Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22574/16.4T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / TRIBUNAL / GARANTIAS DA COMPETÊNCIA / INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2018, 5.ª Edição, Almedina, p. 47 e 365;
- Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2.ª Edição, p. 138.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 96.º, ALÍNEA A) E B), 629.º, N.º 2, ALÍNEA A), 635.º, N.ºS 3, 4 E 5, 639.º, N.º 1 E 671.º, N.º 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 20.º E 202.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 21-10-1993, IN CJSTJ, ANO I, TOMO III, P. 84;
- DE 12-01-1995, IN CJ STJ, ANO III, TOMO I, P. 19;
- DE 19-02-2015, PROCESSO N.º 302913/11.6YPRT.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15-04-2015, PROCESSO N.º 849/09.9TJVNF.P1.S1;
- DE 28-05-2015, PROCESSO N.º 1340/08.6TBFIG.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-06-2016, PROCESSO N.º 551/13.7TVPRT.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. A preterição do tribunal arbitral por força de uma cláusula compromissória  é determinante da incompetência absoluta do tribunal judicial, nos termos do artigo 96º, alínea b) do Código de Processo Civil.

II. Comparando a delimitação dos casos de incompetência absoluta  definidos na alínea a) e na alínea b) do art. 96º do Código de Processo Civil, impõe-se concluir que o regime especial de recorribilidade a que aludem os artigos 629, nº 2 alínea  a) e parte inicial do artigo. 671º, nº 3, ambos do Código de Processo Civil reporta-se única e exclusivamente ao casos de violação das regras de competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia,  não sendo de aplicar quando esteja  em discussão a preterição de tribunal arbitral prevista na   alínea  b)  do citado artigo 96º.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL

I – Relatório


1. AA demandou BB, CC Company Plc – Sucursal em España, DD Services Limited, EE UK Limited, FF Insurance Limited, FF & Speciality AG, HH 1221 (HH Agency Limited) e II SE, pedindo a condenação dos réus a reconhecer a vigência do contrato de seguro celebrado entre a 1ª ré BB e a JJ Financial Group, considerando inválida e ilegal a denúncia efetuada pela 1ª ré e, consequentemente, a reconhecer a vigência dos contratos complementares celebrados entre a 1ª ré as restantes rés, condenar a 1ª ré a pagar ao autor a quantia de € 155.000,00, acrescida dos juros de mora à taxa de juro aplicável, desde a data da citação até integral pagamento.


2. Nas contestações apresentadas, as rés, entre outras exceções, arguiram a exceção de incompetência material do tribunal por preterição do tribunal arbitral.

Alicerçaram a exceção arguida na existência de cláusulas compromissórias nos termos das quais as partes obrigaram-se, em caso de disputa ou divergência relativa à interpretação, execução ou cumprimento de obrigações emergentes dos contratos de seguro, a submeter a mesma à arbitragem (cláusula essa que foi reiterada nas apólices 1ª, 2ª e 3ª Excesso), a constituir e realizar nos termos aí definidos, cabendo ao tribunal arbitral, por ser o competente, apreciar a pretensão do autor.


3. Respondeu o autor, concluindo pela improcedência da exceção de incompetência material arguida porquanto, as cláusulas compromissórias reportam-se aos litígios entre as seguradoras e as tomadoras de seguro no que concerne à interpretação da apólice e à sua harmonização com os contratos 1ª, 2ª e 3ª, pelo que, não sendo o autor parte nos contratos de seguro não está vinculado por essa cláusula arbitral.

Mais sustentou que o entendimento contrário, traduzir-se-ia num impedimento injustificado do demandante exercer os seus direitos, por manifesta falta de meios económicos e, ainda que os contratos também prevêem a jurisdição exclusiva dos tribunais portugueses para as restantes matérias.


4. Foi proferida decisão que, julgando procedente a exceção de preterição do tribunal arbitral, atenta a cláusula invocada pelas rés, declarou a incompetência absoluta do tribunal e absolveu as rés da instância.


5. Inconformado com esta decisão, dela apelou a autor para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 22.02.2018, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.


6. Mais uma vez inconformado, veio o autor interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1.    Não se vislumbra fundamento legal para atribuir competência prioritária ao tribunal arbitral sobre os tribunais judiciais.

2. O Recorrente não é parte do contrato de seguro.

3. Nos termos do artigo 406°, n.° 2 do Código Civil, e do n.° 1 da LAV, o Recorrente não está vinculado por essa cláusula arbitral.

4.  Os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, processo 3539/08.6TVLSB.LL.S1, de 8 de Setembro de 2011, e processo 08B3522, de 27 de Novembro de 2008, ambos consultáveis em www.dgsi.pt, apontam, sem margem para dúvidas, no sentido de que a convenção de arbitragem só vale entre os outorgantes.

5.  Nem o Decreto-Lei n.° 31/86, nem a Lei n.° 63/2011 contém qualquer preceito que estenda a terceiros os efeitos da convenção de arbitragem entre as partes.

6.  O direito do Recorrente reclamar na ação emerge do n.° 3 do artigo 48° da LCS e dos n.°s 1 e 2 do artigo 444° do Código Civil.

7.  A convenção de arbitragem é um negócio jurídico de natureza arbitral cuja fonte de legitimação se inscreve na autonomia privada da vontade das partes.

8.  O Recorrente não celebrou qualquer convenção de arbitragem a qual teria forçosamente de ser reduzida a escrito como requisito indispensável para a sua validade nos termos da Lei n.° 63/2011.

9.  Cabia às RR. fazer a prova da existência de uma convenção de arbitragem celebrada com o Recorrente, o que não fez.

10. O Recorrente não atribuiu poder jurisdicional ao tribunal arbitral em qualquer manifestação de vontade, nem aderiu a tal posição contratual, uma vez que o contrato de adesão pressuporia sempre uma manifestação de vontade do Recorrente, que não se verificou.

11. As RR. nunca alegaram que o Recorrente tivesse negociado ou reconhecido e aceite a convenção de arbitragem, razão pela qual não pode prevalecer a argumentação de que o Recorrente enquanto administrador de outras sociedades do grupo tenha tido qualquer intervenção na formação do contrato de seguro.

12. A função jurisdicional cabe nos termos do artigo 202° da Constituição da República aos tribunais.

13. Não se ignorando que o n.° 4 do artigo 202° e o n.° 2 do artigo 20° da Constituição da República admitem que as partes possam atribuir voluntariamente poder jurisdicional a um tribunal arbitral, cuja composição é de natureza particular tal concessão do jus imperi dependeria sempre de uma declaração de vontade do Recorrente.

14. Não se considera admissível a atribuição de uma competência prioritária ao tribunal arbitral sobre os tribunais judiciais sem que se verifique uma vontade expressa pelo beneficiário do seguro para tal submissão.

15. O entendimento "a contrario" corresponderia a uma hierarquização das funções jurisdicionais incompatível com o ordenamento jurídico constitucionalmente consagrado nos termos do artigo 202° e seguintes da Constituição da República Portuguesa.

16. Não sendo aplicado a cláusula compromissória está afastada a aplicação do disposto nos artigos 5o e 18° da LAV.

17. Não se compreende, assim, que se considere legalmente admissível a atribuição de uma competência prioritária ao tribunal arbitral sobre os tribunais judiciais, quer para aferir da aplicabilidade da convenção de arbitragem, quer igualmente para avaliar das condições matérias omrosas que resultem de tal aplicabilidade.

18. Não se vislumbra qualquer fundamento, inexistindo uma declaração de vontade do Recorrente, para que os tribunais portugueses decidam declinar a sua competência para avaliar o peso insuportável das condições materiais que acarretaria a submissão ao litígio ao tribunal arbitral mesmo que para uma mera apreciação preliminar.

19. Não se alcança a existência de qualquer preceito legal que iniba os tribunais portugueses de se pronunciarem em primeira instância sobre tal ónus.

20. O tribunal português está melhor municiado do que o tribunal arbitral constituído em Londres para extrair conclusões sobre tal matéria.

21. Os custos de submissão ao tribunal arbitral constituído em Londres são obstáculo insuperável para a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos do Recorrente, conforme determina o n.° 2 do artigo 202° da Constituição da República Portuguesa.

22. Em suma, os direitos de defesa dos interesses do Recorrente ficariam inevitavelmente enfraquecidos em manifesta violação ao disposto nos artigos 202° e n.° 1 do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.

23. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique para o Recorrente dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, havendo como há entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa um elemento ponderoso de conexão.

24. O Recorrente não tem sequer meios para suportar os encargos de uma arbitragem em Londres, razão pela qual, o Recorrente estaria sempre impedido de exercer o seu direito por falta de meios financeiros, mesmo que, por mera hipótese de raciocínio, estivesse sujeito à cláusula arbitral, o que determinaria que a presente acção podia sempre ser proposta no tribunal judicial português.

25. A imposição da cláusula compromissória ao Recorrente determinaria uma manifesta desigualdade entre o poder económico da seguradora e do Recorrente ofensiva dos direitos fundamentais constitucionalmente fixados no n.° 1 do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.

26. O Recorrente é um beneficiário do contrato, conforme decorre das respectivas cláusulas não tendo tido intervenção na sua celebração.

27. Os seguros por conta de outrem são contratos a favor de terceiros, sujeitando-se ao disposto no artigo 443° do Código Civil.

28. O tomador, ao celebrar o contrato de seguro por conta de outrem, embora actue por conta do segurado, não o representa e por isso não o vincula.

29. O tribunal arbitral será chamado a dirimir litígios decorrentes de situações que dividam tomador e seguradora, mas não já litígios com segurados que não tiveram qualquer papel na celebração do contrato.

30. Nos termos do artigo 406°, n.° 2 do Código Civil o contrato em relação a terceiros só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei, sendo que a LAV não contém qualquer disposição legal que aplique a terceiros os efeitos da convenção de arbitragem.

31. O contrato de seguro no capítulo inicial, intitulado "Elementos do Risco" estabelece que todos e quaisquer litígios relacionados com o contrato ficam sujeitos à jurisdição exclusiva dos tribunais portugueses, excluindo apenas as disposições relativas à arbitragem contidas no contrato.

32. Fica bem claro que as partes contratuais não pretenderam estender a competência do tribunal arbitral a todos os litígios que pudessem emergir da aplicação do contrato ou da relação estabelecida entre as partes.

33. A cláusula arbitral não abarca os litígios que venham a opor os beneficiários dos seguros às seguradoras.

34. O Recorrente é um beneficiário do contrato de seguro, conforme decorre das cláusulas constantes do mesmo, nomeadamente das cláusulas 3.36.6, 3.36, 3.17 e 1.1.

35. A posição estribada nos artigos 443° e 406°, n.° 2, ambos do Código Civil não contraria, antes completa, o disposto no artigo 48° da Lei dos Contratos de Seguro.

36. Se se verificasse a prevalência da competência do tribunal arbitral as cláusulas já transcritas sobre a aplicação da Lei Portuguesa na interpretação e regulação das questões decorrentes do contrato e ainda a sua sujeição à jurisdição exclusiva dos tribunais portugueses nunca teriam qualquer aplicação prática, o que não faz qualquer sentido.

37. Mais, no que respeita às cláusulas 4.4 Consentimento e 4.6 Afectação, se a cláusula de arbitragem se aplicasse a todas as questões também deixaria de fazer qualquer sentido a sujeição à arbitragem destas duas situações específicas, dado que, de acordo com a solução contrária, a cláusula de arbitragem teria sempre aplicação.

38. O estipulado na cláusula 10.13 é assim aplicável às questões expressamente previstas no contrato, nomeadamente às constantes das cláusulas 4.4 e 4.6, o que em nada contraria o disposto no n.° 5 do artigo 48° da Lei dos Contratos de Seguro, tendo em conta a parte final desta disposição.

39. O seguro em causa abrange indiscriminadamente administradores, directores e empregados das empresas do grupo não sendo legítimo introduzir alterações qualitativas sobre os beneficiários em causa quando nenhum deles interveio na celebração dos contratos de seguro.

40. O regime deve ser aplicado de forma uniforme aos beneficiários, sendo certo que o Recorrente não detinha quaisquer poderes de representação do tomador do seguro ao tempo da celebração do contrato, não teve qualquer intervenção na sua negociação ou intervenção para a qual não podia sequer ter sido chamado, nem era administrador de qualquer das sociedades do grupo ao tempo da sua celebração.

41. O Recorrente é um mero beneficiário, equiparado a empregado da sociedade no que respeita à aplicação do regime de seguro nos termos do contrato (3.36 - 3.36 1 e 3.36 3).

42. Já foram proferidas decisões no âmbito dos contratos em causa que consideraram os tribunais judiciais portugueses competentes para dirimir as questões entre os beneficiários e as seguradoras, não se compreendendo a disparidade de decisões sobre a matéria, o que determinaria uma verdadeira discriminação entre os interessados.

43. E assim manifesta a inaplicabilidade da cláusula promissória de arbitragem, devendo a questão em apreço ser apreciada e decidida nos tribunais judicias portugueses.

44. A presente revista tem como fundamento o disposto na alínea a) do n.° 1 do artigo 674° do Código de Processo Civil.

45. O Acórdão proferido fez incorrecta aplicação do disposto nos artigos 96°, alínea b) e 278°, n.° 1, alínea a), ambos do CPC, artigos 202° e seguintes e artigo 20°, todos da CkP, artigos 406°, n.° 2, 444°, n.° 1 e 443°, todos do Código Civil, n.° 1 da LAV, Decreto-Lei n ° 31/86, Lei n.° 63/2011 e artigos 45° e 48° da Lei do Contrato de Seguros e ainda do disposto na alínea c) do artigo 62° do CPC, devendo em consequência ser revogada, admitindo-se e reconhecendo-se a competência dos tribunais judiciais portugueses para julgar o pleito».


7. A ré HCC- International Company PLC, Sucursan en Espanã, respondeu, terminando as suas contra-alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« 1a As alegações apresentadas pelo Recorrente não contêm fundamentos impugnatórios, nem verdadeiras conclusões, pois as proposições finais - com mais de 45 conclusões e 8 páginas! - não constituem qualquer enunciado fundamentado, sintético e resumido dos fundamentos do recurso, limitando-se o ora Recorrente a "vazar os pormenores argumentativos próprios da alegação", pelo que o recurso deverá ser liminarmente rejeitado (v. Ac. STJ de 1996.07.10, Proc. 96S069, www.dgsi.pt; cfr. arts. 639°, 640°, 652° a 656, 679° e 682° do CPC).

2a. O Recorrente não demonstrou que estamos perante uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito ou que estão em causa interesses de particular relevância social, inexistindo também fundamentação diversa entre o acórdão recorrido e a sentença do tribunal de 1a instância ou qualquer contradição de julgados, pelo que o presente recurso deve ser liminarmente rejeitado, ex vi dos arts. 671° e 672° do CPC (v. art. 640° do CPC).

3a. No caso sub judice, verificamos que na Parte II, Ponto 10.13 da apólice primária B0823FD1410488 da BB e na Parte II, Ponto 8 das apólices secundárias de excesso B0823FD1310489 e B0823FD1310490, foi outorgada entre as partes uma clausula compromissória, nos termos da qual as partes obrigaram-se, em caso de qualquer disputa ou divergência relativa à interpretação, execução ou cumprimento de obrigações emergentes dos referidos contratos de seguro, a submeter a mesma à arbitragem, a constituir e a realizar nos termos aí definidos.

4a. In casu, por força das cláusulas compromissórias em análise, a competência para apreciar a pretensão da ora requerente pertence exclusivamente ao Tribunal Arbitral, nos termos definidos e constantes das referidas apólices (v. Does. 1, adiante junto).

5.a A presente ação tem por objeto o pagamento de quantias monetárias alegadamente despendidas em processos judiciais e/ou processos contraordenacionais, alegadamente relativas a custos de defesa e cobertos pelas apólices.

6.a A presente ação tem assim por objeto uma disputa ou divergência relativa à interpretação, execução ou cumprimento de obrigações emergentes dos contratos de seguro ora em análise (v. Parte II, Ponto 10.13 da apólice primária B0823FD1410488 da BB e Parte II, Ponto 8 das apólices secundárias de excesso B0823FD1310489 e B0823FD1310490).

7.a No caso sub judice verifica-se que o A. Recorrente não invocou, nem demonstrou - como lhe competia - que tivessem diligenciado nos termos contratualizados pela constituição do Tribunal Arbitral, tal como impõem as apólices primária e secundárias elencadas no presente articulado.

8.a A preterição do tribunal arbitral constitui uma exceção dilatória nominada que implica a imediata absolvição dos RR. da presente instância, ex vi dos arte. 277°/b), 278°, 577°/a) e 578° do CPC.

9.a O presente Tribunal é assim materialmente incompetente para conhecer da presente ação, ex vi dos arte. 64°, 65°, 94°, 95°, 96°/B), 97°, 98° e 99°/l do CPC (v. arts. 29°/4 e 150° da Lei 62/2013, de 26/06 (LOSJ), arts. 48° e 122° da LCS e arts. 1o, 2°, 5o e 18° da Lei 63/2011, de 14/12 - LAV), pelo que a Recorrida deve ser absolvida da instância por preterição do tribunal arbitral (v. arts. 277°/b), 278°, 577°/a) e 578° do CPC)».


8. A rés BB, DD Services Limited, EE UK Limited, FF Insurance Limited, FF & Speciality AG, HH 1221 (HH Agency Limited) e II SE, responderam, terminando as suas contra-alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. De acordo com a alínea a) do n° 2 do artigo 629° do CPC, o recurso só é "sempre admissível" nos seguintes casos:

a) violação das regras de competência internacional;

b) violação das regras de competência em razão da matéria;

c) violação das regras de competência em razão da hierarquia; ou

d) na ofensa de caso julgado.

2. A "preterição de tribunal arbitral" não corresponde a nenhum destes casos, que aliás se encontram muito bem distinguidos no artigo 96° do CPC.

3. Termos em que não se verifica no presente caso o condicionalismo estabelecido na alínea a) do n° 2 do artigo 629° e na parte inicial do n° 3 do artigo 671° do CPC para a admissibilidade de recurso de revista após uma "dupla conforme".

4. Não sendo admissível o recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação que confirma a decisão proferida da primeira instância, como é o presente caso, deverá este Venerando Tribunal rejeitar o presente recurso de revista com as legais consequências.

5. Caso assim se não entenda, pelos fundamentos do douto Acórdão recorrido que os Recorridos subscrevem, deverá ser negado provimento ao presente recurso de revista, confirmando-se em consequência o douto Acórdão recorrido.

6. Nas alegações de recurso de revista são levantadas questões relativas a matéria de facto que, tratando-se de factos materiais da causa já fixados, não podem ser objecto do recurso de revista nos termos do n° 3 do artigo 674°, n° 1 do CPC.

TERMOS EM QUE:

Deverá o presente recurso de revista ser rejeitado por legalmente inadmissível. Caso assim se não entenda, deverá o presente recurso ser julgado improcedente e consequentemente mantida a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de absolvição das ora Recorridas»


8. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as únicas questões a decidir consistem em saber se:


1ª- a atribuição da competência prioritária ao tribunal arbitral em detrimento do tribunal judicial, na medida em que corresponde a uma hierarquização das funções jurisdicionais, é incompatível  com o ordenamento jurídico constitucionalmente consagrado  nos arts. 202º e segs. da CRP;


2ª- a cláusula compromissória é inoponível ao autor;


3ª- a aplicação da cláusula compromissória acarretaria uma manifesta desigualdade entre o poder económico do recorrente e as seguradoras, violadora do princípio constitucional  consagrado no art. 20º da CRP. 



***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto

As instâncias consideraram provados, com base nos documentos de fls. 17 e sgs, os seguintes factos:


1 – A ré BB celebrou com o JJ e JJ Financial Group (tomador de seguro) um contrato de seguro de responsabilidade civil (Condições Particulares, Gerais e Especiais), cobrindo os riscos e danos decorrentes da responsabilidade civil profissional resultantes dos actos e omissões praticados pelos segurados no exercício do seu objecto social (administradores da sociedade) – apólice B0823FD1410488.

2 – A ré HCC celebrou com JJ e JJ Financial Group (tomador de seguro) um contrato de seguro de responsabilidade civil (Condições Particulares, Gerais e Especiais), cobrindo os riscos e danos decorrentes da responsabilidade civil profissional resultantes de actos e omissões praticados pelos aí segurados (administradores das sociedades), no exercício do seu objecto social (apólices secundárias de excesso) – apólices B0823FD1310489 e B0823FD1310490.

3 – Consta das apólices uma cláusula compromissória (Parte II/ponto 10.13 da apólice referida em 1 e parte II/ponto 8 das apólices referidas em 2) do seguinte teor:

“Os Segurados e os Seguradores submeterão qualquer litígio decorrente de, ou relacionado com esta Apólice, a um procedimento de arbitragem vinculativo conforme descrito nesta Secção (doravante, “Procedimento RAL”. A sede do Procedimento RAL será em Londres, no Reino Unido. O idioma da Arbitragem será o Inglês ou o Português. Quer o Segurador, quer a Seguradora poderão iniciar o processo de Procedimento RAL através de comunicação escrita através de comunicação à outra parte. Excepto se outra coisa for convencionada entre as partes, tal arbitragem vinculativa será regida pelas regras de arbitragem ARIAS. Os árbitros terão o poder de ordenar a cumulação de Arbitragens entre apólices primárias e apólices de excesso. Nessa arbitragem os Segurados em conjunto e os Seguradores escolherão cada um deles um árbitro independente, escolhendo tais dois árbitros um terceiro árbitro independente. A decisão por maioria destes três árbitros será final e vinculativa para os Segurados e Seguradores. As partes do processo de Procedimento RAL partilharão igualmente os honorários e as despesas do terceiro árbitro bem como outras despesas comuns do processo de Procedimento RAL, suportando porém cada uma das partes os honorários e despesas do árbitro por si indicado.

(…)»

4 – Consta da apólice cláusula 4.4 Consentimento que: Se o segurado e a seguradora não chegarem a acordo sobre este advogado, o segurado ou a seguradora podem recorrer ao processo alternativo da resolução de litígios previsto na secção 10.13, para resolver o litígio sobre se existem fundamentos jurídicos suficientes para contestar o pedido de indemnização em causa”.

5 – Consta da apólice cláusula 4.6. Afectação que: Se a seguradora, a sociedade e segurado não chegarem a acordo sobre a afectação de acordo com a secção 4.6, todas essas partes convencionam desde já submeterem-se à afectação que resultar do processo/procedimento alternativo para a resolução dos litígios previsto na presente apólice.



***



3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito no presente recurso está em causa saber se:


1ª- a atribuição da competência prioritária ao tribunal arbitral em detrimento do tribunal judicial, na medida em que corresponde a uma hierarquização das funções jurisdicionais, é incompatível com o ordenamento jurídico constitucionalmente consagrado  nos arts. 202º e segs. da CRP;


2ª- a cláusula compromissória é inoponível ao autor;


3ª- a aplicação da cláusula compromissória acarretaria uma manifesta desigualdade entre o poder económico do recorrente e as seguradoras, violadora do princípio constitucional  consagrado no art. 20º da CRP. 



*



3.2.1. Questões  prévias da inadmissibilidade do recurso de revista e do  não cumprimento pelo recorrente do ónus de concisão relativamente às conclusões de recurso.


Assim, antes de entrarmos na apreciação das questões supra enunciadas, importa, desde logo, apreciar a questão prévia da inadmissibilidade do recurso de revista, suscitada  pelas recorridas HCC - International Company PLC, BB, DD Services Limited, EE UK Limited, FF Insurance Limited, FF & Speciality AG, HH 1221 (HH Agency Limited) e II SE,  quer por ocorrer dupla conformidade das decisões proferidas pelo Tribunal de 1ª Instância e pelo Tribunal da Relação, quer por o recorrente não ter  invocado nenhum dos  pressupostos específicos que fundamentam a admissibilidade da revista excecional.



*



Verificando-se, no caso dos autos, estarem preenchidos os dois requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista, isto é, valor da causa (€ 155.000,00) e da sucumbência (cfr. arts. 629º, nº 1 e 672º, n.º 1, ambos do CPC), importa indagar da admissibilidade, ou não, do recurso de revista interposto pelo autor, AA, à luz da primeira parte do nº 3 do art. 671º,  do CPC, o qual dispõe que:

« Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância (…)».


A admissibilidade do recurso de revista, no caso do acórdão da Relação ter confirmado, por unanimidade, a decisão da 1ª instância, está, assim, dependente do facto de ser empregue “fundamentação substancialmente diferente”.

Explicitando o sentido e alcance da expressão “fundamentação essencialmente diferente”, esclarece Abrantes Geraldes[2] que «a aferição de tal requisito delimitador da conformidade das decisões deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das instâncias, verificando se existe ou não uma real diversidade nos aspetos essenciais».

No mesmo sentido, refere o Acórdão do STJ, de 16.06.2016 (revista nº 551/13.7TVPRT.P1.S1) [3] que, para afastar o obstáculo da dupla conforme, impeditivo do recurso de revista, nos termos do nº 3 do art. 671º do CPC, não basta que a sentença e o acórdão da Relação,  que a  confirme por unanimidade apresentem fundamentação diferente, exigindo-se que tal diferença se mostre essencial, não se verificando este obstáculo se o efeito do caso julgado material formado for relevantemente diverso.


No dizer do Acórdãos do STJ, de 19.02.2015 (revista 302913/11.6YPRT.E1.S1) e de 28.05.2015 (revista 1340/08.6TBFIG.C1.S1)[4], « só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância – não preenchendo esse conceito normativo o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada».

Dito de outro modo e na expressão do Acórdão do STJ, de 15.04.2015 (revista nº 849/09.9TJVNF.P1.S1), «a fundamentação do acórdão da Relação, apesar de nele se concluir pela confirmação da decisão da 1ª instância, terá de estribar-se num enquadramento fáctico-jurídico ou até meramente jurídico substancialmente diverso do adotado na sentença recorrida, em termos de se equiparar a uma solução de primeira linha que justifique a sua reapreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, de forma a que fique garantido o duplo grau de jurisdição».

Equivale tudo isto por dizer, conforme, aliás, tem sido entendimento constante do STJ, que o legislador de 2013 elegeu, como óbice à verificação da dupla conforme, a existência de uma situação em que o núcleo essencial da fundamentação jurídica é diverso e que, para esse efeito, irreleva uma eventual modificação da decisão de facto efetuada pelo Tribunal da Relação, discrepâncias secundárias que não revelam um enquadramento jurídico alternativo, a não aceitação, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou o mero aditamento de fundamentos que não tenham sido antes considerados ou que não tenham sido admitidos.



*



Ora, no caso dos autos, basta fazer o confronto entre a fundamentação fáctico-jurídica do julgado em 1ª Instância (decisão constante de fls. 2284 e sgs. - X vol.) e a assumida no acórdão recorrido (constante de fls. 2944 a 2958 – XI Vol.) para facilmente se constatar que ambas são essencialmente idênticas, na medida em que tiveram em conta o mesmo quadro factual (factos supra descritos no ponto 3.1) e julgaram procedente a invocada exceção de preterição do tribunal arbitral com base nas mesmas normas jurídicas.

Daí nenhum obstáculo existir à verificação de uma situação de dupla conformidade, nos termos e para os efeitos do disposto n.º 3 do artigo 671.º do CPC, o que obsta ao conhecimento do objeto do presente recurso, ficando também prejudicado o conhecimento da questão supra enunciada.


*

Invoca, porém, o recorrente como fundamento do recurso de revista o disposto no art. 629º, nº 2, al. a) do CPC e na parte inicial do nº 3 do citado art. 671º, pois, segundo ele, a decisão que julgou procedente a exceção de preterição do tribunal arbitral, consubstancia violação das regras de competência absoluta do tribunal, integrando, por isso, um dos casos em que é sempre admissível recurso.

Carece, contudo, de razão.

É que se é certo que, desde o advento do Código de Processo Civil de 2013, a preterição do tribunal arbitral por força de cláusula compromissória convencionada, é determinante da incompetência absoluta do tribunal judicial, nos termos do disposto no art. 96º, al. b) do CPC, a verdade é que, tendo em conta a delimitação dos casos de incompetência absoluta definidos na alínea a) do citado art. 96º, facilmente se conclui que o regime especial de recorribilidade a que aludem os referidos artigos 629, nº 2 al. a) e parte inicial do art. 671º, nº 3 reporta-se única e exclusivamente aos casos de violação das regras de competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia, não sendo de aplicar quando esteja em discussão a preterição de tribunal arbitral a que alude a al. b) do citado art. 96º [5].

Isto porque, tal como escreve Abrantes Geraldes[6], com a ressalva feita no art. 629º, nº 2 al. a) e parte inicial do art. 671º, nº 3, ambos do CPC, «o legislador pretendeu acautelar a observância das regras de competência absoluta inerente à nacionalidade, matéria e hierarquia ( art. 96º, al. a) ), relevando o interesse público inerente ao facto de o Estado Português poder exercer a jurisdição, de o litígio se inscrever na ordem jurisdicional dos tribunais judiciais e de, dentro destes, ser respeitada a competência em razão da hierarquia e da matéria», razões que, como é bom de ver, não se colocam relativamente aos tribunal arbitrais, que encontram fundamento no princípio da autonomia privada e da liberdade contratual[7].

Daí que, seguindo  esta linha de ntendimento e não tendo o recorrente manifestado vontade de  interpor recurso de revista excecional nem tão pouco alegado nenhum dos respetivos pressupostos,  se considere que a decisão do acórdão recorrido constitui dupla conforme, nos termos do estabelecido na segunda parte do nº 3 do art. 671º do CPC, sendo, por isso, de concluir pela inadmissibilidade do recurso de revista.

Termos em que, na procedência da questão prévia suscitada pelas recorridas, se decide não tomar conhecimento do objeto do recurso de revista interposto pela ré.



***



III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em não tomar conhecimento do objeto da presente revista.

As custas do recurso ficam a cargo do recorrente.



***



Supremo Tribunal de Justiça, 8 de novembro de 2018

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

José Manuel Bernardo Domingos

_______

[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] In, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, pág. 365.
[3] Publicado in http://www.dgsi.pt/stj.
[4] Publicados in http://www.dgsi.pt/stj.
[5] Neste sentido, cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, pág.47 e Paulo Pimenta, in, “ Processo Civil Declarativo, 2ª ed. Pág. 138, nota 302.
[6] In, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, pág.47.
[7] E regem-se de acordo com a regra da Kompetenz-Kompetenz, segundo a qual o tribunal arbitral tem a competência para decidir, em primeira linha, da sua própria competência ( cfr. art. 18º da LAV).