não deixou de cumprir o ónus de alegação, limitando-se, depois, a Relação a conhecer do objeto do recurso, nos termos expressamente alegados.

Deste modo, cumprida a lei processual, sem ofensa a qualquer princípio de ordem constitucional, e porque o Supremo Tribunal de Justiça, por regra, apenas conhece de direito (não sendo caso de aplicação da exceção prevista no art. 674.º, n.º 3, do CPC), encontra-se definitivamente decidida a matéria de facto da ação, nomeadamente nos termos constantes do acórdão recorrido, já oportunamente descritos.

2.6. O acórdão recorrido, revogando a sentença totalmente absolutória, condenou os RR. identificados no pagamento da indemnização ao Autor pelos danos causados pelo rebentamento de um foguete, não só porque não ilidiram a presunção de culpa do art. 493.º, n.º 2, do Código Civil (CC), como também por terem tido culpa efetiva; a R. Seguradora, ao invés, foi absolvida, por efeito de cláusula de exclusão constante das condições gerais do contrato de seguro.

O A., impugnando a decisão recorrida, entende que a R. Seguradora é responsável pelo pagamento da indemnização, por efeito do contrato de seguro, sendo nulas as cláusulas de exclusão, assim como a que fixa o limite do capital seguro em € 25 000,00.

Os RR., por sua vez, impugnando também a decisão recorrida, entendem não haver sequer culpa presumida, sendo que esta deve excluir a indemnização, por força do disposto no art. 570.º, n.º 2, do CC.

Desenhados, esquematicamente, os termos da controvérsia suscitada pela tripla impugnação do acórdão recorrido, importa então ponderar a situação à luz do direito aplicável.

Dispõe o art. 493.º, n.º 2, do CC, que quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por natureza, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências com o fim de os prevenir.

Estabelece-se, nesta norma, uma presunção de culpa pelos danos causados no exercício de uma atividade perigosa, dispensando-se o lesado do ónus da prova, quanto a esse requisito da responsabilidade civil.

A lei não define o que deve entender-se por atividade perigosa, deixando a sua definição para a casuística, embora com a determinação de se atender, nomeadamente à sua natureza ou à natureza dos meios utilizados. Quis o legislador contemplar situações de especial perigosidade, que exigem medidas especiais de prevenção (ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 121.º, 1988/1989, pág. 51).

A atividade de pirotecnia, pela sua própria natureza, corresponde a uma atividade perigosa, que, considerando a sua especial perigosidade, requer medidas especiais de prevenção, com vista a evitar danos tanto em pessoas como em coisas (neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de outubro de 2014, processo n.º 1593/07.7TBPVZ.P1.S1, 5 de julho de 2012, n.º 1451/07.5TBGRD.C1.S1, e 9 de outubro de 2008, n.º 08A2669, todos acessíveis em www.dgsi.pt.).

Por isso, quer quem exerce tal atividade de pirotecnia, quer quem se sirva dessa atividade, designadamente para um evento festivo, incorre na presunção de culpa, no âmbito da responsabilidade civil, pelos danos causados a terceiros. Quem, no âmbito da organização de evento festivo, se utiliza do exercício da atividade de pirotecnia está, por efeito da sua vontade, a criar uma situação de especial perigo, independentemente da responsabilidade civil que possa vir a ser atribuída a quem, materialmente, desenvolve a atividade de pirotecnia (no mesmo sentido, os já citados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça).

No contexto descrito, os Réus não só não lograram ilidir a presunção de culpa como também ainda se provou a sua culpa efetiva.

Com efeito, não obstante o R. HH tenha procedido, no final do lançamento, à inspeção do local, o certo é que não viu o foguete que estava por queimar e viria a provocar o sinistro, encontrado no caminho pedonal, a cerca de 100/110 metros do local do lançamento dos foguetes. Uma inspeção cuidada, como se impunha, teria permitido descobrir o foguete por queimar, num caminho, a curta distância do local do seu lançamento, sendo certo que nem sempre os foguetes lançados chegam a explodir. Deste modo, o R.HH violou o dever de cuidado previsto no art. 39.º, n.º 1, do Regulamento sobre o fabrico, armazenagem, comércio e emprego de produtos explosivos, aprovado pelo DL n.º 376/84, de 30 de novembro.

Por outro lado, os RR. EEs, FF e GG, membros da Comissão de Festas, não obstante tenham procedido à limpeza do recinto, onde decorreram as festas, e das suas imediações, não descortinaram o foguete por queimar, apesar da curta distância do local (um caminho) onde fora lançado, o que só pode ter resultado da ligeireza como procederam à limpeza.

Nestas circunstâncias, os RR. não só não ilidiram a presunção de culpa prevista no art. 493.º, n.º 2, do CC, no sentido de que tenham empregue, como organizadores das festas, todas as providências exigidas pelas circunstâncias a fim de prevenir quaisquer acidentes pessoais ou materiais com o lançamento dos foguetes, como também se provou ainda a sua culpa efetiva, nomeadamente por violação do dever geral de cuidado, que sobre si recaía.

Deste modo, tendo a responsabilidade civil pelos danos causados ao lesado pelo rebentamento do foguete, os identificados RR. respondem solidariamente (art. 497.º do CC).

O art. 35.º, n.º 1, do referido Regulamento aprovado pelo DL n.º 376/84, embora atribua a responsabilidade civil por quaisquer acidentes resultantes do emprego de produtos explosivos às entidades que os utilizam, não exclui a responsabilidade civil de outros agentes, nomeadamente dos organizadores de festas.

Provada, pois, a culpa efetiva, fica prejudicada a alegação da exclusão do dever de indemnizar, por efeito do disposto no art. 570.º, n.º 2, do CC, onde contempla apenas a culpa presumida.

A culpa do lesado, neste caso, permite apenas a redução da indemnização, nos termos do disposto no art. 570.º, n.º 1, do CC, questão que os Recorrentes, perante a concorrência de culpas declarada no acórdão recorrido, não suscitaram.

Através da apólice n.º 000000, a Comissão de Festas garantiu a reparação dos danos corporais e materiais causados pelo lançamento de foguetes pela Recorrida JJ, S.A., até ao limite de € 25 000,00, nos termos constantes de fls. 292 a 313.

No acórdão recorrido, entendeu-se, contudo, que a responsabilidade civil da Recorrida JJ, por efeito desse contrato de seguro, estava excluída, por efeito de cláusula geral do contrato (cláusula 1.3), ou seja, do dano resultar da inobservância das disposições legais ou regulamentares, nomeadamente sobre segurança e prevenção.

O referido contrato de seguro é inteiramente válido, sendo segurada a Comissão de Festas, representada nas pessoas que a integraram, dado não ser reconhecida a personalidade jurídica daquela.

Alegar-se, agora, que o contrato é inválido, por a Comissão de Festas não gozar de personalidade jurídica, quando se aceitou a outorga do contrato e se recebeu o correspondente prémio, seria agir sob o efeito do abuso do direito, tornando ilegítima a invocação da invalidade, nos termos do disposto no art. 334.º do CC.

Por outro lado, a cláusula de exclusão, que serviu de fundamento para afastar a responsabilidade civil da Recorrida JJ, não se aplica aos Recorrentes integrantes da Comissão de Festas, porquanto a inobservância das disposições legais ou regulamentares, nomeadamente sobre segurança e prevenção, diz especialmente respeito a quem desenvolve a atividade de lançamento dos foguetes. Na verdade, o DL n.º 376/84, que aprovou o Regulamento sobre o fabrico, armazenagem, comércio e emprego de produtos explosivos tem, como destinatários, as entidades dedicadas a tais atividades e de quem se requer uma adequada capacidade técnica e, por isso, um especial dever de cuidado com a utilização dos produtos explosivos.

A violação do dever geral de cuidado, para mais não se tendo manifestado de uma forma grave, imputada aos membros integrantes da Comissão de Festas, não pode justificar a exclusão da responsabilidade civil da Recorrida JJ. Com efeito, a maior parte dos acidentes, nomeadamente no âmbito do exercício de atividade perigosa, resulta da violação de um qualquer dever geral de cuidado, que, a estender-lhe a exclusão, equivaleria à frustração do fim do contrato de seguro. Requerendo o lançamento de foguetes uma especial capacidade técnica, que os membros da Comissão de Festas normalmente não possuem, nem lhes é exigível que a possuam, compreende-se que os mesmos se acautelem dos eventuais danos que podem ocorrer no lançamento de foguetes, cobrindo os riscos com a formalização de um contrato de seguro de responsabilidade civil.

Por isso, levando em consideração o fim do contrato e a quem se destinou a proteção, que não foi a do profissional do emprego de produtos explosivos, não é aplicável, ao caso, a cláusula excludente da responsabilidade civil da Seguradora pelo sinistro.

Por sua vez, também não procede a alegação de que o contrato de seguro, em vigor entre 21 e 23 de maio de 2014, já tinha caducado em 24 de maio de 2014, quando se verificou o sinistro.

Na verdade, o risco coberto pelo contrato de seguro correspondia ao lançamento de foguetes nas festas em honra de ............, em G......, concelho de Vila Nova de Cerveira, entre 21 e 23 de maio de 2014.

Como ficou provado, o foguete, que esteve na origem do sinistro, foi um dos lançados nas festas, naqueles dias, em Gondarém (n.º s 8 e 9). Assim, o sinistro não podia deixar de estar coberto pelo risco do contrato de seguro outorgado, pois o que releva, para o efeito, não é o momento do sinistro, mas se este resultou do risco coberto pelo seguro, o lançamento de foguetes em tais festas.

Como se referiu, a responsabilidade civil, no contrato de seguro, foi limitada ao capital de € 25 000,00.

Ao contrário do que se alega, trata-se de um contrato de seguro com caráter facultativo, onde predomina, em larga medida, o princípio geral da autonomia privada, que possibilita às partes fixar livremente os seus termos, nomeadamente quanto ao valor do capital seguro.

A cláusula que fixou o capital garantido não corresponde a uma cláusula geral, pois, atendendo aos termos do contrato e sendo uma cláusula particular, só pode ter resultado da negociação das partes, sendo legítima. A insuficiência do capital seguro tem apenas como consequência obrigar outros responsáveis a fim de se atingir o pagamento integral da indemnização.

Assim, por efeito do contrato de seguro, a Recorrida JJ é também responsável pelo pagamento da indemnização, nomeadamente até ao valor do capital garantido, descontada a franquia aplicável, correspondente a 10 % do valor do sinistro (fls. 292).

Em conformidade com o exposto, procede parcialmente a revista do Autor e improcedem totalmente as revistas dos Réus.

 2.7. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I. Tendo a parte contrária e também a Relação compreendido o objeto da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, pode afirmar-se que, com a alegação do recorrente, mesmo sem o rigor requerido, foi alcançado o fim adstrito ao ónus de alegação, consubstanciado na especificação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados.

II. A atividade de pirotecnia, pela sua própria natureza, corresponde a uma atividade perigosa, para os efeitos do disposto no art. 493.º, n.º 2, do Código Civil.

III. Quem, no âmbito da organização de evento festivo, se utiliza do exercício da atividade de pirotecnia está, por efeito da sua vontade, a criar uma situação de especial perigo.

IV. Age com culpa a pessoa da comissão de festas, quando, por ligeireza, não descortina um foguete por queimar, num caminho, a cerca de 100/110 metros do local do lançamento.

V. O art. 35.º, n.º 1, do Regulamento aprovado pelo DL n.º 376/84, de 30 novembro, não exclui a responsabilidade civil de outros agentes pelos danos causados pelo rebentamento de foguetes, nomeadamente dos organizadores de festas.

VI. O DL n.º 376/84 tem, como destinatários, as entidades dedicadas às atividades, designadamente, de emprego de produtos explosivos e de quem se requer uma adequada capacidade técnica e, por isso, um especial dever de cuidado com a utilização desses produtos.

VII. Para efeitos de aplicação do contrato de seguro de responsabilidade civil, releva o sinistro ser resultado do risco coberto.

VIII. A insuficiência do capital seguro, num contrato de caráter facultativo, tem apenas como consequência obrigar outros responsáveis a fim de se atingir o pagamento integral da indemnização.

2.8. O A. e os referidos RR., na medida em que ficaram vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento proporcional das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC, sem prejuízo da sua inexigibilidade quanto aos beneficiários do apoio judiciário.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Conceder parcial revista ao Autor, condenando também a Ré JJ, S.A., em solidariedade com os restantes Réus, a pagar ao Autor, a quantia de € 22 500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros desde a citação até integral pagamento, e confirmando no demais.

2) Negar a revista aos Réus EEs e FF, bem como ao Réu GG, confirmando a decisão recorrida.

3) Condenar o Autor e os referidos Réus no pagamento das respetivas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.



Lisboa, 19 de Janeiro de 2017

Olindo Geraldes (Relator)

Nunes Ribeiro

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza