Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5177/12.0TBMTS.P1.S1
Nº Convencional: 7º SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ACIDENTE EM SERVIÇO
CARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE
CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES
ACÇÃO DE REGRESSO
ACIDENTE IN ITINERE
Data do Acordão: 01/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.
DIREITO DO TRABALHO - FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS - ACIDENTES EM SERVIÇO / RESPONSABILIDADE DE TERCEIROS / DIREITO DE REGRESSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º2, 682.º, N.º3.
D.L. N.º 143/99, DE 30-4: - ARTIGO 6.º.
D.L N.° 503/99, DE 20-11: - ARTIGO 46.°, N.° 3..
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 30/3/2011, PROCESSO N.º 4581/07.0TTLSB.L1.S1;
-DE 25/9/2014, PROCESSO N.º 771/12.1TTSTB.E1.S1.
Sumário :
1. A qualificação do acidente sofrido por determinado agente administrativo como sendo em serviço, feita unilateralmente pela entidade empregadora, rege de pleno no plano das relações internas entre o funcionário sinistrado e as entidades públicas envolvidas legalmente no ressarcimento dos danos por aquele sofridos, previstos na legislação que rege a matéria dos acidentes em serviço.

2. Porém, no plano das relações externas, referentes ao direito de regresso invocado pela CGA sobre o terceiro causador do acidente em serviço, não pode considerar-se que o demandado em via de regresso esteja privado da faculdade de discutir os factos e o direito subjacentes à qualificação do acidente, já que a mesma se configura como realidade constitutiva do direito de regresso contra ele invocado – afrontando os princípios fundamentais do acesso ao direito e do contraditório qualquer entendimento que - amarrando-o inapelavelmente à valoração feita por acto administrativo da entidade empregadora – o privasse do direito de discutir judicialmente a fisionomia e a natureza do acidente, na medida em que disso depende a própria existência do direito de regresso contra si invocado.

3. Não pode configurar-se como acidente em serviço in itinere aquele em que o evento danoso ocorre, não aquando da realização do trajecto que normalmente conduziria o lesado ao respectivo local de trabalho, mas quando este optou por imobilizar e estacionar a sua viatura, utilizando-a como mero local de permanência ou descanso na via pública, ficando no seu interior, acompanhado de familiar, por vicissitudes que nenhuma conexão tinham com a realização do percurso ou viagem automóvel que necessitava de realizar para retornar ao posto de trabalho.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. A Caixa Geral de Aposentações, IP, instaurou acção de condenação, processada nos termos do processo declarativo experimental, contra AA, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia global de € 93.292,80, necessária para o pagamento do capital actuarial destinado a suportar as pensões devidas pelas lesões sofridas em acidente de trabalho, atribuídas ao seu subscritor nº …48, BB, acrescida de juros vencidos e vincendos.

      Alega, para tanto, que, é uma pessoa colectiva de direito público que tem por missão gerir o regime de segurança social público em matéria de pensões de aposentação, de reforma, de sobrevivência, incluindo as previstas no DL nº 503/99, de 20/11, tendo por finalidade reparar lesões decorrentes de acidentes de trabalho de trabalhadores que exerçam funções na administração pública; ora, o subscritor BB, inscrito como inspector da Polícia Judiciária, na sequência de agressão de que foi vítima, perpetrada pelo R., qualificada como acidente de trabalho, ficou com uma incapacidade de 15,45%, pelo que lhe pagou o capital de remição de € 53.447,64; sendo, posteriormente, submetido a junta médica, reconheceu esta que as lesões resultantes da agressão haviam agravado o grau de incapacidade permanente, que passou a ser de 23,9%, o que importou a revisão das prestações, passando a pagar ao sinistrado uma pensão mensal vitalícia no montante de € 372,22 - assistindo-lhe direito de regresso sobre o R., enquanto autor da agressão, a quem solicitou, em 12/4/2012, sem sucesso, o reembolso de € 93.262,80, montante relativo ao capital actuarial necessário para suportar os encargos com o pagamento de pensões ao sinistrado.


O R. contestou, impugnando parcialmente os factos articulados pela A., designadamente que o acidente em causa possa ser qualificado como acidente de trabalho e que o agravamento das sequelas apesentadas pelo sinistrado se deva às lesões decorrentes da agressão, aduzindo ainda que o direito que a A. pretende exercer se situa no âmbito da sub-rogação legal, e não de direito de regresso - sub-rogação que apenas existe quando o sub-rogado cumpriu uma obrigação do lesante, substituindo-se-lhe, tendo como pressuposto que o pagamento foi efectuado no cumprimento de uma obrigação, o que não é o caso, concluindo pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.

Procedeu-se a julgamento, vindo a final a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando o R. a pagar à A. a quantia de € 53.447,64, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde a citação até integral pagamento, no mais o absolvendo do pedido.



2. Inconformados, apelaram A. e R. tendo a Relação começado por fixar o quadro factual relevante, nos seguintes termos:

1) A CGA é uma pessoa colectiva de direito público que tem por missão gerir o regime de segurança social público em matéria de pensões de aposentação, de reforma, de sobrevivência e outras de natureza especial;

2) Entre as pensões de natureza especial contam-se as previstas no DL 503/99 de 20.11, que tem por finalidade reparar as lesões decorrentes de acidente de trabalho de trabalhadores que exerçam funções na Administração Publica;

3) O Tribunal de Círculo de Matosinhos através de Acórdão proferido em 22.11.2007 condenou o aqui Réu pela prática de um crime de homicídio tentado p.p. pelos arts. 131º do C Penal, ocorrido em 6.09.2006, pelas 13.30 horas na pessoa de BB, conforme acórdão junto a fls. 23 e ss cujo teor se dá aqui por reproduzido;

4) Foi ainda condenado a pagar ao demandante civil BB a título de danos não patrimoniais a quantia de 25.000,00 acrescida de juros de mora até efectivo e integral pagamento;

5) BB é subscritor da CGA, IP, com o número …48, inscrito como inspector da Policia Judiciária, sua entidade empregadora;

6) Em 8.9.2006, aquele BB participou à sua entidade patronal a agressão de que foi vítima no dia 6.9.2006, pelas 13.30 horas, pelo aqui Ré AA, ocorrida na Avª Manuel Pinto Azevedo, …, em ..., dizendo que “o local em causa situa-se junto ao externato da minha filha, onde a tencionava deixar e prosseguir a minha deslocação para o serviço nesta Polícia”;

7) O aqui Réu atingiu o aludido Inspector da Polícia Judiciária com um instrumento corto-perfurante, com tamanho e forma não concretamente apuradas, espetando o dito instrumento no pescoço;

8) BB acabara de almoçar com a filha e fazia tempo para a levar de novo ao externato que aquela frequentava, para regressar ao serviço na PJ, no Porto;

9) Com a conduta descrita o Réu causou em BB, “designadamente ferida na região cervical anterior, com cerca de 7cm, corto-incisa superficial, sem atingimento vascular cervical ou da traqueia, região cervical”;

10) Essa agressão foi qualificada pela Directoria da Polícia Judiciária como acidente de trabalho (em serviço), por despacho proferido em 3.10.2006;

11) Feita a comunicação à CGA, a mesma iniciou o procedimento administrativo para reparação das lesões resultantes de acidente de trabalho;

12) Em 21 de Julho de 2009 foi o sinistrado sujeito a uma Junta Médica da CGA que lhe atribuiu um grau de desvalorização de 15,45%, em consequência das “sequelas de traumatismo laríngeo”, conforme documento de fls. 73, cujo teor se dá aqui por reproduzido;

13) Foi consequentemente fixado e pago ao sinistrado BB, pela CGA a quantia de € 53.447,64 euros, para reparação das lesões emergentes do acidente de trabalho, por resolução datada de 18.1.2010;

14) Por requerimento de 11.10.2010 foi solicitada nova Junta Médica para reavaliação do grau de desvalorização fixado (agravamento);

15) Foi realizada em 17 de Janeiro de 2012 nova Junta Médica da CGA que reconheceu um agravamento do grau de incapacidade permanente do sinistrado para 23,9% em consequência das sequelas do traumatismo laríngeo, conforme documento de fls. 77 que aqui se dá por reproduzido;

16) O agravamento do grau de IPP importou a revisão das prestações, vindo a Direcção da CGA a fixar ao sinistrado o direito a uma pensão mensal vitalícia no montante de € 372,22 euros;

17) Por ofício de 12.4.2012 a CGA solicitou por escrito ao Réu o reembolso do montante relativo ao capital actuarial necessário para suportar os encargos com o pagamento de pensões ao sinistrado no valor global de € 93.262,80 euros;

18) O qual não satisfez o pagamento;

19) No dia 6 de Setembro de 2006, quando eram cerca das 13.30 horas, na Avª Manuel Pinto de Azevedo, na proximidades do edifício com o nº …, BB estava no interior do seu veículo automóvel, de marca Fiat, modelo Stilo, com a matrícula espanhola …BTS, juntamente com a filha CC, então com sete anos de idade, veículo que ali havia acabado de estacionar, à sombra, pois, tendo os dois acabados de almoçar em restaurante situado nas imediações, pretendia fazer tempo para levar a filha novamente ao Externato DD situado nas imediações, frequentado pela filha;

20) O referido BB não se encontrava identificado nem anunciou ser agente de autoridade;

21) A perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, realizada em 25.09.2006, no âmbito do processo-crime supra identificado, fixou a consolidação médico- legal das lesões com afectação de trabalho em geral e, 7 dias e profissional em 37 dias, tendo concluído que “do evento resultaram para o examinado as consequências permanentes descritas, as quais, sob o ponto de vista médico-legal se traduzem nas cicatrizes descritas, as quais não desfiguram de modo grave o examinado, nem afectam de modo grave a sua capacidade de trabalho”.



3. Passando a abordar as questões que constituíam objecto das apelações, começou a Relação por se pronunciar sobre a caracterização do acidente como sendo de serviço, fazendo-o com a seguinte argumentação – que conduziu a que julgasse improcedente a apelação interposta pela A. e procedente a interposta pelo R., revogando a sentença recorrida, que substituiu por outra a absolver o R. do pedido:

Caracterizado que foi, pela sentença recorrida, o acidente em causa nos autos como de serviço, por ter entendido que ele ocorreu no trajecto entre o local da refeição e o local de trabalho do funcionário da Polícia Judiciária (PJ) BB, subscritor da A., contra essa caracterização se continua a insurgir o R. que, na contestação, já a questionava.

 Apreciemos então a caracterização do acidente, salientando-se que não assiste razão à A. ao pretender que não pode ser questionada a caracterização como de serviço, por tal tarefa estar acometida exclusivamente à entidade empregadora, no caso à PJ.

  Na verdade, se bem que a caracterização do acidente incumba à entidade empregadora, no caso à Directoria da PJ - artº 7º, nº 7, do DL nº 503/99, de 20/11, diploma que aprovou o regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública -, a qualificação dada por essa entidade não basta, só por si, para o caracterizar como tal no confronto com o R., por se tratar de acto administrativo, que não vincula terceiros, sendo que a qualificação jurídica é a que resultar da subsunção da matéria de facto a apurar pelo Tribunal com garantia do contraditório (cfr., neste sentido, o Ac. da RL de 24/3/2011, Proc. nº 371/1999.L1-6, www.dgsi.pt).

Daí que, não é pelo facto de estar provado que a Directoria da Polícia Judiciária, na sequência de participação do acidente feita pelo seu funcionário, qualificou a agressão como acidente de trabalho (serviço), em consequência do que a A. efectuou o procedimento administrativo para reparação das lesões, pagando ao sinistrado a quantia de € 53.447,64 e fixando-lhe uma pensão mensal vitalícia de € 372,22 - factos de 6), 10), 12), 13) e 16) -, deva aceitar-se, sem mais tal qualificação, tornando-se necessário que se mostrem provados factos que levem a concluir por essa qualificação, cujo ónus (de alegação e prova) impende sobre a A.


Através da presente acção, a A. pretende exercer sobre o R., enquanto autor da agressão sobre o seu subscritor BB e cujas lesões determinaram o pagamento das pensões cujo pagamento reclama, o direito que lhe é conferido pelo artº 46º, nº 3, do citado DL nº 503/99, que, depois de nos nºs 1 e 2, estabelecer, respectivamente, que “Os serviços e organismos que tenham pago aos trabalhadores ao seu serviço quaisquer prestações previstas no presente diploma têm direito de regresso, contra terceiro civilmente responsável pelo acidente ou doença profissional, incluindo seguradoras, relativamente às quantias pagas” e que “O direito de regresso abrange, nomeadamente, as quantias pagas a título de assistência médica, remuneração, pensão e outras prestações de carácter remuneratório respeitantes ao período de incapacidade para o trabalho”, dispõe que “Uma vez proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade, a Caixa Geral de Aposentações tem direito de regresso contra terceiro responsável, incluindo seguradoras, por forma a dele obter o valor do respectivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial”.

    Independentemente da sua natureza, que a lei - transcrito artº 46º, nº 3 -, qualifica como direito de regresso, mas que também pode ser entendido como um caso de sub-rogação legal (cfr., neste sentido, o acórdão do STJ de 30/5/2013, Proc. nº 1056/10.3TJVNF.P1.S1, www.dgsi.pt., em cujo sumário se escreve que, “III - Muito embora o artº 46º nº3 do DL nº 503/99 de 20 de Novembro designe este direito como de regresso, tal qualificação é discutível, porquanto um dos pressupostos do direito de regresso é o pagamento ao lesado, e, no caso da CGA, basta a decisão definitiva desta sobre o direito às prestações que lhe compete satisfazer”), constitui pressuposto do direito pretendido exercer pela A. que o acidente possa ser qualificado como de serviço.

Efectivamente, estipula o nº 1, al. a) do artº 3º do DL nº 503/99, subordinado à epígrafe «Conceitos», que “Para efeitos de aplicação do presente diploma, considera-se regime geral, o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais constante da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, e legislação complementar”.

   E dispõe o artº 7º, nº 1, que “Acidente em serviço é todo o que ocorre nas circunstâncias em que se verifica o acidente de trabalho, nos termos do regime geral, incluindo o ocorrido no trajecto de ida e de regresso para e do local de trabalho”.





  Afastado que se mostra, atentas as circunstâncias que constam dos factos provados de 8) e 19), que o acidente tenha ocorrido nas situações previstas nas als. b) a e) do nº 2 do artº 6º da LAT, o mesmo só pode ser considerado como de trabalho (ou em serviço) ao abrigo das als. a) e f) do mesmo preceito.

   Mas, como decorre das considerações feitas pelo autor que se tem vindo a citar, para que um acidente possa ser qualificado de trabalho, ao abrigo do disposto na al. f), era imprescindível que o mesmo tivesse ocorrido na execução de serviços que se prendam com a prestação laboral do sinistrado, pois, tratando-se de actos da sua vida privada, afastado fica o elemento da subordinação e o consequente risco da autoridade que está subjacente ao regime jurídico dos acidentes de trabalho.

  Ora, o acidente (agressão) de que foi vítima o inspector da Polícia Judiciária e subscritor da A., no dia 6 de Setembro de 2006, quando eram cerca das 13.30 horas, na Avª Manuel Pinto de Azevedo, na proximidades do edifício com o nº …, ocorreu quando o sinistrado BB estava no interior do seu veículo automóvel, de marca Fiat, modelo Stilo, com a matrícula espanhola …BTS, juntamente com a filha CC, então com sete anos de idade, veículo que ali havia acabado de estacionar, à sombra, pois, tendo os dois acabados de almoçar em restaurante situado nas imediações, pretendia fazer tempo para levar a filha novamente ao Externato DD situado nas imediações, frequentado pela filha, para depois regressar ao serviço na PJ, no Porto;

Ou seja, face às considerações que anteriormente foram feitas, a situação em que o sinistrado encontrava não tem qualquer ligação com a actividade profissional que subordinadamente prestava à sua entidade empregadora, a Polícia Judiciária, tratando-se antes de uma tarefa de natureza estritamente pessoal e familiar que tem a ver, exclusivamente, com os actos da vida corrente do sinistrado e, por isso, absolutamente alheia a qualquer missão ou função de carácter profissional.

E não altera a natureza privada da situação (o sinistrado encontrava-se no interior do seu veículo automóvel, de marca Fiat, modelo Stilo, com a matrícula espanhola …BTS, juntamente com a filha CC, então com sete anos de idade, veículo que havia acabado de estacionar, à sombra, pois, tendo os dois acabados de almoçar em restaurante situado nas imediações, pretendia fazer tempo para levar a filha novamente ao Externato), ainda que se admitisse que havia sido autorizado pela entidade empregadora, autorização que se pode extrair do facto de o sinistrado se encontrar dentro do seu tempo de trabalho, pois acabara de almoçar e devia regressar à PJ, não podendo, por isso, o acidente ser qualificado de serviço, para efeitos dos disposto na alínea f) do nº 2 do artº 6º da LAT.

E também não pode ser considerado como tal ao abrigo da al. a) do mesmo preceito legal.

Efectivamente, se bem que nela se incluam os acidentes que se verifiquem entre o local de trabalho e a refeição, e, como se referiu o acidente em causa ocorreu após o almoço do sinistrado e o seu regresso à PJ, necessário se tornava que se encontrasse provado que ele ocorrera no trajecto normalmente utilizado e durante período de tempo habitualmente gasto pelo sinistrado, como resulta do nº 2 do artº 6º do DL nº 143/99, regulamentar da Lei nº 100/97, o que não sucede face à factualidade apurada.

Daí que não possa o acidente ser caracterizado como de serviço, procedendo a apelação interposta pelo R., e ficando prejudicado o conhecimento da apelação interposta pela A., que era a de saber qual o reembolso das prestações decorrentes do pagamento de pensões a subscritor contra terceiro responsável apenas incidia sobre os montantes efectivamente pagos, como entendeu a sentença recorrida, ou se abrangia também as prestações futuras, como sustenta a apelante A.



4. Inconformada, interpôs a A. a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões:

1ª O presente recurso tem por fundamento a violação de lei substantiva que consiste essencialmente no erro de interpretação do disposto nos artigos 7.°, n°s 1, 4 e 7, e 46.°, n.° 3, do Decreto-Lei n.° 503/99, de 20 de novembro, assim como do artigo 6.° nºs 1, 2, al. a) e 4, da Lei n° 100/97, de 13 de setembro, e ainda do artigo 6.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 143/99, de 30 de abril, por parte do douto Acórdão recorrido, ao concluir não estarmos na presença de um verdadeiro acidente de trabalho in itinere, com as legais consequências, e subsidiariamente a ofensa do disposto no art.° 411.° do CPC (princípios da verdade material e ao primado da substância sobre a forma).

2ª A ora Rcte. invocou e provou documentalmente a agressão que o R.cdo. infligiu ao sinistrado, nas condições de modo, tempo e lugar descritas no Acórdão do Tribunal de Círculo e de Comarca do Círculo Judicial de Matosinhos, de 2009-12-03, proferido no âmbito do Proc. n.° 1081/06.9PGMTS, que o condenou, levaram igualmente à qualificação daquele evento como acidente de trabalho, pela Polícia Judiciária/Ministério da Justiça (artigos 4.° a 7.° da contestação), mais propriamente, como acidente in itinere, tal como resulta provado nos pontos 3), 6), 8), 10) e 11) da matéria de facto.

3ª O legislador estruturou o regime de reparação de acidentes em serviço/de trabalho ocorridos no âmbito da administração pública conferindo à entidade empregadora a"...competência exclusiva para a qualificação do acidente."- artigo 7.° n.° 7, do Decreto-Lei n.° 503/99, de 20 de novembro.

4ª Isto significa que a Polícia Judiciária/Ministério da Justiça, em processo administrativo prévio, por si instruído, considerou verificados, os pressupostos de que dependia a qualificação do evento enquanto acidente em serviço ou de trabalho, nos termos do disposto no artigo 7.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 503/99, de 20 de novembro, e, por isso, como vimos, está provado nos autos que "Essa agressão foi qualificada pela Diretoria da Policia Judiciária como acidente de trabalho (em serviço) por despacho de 3.10.2006." (cfr. 10) dos Factos Assentes).

5ª À CGA compete, nos termos daquele regime legal, apenas "A confirmação e graduação da incapacidade permanente é da competência da junta médica da Caixa Geral de Aposentações", com vista à fixação das prestações devidas, estando igualmente provado nos autos que "Em 21 de Julho de 2009 foi o sinistrado sujeito a uma Junta Médica da CGA que lhe atribuiu um grau de desvalorização de 15,45%, em consequência das "sequelas de traumatismo laríngeo", conforme documento n.° 73…" (cfr. 12) dos Factos Assentes); e, mais tarde, "Foi realizada em 17 de Janeiro de 2012 nova junta médica que reconheceu um agravamento do grau de incapacidade permanente do sinistrado para 23,9%, em consequência das sequelas do traumatismo laríngeo, conforme documento 77..." (cfr. 15 dos Factos Assentes).

6ª Esta realidade encontra-se espelhada, por exemplo, no Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no âmbito do processo n.° 4278/08, proferido em 18 de dezembro de 2008, onde, quanto à qualificação ou descaracterização de um acidente como tendo ocorrido em serviço se decidiu que "O reconhecimento do acidente em causa como acidente de serviço é um pedido que apenas pode ser dirigido contra a entidade patronal, neste caso a sociedade demandada CTT - S.A., dado que só esta é competente para qualificar o acidente - art.º 7º, nº 7, do Decreto-Lei n.° 503/99, de 20.11. Não tendo a demandada CGA qualquer competência neste domínio, improcede necessariamente o pedido deduzido contra esta entidade" - disponível em www.dgsi.pt.

7ª No âmbito da presente ação está em causa o direito de regresso sobre o terceiro responsável pela produção do acidente - no caso, o Rcdo -, e não a caracterização e qualificação daquele como acidente de trabalho, pois esse acidente já se encontra qualificado pela entidade empregadora, que é a única entidade que dispõe da competência legal para o fazer.

8ª À CGA cumpre provar - como provou - que o evento descrito nos autos foi qualificado., pela entidade empregadora pública como acidente em serviço ou de trabalho, que dele resultou uma incapacidade permanente para o sinistrado e que pagou ou tem de pagar uma prestação por causa do acidente em serviço, cuja responsabilidade foi assacada a terceiro, no caso o Rcdo.

9ª Para além disso, a caracterização de um acidente in itinere como acidente de trabalho ocorre sempre que o mesmo se verifique no trajeto normalmente utilizado pelo trabalhador, entre a sua residência habitual ou ocasional e o local de trabalho, ainda que hajam desvios ou interrupções desse trajeto, desde que determinados por motivos de caso fortuito, força maior, ou quando justificados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador.

10ª No caso concreto, a necessidade atendível do trabalhador sinistrado prendeu-se com o facto de levar a sua filha ao estabelecimento de ensino que aquela frequentava, após o almoço e imediatamente antes de regressar ao serviço na Polícia Judiciária, no Porto - cfr. pontos 6) e 8) da matéria de facto assente - cfr. no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, no âmbito do processo n.° 12322/03, de 13 de dezembro de 2007; ou o recente Acórdão do STJ, proferido no âmbito do 771/12.1TTSTB.E1.S1, onde se trata de situação semelhante à dos presentes autos (ambos Acórdãos disponíveis em www.dgsi.pt).

11ª A matéria de facto assente não permitia, pois, salvo o devido respeito a descaracterização do acidente de trabalho ou em serviço previamente efetuada pela entidade empregadora - Polícia Judiciária/Ministério da Justiça.

12ª Acresce que se o Tribunal da Relação considerava que a prova era insuficiente para caracterizar o acidente como in itinere, então face aos princípios da verdade material e da primazia da substância sobre a forma consagrados no artigo 411.° do Código de Processo Civil, deveria ter ampliado o tema da prova em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, o que, subsidiariamente se requer, ao abrigo do disposto nos artigos 682.°, n.° 3, e 683.° do Código de Processo Civil.

13ª Inexistindo, com o devido respeito, razões para descaracterizar o evento como acidente em serviço ou de trabalho, deverá igualmente ser apreciado o recurso tempestivamente interposto pela CGA relativamente à parte que lhe foi desfavorável, respeitante ao montante das prestações das prestações que podem ser exigidas ao terceiro responsável, nos termos do disposto no artigo 43.° do Decreto-lei n.° 503/99, de 20 de novembro.

14ª Em sede de interpretação da lei, o intérprete deve presumir que o legislador adotou as soluções jurídicas mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.° 3 do artigo 9.° do Código Civil.

15ª Ao regular o regime de reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais ocorridas no âmbito da Administração Pública, previsto no Decreto-lei n.° 503/99, de 20 de novembro, o legislador decidiu expressamente conferir à ora recorrente, uma vez definitivamente fixado o respetivo direito às prestações, o direito de regresso sobre terceiros responsáveis por forma a obter deles o respetivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial, como resulta direta e expressamente do disposto no artigo 46.°, n° 3, daquele diploma legal.

16ª Interpretação diversa esvazia de sentido o disposto naquele comando legal.

17ª O Acórdão do STJ, de 30 de maio de 2013, invocado na sentença recorrida - num processo no qual a CGA não foi interveniente - refere, em sede de fundamentação, e em abono do que defende a CGA, que "...o direito previsto no n°3 do art.° 46° tem mais natureza indemnizatória de danos futuros - o capital produtor de rendimento correspondente ao valor da pensão - que restitutória. § Mas tal direito, face aos termos claros do preceito, compete à CGA, como entidade responsável pelo pagamento das pensões e só depois de decisão definitiva dela sobre o grau de incapacidade e sobre as prestações devidas, não aos CTT, como entidade empregadora." , e, mais à frente, "Ora, o art.° 46° n°3 é claro: o direito de regresso contra terceiros responsáveis - e não contra a entidade empregadora - compete à CGA mas, depois de "proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade" e é exercido "contra o terceiro responsável, incluindo seguradoras, por forma a dele obter o valor do respectivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial". (...) "Por conseguinte, ocorrido um acidente simultaneamente de viação e de serviço, imputável a terceiro, que vitimou um trabalhador subscritor da CGA, é a esta entidade que compete fixar o grau de incapacidade permanente e o montante da pensão devida por tal desvalorização e reclamar, depois, em direito de regresso, o valor do respectivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial."

18ª Ou seja, salvo o devido respeito, não se podem deste Acórdão extrair as conclusões que estribaram a fundamentação da sentença quanto ao direito de regresso.

19ª Acresce que, a jurisprudência relativamente à interpretação de uma norma de igual natureza e conteúdo idêntico ao artigo 46.°, n.° 3, do Decreto-Lei n.° 503/99, de 20 de novembro, constante do artigo 9.°, n.° 6, do Decreto-Lei n.° 466/99, de 6 de novembro (diploma que aprovou o regime de atribuição de pensões de preço de sangue - que mais não é do que um "acidente de trabalho qualificado"), tem afirmado consistentemente o acerto da exigibilidade das prestações futuras (pensões) determinadas por cálculo atuarial, designadamente:


- o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2006-09-12, proferido no processo n.° 06A2213, em que foi Relator o Juiz Conselheiro Afonso Correia, em que estava em causa a indemnização decorrente de acidente simultaneamente de trabalho e de viação com aplicação do n.° 6 do art.° 9.° do Decreto-Lei n.° 466/99, de 6 de novembro - de igual natureza à do n.° 3 do art.° 46.° do Decreto-Lei n.° 503/99, de 20 de novembro -, no qual se decidiu que "II - O Estado, no caso a Caixa Geral de Aposentações, tem o direito de ser reembolsado do que despendeu - e irá gastar - com o pagamento da pensão denominada "preço de sangue", a qual, na situação dos autos, vem sendo paga pela Caixa Geral de Aposentações à mãe de agente da PSP falecido na sequência de acidente que foi qualificado como "acidente de serviço" e que consistiu no seu atropelamento mortal quando se encontrava a orientar o trânsito. "

- ou o entendimento unanimemente acolhido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 2011-05-19 no processo n.° 1029/06.0TBTNV.C1.S1, em que foi Relatora a Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza:

“'3. Assim, a Caixa Geral de Aposentações pode optar por pedir a condenação no pagamento do capital necessário para pagar as pensões que pagou e que vai ter que suportar, determinado por cálculo actuarial."

(ambos disponíveis na base de dados do IGFEJ em www.dgsi.pt).


20ª Consequentemente, nos termos do disposto no n.° 3 do artigo 46.° do Decreto-Lei n.° 503/99, de 20 de novembro, deve igualmente o Réu/recorrido ser condenado no montante do capital atuarial necessário a suportar os encargos decorrentes com o pagamento das pensões por acidente em serviço ao sinistrado, no montante de € 93.262,80, para além do capital de remição já pago.


O R. contra alegou, suscitando a questão prévia da recorribilidade e pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

Tal questão prévia é, porém, manifestamente improcedente, por não existir dupla conformidade no decidido pelas instâncias; na verdade, a questão fulcral da qualificação do acidente como sendo em serviço mereceu respostas opostas na 1ª instância e na Relação; quanto à outra questão suscitada pela apelante, com relevo para a determinação do montante do direito de regresso, a Relação não chegou sequer a pronunciar-se sobre ela, por a ter considerado prejudicada pela solução que deu ao litígio, descaracterizando o acidente em serviço.


 

 5. Começa a entidade recorrente por questionar o decidido no acórdão recorrido, ao admitir que o R./demandado em via de regresso pudesse contestar a qualificação do acidente como sendo em serviço, por tal qualificação já se mostrar realizada administrativamente pela entidade empregadora competente para o efeito, nos termos da lei.

Trata-se de linha argumentativa que não pode naturalmente proceder: na verdade, a qualificação do acidente como sendo em serviço, feita unilateralmente pela entidade empregadora, rege de pleno no plano das relações internas entre o funcionário sinistrado e as entidades públicas envolvidas legalmente no ressarcimento dos danos por ele sofridos, na perspectiva de que se tratou efectivamente de acidente em serviço.

Porém, quando passamos ao plano das relações externas, destinadas a satisfazer o direito de regresso da CGA sobre o terceiro causador do acidente, é evidente – desde logo, por força dos princípios fundamentais do acesso ao direito e aos tribunais e do contraditórioque o vinculado em via de regresso não pode estar privado da faculdade de discutir os factos e o direito subjacentes a tal qualificação do acidente, já que a mesma se configura como realidade constitutiva do direito de regresso contra ele invocado – afrontando inquestionavelmente aqueles princípios fundamentais e estruturantes qualquer interpretação normativa que - amarrando-o inapelavelmente à valoração feita por acto administrativo da entidade empregadora – o privasse do direito de discutir judicialmente a fisionomia e natureza do acidente, na medida em que disso dependesse, em termos constitutivos, a existência do direito de regresso contra si invocado.

Ora, sendo tal qualificação administrativa controvertida, desde o início da presente acção, pelo R., demandado em via de regresso, não poderão deixar de ser enfrentadas e apreciadas as objecções suscitadas quanto à qualificação do acidente, na medida em que delas depende decisivamente a própria existência do direito de regresso invocado pela A.

Na particularidade do caso dos autos, é evidente e incontroverso que – a ter havido acidente em serviço – só pode ter-se tratado de acidente in itinere.

No acórdão de 30/3/11, proferido pelo STJ no P. 4581/07.0TTLSB.L1.S1, aborda-se, de forma minuciosa, a evolução legislativa ocorrida nesta área:

Efectivamente e como se deduz desta expressão, ocorre um acidente “in itinere”, na ida para o local de trabalho ou no regresso do mesmo, desde que o trabalhador se encontre no percurso normal da sua casa para o trabalho e vice-versa.

No entanto, no âmbito da lei 1942, de 27/7/36, e que foi a antecessora da Lei 2 127, a figura do acidente in itinere não constava do elenco dos acidentes de trabalho ressarcíveis. Entendia-se então que pelo facto de se dirigir para trabalhar ou de regressar a casa vindo do trabalho, o trabalhador não estava ligado ao serviço que prestava ao empregador, nem aos actos subsequentes ligados à prestação laboral. Por outro lado, também não se encontrava sujeito à autoridade patronal, elemento essencial para se exigir a responsabilidade do empregador pelos acidentes ocorridos ao seu serviço, conforme doutrina que se colhe dos acórdãos do STA de 10/7/58 e 18/6/59, colecção de acórdãos, volume V, pgª 222 e volume XI, pgª 231.

De qualquer forma foi-se evoluindo pois, quando o meio de transporte usado pelo trabalhador para se deslocar para o trabalho, ou para regressar dele, era fornecido pelo empregador, já se considerava o acidente indemnizável, entendendo-se que, se o trabalhador sofresse um acidente nestas condições, já estava sujeito à autoridade patronal, conforme se pronunciava neste sentido o STA, nomeadamente nos acórdãos de 13/2/62, 26/6/62, 18/12/62 e 30/X/73 in acórdãos doutrinais nº 5 pgª 687; 10 pgª 1315; 15 pgª 387; e nº 46 pgª 248; e ainda o acórdão do Tribunal Pleno de 13/4/67, AD nº 67 pgª 1235.

Fora destes casos, mas ainda na vigência da lei 1942 e apesar do silêncio da lei, começou ainda a firmar-se jurisprudência no sentido de se caracterizar o acidente in itinere como acidente de trabalho, quando o trabalhador estava sujeito, no trajecto, a um risco particular e específico, não comum à generalidade das pessoas, conforme doutrina que se retira do acórdão do Pleno do STA de 26/2/70, AD nº 101 pgª 783; STA, acórdãos de 3/3/70 e 9/2/71, AD nº 101 pgª 738 e 112 pgª 604.

Mais tarde a jurisprudência veio a evoluir, admitindo que também se caracterizavam como acidentes de trabalho, os acidentes in itinere que tenham resultado de circunstâncias que tenham agravado o risco do percurso e que o trabalhador é obrigado a suportar precisamente pela sua qualidade de trabalhador e a que a generalidade das pessoas se poderá eximir.

É já a vigência da teoria do risco genérico agravado e que algumas decisões jurisprudenciais já admitiam, conforme advogava Manuela Aguiar, Estudos Sociais e Corporativos nº 25 pgª 76 e 77.

Por seu turno a Lei 2127 veio consagrar expressamente a figura do acidente in itinere como acidente de trabalho indemnizável, nos casos em que o meio de transporte é fornecido pela entidade patronal e quando o acidente é consequência de particular perigo do percurso normal, ou de outras circunstâncias que tenham agravado o risco desse percurso, conforme resultava da base V, nº 2, alínea b).

Constata-se assim que, esta lei considerava indemnizáveis os acidentes in itinere, resultantes de particular perigo do percurso normal e ainda os que resultassem de quaisquer circunstâncias que tenham agravado o risco genérico, conforme concluía Melo Franco, BMJ, suplemento de 1979, pgª 67.

Quanto à lei actual ocorre um salto qualitativo de altíssima importância, na medida em que o acidente in itinere é sempre indemnizável, desde que o trabalhador se encontre no trajecto de ida para o local de trabalho ou no trajecto de regresso do seu local de trabalho, conforme flui do artigo 6º nº 2 alínea a) da Lei 100/97 (a seguir designada por LAT).

E assim sendo, para que se esteja face a um acidente de trajecto indemnizável, já não exige o legislador o preenchimento daqueles exigentes requisitos da lei anterior, bastando para tanto que o acidente ocorra no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para o percorrer.

Trata-se da consagração das modernas teorias que consideram que o risco de acidentes neste percurso é inerente ao cumprimento do dever que incumbe ao trabalhador de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a prestação resultante do contrato de trabalho, constituindo assim uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias.

Por isso, sendo o trabalhador obrigado a fazer o percurso necessário ao cumprimento da sua obrigação de trabalhar no lugar determinado pela sua entidade patronal e usando, para tanto, as vias de acesso e os meios de transporte disponíveis para que esta possa contar com a sua prestação, justifica-se que os riscos de acidente neste percurso e no tempo habitualmente gasto para o percorrer, já gozem da protecção própria dum acidente de trabalho.

Por outro lado e conforme prescreve o artigo 6º nº 2 do DL nº 143/99 de 30/4, estão abrangidos naquela previsão legal da LAT, os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado pelo trabalhador e durante o período de tempo habitualmente gasto entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho (alínea a); mas também os que ocorrerem no trajecto entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e os mencionados nas alíneas a) e b) do número 4 (alínea b); no trajecto entre o local de trabalho e o local de refeição (alínea c); e no trajecto entre o local onde, por determinação da entidade empregadora, o trabalhador preste qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual (d).

Por isso, qualquer acidente sofrido pelo trabalhador nas circunstâncias acima referidas, será, sem mais, considerado um acidente de trabalho, com o consequente direito à reparação prevista na LAT.

Além disso, não deixará de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios, determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como o que ocorrer no trajecto que tenha sofrido interrupções ou desvios determinados por motivo de força maior ou por caso fortuito, conforme resulta do nº4 do art. 6º da Lei nº 143/99 de 30-4.


No caso peculiar dos autos, entendeu a Relação, no acórdão recorrido, que não podia, perante a matéria de facto apurada, concluir-se que o acidente – resultante de criminosa agressão praticada pelo R. - sofrido entre os momentos temporais do almoço do funcionário em causa e do seu regresso à PJ tivesse ocorrido no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo sinistrado.

Pretende a entidade recorrente que – a ter-se por verificada tal insuficiência da matéria de facto- se determinasse a ampliação da mesma, nos termos do art. 411º do CPC.

É, porém, manifesta a improcedência de tal pretensão: na verdade, a ampliação da matéria de facto (possibilitada ao STJ pelo art. 682º, nº3, do CPC) só tem cabimento quando as partes hajam alegado oportunamente determinada factualidade essencial que as instâncias tenham indevidamente desconsiderado, nomeadamente ao elaborarem a base instrutória ou os actuais temas da prova, nas fases de saneamento e condensação ou da audiência prévia: não pode, porém, na fase de recurso, determinar-se a ampliação da base factual do litígio, de modo a serem, pela primeira vez, articulados factos essenciais que a parte interessada não curou de alegar oportunamente, nem podem considerar-se processualmente adquiridos nos termos previstos no art. 5º , nº2, do CPC.


De qualquer modo sempre se dirá que – independentemente dessa insuficiência factual e mesmo que se desse de barato que o evento danoso se tivesse verificado no âmbito do trajecto normalmente utilizado pelo sinistrado e dentro dos limites temporais razoáveis para, findo o almoço, o funcionário sinistrado regressar ao organismo em que exercia funções – sempre existiria um obstáculo à configuração do acidente/agressão como constitutivo de um acidente laboral/em serviço: é que, ponderada devidamente a matéria de facto, dela decorre que o sinistro se verificou, não aquando do trajecto entre o local da refeição e o da prestação de trabalho, mas em  momento em que tal trajecto ou percurso se mostrava interrompido, por circunstâncias atinentes em exclusivo à vida pessoal e familiar do lesado.

Saliente-se que o problema não está na circunstância de ter, porventura, ocorrido um desvio no trajecto habitualmente seguido pelo sinistrado, motivado pelo facto de deixar a sua filha no colégio, ou de tal facto ter determinado um alongamento no tempo que normalmente implicaria a deslocação directa para o local de trabalho – caso em que se poderia ainda configurar a existência de acidente laboral, apesar do desvio ou interrupção verificados, através do apelo ao regime constante do nº3 do art. 6º do DL 143/99: na realidade, perante a matéria de facto apurada, o evento danoso/agressão não ocorreu aquando da realização desse trajecto pelo sinistrado, mas quando o mesmo havia sido interrompido permanecendo o lesado e a sua filha no interior (banco traseiro) da viatura àquele pertencente, imobilizada e estacionada na via pública, fazendo tempo para que fosse altura adequada para deixar no colégio a filha menor do lesado.

Invoca a entidade recorrente o decidido no recente Ac. de 25/9/14 , proferido pelo STJ no P. 771/12.1TTSTB.E1.S1, em que se decidiu que:

1 − Os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado pelo trabalhador, entre a sua residência habitual ou ocasional e o local de trabalho e durante o período de tempo habitualmente gasto, são qualificados como acidentes de trabalho indemnizáveis, conforme resulta dos artigos 8.º, e 9.º, n.º 1, alínea a), n.º 2 da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro;

2 – Não obsta à qualificação do acidente de trajecto como acidente de trabalho, nos termos do n.º 3 do artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, a interrupção do trajecto, ou a alteração do mesmo, motivadas na satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, ou por motivos de força maior ou caso fortuito;

3 – Deve considerar-se como acidente de trabalho indemnizável o acidente ocorrido no trajecto habitual entre a residência do trabalhador e o seu local de trabalho, quando o sinistrado se dirigia para esse local após uma interrupção de duração não determinada, motivada pelo almoço com o pai que se encontrava internado em estabelecimento situado naquele percurso.

Porém, a situação factual verificada no caso sub juditio é substancialmente diversa da subjacente àquele aresto: na verdade, na situação ali versada, o acidente de viação verificou-se após o sinistrado ter almoçado com o seu pai na instituição em que este se encontrava internado, no momento em que – seguindo o trajecto habitual - se dirigia ao respectivo local de trabalho, com alguma antecedência em relação à hora em que deveria iniciar funções – decorrendo as dúvidas acerca da caracterização como acidente como laboral da prévia ocorrência de um hiato ou interrupção na deslocação que o trabalhador normalmente faria, se não fosse aquela vicissitude, determinada pelas circunstâncias da sua vida familiar, bem como na antecipação do momento normal de reinício das funções laborais.

Como se afirma no referido aresto:

 Decorre efectivamente da matéria de facto dada como provada que o tempo habitualmente gasto pelo sinistrado no trajecto entre a sua residência e o seu local de trabalho era de cerca de 20 minutos e que o acidente ocorreu cerca de 50 minutos antes do início do turno de trabalho do sinistrado.

Contudo, de acordo com aquela factualidade, o sinistrado, quando saiu da instituição onde se encontrava internado o seu pai, dirigia-se para o seu local de trabalho.

Deste modo, embora não resultem dos factos apurados as razões pelas quais o sinistrado pretendia nesse dia chegar ao seu local de trabalho antes do início do seu turno de trabalho, esse facto não retira à deslocação empreendida, em cujo contexto veio a ocorrer o acidente, a ligação à prestação de trabalho que é o fundamento último do regime dos acidentes de trajecto.

O acidente vem a acorrer, deste modo, quando o sinistrado se dirigia para o seu local de trabalho e no trajecto habitualmente utilizado para o efeito, o que torna evidente a sujeição à obrigação de prestação de trabalho e legitima a sua qualificação como acidente de trajecto.

Na verdade, conforme afirma JÚLIO GOMES, já na vigência da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, «esta referência ao período de tempo habitualmente gasto era particularmente importante, como já atrás dissemos, quando o fundamento para a inclusão dos acidentes in itinere nos acidentes de trabalho consistia num risco acrescido a que o trabalhador ficava exposto pelo trajecto»[3], risco variável em função de uma multiplicidade de factores, o que tornava aquele raciocínio vulnerável a críticas, nomeadamente «em certos casos pode compreender-‑se perfeitamente que o trabalhador saia de casa e se dirija para o emprego mais cedo (e até muito muito mais cedo) do que o habitual».

Contudo, segundo o mesmo autor, «a circunstância de hoje o acidente in itinere ser tutelado mesmo que o trajecto não acarrete qualquer agravamento de risco permite, quanto a nós, uma visão um pouco mais lassa do elemento temporal ou cronológico. No fundo, este elemento temporal indicia o elemento teleológico que parece ser, ele sim o essencial: o trajecto tutelado é, em princípio, aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com intenção de se deslocar para o seu local de trabalho e aqueloutro de regresso a essa mesma residência habitual ou ocasional, a partir do seu local de trabalho, uma vez terminada a prestação».

Por outro lado, o caso dos autos nada tem a ver com as situações que foram objecto de tomadas de posição desta Secção nas quais se afastou a qualificação dos acidentes como acidentes in itinere, por não preenchimento do elemento temporal. Tratava-se nesses casos de acidentes ocorridos após a prestação de trabalho, onde a conexão com o trabalho já não se evidenciava no momento em que ocorreram.

É o caso da situação analisada no já citado acórdão de 26 de Outubro de 2011, proferido na revista n.º 154/06.2TTCTB.C1.S1, onde o sinistrado só inicia o regresso à sua residência cerca de 4 horas depois de ter deixado de trabalhar, num momento em que a relação do sinistrado com a prestação de trabalho já havia terminado.

No caso dos autos, quando o acidente ocorreu, o trabalhador dirigia-se para o seu local de trabalho, não podendo afastar-se dos objectivos desta deslocação o cumprimento da sua obrigação de prestar o seu trabalho.

Deste modo, o facto de o acidente ter ocorrido antes do início do decurso do tempo normal de deslocação entre a residência do sinistrado e o seu local de trabalho não pode ser invocado como fundamento para afastar a qualificação do acidente dos autos como um acidente de trabalho in itinere, até porque o tempo de antecedência em relação ao tempo normalmente gasto não é tal que imponha conclusão diversa.

De facto, não é inverosímil a situação em que o trabalhador, seja por prudência, seja por zelo, acautele para o percurso um período de tempo superior ao normalmente gasto.

De acordo com a matéria de facto dada como provada, quando o sinistrado saiu da instituição onde o seu pai se encontrava dirigia-se para o seu local de trabalho, colocando-se a questão de saber se esta interrupção do trajecto para almoço será relevante, nos termos e para os efeitos do n.º 3 do artigo 9.º da LAT.

Situando-se a instituição onde se encontrava o pai do sinistrado num dos trajectos possíveis entre a sua residência e o seu local de trabalho, não pode afirmar‑se, sem mais, que o sinistrado, quando saiu de casa, era para ir almoçar com o pai, uma vez que de, acordo com a matéria de facto dada como provada, na sequência do almoço o trajecto do sinistrado seria o do seu local de trabalho.

É certo que a intenção de almoçar com o pai esteve seguramente presente no facto de ter saído de casa cerca de três horas antes do início do seu turno, mas a verdade é que após o almoço o trajecto que sinistrado tomou era aquele que o levava ao seu local de trabalho, onde veio a sofrer o acidente.

Assim, a paragem que o sinistrado efectuava quando trabalhava no turno da tarde para habitualmente ir almoçar com o pai a essa instituição, não pode deixar de se considerar como uma interrupção do trajecto normal do sinistrado.

Acresce que a lei não delimita o relevo das interrupções do trajecto em função da sua duração, mas dos motivos que as justificam.

A circunstância de o sinistrado ir almoçar com o pai internado numa instituição deve considerar-se como satisfação de uma necessidade atendível, já que se prende intimamente com a sua vida familiar e com o complexo de valores em que a mesma assenta.

Conforme refere JÚLIO GOMES, serão necessidades atendíveis, «desde logo, as necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador que a nossa Lei, aliás, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível».

Deste modo, ao tempo normal da deslocação há-de acrescer forçosamente o tempo da interrupção do trajecto, uma vez que a interrupção do trajecto para satisfação de necessidades atendíveis reflecte-se sobre o tempo do percurso percorrido que é interrompido durante a satisfação da necessidade em causa.

No caso dos autos não há quaisquer elementos que permitam concretizar no tempo a duração da interrupção, não resultando da matéria de facto a hora em que o sinistrado saiu da instituição para se dirigir ao seu local de trabalho, sabendo-se apenas a hora em que ocorreu o sinistro.

Não pode, deste modo, comparar-se o tempo do percurso normal das deslocações do sinistrado entre a residência e o seu local de trabalho, 20 minutos, sem determinar o tempo da interrupção, para afirmar que o acidente ocorreu fora do tempo da deslocação.


Pelo contrário, no caso dos autos, o sinistro verificou-se quando o lesado havia interrompido a viagem de retorno ao seu local de trabalho, imobilizando e estacionando a viatura pessoal e permanecendo no seu interior com a filha menor, aguardando pela hora em que deveria conduzi-la ao colégio que frequentava – e só tencionando voltar a empreender ou retomar o trajecto que o conduziria ao respectivo local de trabalho depois de deixar no externato a sua filha.

Ora, neste concreto circunstancialismo, em que o acidente se verifica, não na realização do trajecto que conduziria o lesado ao respectivo local de trabalho, mas quando este optou por estacionar a viatura, utilizando-a como mero local de permanência ou descanso, ao permanecer no seu interior acompanhado de familiar, por vicissitudes que nenhuma conexão tinham com a realização do percurso ou viagem automóvel que necessitava de realizar para retornar ao posto de trabalho, não pode ter-se por efectivamente verificado o requisito da colocação do trabalhador sob o risco da subordinação ao empregador que está na génese do regime legal do acidente in itinere. Na verdade, neste caso peculiar, o agente permanece no interior de um espaço que lhe pertence e é por ele controlado ( o veículo particular estacionado, utilizado, no momento, não como instrumento de deslocação, mas antes como espaço fechado de permanência na via pública), sendo tal imobilização ou paragem da viatura ( implicando interrupção no trajecto que seguiria para retomar a sua actividade laboral) ditada por circunstâncias ligadas exclusivamente à sua vida privada e familiar.

E, assim sendo, nenhuma censura merece o decidido no acórdão recorrido, ficando naturalmente prejudicadas as questões suscitadas pela recorrente em sede de quantificação do invocado direito de regresso.


6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista, confirmando o decidido no acórdão recorrido.

Custas pela A./recorrente.


Lisboa, 21 de Janeiro de 2016

Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor