Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2038/20.2T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
PACTO ATRIBUTIVO DE JURISDIÇÃO
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
CONSUMIDOR
CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Ocorrendo situação de “dupla conforme”, e não tendo a recorrente autonomizado/indicado, no respetivo requerimento, a norma prevista na al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, tal não obsta a que se enquadre a sua pretensão recursiva nesse normativo legal, e como tal se admita o recurso (como revista normal), se resultar clara e expressamente das respetivas alegações/conclusões alusivas ao mesmo que o seu fundamento assenta no entendimento da violação pelo tribunal recorrido das regras de competência internacional.

II - Em tal situação, o objeto de recurso (de revista normal) fica circunscrito ao conhecimento/apreciação da questão relativa àquele fundamento especial/específico que esteve na base da permissão da admissão do recurso.

III - A competência internacional, enquanto um pressuposto processual, deverá, em regra, ser aferida em função dos contornos da pretensão deduzida tal como se encontra configurada na petição inicial, no confronto entre o pedido e a causa de pedir.

IV - Em matéria de competência internacional, a nossa lei processual (art. 59.º do CPC) reconhece a prioridade/prevalência de que gozam, sobre a nossa lei nacional, os regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais a que o nosso país está vinculado, numa decorrência, aliás, do plasmado no art. 8.º, n.º 4, da CRP, onde se consagra o princípio primado do direito da União Europeia sobre o nosso direito interno, bem como da própria jurisprudência emanada pelo TJUE.

V - E dentro prevalência e autonomia do direito comunitário em relação ao direito interno nacional, numa emanação do respeito do princípio da autonomia da vontade das partes na estipulação da competência internacional, encontram-se os pactos atributivos de jurisdição, cuja noção e disciplina se encontra atualmente, e a partir de 10-01-2015, consagrada no art. 25.º Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12/12, e cujo âmbito de aplicação se estende a situações jurídicas plurilocalizadas e transnacionais, que envolvam pelos menos um dos Estados-Membros da União Europeia.

VI - A validade da convenção das partes atributiva dessa competência a um dos tribunais dos Estados Membros da EU não depende de uma conexão entre a relação controvertida e o tribunal designado ou do motivo da escolha, devendo ser tão somente, em regra, ser aferida à luz dos requisitos específicos formais e materiais plasmados no citado art. 25.º daquele Regulamento.

VII - A essa luz, e sob pena de violação do princípio do primado do direito da União Europeia sobre o direito interno nacional, é inaplicável a tais pactos atributivos de jurisdição o RCCG, e particularmente quando neles não intervenham ou estejam em causa interesses de consumidores, sendo ainda, assim, e nessa medida, de desconsiderar, designadamente, os hipotéticos inconvenientes, para uma das partes, advenientes da localização do foro convencionado.

VIII - Dessa decorrência, é válida a cláusula convencional inserida num contrato escrito, que tinha como objeto o fornecimento de material software, celebrado, em 2019, entre duas sociedades comerciais, uma com sede em Portugal e outra com sede em ..., através da qual estabeleceram como competentes, para conhecer de qualquer litígio emergente desse contrato, os tribunais do Reino Unido, e mais concretamente os tribunais da cidade ..., mesmo que porventura não tivesse sido objeto de prévia de negociação ou dela advenha eventual inconveniente para uma das partes adveniente da localização do foro escolhido.

IX - Pacto atributivo de jurisdição esse que se rege pela disciplina do citado art. 25.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.

X - À luz desse pacto de jurisdição, e de tal Regulamento, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para julgar a ação instaurada, em 01-07-2020, pela sociedade sedeada em Portugal contra a outra sociedade sedeada em ..., com vista a obter tutela judicial para pretensão nela formulada com base no alegado incumprimento pela segunda do aludido contrato, encontrando-se essa competência deferida aos tribunais do Reino Unido, e particularmente de ..., ainda que essa ação fosse intentada já no período de transição acordado para saída de tal país da União Europeia.

XI - A interpretação feita não afronta os princípios constitucionais do direito à igualdade e de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva consagrados, respetivamente, nos arts. 13.º e 20.º, n.º 1, da CRP.

Decisão Texto Integral:

I- Relatório


1. A autora, Amero Africa Quest Financial, Unipessoal, Lda,. sedeada em Portugal, instaurou (01/07/2020) contra a ré, Eka Software Solutions, Pte Ltd, sedeada em ..., e ambas com os demais sinais dos autos, a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo: «Nestes termos e nos mais de direito requer-se a V. Exa se digne: (i) Anular os contratos celebrados entre a A. e a R. declarando a A. desvinculada de qualquer obrigação neles assumida; (ii) Condenar a R. a indemnizar a A. pelos prejuízos causados pela sua conduta dolosa, nomeadamente, pelos lucros cessantes emergentes da não disponibilização do software encomendado à R., a liquidar em execução de sentença. Caso assim não se entenda: (iii) Declarar licitamente resolvidos os contratos denominados “Software as a Subscription Agreement” e “Professional Services Agreement; (iv) Condenar a R. a indemnizar a A. pelos prejuízos causados pela sua conduta inadimplente, nomeadamente, pelos lucros cessantes emergentes da não disponibilização do software encomendado à R., a liquidar em execução de sentença.”

Para o efeito, e em síntese, alegou:

Que foi celebrado um memorando de entendimento (“MoU”) entre a A., o Dubai FDI (Department of Economic Development1), no Dubai, e a Secretaria de Estado da Agricultura de Tocantins, no Brasil, nos termos do qual pretenderam formalizar as diligências para estabelecer uma aliança comercial destinada a promover mutuamente os respetivos Estados como destinos de investimento; tanto o Emirado do Dubai como o Estado de Tocantins visaram com a celebração deste “MoU” encorajar e promover o estabelecimento de uma cooperação entre as suas comunidades de investidores; a missão estabelecida para a A. no âmbito do “MoU” foi a de enveredar esforços no sentido de capturar e gerir potenciais investidores e fazer o acompanhamento, sempre que necessário, das transações que viessem a ser geradas no âmbito da parceria; no âmbito das atividades levadas a cabo ao abrigo do “MoU”, e após a sua assinatura, as partes naquele documento entenderam ser relevante para alcançar os objetivos propostos que fosse experimentada e colocada em funcionamento uma plataforma de trading digital que permitisse o estabelecimento de relações comerciais entre os diversos agentes económicos dos setores agrícolas de cada um dos estados envolvidos e no seio da qual pudessem ocorrer efetivas transações comerciais, à distância; por isso as partes referidas contactaram a Ré no sentido de apresentar uma proposta de solução de software que permitisse concretizar os objetivos pretendidos; a Ré não forneceu, como se comprometera, o software pronto a ser usado, pelo que a A. veio a declarar resolvido o contrato celebrado com a Ré com fundamento em incumprimento desta.

2. A ré contestou, invocando, além do mais, e naquilo que para aqui releva, a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para julgar a presente ação, por violação do pacto de jurisdição, pedindo a sua absolvição da instância.

3. A 18.01.2022 foi proferido despacho com o seguinte teor: «ADEQUAÇÃO FORMAL: / Considerando a matéria de exceção invocada na Contestação (cf. art.º 576º, n.º 3, do CPC) e apesar do disposto no art.º 3º, n.º 4, do CPC, para melhor gestão processual, impõe-se adequar formalmente o processo permitindo à Autora, desde já, responder por escrito à matéria de exceção, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 3º, n.º 3, 6º, n.º 1, 547º e 593º, n.º 2, alínea b), do CPC. Termos em que convido a Autora para, no prazo de 15 dias, responder por escrito à matéria de exceção invocada na Contestação. (...)»

3.1 Na sequência dessa notificação que para o efeito lhe foi feita, autora, para além de reiterar o já afirmado anteriores requerimentos, veio a pronunciar-se ainda sobre a referida exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, aduzindo, designadamente, que o único aspeto da relação contratual estabelecida entre as partes que foi objeto de conversa e negociação foi o preço, tendo o mais resultado da imposição pela ré à autora dos seus clausulados contratuais gerais.

Terminou, a esse respeito, pugnando a improcedência da aludida exceção de incompetência internacional invocada pela R. .

4. De seguida, por decisão de 28.02.2022, o exmo. sr. juiz titular dos autos dispensou a realização da audiência prévia ao abrigo do disposto no artº. 547º do Código de Processo Civil (CPC) - considerando exercido o contraditório relativamente às exceções invocadas –, passando depois a conhecer da invocada a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para julgar a presente causa, vindo, no final, a deferir a mesma, julgando-a verificada/procedente, absolvendo, em consequência, a ré da instância.

5. Inconformada com tal decisão, a autora dela interpôs recurso de apelação, o qual, por acórdão do Tribunal Relação de Coimbra (TRC) de 11.10.2022, foi julgado improcedente, tendo sido confirmada aquela decisão/sentença proferida pela primeira instância.

6. Novamente inconformada, veio a autora interpor o presente recurso de revista, tendo concluído as respetivas alegações nos seguintes termos (respeitando-se a ortografia):

« A. O Douto Acórdão aqui recorrido, declarou improcedente o recurso interposto pela Recorrente e confirmou a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância que, dispensando a realização de Audiência Prévia, conheceu de imediato do mérito da causa, declarando procedente por provada a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para julgar a presente causa.

B. Ora, a Recorrente mantém, e desde logo, o seu entendimento de que a Sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância resulta nula uma vez que foi proferida com preterição da realização obrigatória da Audiência Prévia, prevista no art.º 591.º do CPC.

C. Nunca o Tribunal de 1.ª Instância convidou, como deveria, a ora Recorrente, a pronunciar-se sobre a eventual dispensa de realização da Audiência Prévia, nem tendo. por qualquer meio. manifestado ser essa a sua intenção, o que determinou que a prolação de Sentença naquele momento processual e no estado em que os autos se encontravam. viesse a constituir verdadeira decisão surpresa para a Recorrente.

D. O Douto Acórdão recorrido, refere a este propósito, que: “A exceção dilatória de incompetência internacional foi amplamente debatida nos articulados. (…) É irrecusável que o Mm.º Juiz do tribunal a quo adequou e simplificou o processado (art.º 547º do CPC5), sem beliscar o princípio do contraditório. Ademais, a A. Não reclamou/impugnou (formalmente, como se prevê no n.º 3 do art.º 593º do CPC) na sequência do despacho de 18.01.2022 (cf. ponto I., supra) e, como se verá, os autos continham os elementos necessários e suficientes para conhecer da exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, sendo, assim, inútil a prática de quaisquer outros actos. Daí que se conclua pela inexistência de qualquer vício ou irregularidade.”

E. Em resumo, considerou o Venerando Tribunal a quo que pelo facto de a exceção dilatória invocada ter sido debatida pelas partes nos articulados e a Recorrente não ter reclamado ou impugnado formalmente o Despacho de 18.01.202, de adequação formal, não existe qualquer vício ou irregularidade na decisão de dispensa da Audiência Prévia.

F. Veja-se que, como se retira do referido Despacho de 18.01.2022, este nada refere relativamente à eventual dispensa da realização da Audiência Prévia, referindo apenas o convite à A. para se pronunciar sobre a exceção invocada. G. Sendo evidente que a faculdade concedida à Recorrente de responder por escrito à matéria de exceção. não resulta per si numa declaração de intenção de dispensa da audiência prévia, nem tão pouco constitui de per si um motivo justificativo de dispensa da Audiência Prévia, sobretudo sem prévia audição das partes.

H. A este respeito o art.º 593.º n.º 1 do CPC dispõe que a Audiência Prévia apenas pode ser dispensada nos seguintes casos “1 - Nas ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º”.

I. Sendo que as mencionadas alíneas do art.º 591.º, que referem os fins da Audiência Prévia, dispõem: “d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º; e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º; f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;”

J. Da lei resulta então que, quando a Audiência Prévia se destine apenas a proferir (i) despacho saneador, (ii) despacho de adequação formal, ou então (iii) despacho de identificação do objeto pode o juiz, no âmbito do seu poder de gestão processual, dispensar a realização da Audiência Prévia (destaque nosso), que é coisa manifestamente distinta de pretender o Tribunal conhecer do mérito da causa.

K. Não é discutível, nem tão pouco resulta contestado no Douto Acórdão recorrido que a Audiência Prévia é, em regra, de realização obrigatória e que só é permitida a sua dispensa quando, cumulativamente, (i) se encontrem verificados os pressupostos do art.º 593.º do CPC, e (ii) o juiz tenha manifestado expressamente a intenção de dispensa da mesma, (iii) convidando expressamente as partes para que estas se pronunciem sobre essa mesma intenção, e, bem assim, (iv) recolhendo o assentimento expresso das mesmas partes à referida dispensa.

L. Nos presentes autos, é manifesto que tal assentimento expresso não ocorreu!

M. Andou mal o Douto Acórdão Recorrido, ao confirmar a Sentença recorrida, quando a Recorrente se pronunciou expressamente nos autos manifestando a sua oposição à dispensa da Audiência Prévia, mesmo sem que para tal tenha sido expressamente convidada pelo Tribunal de 1.ª Instância, tal como decorre do teor do seu Requerimento da Recorrente datado de 08.07.2021 (com a ref.ª CITIUS ...34) e, bem assim, do seu Requerimento datado de 12.11.2021 (com a ref.ª CITIUS...95).

N. Reitera-se que, o Tribunal de 1ª instância, convidou a ora Recorrente para exercer o contraditório relativamente à invocada exceção de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses, faculdade que a ora Recorrente exerceu por meio de requerimento datado de 08.02.2022 (com a ref.ª CITIUS ...41), mas já não, para se manifestar sobre a dispensa da Audiência Prévia.

O. De onde se conclui, não pode deixar de se concluir que tal decisão constitui uma decisão-surpresa que o processo civil não admite, por ser atentatória do disposto no art. 3.º do CPC, que consagra o Princípio do Contraditório e que o Douto Acórdão necessariamente violou ao confirmar a decisão de 1.ª Instância.

P. De acordo com o vertido, verifica-se então que (i) não se encontravam verificados os pressupostos do art.º 593.º do CPC, (ii) o juiz não manifestou expressamente a intenção de dispensa da Audiência Prévia, (iii) o Tribunal não convidou expressamente as partes para que estas se pronunciassem sobre a intenção de dispensa da Audiência Prévia, e (iv) não só não recolheu o assentimento expresso das mesmas partes à referida dispensa, como proferiu sentença dispensando a realização da Audiência Prévia, perante a expressa oposição da Recorrente.

Q. O que redunda em manifesta nulidade processual, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 195.º, n.º 1 do CPC por consubstanciar a omissão de um ato que a lei expressamente prevê, com manifesta influência na decisão da causa.

R. Termos em que o Douto Acórdão recorrido, ao confirmar a Sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância violou o direito da Recorrente ao contraditório, constante do art.º 3.º do CPC, e, bem assim, o disposto no art.º 195.º, n.º 1, do CPC, porquanto a Sentença proferida consubstancia um ato que a lei não permite, com manifesta influência na decisão da causa.

S. Acresce ao exposto que, o conhecimento da exceção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, no momento e estado em que a ação se encontrava e nos moldes em que a mesma foi configurada pelas partes, pressupunha, necessariamente, o conhecimento pelo Tribunal de matéria de facto alegada nos articulados e pressupunha, necessariamente, a produção da prova oferecida pelas partes e da que estas podiam ainda vir a carrear para os autos.

T. A Recorrente alegou, sumariamente, que para conhecer da exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses seria necessário aferir, previamente da validade do pacto privativo de jurisdição celebrado pelas mesmas.

U. Diferentemente sustenta-se no Douto Acórdão recorrido que “será de afirmar a validade do pacto atributivo de jurisdição, desde logo, porquanto a cláusula atributiva de jurisdição respeita a uma relação jurídica específica, claramente definida nos contratos celebrados entre as partes, tudo, à luz da assinalada prevalência do direito comunitário e dos princípios supra descritos, (…)”

V. Ora, sucede que, tal como expressamente alegado pela Recorrente, a cláusula atributiva de competência em análise nos autos, não resultou da sua vontade livre, consciente e esclarecida, mas, outrossim de uma imposição da Recorrida que coartou a sua liberdade negocial, alegação que, por si só, determinava a necessidade de apuramento da factualidade expressamente alegada pela Recorrente de modo a dotar o Tribunal de 1.ª Instância de elementos suficientes para aferir da existência e validade, formal e substantiva do pacto de jurisdição invocado, desde logo, à luz do disposto no art.º 25.º do Regulamento.

W. O Douto Acórdão recorrido, ao confirmar a Sentença de 1.ª Instância violou o direito de defesa e o direito ao contraditório da Recorrente, bem como o disposto no art.º 595º, n.º 1 do CPC, bem como o disposto no art.º 5º, n.º 2, al. b) do CPC, e, bem assim, o disposto no próprio art.º 25.º do Regulamento, na medida em que, para concluir pela verificação dos pressupostos de existência, validade e exequibilidade de um pacto de jurisdição entre as partes, resultava essencial a recolha da prova e o apuramento dos factos da causa que se mostravam dotados de relevância jurídica, o que se absteve de conhecer resultando os factos apurados manifestamente insuficientes a essa análise.

X. O que determinou a consequente nulidade da Sentença de 1ª instância, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 615º, n.º 1, alínea d), do CPC, e nesse sentido, a violação do referido preceito pelo Douto Acórdão recorrido ao confirmar a referida Sentença.

Y. Embora os contratos celebrados entre a Recorrente e a Recorrida contenham uma cláusula de foro e de escolha de lei que apontam para os Tribunais do Reino Unido, tais cláusulas sempre deveriam ter-se por nulas, na medida em que na sua “celebração” não foi concedida à Recorrente a oportunidade de negociação do seu conteúdo, em termos em que a sua vontade se pudesse ter livre, esclarecida e consciente.

Z. O Douto Acórdão Recorrido, limitou-se ao apuramento da verificação dos requisitos formais dos pactos de jurisdição constantes do art.º 25.º do Regulamento, dando-os por integralmente verificados, prescindindo da exigível e nunca dispensável, avaliação da validade substantiva de tais pactos, à luz do disposto no art.º 25.º do Regulamento.

AA. Ademais, reitera a Recorrente que, negar o recurso à jurisdição portuguesa, como decorre do Douto Acórdão recorrido, redunda na violação do direito ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, tal como consagrado no art.º 20º, n.º 1, CRP.

BB. Desde logo porque, o inconveniente sério emergente do reconhecimento de competência aos tribunais do Reino Unido, não constitui um “hipotético inconveniente”, como apelidado no Douto Acórdão recorrido, mas sim, uma consequência real e direta, da decisão confirmada pelo Acórdão Recorrido.

CC. Erroneamente, o Acórdão Recorrido considerou que “é irrelevante para esse efeito fazer qualquer tipo de apreciação da validade do pacto de jurisdição à luz do direito interno do respetivo Estado-Membro”. No entanto, como já referido, a aferição da existência e validade, ou inexistência e invalidade do pacto, é prévia e independente de qualquer análise do teor do pacto privativo de jurisdição em apreço, e da aferição da suscetibilidade de o direito interno impor requisitos distintos ou mais gravosos do que os estatuídos pelo Regulamento.

DD. Inexistirá, desde logo, autonomia do pacto de jurisdição, se resultar demonstrado (como alegado no caso vertente) que tal pacto foi imposto por uma parte à outra. Sendo imperioso à luz do disposto no art.º 25º do Regulamento, que o Tribunal chamado a apreciar da validade de um pacto privativo de jurisdição averigue, previamente, se causas existem que possam ter inquinado a vontade neles expressa pelas partes e legitimem o seu afastamento.

EE. A aplicação do Regulamento pelos tribunais nacionais, impõe, assim, e ao contrário do afirmado no Douto Acórdão Recorrido, não só a aferição da verificação dos requisitos de forma expressamente referidos no art.º 25.º do Regulamento, mas também, a aferição da existência e validade do pacto, enquanto manifestação da vontade das partes, validamente manifestada que possa e deva ser-lhes imposto, apreciação que terá de ser realizada, em face das circunstâncias concretas.

FF. A Recorrente entende que resulta também incompatível com o próprio princípio do primado do direito europeu o argumento sustentado pelo Tribunal a quo de que a apreciação da validade de um pacto privativo de jurisdição pode ser feita à luz da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa a contratos de adesão celebrados com consumidores, mas já não, à luz do remanescente nele contido e constante do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, – cfr. Nota de Rodapé n.º 13 do Acórdão Recorrido, fl. 18. GG. Com a interpretação dada àquele regime, o Venerando Tribunal a quo opta por tratar de forma diferente aquilo que é essencialmente igual, em manifesta violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da CRP.

HH. Em todo o caso, o Regulamento não trata expressamente tais questões, pelo que a sua solução terá, necessariamente que ser encontrada no direito interno que se tenha por aplicável, nomeadamente o correspondente à jurisdição em que se pretende fazer valer o referido pacto de jurisdição.

II. Havendo, nesse caso, e nessa sede, que apurar se determinada cláusula foi verdadeiramente objeto de consentimento por ambas as partes, o que a fazer-se à luz do direito interno, a par do comunitário, determina que será convocável o já mencionado Regime das Cláusulas Contratuais Gerais.

JJ. Só esta solução se coadunaria com a determinação de nulidade resultante na exclusão da cláusula, e, assim, a sua inexistência, havendo que recorrer à lei portuguesa para aferir dessa invalidade, que é a que resultaria competente na ausência de estipulação das Partes.

KK. Aferida a nulidade do pacto de jurisdição nos termos dos art.º 25.º do Regulamento importa, por fim, determinar da validade do Pacto nos termos das normas aplicáveis in casu o que sempre resultaria na conclusão pela nulidade do Pacto de Jurisdição, nos termos do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (“RCCG”), que prevê a nulidade da Cláusula em análise, mesmo em relações entre profissionais, - cfr. art.º 1º, n.º 2, 17.º e 19.º g), todos do RCCG.

LL. Como expressamente alegado pela Recorrente, a escolha de um foro situado em ... resulta financeiramente incomportável, resultando a sua posição manifestamente em desequilíbrio face à posição da Recorrida, que, pese embora com sede em ..., tem meios financeiros que lhe permitem litigar em ..., se necessário.

MM. A este propósito entendeu, desde logo o Venerando Tribunal a quo, que “não foram alegados e/ou não ficaram comprovados factos que levem a considerar estarmos perante cláusula contratual geral incluída no contrato sem prévia negociação das partes ou que corporize posição (da A.) manifestamente em desequilíbrio face à Recorrida”. O que, como se deixou já demonstrado não corresponde à verdade, na medida em que a alegação de tais factos existiu, no entanto, foi manifestamente ignorada pelo Tribunal de 1.ª Instância que se absteve de conhecer dos mesmos, optando por proferir Sentença sobre o mérito da causa, previamente ao seu apuramento, decisão que o Venerando Tribunal a quo, erroneamente, confirmou.

NN. Contudo, contrariamente ao sustentado no Douto Acórdão recorrido, não se poderá ignorar que a própria Recorrida confessou que que os contratos em causa correspondem os seus contratos-tipos, usados no fornecimento e prestação de serviços a todos os seus clientes, que não poderiam ser alterados, o que não deixava margem à Recorrente, como expressamente alegado, para negociar os seus termos e condições, com exceção das condições relativas ao preço.

OO. Ao que acresce que a Recorrida não fez qualquer prova de que, as cláusulas em causa, nomeada e concretamente as referentes ao foro e lei aplicável, tenham sido objeto de negociação e tenham sido expressamente acordadas entre as Partes, como seria sua obrigação, – cfr. art.º 1.º n.º 3 do RCCG.

PP. Ademais a Recorrente alegou expressamente que a escolha de ... como foro competente, nunca corresponderia a uma escolha sua, caso tal oportunidade lhe tivesse sido concedida, pois obrigaria à contratação de mandatários numa cidade que é publicamente sabido ter dos maiores rates horários do mundo para profissionais do foro e custas judiciais elevadíssimas, bem como obrigaria, necessariamente, a deslocações ao estrangeiro por parte da Recorrente para acompanhamento de processo(s), o que seria manifestamente desproporcionado e financeiramente incomportável para a Recorrente e redundaria na colocação da Recorrente numa posição de manifesto desequilíbrio face à Recorrida, que, pese embora com sede em ..., se pauta por ser uma empresa multinacional e dispõe de meios financeiros que lhe permitem litigar em ..., ou qualquer outra parte do mundo, se necessário.

QQ. De onde se conclui que o Venerando Tribunal a quo realizou uma incorreta apreciação dos factos e da prova ao considerar que “não foram alegados e/ou não ficaram comprovados factos que levem a considerar, v. g., estarmos perante cláusula contratual geral incluída no contrato sem prévia negociação das partes ou que corporize posição (da A.) manifestamente em desequilíbrio face à Recorrida”.

RR. Não tratando o Regulamento, expressamente das questões de validade dos pactos de jurisdição, a sua aferição há de ser necessariamente feita à luz do direito interno que se tenha por aplicável.

SS. Sendo, em qualquer caso, o pacto de jurisdição também nulo, nos termos do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (“RCCG”), que prevê a nulidade da Cláusula em análise, mesmo em relações entre profissionais, – cfr. art.º 1º, n.º 2, 17.º e 19.º g), todos do RCCG.

TT. De onde se conclui que o Douto Acórdão Recorrido violou as normas previstas no art.º 25.º do Regulamento e o disposto no art.º 1º, n.º 2, 7.º e 19.º g), todos do RCCG,

UU. Sendo tal segmento decisório igualmente violador do direito da Recorrente ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, tal como consagrado no art.º 20.º, n.º 1, da CRP, assim como do princípio da igualdade, consagrado no art.º 13.º da CRP, nos termos já acima descritos e explicitados.

Termos em que (…) deve o douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que, reconhecendo a competência internacional dos tribunais portugueses, determine a remessa dos autos ao Tribunal de Primeira Instância, para apreciação do mérito da causa, com todas as legais e necessárias consequências. »

7. Nas suas contra-alegações, a ré começou por defender a inadmissibilidade do recurso, por existência de dupla conforme, pugnando depois, a título subsidiário, pela improcedência do mesmo.

8. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação



1. Questão prévia/Da (in)admissibilidade do recurso.

Suscita a ré nas suas contra-alegações a questão da inadmissibilidade do recurso de revista interposto pela autora, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artº 671º do CPC (existência de dupla conforme), pelo facto de acórdão recorrido ter confirmado, sem fundamentação essencialmente divergente, a decisão da primeira instância.

Apreciemos.

Como deflui daquilo que supra deixou exarado a questão que em primeira linha suscitou a controvérsia entre as partes tem a ver com o saber se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para conhecer/julgar da causa a que reportam os presentes autos, na sequência da exceção (dilatória) que a ré deduziu a esse respeito (pondo em causa essa competência) na sua contestação, e contra a qual se pronunciou a autora.

Exceção essa que a 1ª. instância, dela conhecendo expressamente, julgou procedente, declinando a competência dos tribunais portugueses para conhecer/julgar a causa, decisão essa que veio a ser confirmada pelo tribunal da 2ª. instância, no acórdão de que ora se recorre, proferido, sem voto de vencido, e sem fundamentação essencialmente diferente.

Desse acórdão e contra esse entendimento se insurge novamente a autora neste seu recurso de revista, e fá-lo, como ressalta das suas respetivas alegações/conclusões, invocando, na sua essência, e em termos de substância, como fundamento a nulidade do pacto de jurisdição convencionado entre as partes (que foi determinante para a decisão das instâncias e ao qual adiante se fará referência), por violação do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, aprovado pelo DL n.º 446/85, de 25 de outubro (doravante RCCG), por violação do direito da autora de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva consagrado no artº. 20º n.º 1 da CRP, por violação do princípio do primado do direito europeu e do princípio da igualdade previsto no artº. 13º da Lei Fundamental, e no fundo numa interpretação incorreta feita dos Regulamento comunitários aplicados.

Segundo o que estatui a alínea a) do n.º 2 do artº. 629º do CPC, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso com fundamento em violação das regras de competência internacional.

Como faz notar, a esse propósito, Abrantes Geraldes “independentemente do valor do processo ou da sucumbência, é sempre admissível recurso, nos diversos graus de jurisdição, quando tenha por objeto a impugnação de decisões relativamente às quais seja invocada a violação das regras de competência absoluta, revelando o interesse público inerente ao facto de o Estado Português poder exercer a jurisdição (competência internacional), não revelando o sentido da decisão que tenha sido proferida. Esclarecendo depois, o mesmo autor, “apelando a lei à violação das regras de competência referidas, esta tanto pode revelar-se quando o tribunal afirma uma competência que é questionada pelo recorrente, como quando nega a competência que lhe é atribuída, ou mesmo naqueles casos em que o tribunal nem sequer toma posição explícita sobre tal pressuposto, tendo em conta que a incompetência absoluta é um dado objetivo.” (in Recursos em Processo Civil, 7.ª Ed., Coimbra, Almedina, 2022, págs. 48/49).

In casu, ainda que a recorrente não tenha autonomizado/invocado, no respetivo requerimento, a norma prevista na alínea a) do n.º 2 do artº. 629º do CPC como fundamento específico do recurso apresentado e ancorado na alegação da violação das regras de competência internacional, é de enquadrar a sua pretensão recursória, ao abrigo do princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito pelo tribunal (artº. 5º n.º 3 do CPC), no âmbito da mencionada disposição normativa (tal como, aliás, o fez, diga-se, o exmo. sr. juiz desembargador relator, no seu despacho de admissão de recurso, embora, se saiba que, nos termos do estatuído no artº. 641º, n.º 5, do CPC esse seu despacho não vincula este tribunal superior). Efetivamente, a leitura conjugada do requerimento de interposição de recurso com as respetivas alegações revela, de forma inequívoca, que a recorrente, ao invocar os fundamentos que atrás se deixaram referidos, visa disputar o entendimento do tribunal recorrido no sentido de que, ao contrário do que o mesmo defendeu, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para apreciar a causa.

Circunstância essa, assim, suficiente para enquadrar o recurso no fundamento consagrado no artº. 629º n.º 2 al. a) do CPC. (Nesse sentido vide também Abrantes Geraldes, in “Ob. cit., pág. 50, nota 68”).

E sendo assim, irreleva, pelo menos, quanto à alegada violação pelo tribunal recorrido de regras de competência internacional, que se perfile entre as decisões proferidas pelas instâncias uma situação de conformidade decisória, sendo a própria parte inicial da norma constante do art.º 671º n.º 3 do CPC a ressalvar da restrição à recorribilidade aí prevista os casos em que “o recurso é sempre admissível”. Como explicita Abrantes Geraldes, a redação da norma “sana qualquer dúvida em redor do acesso imediato ao recurso de revista nos casos excecionais previstos no n.º 2 do art. 629.º”, sendo que os relevantes interesses em presença que motivaram a outorga de um duplo grau de recurso deverão prevalecer sobre as motivações que “levaram o legislador a condicionar esse acesso com fundamento na dupla conformidade.” (in “Ob. cit., pág. 440”).

Termos, pois, em que se admite o recurso, nos termos e com os fundamentos referidos, à luz do citado artº. 629º, n.º 2 al. a), do CPC.


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2. Do objeto do recurso.

Como atrás se acabou de deixar expresso, não obstante a existência de dupla conforme, quanto à questão fundamental em discussão, o recurso (de revista normal) apenas foi admitido, à luz do artº. 629º n.º 2 al. a) ex vi artº. n.º 3 - 1ª. parte – do 673º CPC, devido ao invocado fundamento da violação das regras da competência internacional.

Constitui jurisprudência consolidada neste mais alto tribunal, que a admissão de um recurso (de revista) com base apenas num fundamento especial/específico (vg. daqueles elencados no nº. 2 do artº. 629º do CPC), tem como consequência que o objeto do mesmo fique tão somente circunscrito à apreciação da questão que está na base da sua admissão, sem que possa alargar-se a outras questões. E faz todo, o sentido, porque se assim não fosse – isto é, se pudesse alargar-se o conhecimento também a outras questões, que nada têm a ver com aquela que excecionalmente permitiu o acesso ao Supremo para dela conhecer – “iria entrar pela janela” aquilo que o legislador (ao introduzir fatores de restrição da revista, entre os quais quando corre dupla conforme) não quis que “entrasse pela porta.” (Neste sentido, vide, por todos, Acs. do STJ de 06/07/2021, proc. nº. 6537/18.8T8ALM.L1.S1, de 04/07/2019, proc. nº. 1332/07.2TBMTJ.L2.S1, de 04/12/2018, proc. nº. 190/16.0T8BCL.G1.S1, de 22/11/2018, proc. nº. 408/16.0T8CTB.C1.S1, de 18/10/2018, proc. nº. 3468/16.0T9CBR.C1.S1, de 28/06/2018, proc. nº. 4175/12.8TBVFR.P1.S1, de 30/11/2021, proc. nº. 557/17.7T8PTL.G1.S2, de 28/01/2021, proc. nº. 1332/07.2TBMTJ.L2.S1, de 06/07/2016, proc. n.º 4129/19.3T8FNC.L1.S1, e de 02/02/20022, proc. nº. 5111/07.9TBVLG-B.P1.S1, disponíveis em ww.dgsi.pt).

Sendo assim, este tribunal apenas irá conhecer, no âmbito deste recurso, da invocada questão da (in)competência dos tribunais portugueses para conhecer e julgar da causa a que se reportam os presentes autos instaurados pela A./recorrente contra a R./recorrida, pois que foi ela que (excecionalmente), in casu, permitiu, com base nesse fundamento (especial), o acesso ao Supremo pela recorrente (e naturalmente das sub-questões que a envolvem ou que com ela estão relacionadas/conectadas que têm a ver com a alegada violação das regras dessa competência internacional).

A essa conclusão se chegaria, caso assim não fosse de entender, por outra via argumentativa.

Sendo o recurso admissível, nos termos expostos, com fundamento na violação das regras de competência internacional, a citada norma do artº. 629º n.º 2 al. a) do CPC apenas permitirá, como vimos, confrontar o STJ com tal matéria, encontrando-se a impugnação dos outros segmentos decisórios ou questões sujeitas às regras gerais (cfr., ainda Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in “Código Processo Civil anotado, vol. III, tomo I, 2.ª Ed., pág. 15.”).

Decorre, assim, do exposto que os fundamentos recursórios invocados pela recorrente, e atinentes ao invocado erro de julgamento do acórdão recorrido ao ter julgado improcedente a nulidade da sentença pelo facto de a mesma ter sido proferida com preterição da realização da audiência prévia prevista no artº. 591º do CPC, por violação do direito de defesa e do direito ao contraditório (artº. 3.º do CPC), e ao erro de julgamento do acórdão recorrido, por violação do regime contido nos artºs. 595º n.º 1 e 5º n.º 2 do CPC, ao ter julgado improcedente a nulidade da sentença pelo facto de a mesma ter sido proferida com preterição da realização da audiência prévia prevista no artº. 591º do CPC quando a resolução da causa pressupunha necessariamente a produção de prova para demonstração de factos relevantes alegados só deverão integrar o âmbito de cognição da presente revista se, quanto a si, estiverem reunidos os pressupostos gerais de recorribilidade.

Ora, a verdade é que quanto a tais questões se formou uma conformidade decisória obstativa da interposição da revista nos termos gerais, tal como prescrito pelo n.º 3 do artº. 671º do CPC.

Com efeito, consubstanciando a “dupla conforme” a apreciação sucessiva de uma mesma questão, as situações – em causa no presente caso, em que as questões suscitadas quanto à nulidade da sentença adveniente da preterição de um ato obrigatório (audiência prévia) foram apreciadas e julgadas improcedentes em recurso de apelação perante a Relação – equivalem, para todos os efeitos, utilizando a formulação do acórdão do STJ de 01-10-2019 (proc. n.º 620/14.6T8LSB-B.L1-A.S1, não publicado na dgsi.) “a uma reapreciação sucessiva da mesma questão, estando assim formada uma dupla conformidade decisória que sempre seria impeditiva do recurso de revista.” Como nota este aresto, “quando uma nulidade da sentença da 1ª. instância é apreciada pelo Tribunal da Relação tal equivale para todos os efeitos a uma reapreciação sucessiva da mesma questão. O que o Tribunal da Relação está a fazer quando julga improcedente uma nulidade da sentença da 1.ª instância é confirmar a regularidade processual implicitamente assumida na própria sentença. Ou seja, está a decidir concordantemente com a decisão da 1.ª instância sobre a sua não nulidade.”

Não tendo a recorrente lançado mão do recurso de revista excecional, apto, nos termos do artº. 672º do CPC, a superar o obstáculo à admissibilidade do recurso adveniente da dupla conforme quanto às identificadas questões, o seu conhecimento em terceiro grau mostrar-se-ia, pois, obstaculizado.

Donde se conclui que o âmbito de cognoscibilidade do presente recurso se encontra circunscrito à apreciação da matéria relacionada com a invocada violação das regras de competência internacional.

Diga-ainda, por fim, en passant, que, mesmo que assim não fosse de entender, sempre as referidas questões suscitadas no recurso relacionadas com as irregularidades/nulidades processuais, decorrentes da preterição da realização da audiência prévia, por um lado, e com a invocada nulidade do acórdão recorrido prevista no artº. 615º, n.º 1 al. d), do CPC – decorrente da alegada insuficiência dos factos apurados para conhecer da referida exceção dilatória de (in)competência dos tribunais portugueses para conhecer da causa (cfr. conclusões w) e x) – sempre estariam condenadas ao insucesso.

No que que concerne às primeiras, devido, desde logo, ao facto da realização de tal audiência prévia não se impor no caso devido ao facto de o processo ter terminado/findado no despacho saneador devido à procedência daquela exceção, que veio a absolver a ré da instância, e depois da mesma ter sido amplamente debatida nos autos entre as partes (cfr. artº. 592º, n.º 1 al b), do CPC) – debate esse, refira-se, que a própria A./ora recorrente começou por promover ao suscitar e defender a questão da competência internacional dos tribunais portugueses para julgar a causa (cfr. artigo 77 e sgs. do articulado da sua petição inicial) -, sendo certo que, devido a tal debate/contraditório, as partes (e particularmente a A./recorrente) não foram surpreendidas com a decisão, ou seja, não foram confrontadas com uma decisão surpresa.

No que concerne ao segundo tipo de nulidade do acórdão (cfr. artº. 615º, n.º 1 al. d) – 2ª. parte - do CPC) dir-se-á que, como é sabido, as nulidades previstas em tal normativo legal têm a ver vícios estruturais ou intrínsecos da sentença/acórdão, também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença/acórdão, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.

Ora, é patente que o referido fundamento alegado de nulidade do acórdão não se enquadra na situação viciosa prevista em tal normativo (nomeadamente por consubstanciar um excesso de pronúncia), antes tendo mais a ver com um eventual erro de julgamento, ou seja, e mais concretamente, com um precipitado julgamento da referida exceção, por falta de elementos factuais necessários que permitam julgar desde já a mesma, que, a concluir verificar-se, levará a anulação do acórdão recorrido e à sua reforma, com vista possibilitar a ampliação a matéria de facto (cfr. artº. 682º, n.º 3, do CPC).


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3. Os factos provados (descritos no acórdão recorrido, cuja ortografia se respeita)

1) A A. intentou a presente ação nos tribunais portugueses.

2) A A. tem sede em Portugal e a Ré em ....

3) Foi estabelecida entre as partes uma cláusula nos contratos em causa [denominados de “Software as a Subscription Agreement” e “Professional Services Agreement”, redigidos em língua inglesa e aludidos no relatório - ponto I., supra] que estabelece como competentes para conhecer de qualquer litígio deles emergente os Tribunais do Reino Unido, mais concretamente os tribunais da cidade de ... [vide cláusulas 9 (c) do Doc. 4].

4) Foi trocada comunicação entre as partes previamente à celebração dos contratos.

a) A Ré, na contestação, alegou, nomeadamente: a competência internacional deve ser aferida à luz dos Regulamentos Comunitários da União Europeia e não nos termos da legislação nacional, atento o primado dos primeiros; a cláusula não é inválida, não viola o direito da A. ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva; a validade da cláusula de escolha de foro deve ser avaliada ao abrigo do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012 [Regulamento de Bruxelas I], sendo válida ao abrigo dessas regras; à data em que os contratos foram concluídos, o Reino Unido ainda era um Estado-Membro da União Europeia; a cláusula de escolha de lei é válida (tanto formal, como substantivamente) à luz da Lei inglesa; a escolha desta Lei teve por subjacente um interesse sério dos declarantes, designadamente, remeter para a lei de um país terceiro, neutral à relação, lei essa que não só corresponde à lei do lugar cujos tribunais são competentes para conhecer dos litígios emergentes dos Contratos, como corresponde a uma lei para que as partes remetem comummente no âmbito do comércio internacional, sendo ..., consabidamente, um dos principais centros mundiais de resolução de litígios comerciais internacionais; existiram negociações demoradas sobre vários aspetos dos contratos – muito em particular, acerca do preço e da estrutura de preço – e, após chegada a acordo quanto aos aspetos centrais dos contratos, as respetivas minutas foram enviadas para o Sr. AA por várias vezes, tendo-lhe sido inclusivamente (e expressamente) pedido que revisse e comentasse as minutas, inexistindo, por outro lado, qualquer comunicação que ateste uma qualquer imposição rígida e unilateral dos termos; da análise conjugada destas comunicações resulta que existiram negociações quanto ao teor dos contratos e que a A. teve várias oportunidades de analisar o conteúdo das minutas enviadas pela Ré, e que, querendo, poderia ter sugerido a introdução de modificações nas minutas, pelo que se impõe concluir que as partes tinham igual poder negocial; é perfeitamente justificável (e, de resto, prática comum) a escolha de um fórum neutral para adjudicação de litígios no quadro do comércio internacional; não basta invocar a maior onerosidade de litigar num país terceiro para estar verificado o requisito da grave inconveniência, sob pena de se permitir a uma sociedade comercial eximir-se a uma estipulação a que aderiu voluntariamente apenas em face da maior onerosidade, que também para a Ré seria menos oneroso litigar nos tribunais de ..., mas nem por isso se pretende eximir à jurisdição acordada; desconhece quais os meios financeiros de que a A. dispõe, e, por conseguinte, desconhece se é ou não é financeiramente incomportável para si litigar no ... e se, a tal nível, as partes estão em desequilíbrio ou não; o Regulamento de Bruxelas I aplica-se na presente situação atento o disposto no seu art.º 25º; o Reino Unido era um Estado-Membro da União Europeia, e é irrelevante a saída que, entretanto, se efetivou, porque, nos termos do art.º 67º, n.º 1, alínea a), do Acordo de saída do Reino Unido da União Europeia, o Regulamento de Bruxelas I aplica-se aos processos judiciais intentados antes do termo do período de transição e que terminou no dia 31.12.2020 (art.º 126º do referido Acordo); os Tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes, e não está aqui em causa matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.

b) Em resposta, a A. reportou-se ao aludido na p. i. antevendo a invocação da exceção de incompetência (art.ºs 77º a 94º) e acrescentou: limitou-se a subscrever os contratos objeto dos autos não lhe tendo sido facultada oportunidade de negociação do seu conteúdo, com a justificação de que eram os contratos-tipo da Ré, usados no fornecimento e prestação de serviços a todos os seus clientes; se a A. tivesse tido oportunidade de se pronunciar e de negociar a dita cláusula (de foro), jamais a teria aceite; a imposição da mesma à A. constitui uma forma de pressionar a A. ao pagamento de uma qualquer quantia para evitar o custo da litigância no estrangeiro; o único aspeto da relação contratual que foi objeto de conversa e negociação entre as partes foi o preço; a cláusula em questão é nula na medida em que a escolha dos tribunais de ... para dirimir um litígio emergente dos contratos envolve enormes e desproporcionais inconvenientes à A., sendo os tribunais portugueses competentes para julgar a presente ação.


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4) Conhecendo do objeto do recurso.

Sendo, em regra, as questões objeto do recurso delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações – sem prejuízo daquelas que se perfilam como de conhecimento oficioso -, e face àquilo que supra sei deixou exarado sobre o objeto do recurso, e da sua circunscrição, a questão de fundo que se nos impõe conhecer tem a ver com o saber se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para conhecer da presente causa instaurada pela A./recorrente, o que, in casu, passa, desde logo, por aferir dos critérios de validade do pacto privativo de jurisdição estabelecido entre as partes.

Não contestando ter sido estabelecida entre as partes uma cláusula nos contratos em causa (denominados de “Software as a Subscription Agreement” e “Professional Services Agreement”) que estabelece como competentes para conhecer de qualquer litígio deles emergente os tribunais do Reino Unido (mais concretamente os tribunais da cidade de ...), insurge-se a A./recorrente contra a decisão que julgou procedente a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses por considerar que tal pacto de jurisdição se encontra ferido de nulidade, nos termos dos artºs. 1º n.º 2, 17º e 19º al. g) do RCCG, aplicável mesmo em relações entre profissionais. Argumenta a recorrente que, quanto a tal cláusula de foro, não lhe foi reconhecida “a oportunidade de negociação do seu conteúdo, em termos em que a sua vontade se pudesse ter livre, esclarecida e consciente”, acrescentando que a aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 pelos tribunais nacionais “impõe apenas não só a aferição da verificação dos requisitos de forma expressamente referidos no art.º 25.º do Regulamento, mas também, a aferição da existência e validade do pacto, enquanto manifestação da vontade das partes, validamente manifestada que possa e deva ser-lhes imposto, apreciação que terá de ser realizada, em face das circunstâncias concretas.”

Entendeu o tribunal recorrido estarmos perante uma situação jurídica plurilocalizada, de natureza transnacional, suscetível de ser objeto de um pacto de jurisdição, nos termos do artº. 25.º do Regulamento n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (doravante Regulamento n.º 1215/2012). Louvando-se em jurisprudência do TJUE, concluiu que a noção de pacto de jurisdição é autónoma relativamente aos direitos nacionais dos Estados-Membros e que a apreciação da validade de tal pacto se deverá fazer exclusivamente à luz do disposto no artº. 25º daquele Regulamento n.º 1215/2012. Afirmou o Tribunal da Relação de Coimbra, por fim, que a cláusula de foro estabelecida observou as exigências de forma previstas em tal norma e que respeitou a uma relação jurídica específica, concluindo pela sua validade, sublinhando a inaplicabilidade da legislação nacional adjetiva e substantiva (e, em concreto, da disciplina consagrada no RCCG).

Apreciemos, pois.

A competência internacional, enquanto fração de poder jurisdicional atribuído aos tribunais de cada Estado, reconduz-se a um pressuposto processual que deverá ser aferido em função dos contornos da pretensão deduzida tal como se encontra configurada/estruturada na petição inicial, no confronto entre o pedido e a causa de pedir (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 07-03-2019, proc. n.º 13688/16.1TBPRT.P1.S1, de 08-06-2021, proc. n.º 20526/18.9T8LSB.L1.S1, de 07-06-2022, proc. n.º 24974/19.9T8LSB.L1.S1, e de 27-10-2022, proc. n.º 533/21.5T8PNF.P1.S1., disponíveis em dgsi.pt).

No plano interno do direito processual civil português, estabelece o artº. 59º do CPC que “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.” (negrito nosso).

A ressalva estabelecida na parte inicial da norma transcrita exprime a prioridade que é reconhecida aos mencionados instrumentos de direito internacional, num contexto em que Portugal se encontra inserido em espaços jurídicos integrados. Neste conspecto, e como sintetiza o acórdão do STJ de 06-09-2016 (proc. nº. 1386/15.8T8PRT-B.P1.S1, acessível em dgsi.pt), “são pacificamente aceites entre nós o efeito directo e o primado do direito da União Europeia (cf. art. 8º, nº 4, da CRP), bem como a proeminência que o direito comunitário e a jurisprudência do TJUE vêm conferindo à liberdade contratual, enquanto emanação do princípio da autonomia da vontade das partes na estipulação da competência internacional.”

A determinação da competência internacional para conhecer o presente pleito passa, como acima já deixamos antever, a título prévio, pela interpretação e aferição da validade do pacto de jurisdição celebrado entre as partes – uma com sede em Portugal, outra com sede em ... -, pacto esse pelo qual as mesmas deferiram a competência para conhecer de qualquer litígio emergente dos contratos celebrados aos tribunais do Reino Unido, em concreto sediados em ....

Encontramo-nos, pois, perante um pacto de jurisdição, uma vez que, através da convenção celebrada, as partes regularam a competência internacional, constituindo este um pacto privativo de jurisdição na medida em que as partes, ao atribuírem competência exclusiva aos tribunais do Reino Unido, privaram os tribunais portugueses da competência legal que eventualmente lhes fosse concedida. Como esclarece Paula Costa e Silva, “a distinção dos pactos de jurisdição em privativos e atributivos é geograficamente situada, porque caberá a cada Estado determinar as competências próprias, quer sejam legais, quer sejam convencionais. Assim, é da perspectiva do Estado português que o pacto se qualifica como privativo (quando retira jurisdição aos tribunais portugueses) ou atributivo (quando atribui jurisdição aos tribunais portugueses).” (in “A longa vacatio legis da Convenção de Bruxelas - Anotação aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Julho de 1997 e de 5 de Novembro de 1998”, Revista da Ordem dos Advogados, pág. 1237, consultável em https://portal.oa.pt/upl/%7B104b4283-439d-4bec-877d-b8adcac59cf6%7D.pdf ).

O presente caso reporta-se a um litígio emergente de uma relação transnacional – verificando-se a existência de um “elemento de estraneidade juridicamente relevante” consistente na circunstância de as partes, pessoas coletivas, apresentarem a sua sede em diferentes países - Portugal e ... – e terem convencionado atribuir competência para dirimir litígios resultantes da relação contratual estabelecida aos tribunais de um terceiro país (...). Esse respeito, e como salienta Luís de Lima Pinheiro, salienta que o domicílio das partes em Estados diferentes é, em princípio, condição suficiente para concluir pelo preenchimento do critério de internacionalidade relevante (in “Direito Internacional Privado – Competência Internacional, volume III, tomo I, AAFDL Editora, Lisboa, 2019, pág. 223).

Considerando a data de instauração da presente ação (01-07-2020), o âmbito material das questões suscitadas (responsabilidade adveniente de incumprimento de contrato de fornecimento de software pela ré) e o facto de, como bem notaram as instâncias, em conformidade com as disposições conjugadas dos artºs. 67º n.º 1 al. a) e 126º do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (Publicado no Jornal Oficial da União Europeia C 384, de 12.11.2019, e disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:12019W/TXT(02)&from=PT), continuar tal Regulamento a ser aplicável nos Estados-Membros em situações que envolvam o Reino Unido, nas disposições relativas à competência, no que concerne a processos judiciais intentados antes do termo do período de transição (31-12-2020), dúvidas não subsistem – e nem tal é disputado/questionado pela recorrente – de que deverá ser mobilizada a disciplina do referido Regulamento 1215/2012 para fixar o foro internacionalmente competente para conhecer da presente causa. A ação vertente insere-se, pois, no âmbito temporal, material e espacial do Regulamento n.º 1215/2012 (em conformidade com os seus artºs. 1º, 66º n.º 1 e 25º).

Em particular, importa convocar o artº. 25.º deste diploma, onde se dispõe que: “1. Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário. O pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado: a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; b) De acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si; ou c) No comércio internacional, de acordo com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto em questão. 2. Qualquer comunicação por via eletrónica que permita um registo duradouro do pacto equivale à «forma escrita». 3. O tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro a que o ato constitutivo de um trust atribuir competência têm competência exclusiva para conhecer da ação contra um fundador, um trustee ou um beneficiário do trust, se se tratar de relações entre essas pessoas ou dos seus direitos ou obrigações no âmbito do trust. 4. Os pactos atributivos de jurisdição bem como as estipulações similares de atos constitutivos de trusts não produzem efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 15.º, 19.º ou 23º, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 24.º. 5. Os pactos atributivos de jurisdição que façam parte de um contrato são tratados como acordo independente dos outros termos do contrato. A validade dos pactos atributivos de jurisdição não pode ser contestada apenas com o fundamento de que o contrato não é válido.”

Do ponto de vista metodológico, cumpre sublinhar, no que concerne à interpretação do citado artº. 25º, que, conforme o realçado pelo acórdão do STJ de 14-07-2020 (proc. n.º 161/18.2T8FAR.E1.S1, não publicado na dgsi), “vale o princípio da interpretação autónoma relativamente aos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros, tendo em conta o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa, e da interpretação uniforme em toda a União Europeia, como forma de assegurar a aplicação uniforme do direito da União em todos os Estados-Membros e o princípio da igualdade entre todos os cidadãos da União.”

Por outro lado, é de afirmar um princípio de continuidade interpretativa entre a Convenção de Bruxelas de 1968 e o Regulamento n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2001 (doravante, Regulamento 44/2001), e entre estes dois instrumentos e o Regulamento n.º 1215/2012 - cfr. Considerando 34, segunda parte, deste último diploma (também destacando este aspeto, cfr. os Acs. do STJ de 09-05-2019, proc. n.º 3793/16.0T8VIS.C1.S1, e de 14-07-2020, proc. n.º 161/18.2T8FAR.E1.S1, o 1º. publicado em www.dgsi.pt, e o 2º. não publicado).

O artº. 25º em análise, para além dos requisitos de ordem formal, previstos nas três alíneas do seu n.º 1, contém um requisito de validade substancial do pacto, que se relaciona com a exigência de o mesmo ter por objeto litígios que hajam surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica. Ademais, o pacto tem de determinar a jurisdição competente ou de permitir a sua determinação no momento da propositura da ação com base em critérios objetivos. (Seguimos de perto Luís de Lima Pinheiro, in “Ob. cit., pág. 225”)

Segundo o discreteado pelo TJUE no acórdão proferido no processo Hőszig Kft de 07-07-2016no que diz respeito aos requisitos de forma, há que recordar, por um lado, que, segundo a redação do referido artigo 23.°, n.° 1, para ser válido, um pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado quer por escrito, quer verbalmente com confirmação escrita, quer ainda em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si ou, no comércio internacional, com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer. Por força do n.° 2 desse artigo, «[q]ualquer comunicação por via eletrónica que permita um registo duradouro do pacto» deve ser considerada equivalente à «forma escrita» (v., neste sentido, acórdão de 21 de maio de 2015, El Majdoub, C‑322/14, EU:C:2015:334, n.° 24).” O mesmo tribunal faz notar que “a existência de consenso dos interessados é um dos objetivos do artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I (v., neste sentido, acórdão de 21 de maio de 2015, El Majdoub, C‑322/14, EU:C:2015:334, n.° 30 e jurisprudência referida). Isso justifica‑se pela preocupação de proteger a parte contratante mais fraca, evitando que cláusulas atributivas de jurisdição, introduzidas num contrato por uma única das partes, passem despercebidas (v., neste sentido, acórdão de 16 de março de 1999, Castelletti, C‑159/97, EU:C:1999:142, n.° 19 e jurisprudência referida).” (processo n.º C‑222/15, disponível emhttps://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=181461&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=41395).

Lima Pinheiro salienta, a esse propósito, que a jurisprudência do TJUE parece clara “quanto à inaplicabilidade dos pactos de jurisdição regidos pelas disposições em causa da Convenção de Bruxelas e dos Regulamentos de quaisquer limitações aos pactos de jurisdição estabelecidas pelo Direito interno dos Estados-Membros e que os Estados-Membros não podem exigir outras exigências de forma além das previstas nessas disposições.” (in “Ob. cit., págs. 234-235”).

O TJUE tem considerado, assim, de modo consistente, que a validade do pacto de jurisdição não depende de uma conexão entre a relação controvertida e o tribunal designado, do mérito do pacto, do motivo da escolha ou das normas substantivas aplicadas pelo tribunal escolhido. Isto mesmo foi afirmado no acórdão Castelletti proferido a 16-03-1999, em que também se sustentou que “obedece ao espírito de segurança jurídica, que constitui um dos objectivos da convenção, o facto de o juiz nacional a quem foi submetida a questão poder facilmente pronunciar-se sobre a sua própria competência com base nas regras da convenção, sem ser obrigado a proceder a um exame do processo quanto ao mérito (acórdãos de 22 de Março de 1983, Peters, 34/82, Recueil, p. 987, n.° 17; de 29 de Junho de 1994, Custom Made Commercial, C-288/92, Colect., p. I-2913, n.° 20; e Benincasa, já referido, n.° 27).” (processo n.º C-159/97, acessível em ttps://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=44491&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=481).

No plano interno, também o STJ, de modo que julgamos consolidado, tem entendido que a noção de pacto de jurisdição constante do artº. 25º do Regulamento 1215/2012 é autónoma relativamente ao direito interno de cada Estado-Membro, devendo a validade de tal pacto ser exclusivamente aferida à luz da própria disposição do Regulamento (cfr. os acórdãos de 17-03-2016, proc. nº. 588/13.6TVPRT.P1.S1, de 16/02/16, proc. n.º 135/12.7TCFUN.L1.S1, de 19-12-2018, proc. n.º 2312/16.2T8FNC.L1.S1, e de 09-05-2019, proc. n.º 3793/16.0T8VIS.C1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt). Dando respaldo ao que deixámos afirmado, este último aresto salienta mesmo que “o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado, constantemente, que as disposições do Regulamento n.º 1215/2012, incluindo a disposição do art. 25.º, têm prioridade sobre as normas do Código de Processo Civil; que as situações jurídicas plurilocalizadas, desde que transnacionais, podem ser objecto de pactos atributivos de jurisdição, nos termos do art. 25.º do Regulamento n.º 1215/2012; e que a validade dos pactos atributivos de jurisdição concluídos ao abrigo do art. 25.º do Regulamento é independente de qualquer conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado, “não sendo valoráveis, designadamente, os hipotéticos inconvenientes, para uma das partes, da localização do foro convencionado a que o direito interno confira relevo”. (sublinhado nosso)

Nesta linha, o STJ tem, assim, excluído do parâmetro aferidor da validade de um pacto de jurisdição, ao qual seja aplicável o regime previsto no Regulamento n.º 1215/2012, a disciplina contida no RCCG, sustentando que tal validade deve ser unicamente aquilatada tendo por referência os critérios previstos no artº. 25.º de tal Regulamento - ou do artº. 23.º do seu antecedente Regulamento n.º 44/2001 (valendo quanto aos dois diplomas, de acordo com o já mencionado, um princípio de continuidade interpretativa).

Demonstrativo desta afirmada asserção vejam-se ainda os seguintes acórdãos deste STJ (todos disponíveis em www.dgsi.pt), cujos sumários se transcrevem na parte relevante, com realce dos segmentos mais impressivos para a análise que se empreende:

- acórdão de 11-02-2015 (proc. nº. 877/12.7TVLSB.L1-A.S1): “II - Perante uma situação jurídica plurilocalizada e transnacional, tem de se atender às regras da competência internacional e, particularmente, quando envolva Portugal e algum dos Estados-Membros da União Europeia, ao direito da competência internacional da União Europeia, constante do Regulamento (CE) n.º 44/2001, e desde 10/01/2015, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012) – cf. art. 8.º, n.º 4, da CRP. (…) IV - A interpretação uniforme daqueles Regulamentos está confiada ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), pelos procedimentos ordinários de interpretação do direito comunitário – cf. art. 267.º do TFUE. V - O Regulamento n.º 44/2001 não exige qualquer solenidade especial para a atribuição de competência judiciária e o regime do seu art. 23.º prevalece sobre as regras de forma de direito interno que fixem requisitos formais mais exigentes para os pactos de jurisdição. VI - A noção de pacto de jurisdição vertida no Regulamento n.º 44/2001 é autónoma relativamente aos direitos nacionais dos Estados-Membros e deve ser interpretada como um conceito autónomo. VII - Perante o regime do Regulamento n.º 44/2001, para que a escolha do tribunal seja válida é desnecessário que exista qualquer conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado, não sendo valoráveis, designadamente, os hipotéticos inconvenientes, para uma das partes, da localização do foro convencionado. VIII - É à parte que quer beneficiar da aplicação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais que compete, em concreto, alegar e provar que está perante aquela tipologia de cláusulas, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC. IX - A validade do pacto de jurisdição, constante de uma cláusula contratual geral, integrada num contrato celebrado entre um empresário ou entidade equiparada, é analisada, exclusivamente, segundo o disposto no art. 23.º, do Regulamento n.º 44/2001, sendo inaplicável o regime jurídico interno das cláusulas contratuais gerais.

- acórdão de 19-11-2015 (proc. n.º 2864/12.6TBVCD.P1.S1): “1. - Perante o regime do Regulamento n.º 44/2001, para que a escolha do tribunal seja válida é desnecessário que exista qualquer conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado, não sendo valoráveis, designadamente, os hipotéticos inconvenientes, para uma das partes, da localização do foro convencionado a que o direito interno confira relevo. 2. A validade do pacto de jurisdição, constante de uma cláusula contratual geral, integrada num contrato celebrado entre um empresário ou entidade equiparada, é analisada, exclusivamente segundo o disposto no art. 23.º do Regulamento n.º 44/2001, sendo inaplicável o regime jurídico interno das cláusulas contratuais gerais (…).”

- acórdão de 26-01-2016 (proc. nº. 540/14.4TVLSB.S1): “(…) II - Segundo jurisprudência pacífica do TJUE, os requisitos de validade e de convenção de competência apenas são aqueles que constam do art. 23.º do Regulamento n.º 44/2001, pelo que o direito dos Estados-Membros não pode acrescentar outros; e ainda para que a escolha do tribunal seja válida não é necessário que exista uma qualquer conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado, não sendo valoráveis, consequentemente, hipotéticos inconvenientes para uma das partes (no caso, para a recorrente), decorrentes da localização do foro convencionado. III - Em função da autonomia e exclusividade do normativo inserto no art. 23.º do Regulamento n.º 44/2001, não cabe aquilatar, por estar prejudicado, da eventual aplicação do disposto em normas de direito nacional, nomeadamente, as vertidas nos arts. 94.º do NCPC (2013) e 19.º, n.º 1, al. g), da LCCG.

- acórdão de 04-02-2016 (proc. n.º 536/14.6TVLSB.L1.S1): “(…) IV - Perante o regime do Regulamento (CE) 44/2001, para que a escolha do tribunal seja válida é desnecessário que exista qualquer conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado, não sendo valoráveis, designadamente, os hipotéticos inconvenientes, para uma das partes, da localização do foro convencionado a que o direito interno confira relevo. V - A validade do pacto de jurisdição, constante de uma cláusula contratual integrada num contrato de swap celebrado entre uma empresa pública regional e determinado banco, em que foi aquela a propor ao banco as cláusulas que integram os contratos em litígio, objecto, aliás, de um específico procedimento negocial, em que a dita empresa foi coadjuvada por outra entidade bancária, é analisada, exclusivamente segundo o disposto no art. 23.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, sendo inaplicável o regime jurídico interno das cláusulas contratuais gerais.” Este acórdão foi, aliás, objeto de uma anotação favorável de Rui Pereira Dias (in “Pactos de jurisdição, autonomia privada e a sustentável internacionalidade da relação jurídica num acórdão (de 4 de fevereiro de 2016) do Supremo Tribunal de Justiça”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel da Costa Andrade, volume III, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2017, págs. 179-195.”).

- acórdão de 21-04-2016 (proc. n.º 538/14.2TVLSB.L1.S1): “I - Do que está proposto no art. 23.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 de 16-01 podemos inferir que, para a confirmação da competência de um tribunal de um Estado-Membro da CE para julgar os litígios surgidos entre as partes relativamente a “uma determinada relação jurídica”, basta que pelo menos um dos sujeitos processuais se encontre domiciliado em território de um Estado-Membro e que o pacto atributivo da competência abranja, igualmente, um tribunal de outro Estado-Membro. II - O que o Regulamento (CE) n.º 44/2001 de 16-01 quis apadrinhar foi a ideia de que, circunscrevendo-se o litígio a cidadãos de cada um dos Estados-Membros, nada há que estorve que os subscritores de assinalado contrato confiram a competência para julgar os eventuais futuros litígios a um Estado-Membro diferente daquele em que ambas as partes estão domiciliadas, para tanto bastando que os interesses no contrato protegido se não contenham completamente cingidos ao espaço territorial do Estado-Membro em que as partes movimentem as suas conveniências patrimoniais (…). IV - A validade do pacto de jurisdição, constante de uma cláusula contratual geral integrada num contrato, há-de ser ponderada unicamente nos termos em que o consente o que está descrito no art. 23.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 de 16-01, sendo inaplicável o regime jurídico interno das cláusulas contratuais gerais e estando proibidos os Estados-Membros de acrescentarem outros requisitos de validade a essa convenção. Quer isto dizer que, atenta a autonomia e o exclusivismo do normativo inserto no art 23.º do Regulamento n.º CE 44/2001, fica prejudicada a abordagem da eventual aplicação do disposto em normas de direito nacional exauridas nos arts. 94.º do NCPC (2013) e 19.º, n.º 1, al. g), da LCCG.”

- acórdão de 06-09-2016 (proc. n.º 1386/15.8T8PRT-B.P1.S1): (…) III - Em questões de competência internacional, a nossa lei processual reconhece a prioridade de que gozam os regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais (art. 59°), sendo pacificamente aceites entre nós o efeito directo e o primado do direito da União Europeia (cf. art. 8.°, n.º 4 da CRP), bem como a proeminência que o direito comunitário e a jurisprudência do TJUE vem conferindo a liberdade contratual, enquanto emanação do princípio da autonomia da vontade das partes na estipulação da competência internacional, que, aliás, vem claramente explicitado nos considerandos 19.º e 20.º do Regulamento (UE) 1215/2012, de 12-12. IV - Como decorrência desses princípios, têm sido acolhidas a independência da noção e a prevalência do regime (e respectivo alcance) do pacto (convenção) atributivo de jurisdição constante do art. 25.° já citado Regulamento (correspondente ao art. 23.° do antecedente Regulamento 44/2001), face a requisitos formais eventualmente mais exigentes que lhe sejam impostos pelos direitos nacionais dos estados-membros. Nessa senda, não cabe aferir da eventual aplicação do disposto em normas de direito nacional, como as vertidas no CPC (nomeadamente a do art. 94.°) ou da LCCG (cláusulas contratuais gerais) e completamente irrelevante a pretensão de se submeter ou condicionar o exercício da autonomia da vontade a existência de uma conexão estreita do litígio a ordem jurisdicional a que se atribui competência para dele conhecer, sendo, por isso, desnecessário que tal pacto se mostre justificado por um interesse sério de, pelo menos, uma das partes e sendo, consequentemente, desconsideradas as eventuais vantagens ou desvantagens que daí advenham (…)”

- acórdão de 13-11-2018 (proc. n.º 6919/16.0T8PRT.G1.S1):“I - A jurisprudência do Tribunal de Justiça (TJ) é clara quanto ao entendimento de que a noção de pacto atributivo de jurisdição [art. 25.º do Regulamento (UE) 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012] é autónoma, relativamente ao direito interno de cada Estado-Membro – a validade do pacto de jurisdição deve ser, exclusivamente aferida (preenchida) à luz da própria disposição do Regulamento, ficando excluída a convocação, no caso e designadamente, do art. 94.º CPC e do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (DL 446/85, de 25 de Outubro) (…)”.

Também a doutrina se posiciona em idêntico sentido, ou seja, apontando no sentido da aplicação exclusiva do regime do direito da União neste domínio.

Sofia Henriques, referindo-se muito embora ao Regulamento n.º 44/2001, salienta que o mesmo não exige, nos pactos de jurisdição, qualquer conexão entre o tribunal escolhido pelas partes e a relação litigiosa, nem a adequação ou justificação da escolha do tribunal. A autora prossegue, destacando que, diferentemente do que sucede no nosso direito interno, a legislação europeia não exige o controlo dos fundamentos da atribuição de competência ao tribunal escolhido, fazendo notar: “corre-se, assim, o risco de as partes escolherem um foro que indiretamente prejudica a outra parte ou que visa alterar a lei aplicável, por força da aplicação das normas de conflitos do Estado do foro. Porém, é um risco que vale a pena correr pois deve confiar-se que as partes sabem acautelar os seus interesses, estando sempre salvaguardada a hipótese de fraude à lei.” (in “Os pactos de jurisdição no Regulamento (CE) n.º 44 de 2001, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pág. 82”).

Miguel Teixeira de Sousa, citando a jurisprudência do TJUE firmada em 16/3/1999 (no caso C-159/97, Castelletti/Trumpy), condensou o sentido desta nos seguintes dois tópicos: “(i) os requisitos de validade da convenção de competência só podem ser aqueles que constam do art. 17.º CBrux (agora do art. 23.º Reg. 44/2001 e, a partir de 10/1/2015, do art. 25.º Reg. 1215/2012), pelo que o direito dos Estados-membros não pode acrescentar outros requisitos de validade a essa convenção; (ii) para que a escolha do tribunal seja válida não é necessário que exista uma qualquer conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado.” (in “Pactos de jurisdição e swaps: demasiado “nacionalismo” e pouco “europeísmo”? post publicado a 26/04/2014 no blog do IPPC”, consultável em https://blogippc.blogspot.com/2014/04/pactos-de-jurisdicao-e-swaps-demasiado.html).

À luz do que acabamos deixar exposto, ou seja, de acordo com uma adequada compreensão da hierarquia das fontes normativas, e na esteira da posição consolidada na jurisprudência do TJUE e do STJ, afigura-se-nos ser patente que a pretensão da recorrente não poderá ser acolhida.

Analisemos com mais profundidade, e do porquê.

Como clarifica Lima Pinheiro, o artº. 25.º do Regulamento 1215/2012 regula diretamente a admissibilidade, a forma e a eficácia dos pactos de jurisdição, assim como certos aspetos da formação do consentimento. Servindo-nos das suas palavras, “parece claro que quanto à admissibilidade, forma e aspetos da formação do consentimento regulados diretamente não há lugar para a atuação do Direito da Competência Internacional de fonte interna e do Direito de Conflitos dos Estados-Membros.” (in “Ob. cit., pág. 234”).

Partindo desta linha de argumentação, o aspeto, alegado pela recorrente, da ausência de negociação do pacto – que, de acordo com o que invoca, fez com que a sua vontade não pudesse ter sido formada de modo livre, esclarecido e consciente – pode considerar-se diretamente regulado pelo Regulamento n.º 1215/2012. Isto porque, e segundo a interpretação do TJUE, o artº. 25.º do Regulamento 1215/2012 não se limita a exigir um acordo de vontades e a regular a forma do pacto, estabelecendo também um requisito de validade intrínseca que igualmente releva para a formação do consentimento – um campo que a recorrente afirma ter sido preterido nas negociações estabelecidas entre as partes. Nas palavras fundamentadoras do AUJ n.º 3/2008 (proc. n.º 07B1321, publicado no Diário da República, I Série, nº 66,de 03.04.2008, págs. 2041-2048) “quanto aos requisitos substanciais, o pacto não só deve especificar qual a relação jurídica da qual emergiram, ou poderão vir a emergir litígios, que será objecto do processo, como ainda o ou os tribunais competentes para apreciar o litígio; objectivo desta limitação é a de evitar que a parte mais forte imponha à contraparte um foro geral determinado.”

Em primeiro lugar, ainda que, nos termos pretendidos pela recorrente, fosse de incluir a questão da ausência de prévia negociação individual da cláusula de foro no conceito de “validade substancial” contido no artº. 25.º do Regulamento 1215/2012 – o que não é claro, já que, como realça Lima Pinheiro, (in “Ob. cit., pág. 237”), a solução é inspirada no artº. 5.º n.º 1 da Convenção da Haia sobre os Acordos de Eleição de Foro (2005) “e o Relatório Explicativo da Convenção assinala que se trata apenas de aspetos substanciais e exemplifica com a capacidade e vícios da vontade” -, encontra-se por demonstrar que a lei portuguesa (e, em concreto, o RCCG) fosse a lei aplicável ao caso em análise para aferir de tal validade.

Concretizando.

Como dá conta Rui Torres Vouga (in “Novo regime jurídico dos pactos de jurisdição”, Revista do CEJ, 1.º semestre, 2018, pág. 177”), o Regulamento 1215/2012, na sequência de acesa controvérsia na matéria, introduziu, no seu artº. 25.º, uma nova regra de conflito de leis uniforme sobre a validade substancial da cláusula atributiva de jurisdição, ao prescrever que o juiz de um Estado-Membro designado numa cláusula atributiva de jurisdição é competente “a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo”.

Neste conspecto, e segundo o considerando 20 do Regulamento em análise, “a questão de saber se o pacto atributivo de jurisdição a favor de um tribunal ou dos tribunais de um Estado-Membro é nulo quanto à sua validade substantiva deverá ser decidida segundo a lei do Estado-Membro do tribunal ou tribunais designados no pacto, incluindo as regras de conflitos de leis desse Estado-Membro.”

Ora, de acordo com Lima Pinheiro (in “Ob. cit., pág. 237”), as questões relativas à validade substancial do pacto (a que o autor faz reconduzir as relacionadas com a capacidade, vícios de vontade, poder de representação e, até certo ponto, interpretação) “deveriam, em princípio, ser apreciadas segundo a ordem jurídica do Estado-Membro a cujos tribunais foi atribuída competência, por forma a assegurar a harmonia de soluções entre esta ordem jurídica e a ordem jurídica do Estado-Membro em que é invocado um efeito privativo de competência (o que de resto é, em princípio, assegurado pelo disposto no artº. 31º nºs. 2 e 3 do Regulamento Bruxelas I bis).”

Flui, pois, do exposto que, tudo o indica, será a lei inglesa a aplicável aos pressupostos de validade do pacto de jurisdição celebrado – sendo que as partes, na mesma cláusula em que o estabeleceram, expressamente elegeram a lei inglesa como a lei aplicável a todas as matérias relacionadas com o convénio. Pelo que não se afigura que a lei portuguesa – e, em concreto, o artº. 19º al. g)) do RCCG – seja suscetível de constituir parâmetro aferidor da validade do pacto privativo de jurisdição sob exame.

Pergunta-se, todavia: admitindo que a relação jurídica em causa estivesse sob o império da legislação nacional portuguesa, seria possível defender-se a submissão do pacto de jurisdição em análise ao controlo do normativo luso que transpôs a Diretiva sobre cláusulas abusivas?

Vejamos.

De acordo com o que dispõe o artº. 67.º do Regulamento 1215/2012, “o presente regulamento não prejudica a aplicação das disposições que, em matérias específicas, regulam a competência judiciária, o reconhecimento e a execução de decisões, contidas nos atos da União ou nas leis nacionais harmonizadas nos termos desses atos.” Como realça Rui Pereira Dias (in “Ob. cit., pág. 226”), nos termos de tal normativo, “é reconhecida a prioridade, sobre o Regulamento, de atos da União ou leis nacionais harmonizadas nos termos desses atos que regulem os conflitos de jurisdições em matérias específicas, tais como a matéria das cláusulas abusivas; prioridade esta que, bem se vê do seu teor literal, é estabelecida não apenas para as Directivas propriamente ditas, como também para os atos legislativos nacionais que operam a sua transposição.”

Neste conspecto, uma questão surge como inarredável: o RCCG – que, como sabemos, é aplicável igualmente aos aderentes empresariais, nos termos do artº. 17º do mesmo diploma - terá prioridade sobre o Regulamento 1215/2012 (em concreto, sobre o seu artº. 25º), como parece resultar do transcrito artº. 67º?

A esse propósito, elucida Ana Prata, “a disposição auto-explica-se e já se deixou referido no texto introdutório que, não se ocupando este diploma, desde a sua origem, apenas da protecção dos consumidores em contratos de adesão, sendo as disposições dos arts. 1.º a 16.º, 24.º e ss. aplicáveis independentemente da qualidade do aderente, e sendo as normas dos 20.º a 23.º privativas dos contratos em que o aderente seja consumidor ou equiparado, as disposições dos arts. 18.º e 19.º têm o seu âmbito de aplicação definido por este art. 17.º, sendo extensivas aos contratos em que seja parte um consumidor, como resulta do art. 20.º” (in “Contratos de adesão e Cláusulas contratuais gerais, 2.ª edição, Coimbra Almedina, 2021, pág. 378”).

A resposta deverá ser negativa, tendo em conta o princípio do primado do direito da União Europeia. Como circunstanciadamente explica Rui Pereira Dias (in “Ob. cit., pág. 226), de acordo com este princípio, “poderá dizer-se que o quadro normativo fixado por um regulamento europeu, com manifestas pretensões tendencialmente exaurientes dos parâmetros de existência e validade formal dos pactos de jurisdição, tal como resulta explícito da jurisprudência do Tribunal de Justiça, estaria a ser circundado, e assim derrogado, por normas jurídicas nacionais, logo infraordenadas; não sendo justificação bastante a de que tais normas nacionais resultariam da transposição de uma Diretiva europeia, por isso que esta apresenta como seu âmbito material de harmonização as relações com os consumidores finais, ao passo que o ato legislativo nacional em apreciação estendeu os seus dourados para lá desse campo, versando ainda as relações entre entidades equiparadas.”

Por outras palavras, as normas do RCCG (e em concreto, o artº. 19º al. g) invocado pela recorrente) que, de forma mais favorável à estabelecida na Diretiva 93/13/CEE relativa às cláusulas abusivas, se aplicam às relações entre entidades equiparadas (como constituem as sociedades partes do presente pleito), sendo normas de natureza nacional, não poderão prevalecer sobre o regime estabelecido no Regulamento 1215/2012 relativamente à validade dos pactos de jurisdição, sob pena de violação do princípio do primado do direito da União Europeia, como ressalta do preceito constitucional expresso no n.º 4 do artº. 8.º da CRP.

Esta mesma linha de entendimento se encontra subjacente à seguinte fundamentação adotada pelo já acima citado acórdão do STJ de 11-02-2015 (proc. 877/12.7TVLSB.L1-A.S1): “Adicionalmente, mesmo que se pondere que nos deparamos com uma cláusula contratual geral, tem se atender ao facto de a autora/recorrida ser uma sociedade comercial que se dedica à fabricação de produtos de papel e alimentares, e, por isso mesmo, uma entidade com natureza empresarial e não um mero consumidor individual.” Ora, nessa circunstância, inexiste qualquer disposição de Direito da União Europeia que deva ser respeitada, ao abrigo do art. 67.º do Regulamento, pelo que a validade do pacto de jurisdição é aferida exclusivamente pelo disposto no art. 25.º do Regulamento. Só assim não seria se a cláusula contratual geral estivesse integrada num contrato celebrado com um consumidor, pois, nessa circunstância, decorre do art. 67.º do Regulamento, de forma indirecta, que se impõe a consideração do disposto na Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 05/04/1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – cf., v.g., art. 3.º, n.º 3 da Directiva e n.º 1, al. q), do Anexo à Directiva (pode ser abusiva a cláusula que suprima ou entrave a possibilidade de intentar acções judiciais ou seguir outras vias de recurso por parte do consumidor).”

Nesta base, como não passou despercebido ao tribunal recorrido, ainda que fosse de admitir – à semelhança do que considerou o TJUE relativamente às cláusulas de escolha da lei aplicável, em acórdão de 28-07-2016,Acórdão Verein für Konsumenteninformation contra Amazon EU Sàrl, proferido no âmbito do processo n.º C‑191/15” e acessível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62015CJ0191 - a submissão dos pactos de jurisdição ao controlo com base nas leis dos Estados-membros que transpuseram a Diretiva sobre cláusulas abusivas, sempre tal submissão deveria ficar na dependência de a contraparte do contrato assumir a qualidade de consumidor, o que não se verifica in casu.

Dentro da mesma lógica, foi considerado pelo TJUE, na decisão que ficou conhecida como Océano Grupo Editorial SA (Processos n.ºs C-240/98 a C-244/98, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:61998CJ0240), no âmbito de uma relação estabelecida entre consumidor e profissional, como sendo abusiva, à luz da Diretiva 93/13/CEE, uma cláusula atributiva de jurisdição aos tribunais do lugar da sede do profissional, em virtude de sobre o consumidor fazer pesar o facto de ter “de se submeter à competência exclusiva de um tribunal que pode estar afastado do foro do seu domicílio, o que pode dificultar a sua comparência em juízo.” Salientou aí o TJUE que “nos casos de litígios relativos a valores reduzidos, as despesas em que o consumidor incorre para comparecer poderiam revelar-se dissuasivas e levar este último a renunciar a qualquer acção judicial ou a qualquer defesa.”

Suscita reservas a Rui Pereira Diasreservas que acompanhamos - a transposição deste entendimento para outros casos “sobretudo porque uma tal transposição parece carecer de uma base jurídica sólida em face da circunstância de que, no caso, se tratava de uma situação puramente interna, uma vez que as demandantes tinham sede em ..., comarca do tribunal escolhido, e os demandados eram todos domiciliados em .... Não parece, por isso, solução correta a de basear em Oceano Grupo Editorial uma defesa da admissibilidade do controlo material de um verdadeiro pacto de jurisdição à luz da Diretiva sobre cláusulas abusivas, enquanto tal ou como transposta para o direito nacional de cada um dos Estados-membros.” (in “Pactos de Jurisdição Societários, Coimbra, Almedina, 2018, Ob. cit., pág 225”).

Saliente-se que este entendimento – que admite a submissão da validade do pacto de jurisdição ao crivo do regime normativo da União relativo a cláusulas abusivas quando estejam em causa interesses de consumidores, mas já não quando os titulares da relação sejam “entidades equiparadas” -, ao contrário do propugnado pela recorrente, não se mostra violador do princípio da igualdade previsto no artº. 13º da CRP, uma vez que a necessidade de tutela do consumidor - enquanto “parte fraca, leiga, profana, a parte débil economicamente ou a menos preparada tecnicamente de uma relação de consumo concluída com um contraente profissional, uma empresa”, na síntese de Calvão da Silva (in “Compra e venda de Coisas Defeituosas, Coimbra, Almedina, 2001, págs. 112 e 113”) – traduz uma justificação objetiva, materialmente fundada e, por isso, não interdita pelo princípio da igualdade, para aquele tratamento diferenciado.

A posição no sentido de que a validade do pacto de jurisdição deverá ser aferida, exclusivamente, em função do preenchimento dos pressupostos contidos no Regulamento 1215/2012 é, pois, a que mais se coaduna com as exigências de aplicação uniforme do direito da União e do princípio da igualdade que, de acordo com o que vem sendo afirmado pelo TJUE, implicam que “os termos de uma disposição do direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União, interpretação essa que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa” (cfr. os acórdãos do TJUE de 27-06-2013, Processo n.º C-320/12, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62012CJ0320&from=PT, e de 05-12-2013, Processo n.º C-508/12, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=ecli:ECLI:EU:C:2013:790).

Tal posicionamento é, assim, o que mais favorece a segurança jurídica, na vertente de estabelecimento prévio do foro competente, e o que mais salvaguarda a tutela do princípio da autonomia privada, num quadro contratual em que não se verifica uma relação de desequilíbrio negocial tipicamente existente entre um consumidor e um profissional.

Não pode proceder, por outra banda, o argumento apresentado pela recorrente de que negar o recurso à jurisdição portuguesa, neste caso e pelos sérios inconvenientes inerentes, redunda na violação do direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva consagrados no artº. 20º, nº. 1, da CRP.

Com efeito, este direito constitucional não se mostra incompatível com o estabelecimento de regras processuais, relativamente às quais o legislador goza de ampla liberdade de conformação (neste sentido, cfr. o acórdão do STJ de 22-11-2018, 19920/12.3YYLSB.L1.S1, não publicado na dgsi.). Essa liberdade foi exercida pelo legislador da União dentro dos parâmetros constitucionalmente admissíveis, ao estabelecer as regras de competência internacional em análise, gizadas por referência a fatores de conexão relevantes, de natureza objetiva, no contexto de um litígio plurilocalizado.

Não vislumbramos, assim, que a aplicação dos normativos que se deixaram citados e/ou a interpretação deles feita afronte os preceitos ou princípios constitucionais invocados pela recorrente.

Aqui chegados, estamos em condições de afirmar que, ainda que os factos alegados pela recorrente no que concerne à falta de negociação da cláusula do foro viessem a ficar demonstrados, sempre seria de concluir que os mesmos se afiguram inócuos para a resolução da questão atinente à determinação da competência internacional, considerando que a lei portuguesa (e, em concreto, a proibição constante da alínea g) do artº 19.º do RCCG) não é suscetível de constituir critério aferidor da validade do pacto de jurisdição outorgado. Nesta perspetiva, revela-se inútil averiguar, tal como defende a recorrente no ponto QQ) das suas conclusões, se existiu erro de julgamento por parte do tribunal a quo ao considerar que “não foram alegados e/ou não ficaram comprovados factos que levem a considerar, v. g., estarmos perante cláusula contratual geral incluída no contrato sem prévia negociação das partes ou que corporize posição (da A.) manifestamente em desequilíbrio face à Recorrida”.

Encontrando-se reunidos os pressupostos de ordem formal e material previstos no artº. 25º do Regulamento 1215/2012 quanto ao pacto privativo de jurisdição outorgado entre as partes, mais não resta do que concluir pela sua validade.

Subtraindo o sobredito pacto a competência dos tribunais portugueses para a apreciação do litígio em apreço, há que julgar verificada a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses, por violação de pacto privativo de jurisdição, o que determina a absolvição da ré da instância (arts. 96º, nº. 1 al. a), 97º, nº. 1 e 99º, nº 1, do CPC).

Termos, pois, em que, perante o que se deixou exposto, se decide julgar improcedente a revista, e confirmar o, aliás, douto acórdão recorrido.


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III- Decisão



Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento a recurso (de revista), confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela A./ recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).


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Sumário

I- Ocorrendo situação de “dupla conforme”, e não tendo a recorrente autonomizado/indicado, no respetivo requerimento, a norma prevista na alínea a) do n.º 2 do artº. 629º do CPC, tal não obsta a que se enquadre a sua pretensão recursiva nesse normativo legal, e como tal se admita o recurso (como revista normal), se resultar clara e expressamente das respetivas alegações/conclusões alusivas ao mesmo que o seu fundamento assenta no entendimento da violação pelo tribunal recorrido das regras de competência internacional.

II- Em tal situação, o objeto de recurso (de revista normal) fica circunscrito ao conhecimento/apreciação da questão relativa àquele fundamento especial/específico que esteve na base da permissão da admissão do recurso.

III- A competência internacional, enquanto um pressuposto processual, deverá, em regra, ser aferida em função dos contornos da pretensão deduzida tal como se encontra configurada na petição inicial, no confronto entre o pedido e a causa de pedir.

IV- Em matéria de competência internacional, a nossa lei processual (artº. 59º do CPC) reconhece a prioridade/prevalência de que gozam, sobre a nossa lei nacional, os regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais a que o nosso país está vinculado, numa decorrência, aliás, do plasmado no artº. 8º, nº. 4, da CRPort., onde se consagra o princípio primado do direito da União Europeia sobre o nosso direito interno, bem como da própria jurisprudência emanada pelo TJUE.

V- E dentro prevalência e autonomia do direito comunitário em relação ao direito interno nacional, numa emanação do respeito do princípio da autonomia da vontade das partes na estipulação da competência internacional, encontram-se os pactos atributivos de jurisdição, cuja noção e disciplina se encontra atualmente, e a partir de 10-01-2015, consagrada no artº. 25.º Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12/12, e cujo âmbito de aplicação se estende a situações jurídicas plurilocalizadas e transnacionais, que envolvam pelos menos um dos Estados-Membros da União Europeia.

VII- A validade da convenção das partes atributiva dessa competência a um dos tribunais dos Estados-Membros da EU não depende de uma conexão entre a relação controvertida e o tribunal designado ou do motivo da escolha, devendo tão somente, em regra, ser aferida à luz dos requisitos específicos formais e materiais plasmados no citado artº. 25º daquele Regulamento.

VIII- A essa luz, e sob pena de violação do princípio do primado do direito da União Europeia sobre o direito interno nacional, é inaplicável a tais pactos atributivos de jurisdição o RCCG, e particularmente quando neles não intervenham ou estejam em causa interesses de consumidores, sendo ainda, assim, e nessa medida, de desconsiderar, designadamente, os hipotéticos inconvenientes, para uma das partes, advenientes da localização do foro convencionado.

IX- Dessa decorrência, é válida a cláusula convencional inserida num contrato escrito, que tinha como objeto o fornecimento de material software, celebrado, em 2019, entre duas sociedades comerciais, uma com sede em Portugal e outra com sede em ..., através da qual estabeleceram como competentes, para conhecer de qualquer litígio emergente desse contrato, os Tribunais do Reino Unido, e mais concretamente os tribunais da cidade ..., mesmo que porventura não tivesse sido objeto de prévia de negociação ou dela advenha eventual inconveniente para uma das partes adveniente da localização do foro escolhido.

X- Pacto atributivo de jurisdição esse que se rege pela disciplina do citado artº. 25.º Regulamento (UE) n.º 1215/2012.

XI- À luz desse pacto de jurisdição, e de tal Regulamento, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para julgar a ação instaurada, em 01-07-2020, pela sociedade sedeada em Portugal contra a outra sociedade sedeada em ..., com vista a obter tutela judicial para pretensão nela formulada com base no alegado incumprimento pela segunda do aludido contrato, encontrando-se essa competência deferida aos tribunais do Reino Unido, e particularmente de ..., ainda que essa ação fosse intentada já no período de transição acordado para saída de tal país da União Europeia.

XII- A interpretação feita não afronta os princípios constitucionais do direito à igualdade e de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva consagrados, respetivamente, nos artºs. 13º e 20º, nº. 1, da CRP.


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Lisboa, 2023/05/09

Relator: cons. Isaías Pádua

Adjuntos:

Cons. Manuel Aguiar Pereira

Cons. Jorge Leal