Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
831/19.8T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RESOLUÇÃO
RESTITUIÇÃO DO SINAL
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
PRAZO RAZOÁVEL
MORA
BOA FÉ
DEVER DE COOPERAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
COMPORTAMENTO CONCLUDENTE
PROMITENTE-COMPRADOR
PROMITENTE-VENDEDOR
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Estabelecendo o artº 412º, nº 1 do Código Civil, como princípio geral, a transmissibilidade dos direitos e das obrigações das partes para os respectivos sucessores no caso de morte, as comunicações feitas aos promitentes-compradores originários vinculam os seus sucessores, como se a eles, directamente, fossem endereçadas: os herdeiros dos promitentes-compradores sucedem na posição de quem já esteja interpelado.

II. Há incumprimento definitivo numa de três situações:

. quando durante a mora o credor concede ao devedor um prazo suplementar final razoável para cumprir (interpelação admonitória) e este, mesmo assim, não cumpre (art. 808º, n° 1, II parte);

. quando durante a mora o credor perde o interesse na prestação (art. 808º, n° 1, I parte), o que ocorre quando a mesma deixa objectivamente de ter utilidade para si (art. 808º, n° 2), apreciado objectivamente à luz dos princípios da boa fé, segundo critérios de razoabilidade;

. quando o próprio devedor declara, em termos sérios e definitivos, que não irá cumprir (declaração de não cumprimento) e o credor, em consequência disso, considera a obrigação definitivamente incumprida.

III. A interpelação admonitória (declaração intimativa) deve conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo. 

IV. O novo prazo fixado – que não se confunde nem acresce ao termo inicial –, dentro do qual o devedor poderá ainda cumprir, deve ser razoável, isto é, estabelecido em coerência com os princípios da boa fé, da cooperação dos contraentes e do não exercício abusivo do direito.

V. Nada obsta a que, por razões de economia processual, se utilize uma única declaração para a interpelação admonitória e para a resolução.

VI. A interpelação admonitória é, porém, dispensada quando a parte contratante a quem a mesma seria endereçada teve uma conduta que, para além de atentatória da boa fé contratual, se mostra reveladora de clara intenção de não querer cumprir o contrato – ou seja, quando ocorre um incumprimento definitivo do contrato-promessa em resultado da antecipada percepção de que o contrato prometido não será concretizado, mediante a apreciação do comportamento activo ou omissivo da contraparte.

VII. A boa fé – que está presente, quer na preparação como na formação do contrato (art. 227.º do C. Civil), quer, também, no cumprimento das obrigações e no exercício do direito correspondente (art. 762.º, do mesmo Código) – é um princípio que constitui uma trave mestra, certa e segura da nossa ordem jurídica, vivificando - a por forma a dar solução a toda a gama de problemas de cooperação social que ela visa resolver no campo obrigacional.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível.



I – RELATÓRIO


AA e BB, identificados nos autos, na qualidade de únicos herdeiros de CC e DD, instauraram contra EE e FF, igualmente ali identificados, acção de processo comum, pedindo que seja declarada a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre os ids. de cujus, enquanto promitentes compradores, e os RR., enquanto promitentes vendedores, e, assim, que estes sejam condenados a pagar-lhes a quantia de 200.000,00 € correspondente à devolução em dobro do sinal que aqueles prestaram.

Para o efeito, alegaram, em suma, o incumprimento definitivo por parte dos promitentes vendedores do referido contrato promessa que se refere a uma fracção autónoma, de cujo preço de 130.000,00 € então fixado foi pago 100,000,00 €.

Citados, os RR. começaram por dizer que a não realização do contrato definitivo é imputável aos promitentes compradores por, numa primeira fase, nenhum deles, e após o falecimento do promitente comprador, a promitente compradora, ter comparecido à escritura que marcou e os notificou para o efeito, e acrescentaram que, por falta de pagamento da água, luz e condomínio da dita fracção, que tiveram de regularizar a expensas próprias, solicitaram às entidades competentes o cancelamento dos respectivos fornecimentos à mesma, que, tendo, entretanto, sido utilizada por terceiros sem o seu consentimento, vieram a ocupar numa altura em que já não estava habitada.

Terminaram pedindo em Reconvenção, a resolução do contrato promessa por incumprimento dos promitentes compradores e o reconhecimento do direito a fazerem seus os 100.000,00 € que lhes foi entregue a título de sinal.

Em Resposta, os AA. defenderam-se dizendo que o contrato promessa nunca foi resolvido com os promitentes compradores nem nunca exerceram qualquer direito contra os respectivos herdeiros e que os RR. além de, em abuso de direito, terem forçado a desocupação da fração com o corte do abastecimento de água que sempre foi paga, manifestaram a sua indisponibilidade para o cumprimento do contrato promessa com o pedido judicial de restituição da mesma fracção.


Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença na qual se decidiu:

“Pelo exposto, julgando improcedentes a acção e o pedido reconvencional, absolvo as partes dos pedidos reciprocamente formulados.”.


Desta sentença apelaram autores e réus, vindo a Relação do Porto a revogar a sentença recorrida e consequentemente decidiu:

1. Julgar a acção totalmente improcedente e absolver os réus do pedido inicial.

2.  Julgar o pedido reconvencional totalmente procedente, declarar-se resolvido o contrato promessa de compra e venda a que respeitam estes autos, e condenam-se os autores a: ver os réus fazer sua a quantia de €100 000,00 correspondente ao sinal que lhe foi entregue.


De novo inconformados, os Autores/apelantes AA, GG e BB vieram interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal, rematando as alegações com as seguintes


CONCLUSÕES

A) O Tribunal da Relação do Porto alterou a decisão do Tribunal de primeira instância, nos seguintes termos:

Na improcedência das alegações de recurso dos autores e procedência das alegações dos réus revoga-se a sentença recorrida e consequentemente decide-se:

1. Julgar a acção totalmente improcedente e absolver os réus do pedido inicial.

2. Julgar o pedido reconvencional totalmente procedente, declarar-se resolvido o contrato promessa de compra e venda a que respeitam estes autos, e condenam-se os autores a: ver os réus fazer sua a quantia de €100 000,00 correspondente ao sinal que lhe foi entregue.”


B) Sucede que o Tribunal recorrido foi traído por ostensivo erro de análise quanto à factualidade provada, tendo acreditado que, não obstante nunca ter existido uma resolução do contrato promessa em análise, os autores haviam sido convocados para a celebração de escritura, tinham faltado e haviam recebido interpelação admonitória, o que nunca aconteceu.

Vejamos,

C) A 4 de Fevereiro do ano de 2000 foi celebrado o documento escrito epigrafado de “CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA” junto como documento nº 1 na petição inicial e em Abril do mesmo ano os réus entregaram aos promitentes compradores as chaves de tal habitação, passando os mesmos a residir em tal imóvel - pontos 1 e 4 dos factos provados.

D) O preço da prometida compra e venda foi acordado em € 130.000,00 e os réus/recorridos receberam dos promitentes compradores mais de ¾ do valor acordado para a compra e venda, ou seja, receberam já € 100.000,00 - pontos 2 e 8 dos factos provados.

E) Chegou a estar agendada a escritura pública de compra e venda para o dia 19/01/2001, mas o promitente comprador não conseguiu estar presente nesse dia para a celebração da escritura pública, tendo vindo a falecer 12 dias depois - pontos 9, 10 e 11 dos factos provados.

F) O que foi comunicado aos réus pela promitente compradora mulher, que continuou a habitar a fracção em causa - pontos 12 e 14 dos factos provados.

G) Nos artigos 17.º a 24.º das alegações de recurso, é explicada a circunstância dos autores se encontram na posição contratual de promitentes compradores, fruto dos sucessivos falecimentos.

H) Sucede que os réus/recorridos nunca dirigiram sequer qualquer interpelação aos herdeiros desde 2001, como se impunha, pese embora soubessem nessa altura do falecimento do promitente comprador e da existência dos mesmos, nem nunca resolveram formalmente o contrato promessa de compra e venda com quem quer que seja (ponto 43 dos factos provados), lembrando-se que dispõe a norma imperativa constante do artigo 2091º, nº 1 do código civil: “1. Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.”.

I) O Tribunal recorrido não percebeu que os autores são herdeiros, ou seja, são pessoas distintas dos originais promitentes compradores e que aos mesmos nunca lhes foi dirigida qualquer comunicação pelos réus, sendo que o mérito da decisão foi naturalmente afectado por tal notório e evidente equívoco ou lapso de análise.

J) Com efeito, fundamenta o Acórdão recorrido que os autores “foram sucessivamente notificados para comparecer e outorgar a escritura pública e foram sucessivamente faltando” e não é demais lembrar que tal conclusão não corresponde minimamente à realidade, pois está mais do demonstrado que os autores (que são pessoas distintas  dos primitivos promitentes compradores) nunca foram sequer notificados para comparecer a qualquer escritura ou receberam sequer qualquer comunicação para o que quer que fosse.

L) E foi certamente esta confusão do Tribunal da Relação que justificou a sua errada decisão.

M) Veja-se que refere “É verdade que os Réus, promitentes vendedores, interpelaram pela vez, os Autores, promitentes-compradores, para comparecerem a fim de ser realizada a escritura pública no dia 9/7/2003, desta vez com cominação de se não comparecessem consideravam o contrato definitivamente incumprido (factos nºs 18 e 19),mas após nova falta no acto da escritura dos autores, enviam nova carta em 2/9/2005 dizendo que os AA se encontram em mora, concedendo-lhe o prazo de 15 dias para cumprir o contrato (factos nºs 20 e 21).

N) Só que existe manifesta contradição entre a fundamentação e o que consta da factualidade referida pelo Tribunal da Relação do Porto, pois em nenhum desses pontos da matéria de facto lembrados há qualquer referência aos autores, o que não foi alcançado pelo Julgador por lapso evidente de análise.

O) A questão central reside precisamente no facto dos autores nunca terem sido sequer notificados para comparecer a qualquer escritura pública de compra e venda e o Tribunal da Relação ter sido iludido com as comunicações constantes dos autos e lembradas na sua fundamentação (mas que não foram dirigidas aos herdeiros, aqui autores e recorrentes).

P) Nos pontos 18, 19, 20 e 21 dos factos provados apenas é referida a originária promitente compradora e não os autores!

Q) E só por tal razão se entende o que consta do Acórdão sindicado quando refere antes do dispositivo que “(…) entendemos que a culpa no incumprimento é dos autores ao nunca cooperar com os réus, sabendo da sua obrigação de realizar o contrato de compra e venda, e, como tal devem ver o contrato ser declarado resolvido com a perda do sinal a favor dos réus assim procedendo o pedido reconvencional nos termos do artigo 442º, 2 primeira parte do CC (cfr 440º e 441º do CC).”

R) Falta de cooperação para a realização de uma escritura para a qual nunca foram convocados, ao que acresce que os autores GG e BB nem sequer sabiam ou participaram na acção de fixação judicial de prazo aludida nos pontos 25.º a 27.º dos factos provados!?! - Só com base no erro a que nos vimos referindo se pode compreender tal fundamentação, pois nunca houve qualquer convocatória dos réus aos autores para a celebração de qualquer escritura, nem nunca lhes foi dirigida qualquer interpelação admonitória ou sequer qualquer outro tipo de comunicação que exigisse algum tipo de cooperação.

S) Conforme resulta do sumário do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 10/12/2019 disponível em www.dgsi.pt:

“I - A resolução do contrato promessa apenas se pode fundar no incumprimento definitivo, que não na simples mora, sendo que o incumprimento definitivo resulta da não realização da prestação dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, ou da perda do interesse que o credor tinha na prestação – interesse esse que tem de ser apreciado objectivamente.

II - O credor, para converter a mora em incumprimento definitivo, tem de interpelar o devedor, intimando-o a cumprir a prestação, dentro de prazo razoável, fixado de acordo com as circunstâncias concretas do contrato a celebrar, com a advertência, muito clara, de que a falta da prestação, no prazo estabelecido, o fará incorrer em incumprimento definitivo da obrigação.

III - A interpelação admonitória exige o preenchimento de três pressupostos: a existência de uma intimação para cumprimento, a consagração de um prazo peremptório, suplementar, razoável e exacto para cumprir, e a declaração cominatória de que findo o prazo fixado, sem que ocorra a execução do contrato, se considera este definitivamente incumprido.

IV - No caso dos autos, a carta enviada pela Autora à Ré na qual invoca (sem fundamento) a resolução dos contratos promessa com base no disposto no artº 437º do CC, e lhe concede “o prazo de trinta dias para cumprir com o estipulado no número 2 do artigo 442°, findo o qual invocaremos os direitos referidos no artigo 830°, ambos do referido Código Civil”, não preenche os requisitos da interpelação admonitória prevista no artº 808º, nº 1 do CC.

V - Assim, não tendo a Ré efectuado a marcação da escritura de compra e venda, dentro daquele prazo, não incorreu em incumprimento definitivo dos contratos-promessa.”.

T) Relembra-se, nunca os autores foram intimados para cumprir com a celebração do contrato prometido, nunca receberam qualquer comunicação a consagrar um prazo suplementar peremptório, nem qualquer declaração cominatória de que findo tal prazo se consideraria definitivamente incumprido o contrato.

U) Podendo ler-se no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Abril de 2005 disponível em www.dgsi.pt:

“Se os réus, herdeiros habilitados da promitente-vendedora, contraente num contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, não foram interpelados, admonitoriamente, pelo promitente-comprador, não se pode considerar que incorreram em mora, nem sequer em incumprimento definitivo, muito embora o cônjuge sobrevivo - também promitente-vendedor - tenha já incorrido em tal situação.“.

V) Impõe-se, pois, atento todo o exposto, a revogação in tottum do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação Porto, perante o patente erro de apreciação da factualidade apurada, nos termos expostos.

X) Aqui chegados, e constatando-se a falha ostensiva de análise às comunicações que constam dos factos provados e que determinou a iniquidade do mérito do Acórdão, torna-se necessária uma correcta apreciação e aplicação do direito por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

W) Não obstante nunca terem resolvido tal contrato promessa, tendo recebido já € 100.000,00 do preço de € 130.000,00 acordado e sabendo do falecimento dos originários promitentes compradores, certamente acreditando na inacção dos seus herdeiros a quem nunca dirigiram qualquer comunicação, adoptaram em finais de 2016 e inícios de 2017 comportamentos completamente reveladores da sua intenção em não cumprir mais com o mesmo, concluindo-se pelo seu incumprimento definitivo.

Z) Na verdade, na sequência da conjugação da matéria de facto constante dos pontos 12, 38, 39, 40 e 45 dos factos provados, constata-se que, sabendo do falecimento dos originários promitentes compradores e da existência de herdeiros, os réus cancelaram em Novembro de 2016 o abastecimento de água à fracção e depois, em Março de 2017 arrombaram a porta e trocaram as fechaduras da mesma, cancelando igualmente o fornecimento de energia elétrica, forçando a restituição do imóvel sem qualquer decisão judicial e fazendo seus os € 100.000,00 já recebidos.

AA) Na prática, de acordo com as mais elementares regras de experiência comum, o corte de abastecimento de água tornou completamente inabitável o imóvel onde residia a autora AA e marido, provocando a mudança de residência – ponto 30 dos factos provados.

BB) Tais comportamentos dos réus/recorridos, acreditando que podiam fazer seus os € 100.000,00 já recebidos pelos promitentes compradores, mas ao mesmo tempo reavendo a detenção do imóvel (cuja tradição ocorria desde 2000) na sequência do falecimento dos originários promitentes compradores, com o cancelamento do fornecimento dos serviços essenciais è fracção e troca de fechaduras, encerram em si mesmo a clara e inequívoca intenção de incumprir definitivamente o contrato promessa celebrado no ano de 2000.

CC) No Acórdão proferido pelo STJ a 23-11-17, 212/12, www.dgsi.pt, chegou-se a tal conclusão depois de um do promitente-vendedor ter procedido unilateralmente à mudança de fechadura de um imóvel que fora objeto de contrato-promessa e que estava sob detenção legítima do promitente-comprador, nele de afirmando que, “independentemente da estipulação, ou não, de um prazo pelas partes e da sua natureza, em face de um comportamento do devedor que exprima inequivocamente a vontade de não cumprir a obrigação principal, verifica-se, desde logo, um quadro de incumprimento definitivo. A recusa tanto pode ser expressa e categórica como pode ser valorada a partir de outras atitudes inequívocas e concludentes daquele comportamento, como seja a dedução em juízo de um pedido de restituição do imóvel objeto do contrato-promessa pelos herdeiros do promitente-vendedor, o que legitima o promitente-comprador a recorrer às sanções previstas para o incumprimento do contrato-promessa, designadamente, a restituição do sinal em dobro nos termos do art. 442º do CC.”

DD) Resulta ainda de uma manifesta não compreensão da matéria de facto provada por parte do Tribunal da Relação a fundamentação de que “Desde a celebração do contrato promessa até hoje decorreram 20 anos, com os autores no gozo da casa.”

EE) É que resulta da matéria de facto provada que são os réus que estão no gozo da casa depois de procederem ao corte do fornecimento de água em Novembro de 2016, tornando-a inabitável e procedido ao arrombamento da porta para reavê-la, detendo-a ilegalmente sem qualquer decisão judicial e de forma provocadamente dolosa.

FF) Comportamento que evidenciou, sem grande margem para dúvidas, a intenção dos réus em não mais cumprir com o prometido e sem seguir o iter legal de convocar os autores (que sabiam ser os únicos herdeiros dos originários promitentes compradores para a celebração da escritura pública de compra e venda).

GG) Os autores, aqui recorrentes, peticionaram então que o Tribunal a quo declarasse resolvido o contrato promessa em discussão nos presentes, por incumprimento definitivo imputável aos réus, precisamente com fundamento no corte de fornecimento de água em Novembro de 2016, subsequente arrombamento da porta da habitação com substituição de fechaduras e cancelamento do fornecimento de energia eléctrica, ao mesmo tempo que tentavam fazer seus os € 100.000,00 já recebidos dos promitentes compradores.

HH) E o Supremo Tribunal de Justiça tem estado cada vez mais atento a estes comportamentos, tal como nos ensina o recente e brilhante Acórdão de 11/11/2020 disponível em www.dgsi.pt em que foi relator o Sábio Conselheiro Abrantes Geraldes, transcrevendo-se boa parte do mesmo no artigo 61.º das alegações, para o qual se remete.

II) O demandado marido “reconheceu ter cancelado o abastecimento de água e luz à fracção dos autos, justificando-se com a falta de pagamento desses serviços assim como das despesas de condomínio”, conforme resulta da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância.

JJ) Mas resulta manifesto que tal justificação não é verosímel, uma vez que resultou dos factos não provados que “as contas da água da fracção tenham deixado de ser pagas”.

LL) Porém, olvidou o Tribunal que resultou dos factos não provados que “as contas da água da fracção tenham deixado de ser pagas”, pelo que não teve, então, como fundamento qualquer falta de pagamento da(s) conta(s) atinente ao seu consumo, como resultou por demais demonstrado.

MM) E também não é verdade que existissem nesse momento quaisquer dívidas relativas ao consumo de energia eléctrica, pois resultam dos documentos juntos pelos réus a 4/11/2019 (docs 3 e seguintes) que o primeiro aviso de pagamento da EDP se refere ao período de 2 meses balizado entre 29 de Setembro e 29 de Novembro de 2016 e com data limite de pagamento a 21 de Dezembro de 2016 – conforme igualmente pontos 33 e 34 dos factos provados.

NN) Ou seja, de acordo com as regras de normalidade, foi um aviso habitual remetido por correio certamente em Dezembro de 2016 para pagamento do consumo até Novembro de 2016, sem qualquer montante em dívida anterior e que, em virtude da atitude dos réus já ninguém chegou a receber.

OO) Já os avisos de pagamento juntos nos documentos nº 4 e 5 se referem a consumo ulterior e data limite de pagamento em 2017, ambos ulteriores à supra referida saída do imóvel que, entretando se tinha tornado inabitável por falta de água.

PP) Pelo que é completamente falso que o corte de fornecimento de água tivesse sido motivado por qualquer falta de pagamento, bem como existissem dívidas à EDP no momento em que os réus adotaram livremente o comportamento tendente ao não cumprimento do contrato promessa, reavendo de forma forçada a fracção que haviam entregue em Abril do ano 2000, sem qualquer autorização de um Tribunal.

QQ) O corte de água, subsequente troca de fechaduras para os autores deixarem definitivamente de ter acesso o imóvel e corte de energia eléctrica, verificando-se sem margem para dúvidas a inexistência ou falsidade dos motivos invocados (que não foram percebidos pelo Tribunal recorrido por erro de interpretação da factualidade e dos documentos), encerra em si a vontade por banda dos réus de mais não cumprir com o acordo prometido.

RR) E a questão da existência de uma dívida ao condomínio relativa a quotas extraordinárias é um ostensivo falso argumento para justificar os agressivos comportamentos que impediram aos autores de habitar o imóvel desde Novembro de 2016, na medida em que o seu conhecimento por banda dos réus é ulterior ao corte de água, troca de fechaduras e corte de fornecimento de energia eléctrica, conforme facilmente se depreende do documento nº 19 junto pelos réus a 4/11/2019 ou até do ponto 36 dos factos provados.

SS) Aliás, o mesmo documento nº 19 veio evidenciar que sempre foram pagas as quotas ordinárias devidas ao condomínio e que foi só com o cancelamento do fornecimento de água em Novembro de 2016 (o qual tornou o imóvel inabitável) que deixaram de ser pagos os valores/avisos e facturas remetidos para o imóvel inabitável, sendo os documentos nºs 20 e 21 apenas uma sua consequência.

TT) Os autores consideraram que os dois primeiros pontos dos factos não provados constantes da sentença deveriam ter sido considerados provados, impugnando a decisão proferida acerca da matéria de facto nesses mesmos pontos.

UU) Alegaram que deveria ter sido considerado provado que o cancelamento do abastecimento de água à fracção teve o objectivo de provocar a desocupação do imóvel, atentas as regras de experiência comum e a demonstrada falsidade da justificação apresentada pelos réus (contas em dívida).

VV) Referiram ainda no seu recurso de apelação que deveria igualmente ter sido considerado provado que os autores deixaram a fracção por causa do cancelamento da água, atento todo o já expendido e até o depoimento da testemunha HH que o confirmou (cujo depoimento ficou gravado em suporte digital no aplicativo "...", assim como em suporte físico (CD-ROM) com início pelas 11:13 horas e términus pelas 11:47 horas, cuja duração é de 34 minutos e 7 segundos), não tendo havido menção do Tribunal que, porventura, inviabilizasse a sua credibilidade por alguma razão.

XX) O ponto 3 dos factos não provados constantes da sentença é, na realidade, uma conclusão que deveria ter sido atendida, na medida que é a única interpretação lógica a retirar do comportamento adoptado.

WW) Sucede que, depois de referir que os autores cumpriram com todas as exigências legais para impugnar a decisão proferida acerca da matéria de facto, sem qualquer apreciação por mais parca que seja, refere o Tribunal da Relação do Porto que não resultou provado o alegado e que por isso improcedia a impugnação.

ZZ) Portanto, não existiu sequer qualquer apreciação dos fundamentos da impugnação da matéria de facto, mas apenas uma decisão sem explicação que fundamenta igualmente o próprio recurso de revista, nos termos do disposto no artigo 674.º do CPC (por referência aos arts.  615.º, 1, alíneas b) e d) e 666.º do mesmo diploma), como excepção à regra de que a reapreciação da matéria de facto está vedada ao Supremo Tribunal de Justiça.


Nestes termos e nos melhores de direito que V.Exas mui doutamente suprirão, deverá proceder integralmente o presente recurso, revogando-se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, substituindo-se por outra julgue a acção proposta pelos autores/recorrentes totalmente procedente e totalmente improcedente o pedido reconvencional formulado pelos réus/recorridos, fazendo-se, assim, inteira justiça.


*


Contra-alegaram os RR/Reconvintes e Recorridos, pugnando pela manutenção do decidido no acórdão da Relação.

*


Em acórdão deste Supremo Tribunal, e na procedência da suscitada nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (sobre a questão da impugnação da decisão da matéria de facto, suscitada na apelação), foi determinado que os autos baixassem à Relação a fim de que ali a fim de ali se proceder à “reforma da decisão anulada, pelos mesmos juízes, se possível” (artº 684º, nº 2 do CPC).

*


Em acórdão lavrado em conferência a Relação do Porto supriu a apontada nulidade – fundamentando (agora, sim) a decisão proferida sobre a impugnação da matéria de facto (tendo mantido a decisão que havia prolatado no 1º acórdão). E, também em conferência, a Relação rectificou um erro material havido nesse acórdão (falta de uma palavra - a palavra “não”).

*


Regressado os autos a este Supremo Tribunal, os Autores/apelantes AA, GG e BB interpõem novo recurso de revista, rematando as alegações com as conclusões que já haviam apresentado na anterior revista, plasmadas supra sob as alíneas AA) a SS) e que aqui, por economia, se reproduzem).


Também de novo contra-alegaram os RR/Reconvintes e Recorridos, pugnando pela manutenção do decidido no acórdão da Relação, nos mesmíssimos termos que o haviam feito nas anteriores contra-algações.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


**


II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Como é sabido, o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).

O presente recurso de revista é apresentado na sequência de novo acórdão do Tribunal da Relação do Porto (de 8.2.2022), proferido ao abrigo do disposto no art. 684.º, n.º 2, do CPC, que, conforme havia sido determinado por este Supremo Tribunal, supriu a nulidade por omissão de pronúncia, ut art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

Este acórdão da Relação limitou-se (e bem) a fundamentar a decisão havida quanto à impugnação da matéria de facto – ou seja, limitou-se a decidir da apontada nulidade por omissão de pronúncia apontada pelo STJ.

No entanto, o que vemos é que os recorrentes apresentaram alegações, não apenas relativamente ao novo acórdão, mas também …relativamente ao acórdão anteriormente prolatado pela Relação (de 15.12.2021), repetindo aqui o teor das mesmas.

O STJ já se pronunciou quanto à questão de saber se, no seguimento do cumprimento do disposto no art. 684.º, n.º 2, do CPC, pelo tribunal da Relação, em que foi suprida nulidade, deve o recorrente apresentar novo recurso relativamente ao novo acórdão, ou se, antes, deve apresentar alegações tão somente quanto à parte inovatória do acórdão.

Tem entendido o STJ, conforme decidido no acórdão de 20-02-2020, Revista n.º 2200/08.6TBFAF-A.G1.S2[1], em que foi relatora a Conselheira Rosa Ribeiro Coelho, que “I - Arguida em recurso de revista a nulidade por omissão de pronúncia do acórdão da Relação, e julgando o STJ procedente essa arguição, apenas quanto a essa questão é reaberto o poder jurisdicional da Relação, proferindo outro acórdão que, além de reproduzir o mais que antes fora decidido, apenas contém uma decisão nova, proferida sobre a questão cuja apreciação antes fora omitida. II - No recurso de revista que o mesmo recorrente voltar a interpor não pode ser impugnada a parte não inovadora do novo acórdão da Relação, já que a mesma também não tinha sido impugnada na primeira revista. (…)”.

Seguindo o entendimento plasmado neste aresto, considerando que o poder jurisdicional da Relação se esgotou quanto às questões plasmadas no primeiro acórdão e que a parte inovatória do segundo aresto se reporta apenas ao suprimento da nulidade por omissão de pronúncia, a oportunidade de o recorrente impugnar o teor do acórdão do Relação também se esgotou no prazo das alegações de revista reputadas ao primeiro acórdão.

Como tal, tão só quanto à parte inovatória do segundo acórdão – in casu, a decisão fundamentadora da matéria de facto – podiam os recorrentes apresentar novo recurso de revista, aproveitando-se as conclusões da primeira revista quanto ao demais.

Ponderado o exposto e considerando que sobre a matéria do novo acórdão da Relação, que fundamentou a decisão havida sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, nada de relevante é suscitado no recurso de revista ora interposto (apenas – cfr. conclusão A)) se refere o óbvio, ou seja, que “na sequência da baixa dos autos ao Tribunal da Relação, em virtude da completa omissão de pronúncia quanto á decisão proferida acerca da impugnação da matéria de facto, a mesma foi mantida integralmente”), incidindo as conclusões tão-somente sobre matéria de direito (de facto, a abordagem de tal matéria ocupa a totalidade das conclusões das presentes alegações), as conclusões a considerar por este Supremo são as que constam da 1ª revista, sob as alíneas A) a SS) (inclusive), pois as demais (TT) a ZZ)) dizem (diziam) respeito à suscitada nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia e que determinou a baixa dos autos Relação.

E, obviamente, sendo essas as Conclusões das alegações aqui a levar em conta, as Contra-Alegações apresentadas pelos Recorridos e a considerar serão (também, apenas) as que, apresentadas na 1ª revista, ali respondem àquelas Conclusões.


*


Em face do exposto, as questões a decidir são:

1. Se as convocatórias havidas para a celebração da escritura, faltas à mesma e interpelação admonitória, conforme factos provados, vincularam (e vinculam) os Autores (herdeiros dos promitentes compradores), com as respectivas consequências jurídicas.

2. Se o comportamento dos RR/Reconvintes/Promitentes vendedores (com o cancelamento do abastecimento de água e de energia eléctrica e troca das fechaduras da fracção) é revelador da sua intenção em não cumprir definitivamente o contrato-promessa e se, por isso, deve considerar-se que incumpriram o mesmo, assistindo aos AA/Recorrentes o direito a resolução do contrato-promessa e devolução em dobro do sinal prestado aos RR/recorridos.


**



III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. É a seguinte a matéria de facto provada:

1. Entre CC (já falecido) e DD (igualmente falecida), na qualidade de promitente compradores e os réus, na qualidade de promitentes vendedores, foi celebrado em 4 de Fevereiro de 2000 o documento escrito epigrafado de “CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA”.

2. No referido contrato promessa, os Réus, pelo preço de € 130.000,00 declararam prometer vender aos falecidos CC e esposa DD, que declararam prometer comprar, uma fracção autónoma designada pelas ..., sita na ..., com arrumos e garagem na cave, na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória de Registo Comercial ... sob o nº 00595/07..., e inscrito na matriz sob o artigo ...01 (com origem no artigo ...86).

3. Mais consta do referido contrato promessa as seguintes cláusulas:

“-Terceira: Como sinal e princípio de pagamento, o primeiro Outorgante recebe dos segundos, nesta data, a quantia de 10.000.000$00 (dez milhões de escudos) a que o Primeiro Outorgante dá a devida quitação.

-Quarta: O Segundo outorgante compromete-se perante o primeiro, a fazer o seguinte reforço de sinal:

- até ao dia 31 de Abril de 2000 entregar a quantia de Esc. 6.000.000$00 (seis milhões de escudos).

- Quinta: O restante em dívida, ou seja Esc. 10.000.000$00 (dez milhões de escudos) será pago no acto da escritura, que será celebrada no máximo até ao fim do mês de Julho”.

4. Em Abril de 2000, os promitentes vendedores entregaram a chave do imóvel aos promitentes vendedores.

5. Os promitentes-compradores obrigaram-se perante os RR. a pagar os consumos de água e energia que viessem a realizar, porquanto os respectivos contratos de fornecimento estavam em nome dos segundos.

6. Os respectivos avisos de pagamento seriam recebidos no receptáculo da correspondência da fracção e os promitentes-compradores procederiam ao seu pagamento.

7. O mesmo se passaria com as quotizações do condomínio a cujo pagamento dos promitentes-compradores se obrigaram perante os RR. por via da habitação da fracção.

8. Os RR. receberam dos promitentes compradores 100.000,00 €.

9. O R. marido em 19/12/2000 dirigiu ao promitente-comprador CC uma carta em que lhe comunica a marcação da escritura de compra e venda para o dia 19/01/2001 no ... Cartório Notarial ..., carta essa que o destinatário recebeu no dia seguinte.

10. Em 19/01/2001, os promitentes-compradores não compareceram para a realização do contrato prometido.

11. Em 1 de fevereiro de 2001 faleceu o promitente-comprador marido.

12. Os RR. tomaram conhecimento do óbito de CC por o mesmo lhes ter sido comunicado pela viúva, DD.

13. Sucedeu-lhe a promitente compradora mulher e os seus dois filhos: AA e CC.

14. A promitente compradora continuou a habitar a fracção.

15. E em 22 de setembro de 2012 faleceu o interessado CC.

16. Sucedeu-lhe os seus dois filhos: GG e BB.

17. Os Autores são os únicos herdeiros de CC e DD.

18. Os RR.. através de advogado dirigiram em 27/06/2003 uma carta a DD convocando-a para comparecer no dia 9/07/2003 pelas 11.00 horas no ... Cartório Notarial ... para outorgar a respectiva escritura.

19. Nessa carta era ainda comunicado que caso a escritura não fosse celebrada naquela data os RR. perderiam totalmente o interesse na manutenção do contrato, considerando-o resolvido, e fariam seu o sinal constituído, reclamando ainda a entrega do imóvel livre de pessoas e coisas.

20. Em 9/07/2003, a promitente compradora não compareceu para a realização do contrato prometido.

21. Em 2/09/2005, o R. comunica à promitente compradora que esta se encontra em mora, concedendo-lhe 15 dias para o cumprimento do contrato.

22. A 20 de Fevereiro de 2006, através de providência cautelar, os RR. declararam em juízo que pretendiam a restituição do imóvel prometido vender, com arrombamento da porta de entrada e substituição de fechaduras, o que veio ser indeferido liminarmente por despacho de 24/02/2006.

23. Em 6/07/2007, o R. enviou à promitente compradora uma carta registada com aviso de recepção convocando-a para a celebração da escritura de compra a venda da fracção no dia 26/07/2007, com o seguinte teor:

“Exmª Senhora:

Venho por este meio interpelar V. Exª para comparecer no próximo dia 26 de Julho corrente no Cartório Notarial da Drª II na Rua ..., sala ... e ... em ..., pelas 12 horas a fim de outorgar, como compradora, a escritura de compra e venda da fracção predial, com localização correspondente ao seu domicílio.

Deverá proceder ao pagamento do correspondente IMT e comparecer munida do respectivo comprovativo e dos seus elementos de identificação civil e fiscal.

Devo desde já manifestar a V. Exª que caso não compareça ou não outorgue a escritura em causa perderei definitivamente o interesse na manutenção do contrato e farei operar a respectiva resolução, tendo como consequência a perda das importâncias pagas e a restituição da fracção.

Os meus respeitosos cumprimentos,”

24. A promitente compradora e os seus filhos não compareceram no dia 26/07/2007 à escritura de compra a venda marcada pelo R.

25. Após o recebimento da carta supra mencionada em 23 e antes de 26/07/2007, a promitente compradora DD, instaurou contra os promitentes vendedores, aqui RR., acção especial de fixação judicial de prazo que correu termos com o n.º 6199/07.8TBMTS no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Matosinhos.

26. No âmbito dessa acção a aí Requerente foi convidada a fazer intervir nesses autos os seus filhos, CC e AA, que, na sequência, acabaram por intervir espontaneamente.

27. A referida ação especial de fixação judicial de prazo foi julgada improcedente e os Requeridos, aqui RR., absolvidos do pedido, por sentença de 7/03/2012.

28. Pelo menos em 2013, a promitente compradora deixou de viver na fracção objecto do contrato promessa.

29. Depois de a promitente compradora ter deixado de viver na facção objecto do contrato promessa a mesma passou a ser habitada pelo menos pelo neto mais novo filho da A. AA.

30. Após o falecimento da promitente compradora a fracção passou a ser habitada pela filha AA, aqui A., e pelo marido.

31. Entre finais de 2016 e início de 2017 houve infiltrações de água na fracção do ... andar, situada por baixa da fração dos autos, provenientes das águas pluviais que se infiltravam na zona da varanda desta última, o que foi reclamado junto dos RR..

32. Ao tempo, o morador do supra id. ... andar, tentou contactar os moradores do .... não tendo encontrado ninguém.

33. Dirigida ao R. marido, a EDP enviou para a morada da fracção dos autos as facturas n.ºs:

• ...90 de 29/11/2016, relativa ao período de 29/09/2016 a 29/11/2016, no valor de 127,48 €, e outras despesas de 6,04 €, num total de 133,52 €, cuja data limite de pagamento era de 21/12/2016,

• ...19 de 27/01/2017, relativa ao período de 30/11/2016 a 27/01/2017, no valor de 68,88 € e outras despesas de 6,04 €, num total de 74,92 €, cuja data limite de pagamento era 15/02/2017, e

• ...85 de 1/02/2017, relativa ao período de 28/01/2017 a 30/01/2017, no valor de 6,59 € e outras despesas de 1,85 €, num total de 8,44 €, cuja data limite de pagamento era 6/03/2017.

34. A EDP dirigiu ao R., para a Rua ..., ..., aviso/recibo de pagamento com data de 22/02/2017 por se encontrar por liquidar o montante global de 218,13 €, incluindo juros de mora no valor de 1,25 €, cuja data limite de pagamento era 5/03/2017.

35. O R. recebeu de JJ, na qualidade de advogado da EDP, aviso de pagamento de 9/03/2017 para pagamento da quantia de 219,98 €, juros de mora no valor de 3.10 € incluídos, relativa às facturas e valores supra referidos em 33).

36. A entidade patronal do R. a 4/08/2017 foi notificada para proceder à penhora de 1/3 do valor líquido do seu vencimento para pagamento da dívida exequenda, relativa à dívida ao condomínio da fracção dos autos de Novembro de 2015 a Julho de 2017, acrescida de juros e despesas, no valor estimado de 2.764,32 €.

37. Os RR. pagaram esta importância e os encargos do respectivo processo.

38. Os RR. cancelaram os serviços de abastecimento de água e luz à fracção os autos.

39. E em Março de 2017, na presença da PSP, abriram a porta da fracção e trocaram as respectivas fechaduras.

40. Fizeram-no quando já antes tinham cortado o abastecimento de água à dita fracção.

41. No interior da habitação encontravam-se haveres dos falecidos promitentes compradores.

42. A fracção não tinha sinais de estar a ser habitada.

43. Os RR. nunca resolveram o acordo com os originais promitentes compradores, nem nunca exerceram qualquer direito relativo ao contrato promessa contra os herdeiros daqueles.

44. Os óbitos de DD e do filho desta CC não foram comunicados aos RR.

45. Os RR. acabaram por tomar conhecimento dos mesmos por terceiros, pelo menos em Agosto de 2015 no caso de DD e em Novembro de 2016 no caso de CC.

46. Nunca os AA., por si e antecessores, procederam à marcação da escritura de compra e venda e interpelaram os RR. para o efeito.


*


Foi considerado não provado que:

• O cancelamento do abastecimento de água e luz à fracção tenha tido o objectivo de provocar a desocupação do imóvel por parte dos promitentes compradores.

• Os autores tenham deixado a fracção por causa do cancelamento da água e ou da luz.

• Os RR. tenham deixado de querer cumprir o contrato prometido.

• A A. AA tenha ocultado dos RR. que o falecido irmão tinha filhos.

• Os promitentes compradores tenham informado os RR. que ainda não tinham dinheiro para lhes pagar.

• As contas da água da fracção tenham deixado de ser pagas.

• Os herdeiros tenham informado os promitentes compradores do falecimento de DD e de CC.

• Os AA./Reconvindos tenham procedido ao pagamento de todas as despesas até ao momento em que, no ano de 2016, os RR./Reconvintes cancelaram o abastecimento de água à fracção.


**


III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Apreciemos, então, as questões suscitadas na revista.

1. Perante os factos provados, deve considerar-se que os Autores/recorrentes não foram convocados para a celebração de qualquer escritura, nem faltaram a qualquer escritura de que tenham sido notificados para comparecer, nem tão-pouco receberam qualquer interpelação admonitória, e respectivas consequências jurídicas?

Ou, ao invés, as convocatórias havidas para a celebração da escritura, faltas à mesma e interpelação admonitória, conforme factos provados, vincularam (e vinculam) os Autores (herdeiros dos promitentes compradores), com as respectivas consequências jurídicas?

Alegam os Autores-recorrentes que a decisão da Relação de julgar procedente a reconvenção (declarando resolvido o contrato-promessa, com a consequente perda do sinal prestado), com sustento na culpa exclusiva dos AA no incumprimento na celebração do contrato promessa (“ao nunca cooperar com os réus, sabendo da sua obrigação de realizar o contrato de compra e venda”), se estribou num facto errado, mas que a Relação considerou provado, qual seja, que os autores “foram sucessivamente notificados para comparecer e outorgar a escritura pública e foram sucessivamente faltando”.

É que, alegam os Autores/Recorrentes que, enquanto herdeiros dos promitentes compradores, nunca foram convocados para a celebração de qualquer escritura, nem faltaram a qualquer escritura de que tenham sido notificados para comparecer, nem tão-pouco receberam qualquer interpelação admonitória. E daí, sem mais, rematam que lhes não pode ser imputada qualquer culpa no incumprimento do contrato-promessa.

Sem razão, como se verá.

A tal propósito, está provado o seguinte:

- “O R. marido em 19/12/2000 dirigiu ao promitente comprador CC uma carta em que lhe comunica a marcação da escritura de compra e venda para o dia 19/01/2001 no ... Cartório Notarial ..., carta essa que o destinatário recebeu no dia seguinte” (facto 9), não tendo, porém, nessa data, os promitentes compradores comparecido para a realização do contrato prometido” (factos 9 e 10);

- “Em 1 de fevereiro de 2001 faleceu o promitente comprador marido”, facto este que foi comunicado aos RR/promitentes vendedores pela viúva do falecido, a promitente-compradora DD (factos 11 e 12);

- Sucederam como herdeiros do falecido promitente comprador a sua mulher promitente compradora e ainda os seus dois filhos AA e CC (facto 13);

- Em virtude do falecimento de um desses herdeiros (CC) a 22 de Setembro de 2012, sucederam-lhe como seus herdeiros os seus dois filhos GG e BB (facto 16);

- A originária promitente compradora (DD) veio a falecer a 26/02/2014 (conforme certidão de óbito junta), antes de outorgada qualquer escritura pública de compra e venda, falecimento esse que é do conhecimento dos réus, pelo menos desde Agosto de 2015 (facto 45);

- Sendo os Autores os únicos herdeiros de CC e DD (ponto 17) – os originários promitentes compradores;

- Os RR.. através de advogado, dirigiram em 27/06/2003 uma carta a DD convocando-a para comparecer no dia 9/07/2003 pelas 11.00 horas no ... Cartório Notarial ... para outorgar a respectiva escritura”, não tendo a promitente compradora comparecido (factos 18 e 20), sendo que “Nessa carta era ainda comunicado que caso a escritura não fosse celebrada naquela data os RR. perderiam totalmente o interesse na manutenção do contrato, considerando-o resolvido, e fariam seu o sinal constituído, reclamando ainda a entrega do imóvel livre de pessoas e coisas” (facto 19);

Em 9/07/2003, a promitente compradora não compareceu para a realização do contrato prometido (facto 20);

- Em 2/09/2005, o R. comunica à promitente compradora que esta se encontra em mora, concedendo-lhe 15 dias para o cumprimento do contrato” (facto 21);

- “Em 6/07/2007, o R. enviou à promitente compradora uma carta registada com aviso de recepção convocando-a para a celebração da escritura de compra a venda da fracção no dia 26/07/2007, com o seguinte teor:

“Exmª Senhora:

Venho por este meio interpelar V. Exª para comparecer no próximo dia 26 de Julho corrente no Cartório Notarial da Drª II na Rua ..., sala ... e ... em ..., pelas 12 horas a fim de outorgar, como compradora, a escritura de compra e venda da fracção predial, com localização correspondente ao seu domicílio.

Deverá proceder ao pagamento do correspondente IMT e comparecer munida do respectivo comprovativo e dos seus elementos de identificação civil e fiscal.

Devo desde já manifestar a V. Exª que caso não compareça ou não outorgue a escritura em causa perderei definitivamente o interesse na manutenção do contrato e farei operar a respectiva resolução, tendo como consequência a perda das importâncias pagas e a restituição da fracção.

Os meus respeitosos cumprimentos,”” (facto 23);

- “A promitente compradora e os seus filhos não compareceram no dia 26/07/2007 à escritura de compra a venda marcada pelo R.” (facto 24).


Foram estas as comunicações/notificações havidas para a celebração da escritura de compra e venda da referida fracção autónoma.

E como ressalta dos apontados factos, desde a data do falecimento do (originário) promitente comprador (CC), em 1.02.2001 (e depois a 22 de Setembro de 2012 (falecimento do interessado CC) e ainda 26/02/2014 – data esta do falecimento da (originaria) promitente compradora DD), fruto dos sucessivos falecimentos, sucederam aos promitentes compradores, na respectiva posição contratual de promitentes compradores, os autores/recorrentes e apenas estes.

Ora, é evidente que, atentos os referidos factos, aos aqui Autores (herdeiros dos promitentes compradores) não foi, directamente, endereçada qualquer comunicação/convocatória para a celebração de eventual celebração de escritura pública de compra e venda da fracção em causa nem qualquer eventual interpelação admonitória (ou qualquer outro tipo de comunicação),  ou ainda qualquer declaração de resolução do contrato promessa – apenas à originária promitente compradora mulher, antes de falecer, foram endereçadas algumas comunicações.

Mas será que daí se pode extrair a conclusão de que não teve lugar válida e eficaz comunicação e interpelação admonitória aos promitentes compradores, vinculativa dos ora Autores?

Ou seja, terá razão o acórdão recorrido (e que, como dito, serviu de suporta à construção e decisão de direito tomada - perda do sinal a favor dos RR - , sustentada na ali apontada culpa dos Autores, no incumprimento), quando refere que os autores, promitentes vendedores foram sucessivamente notificados para comparecer e outorgar a escritura pública e foram sucessivamente faltando[2].

Dito de outra forma:  para que pudesse operar uma válida e eficaz resolução do contrato-promessa por banda dos RR/promitentes vendedores (por incumprimento definitivo do mesmo pelos promitentes compradores), era necessário que estes procedessem à notificação dos (todos eles) autores (sucessores dos primitivos promitentes compradores) para a celebração de eventual celebração de escritura pública de compra e venda, bem como que a todos eles fosse dirigida interpelação admonitória ou ainda uma eventual e ulterior declaração de resolução contratual?

Dito de outra forma: as (e foram quatro) comunicações endereçadas pelos RR aos promitentes compradores (uma ao promitente comprador e 3 à sua mulher, após o decesso daquele) não têm a virtualidade de vincular os AA, sendo, como são, herdeiros (os únicos herdeiros) daqueles primitivos compradores?

Claro que vinculam.

Não olvidamos que se levou ao ponto 43 dos factos provados que “Os RR. nunca resolveram o acordo com os originais promitentes compradores, nem nunca exerceram qualquer direito relativo ao contrato promessa contra os herdeiros daqueles.”. Porém – para além de se não considerar acertada tal conclusão, como à frente veremos –, trata-se de mera afirmação conclusiva e de direito que, como tal, se torna irrelevante para economia dos autos.


*


Não olvidamos o disposto no artº 2091º, nº 1 do Código Civil, ao rezar que “1. Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.”.

Mas tal preceito foi respeitado: a acção é instaurada por todos os herdeiros dos promitentes compradores e é contra todos eles que é deduzida a reconvenção.


**
    • Da transmissibilidade da posição contratual por morte do promitente

O artº 412º, nº 1 do Código Civil estabelece como princípio geral a transmissibilidade dos direitos e das obrigações das partes para os respectivos sucessores no caso de morte[3]. Assim, como refere o Prof. GRAVATO MORAIS “Não há, portanto, lugar à caducidade do contrato-promessa”[4].

E o mesmo Professor esclarece[5] que “o decesso do promitente-adquirente segue as mesmas regras” do que ali refere para o caso de morte do promitente-alienante, “não havendo especificidades a realçar”.

Ou seja (como ali é referido) – mutatis mutandis –, a acção onde, por morte do promitente-adquirente, se pretende a resolução de um contrato-promessa de compra e venda (como é o caso dos presentes autos), deve ser intentada por todos os seus herdeiros. E se houver mais do que um promitente-adquirente, “a morte de um deles implica que os respectivos sucessores sub-ingressam na sua posição jurídico-contratual”.

Uma excepção apenas: não se transmitem os direitos e as obrigações que sejam exclusivamente pessoais (cit. artº 412º/1 CC), isto é, os direitos e as obrigações constituídos «intuitu personae» (em consideração à pessoa), como ocorre, v.g., com a promessa de mandato, com a promessa de arrendamento em relação ao arrendatário, com a promessa de continuação de usufruto, etc[6].

Ora, como já supra foi referido, a acção foi instaurada por todos os herdeiros dos promitentes-compradores e foi contra eles que foi deduzida a reconvenção.

O que as alegações suscitam, porém, é algo mais: saber se, para além das (quatro) comunicações, supra referidas, dirigidas aos promitentes-compradores originários, se impunha, ainda, que os RR dirigissem igual (ou outra) comunicação aos AA, sucessores daqueles.

A resposta não pode deixar de ser negativa.

Desde logo, porque estabelecendo (como já foi dito) o artº 412º, nº 1 do Código Civil, como princípio geral, a transmissibilidade dos direitos e das obrigações das partes para os respectivos sucessores no caso de morte, as comunicações feitas aos promitentes-compradores originários não podem deixar de vincular os seus sucessores, como se a eles, directamente, fossem endereçadas.

Dito de outra forma: os herdeiros dos promitentes-compradores sucederam na posição de quem já estava interpelado[7]!


*


Mas mais: se aos Autores (sucessores dos primitivos promitentes-compradores) não foi dirigida, pelos RR, qualquer missiva, apenas e só aos próprios Autores se deveu!

Aliás, considerando a factualidade assente, não nos destoa a qualificação de “chocante” dada pelos RR/Recorridos à conduta dos Recorrentes e dos seus antecessores”.

Efectivamente, atente-se que os Autores nem, sequer, tiveram o cuidado de comunicar aos RR/Recorridos (promitentes-vendedores) os óbitos da promitente-compradora DD e do seu filho, pai dos Recorrentes (facto 44)!

Comportamento, sem dúvida, censurável, bem diferente, diga-se, daquele que teve a promitente compradora mulher aquando do falecimento do seu ex-marido promitente comprador (CC), pois (como era espectável – e imposto pela boa fé) teve o cuidado de logo comunicar aos RR esse decesso. E foi precisamente por então ficarem a saber desse decesso que daí em diante os RR passaram a endereçar à promitente compradora, viúva, as comunicações relativas ao contrato-promessa.

E se apenas a ela dirigiram as comunicações dos autos, a mais lhes não era exigível, dado (pelo menos até então) não lhes ter sido dado a saber o falecimento daquela. Pois que, provado está que os RR só acabaram por tomar conhecimento dos óbitos de DD e do filho desta CC “por terceiros” e “pelo menos em Agosto de 2015 no caso de DD e em Novembro de 2016 no caso de CC” (facto 45).

As regras da boa fé impunham aos Recorrentes um dever de informação dos Recorridos quanto a tais óbitos, a quem sucedia a quem e onde podia ser encontrado.

Daqui se nos afigurar um tanto abusivo virem agora os Autores/Recorrentes esgrimir com a necessidade de os Recorridos carecerem de os interpelar para a celebração da escritura quando nem sequer davam a conhecer os óbitos! Como poderiam os Recorridos interpelar todos e cada um quando não sabiam, sequer, da sua existência, ou ignoravam onde podiam ser encontrados?

Aliás, tendo a fracção deixado de ser habitada pela promitente compradora “pelo menos em 2013” (facto 28), passando a ser habitada, primeiro, pelo neto mais novo filho da Autora AA (facto 29), e mais tarde pela ora Autora AA e marido (facto 30),  é, de todo, incompreensível que os AA (servindo-se da fracção que, obviamente, sabiam não lhes pertencer, pois apenas estava prometida comprar) não tenham, sequer, endereçado aos RR uma única informação, seja sobre o falecimento da promitente-compradora originária, seja quanto a quem utilizava a fracção – e até quanto à possibilidade de fazerem  essa utilização!

Daí a razão dos RR/Recorridos, quando “desabafam”: “os Recorrentes, e os seus antecessores, não só nunca quiseram, nem nada fizeram para concretizar a compra e venda com os Recorridos, como ocultaram destes informação que lhes permitiria interpelá-los para tal acto.

Os Recorrentes, e os seus antecessores, em quase 20 anos, não não tomaram uma única iniciativa tendente à concretização da compra e venda prometida, como omitiram dos Recorridos informação essencial para que estes os interpelassem com esse mesmo objectivo, obstaculizando por uma via e outra a concretização da compra e venda.”.

Assim, virem, agora, os AA peticionar seja declarada a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre os identificados de cujus, enquanto promitentes compradores, e os RR., enquanto promitentes vendedores, e, assim, que estes sejam condenados a pagar-lhes a quantia de 200.000,00 € correspondente à devolução em dobro do sinal que aqueles prestaram, é, convenhamos, no mínimo, “arrojado”.


**


· Da interpelação admonitória dos RR aos promitentes-compradores

Dito isto, pergunta-se: considerando o teor das (4) comunicações endereçadas pelos promitentes vendedores aos promitentes compradores (em 19.12.2000, pelo réu marido ao promitente comprador CC;  em 27/06/2003,  pelos RR, através de advogado, após o falecimento do promitente comprador, à mulher deste, “convocando-a para comparecer no dia 9/07/2003 pelas 11.00 horas no ... Cartório Notarial ... para outorgar a respectiva escritura”, na qual “era ainda comunicado que caso a escritura não fosse celebrada naquela data os RR. Perderiam totalmente o interesse na manutenção do contrato, considerando-o resolvido, e fariam seu o sinal constituído, reclamando ainda a entrega do imóvel livre de pessoas e coisas” (facto 19); em 2/09/2005, pelo R. à promitente compradora, de que “esta se encontra em mora, concedendo-lhe 15 dias para o cumprimento do contrato” (facto 21); e em 6.7.2007,  pelo réu, à promitente compradora, convocando-a para a celebração da escritura de compra a venda da fracção no dia 26/07/2007[8]), pode concluir-se estar verificada a interpelação admonitória dos promitentes vendedores aos promitentes compradores, por preenchimento dos requisitos exigíveis à mesma, nessa medida se podendo imputar aos promitentes compradores o incumprimento definitivo do contrato (com a conversão da sua mora em incumprimento definitivo), com o consequente direito de resolução por parte dos RR. Promitentes-vendedores, fazendo seu o sinal recebido?

Entende-se que sim.


*

Sobre a interpelação admonitória, ensina, doutamente, Baptista Machado [9]: «Trata-se de um remédio concedido por lei ao credor para os casos em que não tenha sido estipulada uma cláusula resolutiva ou um termo essencial, nem ele possa alegar, de modo objectivamente fundado, perda do interesse na prestação por efeito a mora.  Constitui, como já disse alguém, um meio especial e «autotutela privada» que faz do credor árbitro da sorte da relação.  Por esta via, a lei legitima o credor para provocar unilateralmente uma modificação da relação, introduzindo nela um elemento novo, ou seja, um novo prazo de cumprimento (Nachfrist), que se caracteriza pela sua peremptoriedade.  Prazo este que, aliás, nada impede possa ser logo estipulado no momento da constituição da obrigação.

A interpelação admonitória com fixação de prazo peremptório para o cumprimento a que se refere a segunda parte do n.º 1 do art. 808.º é, pois, uma intimação formal, dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo.  Assim, através da fixação de um prazo peremptório, obtém-se uma clarificação definitiva de posições.

A interpelação admonitória deve conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.  Trata-se, pois, de uma declaração intimativa.

Uma intimação para cumprir que não contenha um termo preciso, mas se reporte apenas a um prazo «breve» ou «brevíssimo», ou a um prazo «razoável», não pode valer para o efeito.  E muito menos vale para o efeito a interpelação em que o credor se limite a ameaçar o devedor com a compra de uma cobertura ou o convide a declarar-se pronto a cumprir dentro do prazo fixado»[10].

Com efeito, como é sabido, o atraso no cumprimento do contrato-promessa constitui em mora o promitente faltoso.

Para falar-se de mora é, porém, necessário que por parte do credor não tenha desaparecido ou cessado (objectivamente) o interesse na execução do contrato-promessa.

É também necessário que a prestação, embora retardada, seja ainda possível.

Não se estando perante o caso de perda do interesse (apreciada objectivamente), nem de impossibilidade de conclusão do negócio, perante um atraso do outro promitente, ou um provisório incumprimento, ou por recusa de cumprimento da promessa, o promitente não faltoso (nos contratos‑promessa de compra e venda de fracção autónoma de prédio urbano) tem a faculdade de recorrer à execução específica do contrato e, por outro lado, pode optar por fixar um prazo razoável dentro do qual o devedor poderá ainda cumprir[11], sob cominação de a mora se converter em incumprimento definitivo com a consequente resolução do contrato (a designada interpelação admonitória). Ou seja, para transformar a mora em incumprimento pode ser necessária a fixação de um prazo suplementar cominatório[12], sendo que essa interpelação admonitória é, na feliz expressão de ANTUNES VARELA[13], “uma ponte obrigatória de passagem para o não cumprimento (definitivo) da obrigação.”.

Se a obrigação não for realizada dentro deste prazo, considera-se para todos os efeitos não cumprida. A simples mora converte-se em incumprimento definitivo, dando ao promitente não faltoso o direito de resolução do contrato.

Assim, é precisamente por não se compreender que a mora se mantenha por tempo indefinido que a lei (artigo 808.º, n.º 1) dá ao credor a faculdade de estabelecer um prazo suplementar, agora, sim, peremptório.

Como se refere no Ac. do STJ de 13.12.2007 (Sebastião Póvoas)[14], “impõe-se ainda que o novo prazo fixado – que não se confunde nem acresce ao termo inicial – seja razoável, isto é, estabelecido em coerência com os princípios da boa fé, da cooperação dos contraentes e do não exercício abusivo do direito”[15].

Por outro lado, seve notar-se que, com ensina Galvão Telles[16], nada obsta a que, por razões de economia processual, se utilize uma única declaração para a interpelação admonitória e para a resolução.


*

Importa, então, ver se os requisitos da interpelação admonitória, acima enunciados, estão preenchidos.

Como dissemos já, entende-se que sim.

Diga-se, porém, e antes de mais, que, em boa verdade, in casu nem, sequer, se exigiria a interpelação admonitória pelos RR, dado que os factos e conduta displicente dos AA revelam, à saciedade, uma intenção clara de não querer cumprir o contrato!

Basta atentar que os Autores nada – mesmo nada – fizeram no fito de respeitar a promessa de compra firmada pelos seus antecessores; melhor, que indiciasse, sequer, a vontade de a querer cumprir: não informaram os RR do decesso dos promitentes compradores originários; não dirigiram aos RR uma única comunicação (maxime interpelando-os para cumprimento – marcando data para a escritura); não informaram, sequer, os RR do seu paradeiro; e, pior ainda, os Autores (“sucessores” dos promitentes-compradores – qualidade essa, porém, que ora já parecem rejeitar para se escusar a assumir as obrigações decorrentes da promessa de compra que os de cujus firmaram com os RR)  continuaram, passivamente, a habitar a fracção, como se lhes pertencesse, sem dar cavaco a quem quer que seja – e se temporariamente a deixaram desabitada, disso não deram conhecimento aos RR/proprietários – , não pagando dívidas de condomínio (que levaram à notificação da entidade patronal dos RR para penhorar o seu vencimento) e de electricidade, dívidas que, pelo contrato, estravam obrigados a  suportar, permitindo mesmo (por natural ausência de cuidados) a ocorrência das infiltrações referidas em 31 dos factos provados.

E agora (só agora), decorridos tantos e tantos anos, tendo usado a seu bel prazer a fracção e sem assumir as obrigações decorrentes do contrato-promessa (que, por não serem exclusivamente pessoais, lhes foram transmitidas por morte dos promitentes-compradores, ut artº 412º, nº1 CC), vêm pretender resolver tal contrato no fito de lograrem obter o dobro do sinal prestado pelos originários promitentes compradores!

Mas atentemos melhor nos factos atinentes à interpelação admonitória por banda dos RR.

    • No contrato-promessa (clª Quinta) fez-se constar, com toda a clareza, que a escritura seria “celebrada no máximo até ao fim do mês de Julho” (de 2000, entenda-se) – donde se vê que já decorreram vinte (20) anos desde a data em que foi outorgado o contrato e a entrega das respectivas chaves da fracção aos promitentes compradores (facto 4)!
    • Logo na carta de 27 de Junho de 2003 (portanto, já após a morte do promitente-comprador), dirigida pelos RR, através de advogado, à promitente-compradora, constava:

“ASS: Escritura pública de compra da fracção ... do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o 00595/07... e inscrito na matriz sob o art. ...86. Exm.ª Senhora: A escritura publica pela qual o n/ constituinte EE, lhe venderá a fracção em causa será no próximo dia 9 de Julho de 2003, pelas 11,00 horas” (…). 4 Caso a escritura não seja celebrada naquela data o n/constituinte perde totalmente o interesse na manutenção do contrato, considera-o resolvido e para além de fazer seu o sinal, que valerá como indemnização, reclamará a restituição do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens”.
    • A promitente compradora não compareceu.
    • Mas nova “chance” é dada aos promitentes-compradores para cumprirem o contrato: a 2 de Setembro de 2005, o 1.º Recorrido dirigiu à promitente-compradora nova carta com o seguinte teor: “ASS: Interpelação admonitória referente ao imóvel supra identificado. Exmª Senhora: Foi celebrado no dia 4 de Fevereiro de 2000 contrato promessa de compra e venda do imóvel onde Vª. Exa actualmente reside, pelo montante de €129.687,45, entre EE e CC. Em Abril de 2000 foi-lhe entregue a chave do referido imóvel, que lhe concedeu a respectiva posse, que até  hoje mantém .Apesar de, por diversas vezes, ter sido convocada para comparecer no Cartório Notarial a fim de celebrar a escritura pública, nunca o fez, obviando assim, a transmissão efectiva da propriedade. Encontra-se, por este motivo, em mora no cumprimento do contrato promessa, pois, apesar da prestação debitória não ter sido realizada no momento próprio, é ainda possível, porque pode ainda satisfazer o meu interesse fundamental. Assim sendo, e de acordo com o disposto no artigo 808º do Código Civil, ser-lhe-á dado o prazo de 15 dias para Vª. Exa proceder ao cumprimento do contratoportanto, um prazo suplementar[17] e mais que razoável, “à luz do caso concreto”[18], atento todo o antecedente – “Findo o prazo referido, sem que mostre qualquer interesse, serei forçado a recorrer aos meios judiciais. Acreditando ainda que V.ª Ex.ª pretenderá evitar a via judicial, aguardarei até ao termo daquele referido prazo para que proceda ao cumprimento, advertindo desde ser esta a última tentativa de resolução amigável do assunto (cfr. docs. 10 a 12 da contestação).
Estão aqui bem plasmados os três requisitos da interpelação admonitória: intimação para o cumprimento; fixação de um termo peremptório (mais que razoável) para o cumprimento; a declaração admonitória de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo, considerando-se resolvido o contrato, com as legais consequências. 
    • Mas mais uma vez nada fizeram os promitentes-compradores.
    • E a “paciência” dos RR continuou imutável, dando uma outra “chance” para que os promitentes-compradores cumprissem o contrato: a 6 de Julho de 2007, o 1.º Recorrido dirigiu à promitente-compradora uma nova carta com o seguinte teor: “Exmª Senhora: Venho por este meio interpelar V. Exª para comparecer no próximo dia 26 de Julho do corrente no Cartório Notarial (…) “a fim de outorgar, como compradora, a escritura de compra e venda da fracção predial, (…)”, ali esclarecendo (mais uma vez): Devo desde manifestar a V. Exª que caso não compareça ou não outorgue a escritura em causa perderei definitivamente o interesse na manutenção do contrato e farei operar a respectiva resolução, tendo como consequência a perda das importâncias pagas e a restituição da fracção(cfr. docs. 13 a 15 da contestação).

O que mais era exigível aos RR/promitentes vendedores para que se considerasse válida e eficaz a interpelação feita e resolvido o contrato?

Cremos que nada.


**


Assim, portanto, exigir mais, no todo dos factos provados – ponderando a revelada postura dos AA em todo o processo, ao longo dos muitos e muitos anos decorridos desde a outorga da promessa de compra e venda – seria manifestamente atentatório do princípio da boa fé contratual, que esteve subjacente à outorga do contrato-promessa celebrado.

Acerca da “boa fé”, escreveu FERNANDO BAPTISTA[19]

«Escreve Vaz Serra[20] que “quem entra em negociação com outrem para a conclusão de um contrato dá lugar à constituição de uma relação jurídica que o obriga a proceder de boa fé nos preliminares e na formação do contrato, constituindo-o, nomeadamente, em deveres de cuidado, precaução ou cautela.”

A boa fé está, assim, presente, quer na preparação como na formação do contrato (art. 227.º do C. Civil), quer, também, no cumprimento das obrigações e no exercício do direito correspondente (art. 762.º, do mesmo Código).

É um princípio que constitui uma trave mestra, certa e segura da nossa ordem jurídica, vivificando-a por forma a dar solução a toda a gama de problemas de cooperação social que ela visa resolver no campo obrigacional — princípio, é certo, que deve ser observado com as restrições apontadas por Salvatore Romano, em “Enciclopédia del Diritto”, Milão, 1959 — “Buona Fede”, pp. 667 e ss. [21].

A boa fé assenta, essencialmente, no princípio (cláusula geral) de que “as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” [22].  Princípio esse — vulgarmente denominado de princípio da confiança — que reside no pressuposto ético‑jurídico fundamental de que “a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem.  Assim tem de ser, pois poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens.  Mais ainda: esse poder confiar é logo condição básica da própria possibilidade da comunicação dirigida ao entendimento, ao consenso e à cooperação (logo, da paz jurídica)”[23].

O princípio da boa fé, que é de aplicação geral a todos os domínios do jurídico, vale para todo o comportamento juridicamente relevante das pessoas [24] e pressupõe, necessariamente, uma “específica relação inter-pessoal (embora não necessariamente negocial, ou sequer, pré ou circum-negocial), fonte de uma específica relação de confiança — ou, pelo menos, expectação de conduta — cuja frustração ou violação seja particularmente clamorosa” [25].

A boa fé, na sua vertente de princípio geral de direito, constitui um “critério que deve presidir e orientar todo o comportamento” [26] e que consiste num agir caracterizado pela correcção, lealdade e honestidade.  Efectivamente, segundo Coutinho de Abreu [27], o princípio da boa fé significa “que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal nomeadamente, no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”».

Ora, foi precisamente aquele “comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente, no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” que se considera terem os AA omitido para com os RR. E daí se não entender, muito menos aceitar, a sua pretensão de, apesar disso, ainda virem tentar obter dos RR o pagamento do “dobro do sinal”.


**


Temos, portanto, que os RR interpelaram devidamente os promitentes compradores (cujas obrigações, após o seu falecimento, foram transmitidas aos ora AA – como tal, se considerando igualmente interpelados) para cumprirem a promessa firmada, o que estes não fizeram, assim ficando os RR autorizados a exigir o peticionado via reconvenção: ver declarado judicialmente o direito a fazer seu o sinal recebido.

**


2. O comportamento dos RR/Reconvintes/Promitentes vendedores (com o cancelamento do abastecimento de água e de energia e troca das fechaduras da fracção) é revelador de uma sua intenção em não cumprir definitivamente o contrato-promessa; e, assim, deve considerar-se que incumpriram essa promessa, assistindo aos AA/Recorrentes o direito à resolução do contrato-promessa e devolução em dobro do sinal prestado aos RR?

Provado está, designadamente, que:

- A 20 de Fevereiro de 2006, através de providência cautelar, os RR. declararam em juízo que pretendiam a restituição do imóvel prometido vender, com arrombamento da porta de entrada e substituição de fechaduras, o que veio ser indeferido liminarmente por despacho de 24/02/2006 (facto 22);

- Pelo menos em 2013, a promitente compradora deixou de viver na fracção objecto do contrato promessa, tendo a mesma passado a ser habitada pelo menos pelo neto mais novo filho da A. AA (factos 28 e 29).

- Após o falecimento da promitente compradora a fracção passou a ser habitada pela filha AA, aqui A., e pelo marido (facto 30).

- Dirigida ao R. marido, a EDP enviou para a morada da fracção dos autos as facturas referidas no ponto 33 dos factos provados (uma relativa ao período de 29/09/2016 a 29/11/2016, no valor de 127,48 €, e outras despesas de 6,04 €, num total de 133,52 €, cuja data limite de pagamento era de 21/12/2016; outra relativa ao período de 30/11/2016 a 27/01/2017, no valor de 68,88 € e outras despesas de 6,04 €, num total de 74,92 €, cuja data limite de pagamento era 15/02/2017; outra relativa ao período de 28/01/2017 a 30/01/2017, no valor de 6,59 € e outras despesas de 1,85 €, num total de 8,44 €, cuja data limite de pagamento era 6/03/2017) – facto 33.

- A EDP dirigiu ao R. aviso/recibo de pagamento com data de 22/02/2017 por se encontrar por liquidar o montante global de 218,13 €, incluindo juros de mora no valor de 1,25 €, cuja data limite de pagamento era 5/03/2017 (facto 34).

- O R. recebeu da EDP, aviso de pagamento de 9/03/2017 para pagamento da quantia de 219,98 €, juros de mora no valor de 3.10 € incluídos, relativa às facturas e valores supra referidos em 33 (facto 35).

- A entidade patronal do R. a 4/08/2017 foi notificada para proceder à penhora de 1/3 do valor líquido do seu vencimento para pagamento da dívida exequenda, relativa à dívida ao condomínio da fracção dos autos de Novembro de 2015 a Julho de 2017, acrescida de juros e despesas, no valor estimado de 2.764,32 €, tendo os RR pago esta importância e os encargos do respectivo processo (factos 36 e 37).

- Os RR. cancelaram os serviços de abastecimento de água e luz à fracção dos autos (facto 38). E em Março de 2017 – quando já antes tinham cortado o abastecimento de água à dita fracção – , na presença da PSP, abriram a porta da fracção e trocaram as respectivas fechaduras (factos 39 e 40).

- Sendo que a fracção não tinha sinais de estar a ser habitada (facto 42), nelas se encontrando haveres dos falecidos promitentes-compradores” (facto 41).

- Entre finais de 2016 e início de 2017 houve infiltrações de água na fracção do ... andar, situada por baixo da fração dos autos, que se infiltravam na zona da varanda desta última, sendo que, “ao tempo, o morador do supra id. ... andar, tentou contactar os moradores do .... não tendo encontrado ninguém” (factos 31 e 32).


*


Será possível extrair-se destes comportamentos dos RR a referida intenção/vontade em não cumprir definitivamente o contrato-promessa?

Ou seja, pode dizer-se, com propriedade, que os factos provados revelam uma perda definitiva do interesse dos RR em cumprir o contrato promessa firmado com os promitentes compradores?

Pensamos que não.

É certo que os AA/Recorrentes pedem ao Tribunal que declare resolvido o contrato promessa dos autos, por incumprimento definitivo imputável aos réus, precisamente com fundamento no corte de fornecimento de água em Novembro de 2016, subsequente arrombamento da porta da habitação com substituição de fechaduras e cancelamento do fornecimento de energia eléctrica.

Ora, desde logo, é claro que tais factos não podem, de todo, ser vistos de forma “seca”, isolada, procurando-se, sem mais, ver neles uma pretensa vontade dos RR em não cumprir definitivamente o contrato-promessa.

Mas a verdade é que a factualidade assente desmente, em absoluto, a afirmação e pretensão dos Autores.

Efectivamente, os AA impugnaram, na Relação, a decisão da matéria de facto havida na 1ª instância, pretendendo, precisamente, que o tribunal julgasse como provados os seguintes factos:

“• O cancelamento do abastecimento de água e luz à fracção tenha tido o objectivo de provocar a desocupação do imóvel por parte dos promitentes compradores.

Os autores tenham deixado a fracção por causa do cancelamento da água e ou da luz”.

Porém, como consta da decisão da Relação atinente a essa impugnação de facto, não resultou provado que o cancelamento da água e luz por parte dos réus tenha sido com o objectivo de os réus desocuparem a fracção, nem que os autores tivessem deixado a casa por este motivo, nem do depoimento da testemunha HH podemos concluir estes factos” (destaque nosso). Por isso, improcedeu a impugnação.


E o acórdão da Relação (prolatado na sequência da determinação do anterior acórdão do Supremo para que fosse suprida a nulidade por omissão de pronúncia) explica com clareza as razões para assim ter decidido.

Diz-se ali:

«Na verdade, os autores abandonaram a fracção antes do corte de água e mudança de fechaduras.

Nos preliminares deste contrato e no seu contexto o Srº BB, inicial contratante, tinha uma moradia na constituição que vendeu, e celebrou com os réus um contrato promessa de compra e venda tendo por objecto a fracção em causa.

Como a fracção estava pronta, os Réus em Abril de 2000, a seu pedido, e porque a escritura estava marcada para o mês de Junho seguinte, cederem-na ao Srº BB e esposa a pedido destes - entregando as chaves - para este a ocupar enquanto estes resolviam os seus assuntos referentes à realização da escritura de compra e venda da sua moradia. Estes por sua vez assumiram sempre o pagamento das despesas da fracção.

No âmbito do contrato faleceram os iniciais contratantes. O contrato-promessa foi celebrado há 20 anos.

Este apartamento sofreu vicissitudes várias, foi ocupado em 2007 por dois netos, altura em que a viúva, inicial contratante – avó - deixou de aí viver (um dos quais artista que fazia da sala um atelier fazendo barulho com os instrumentos de trabalho). A casa voltou a estar vazia, e, em 2014/2015, foi para lá viver uma filha, AA, com o marido.

A casa voltou a ficar desabitada.

A fracção deixou de ser ocupada, o condomínio deixou de ser pago – enviadas em nome do Réu EE mas para a caixa de correio da fracção ocupada pelos autores. O Réu EE viu o seu vencimento penhorado em virtude de falta de pagamento das quotas do condomínio referente a esta fracção.

Os ocupantes da fracção de baixo queixaram-se de caía água na sua casa. Os Réus foram ao local, tocaram na campainha e, ninguém abria. A casa estava desocupada. Tiveram que tirar a fechadura e de a mudar para entrar na fracção em causa. A fracção estava vazia e em mau estado, sem peças na casa de banho e bolor. Com a entrada de água da soleira da varanda o pavimento da sala e rodapés da sala estava podre e a tijoleira da varanda, e, tiveram intervenção em 2017. Esta água também trespassava para o apartamento inferior. Os Réus mandaram reparar estes estragos. (…).

Da análise global da prova, documental e testemunhal entendemos que o tribunal decidiu acertadamente. Ficamos com a convicção que a fracção estava já desocupada. Sufragamos a convicção da decisão recorrida.

A decisão sobre os factos em análise só pode ser de não provado.».

Perante este quadro factual e respectiva explicação motivadora, afigura-se, um tanto arrojado virem os AA – precisamente com o argumento/fundamento (como visto, não provado)  de que o cancelamento do abastecimento de água e luz à fracção teve como objectivo provocar a desocupação do imóvel por parte dos promitentes compradores, tendo os Autores sido forçados a deixar a fracção precisamente por causa desse mesmo cancelamento da água e ou da luz – dizer que a culpa pela não celebração da escritura é (apenas) dos RR e que estes, com o seu comportamento, revelaram uma inequívoca vontade de não cumprir a promessa de compra e venda.

Nesta senda, o pedido dos Autores/recorrentes não pode deixar de improceder já que se não vislumbram razões, minimamente sustentadas, para imputar aos RR a culpa do não cumprimento do contrato, maxime que tenham sido os causadores da desocupação do imóvel por banda dos Autores/promitentes compradores, cancelando o abastecimento de água e luz à fracção. Como não vemos que os factos provados revelem uma vontade séria e determinada, dos Réus (promitentes-vendedores) de não quererem cumprir o programa negocial, de forma a se justificar a invocada perda do interesse contratual que permita considerá-los inadimplentes de forma definitiva, sem necessidade de notificação admonitória[28].

Não estamos, de facto, perante comportamentos concludentes[29] dos RR nesse sentido – longe disso.

É certo que os RR cancelaram o fornecimento de água e luz à fracção (nada grave, já que lá não habitava ninguém e sempre podiam, a qualquer altura, voltar a ser ligados) e, outrossim, trocaram a fechadura. Mas fizeram-no porque (como se diz no acórdão recorrido): os autores abandonaram a fracção antes do corte de água e mudança de fechaduras; após o falecimento da promitente compradora, o apartamento passou a ser habitado pela filha – e já antes (após deixar de ser habitado por aquela), por um seu neto; foram enviadas para o Réu marido, pela EDP, várias facturas da luz, do prédio, de valores bem significativos (cfr. factos 33 a 35). E se os RR em Março de 2017, na presença da PSP, abriram a porta da fracção e trocaram as respectivas fechaduras, fizeram-no, porém, já depois de terem cortado o abastecimento de água e luz pelas razões supra referidas.

Mas mais grave parece ser o referido facto de a entidade patronal do R. a 4/08/2017 ter sido notificada para proceder à penhora de 1/3 do valor líquido do seu vencimento para pagamento da dívida exequenda, relativa à dívida ao condomínio da fracção dos autos de Novembro de 2015 a Julho de 2017, acrescida de juros e despesas, no valor estimado de 2.764,32 €”, quando (também) constava do contrato promessa que também as “quotizações do condomínio” seriam a cargo dos promitentes compradores, desde a habitação da fracção (facto 7) – esta que teve lugar logo com a entrega das chaves, em Abril de 2000[30].

Ou seja, por inércia e irresponsabilidade dos promitentes compradores, os RR viram-se na (reitera-se, sempre humilhante) eminência de verem incidir uma penhora sobre o seu salário, sendo que (naturalmente, para que a execução não prosseguisse), Os RR. pagaram esta importância e os encargos do respectivo processo” (facto 38).

Daqui que se possa, com propriedade, dizer que os RR foram forçados a adoptar essa postura.

Assim, perante este quadro factual, cremos estar mais que evidenciada a inexistência de uma vontade séria dos RR de não cumprir o contrato – ou seja, a ocorrência de um comportamento seu a revelar de forma concludente tal vontade.


*


Não estamos a falar de declaração antecipada de não cumprimento – esta que é uma das variantes do incumprimento definitivo –, mas, sim, da perda do interesse do credor (in casu, os RR) na realização da prestação.

O artº 762°, n° 1 do C.C. dispõe que «o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado».

Contudo, apenas haverá mora (e ainda não incumprimento) quando, por causa que seja imputável ao devedor, «a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido» (art. art. 804º, nº 2, do C.C.).

Só que, nesta última hipótese, «se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação» (art. 808º, n° 1 do C.C).

Assim, pode afirmar-se que há incumprimento definitivo numa de três situações:

. quando durante a mora o credor concede ao devedor um prazo suplementar final razoável para cumprir (a esta concessão se chamando interpelação admonitória) e este, mesmo assim, não cumpre (art. 808º, n° 1, II parte);

. quando durante a mora o credor perde o interesse na prestação (art. 808º, n° 1, I parte), o que ocorre quando a mesma deixa objectivamente de ter utilidade para si (art. 808º, n° 2), apreciado objectivamente à luz dos princípios da boa fé, segundo critérios de razoabilidade, não bastando que apenas já não a queira, ou que diga que já não está interessado nela; e assim o diz.

Pretende-se, deste modo, «evitar que o devedor fique sujeito aos caprichos daquele (credor) ou à perda infundada do interesse na prestação. Atende-se, por conseguinte, ao valor objectivo da prestação, não ao valor da prestação determinado pelo credor, mas à valia da prestação medida (objectivamente) em função do sujeito»[31].

Nesta apreciação, importa ponderar diversos factores, reportando-os ao caso concreto, nomeadamente: o estar em causa um negócio sazonal; a utilidade da coisa para um fim específico; a perda de oportunidades ou a frustração de planos; ou a existência de um termo essencial. Qualquer destes factores, bem como a ponderação que lhes terá que estar subjacente, destinar-se-á a demonstrar que a perda de interesse do credor resulta da superveniente inutilidade da prestação ou dos prejuízos que ela lhe acarretaria[32]-[33]

. quando o próprio devedor declara, em termos sérios e definitivos, que não irá cumprir (declaração de não cumprimento) e o credor, em consequência disso, considera a obrigação definitivamente incumprida[34].

É, portanto, apenas a aludida hipótese de incumprimento definitivo do contrato por perda do interesse do credor na prestação que ora se questiona.

É que, não olvidamos que a interpelação admonitória é dispensada quando ocorre um incumprimento definitivo do contrato-promessa em resultado da antecipada percepção de que o contrato prometido não será concretizado, mediante a apreciação do comportamento activo ou omissivo da contraparte. Ou seja, quando os factos provados revelam a existência inequívoca de uma vontade de não cumprir o contrato nos seus aspectos essenciais.

Aqui, para além do mais, surge a “necessidade de proteger a parte cumpridora, cobrando do promitente incumpridor o preço por atitudes de pura desconsideração daquela ou de fuga ao cumprimento das suas obrigações”[35].

Porém, como dito e redito, in casu não pode ver-se no comportamento dos RR, em termos concludentes, a perda de interesse seu, não podendo ler-se tal desinteresse no ocorrido cancelamento da água e luz, pois que o mesmo foi, como dito, mais que justificado[36].

Bem pelo contrário: até foi dado como não provado que “Os RR tenham deixado de querer cumprir o contrato prometido”!


*


Nesta senda, assiste razão aos RR/Recorridos quando dizem que não adoptaram qualquer comportamento incompatível com o cumprimento, pois que:

o Os Recorrentes e seus antecessores adoptaram sempre uma conduta omissiva e furtiva no que ao cumprimento do contrato concerne, fugindo aos promitentes vendedores ou ocultando-se destes, sonegando-lhes as informações essenciais e indispensáveis a que aqueles os interpelassem.

o Os promitentes compradores e os seus sucessores, tendo condições para interpelar os promitentes vendedores ao cumprimento do contrato, nunca o fizeram.

o Os promitentes vendedores interpelaram os promitentes compradores, em vão, diversas vezes até deixarem de ter condições para o fazer, por nem sequer saberem quem estava vivo ou morto, quem sucedera a quem, onde residiam, quem se encontrava na fracção.

o Foram os RR/Recorridos que interpelaram, por quatro vezes, os antecessores dos Recorrentes (a quem estes sucederam nos direitos e obrigações daqueles – ut artº 412º, nº1 CC) para a celebração da escritura, sempre os mesmos se tendo furtado.

o Até à presente acção, os RR/Recorridos mantiveram o interesse e o propósito de celebração da escritura, até porque permaneceram 19 anos à espera que os Recorrentes e os seus antecessores acedessem a celebrar a escritura, o que estes nunca fizeram.

o Os Recorrentes usaram e/ou dispuseram da fracção dos Recorridos como bem entenderam, durante todos estes anos, sem nada fazerem para concretizar a compra e venda.

o E agora, porque a fração já lhes não interessa, o que procuram fazer é tentar extrair dos Recorridos o dobro do sinal que os promitentes compradores prestaram.

o O que se nos afigura mais impressivo é que não tendo os Recorrentes evidenciado iniciativa, vontade e propósito para o que mais simples seriainterpelar os promitentes vendedores ao cumprimento, concretizando a compra e venda – já, porém, evidenciam iniciativa, vontade e propósito para pedir a restituição em dobro do sinal prestado pelos seus antecessores, ainda que para tal tenham tido necessidade de instaurar uma acção judicial com os custos, a incerteza e a demora que a mesma encerra.

Daqui se não aceitando que pretendam vir agora imputar aos Recorridos uma conduta incompatível com o cumprimento.


**


Assim, bem andou o acórdão recorrido referindo que “dos factos provados resulta que os Réus, apesar das sucessivas interpelações aos Autores e suas cominações, mantiveram sempre o interesse no contrato e no seu cumprimento”; e, outrossim, que “no caso concreto os Autores, promitentes compradores” – como já referimos, foi por evidente lapsus calami  que se escreveu no acórdão promitentes vendedores –  “foram sucessivamente notificados para comparecer e outorgar a escritura pública e foram sucessivamente faltando, sendo que sobre si impendia um maior cuidado no cumprimento da promessa com o contrato definitivo, o contrato de compra e venda, uma vez que estavam no uso e gozo da fracção, em obediência ao princípio basilar da boa fé, tal qual resulta do artigo 762º 2 do CC.”; bem assim que ““a fracção com o tempo sofre desgaste de materiais e da sua estrutura, necessita de manutenção, o que um verdadeiro proprietário se encontra empenhado nesta tarefa.”. Daí concluindo que “a culpa no incumprimento é dos Autores ao nunca cooperar com os Réus, sabendo da sua obrigação de realizar o contrato de compra e venda…”.

*


E, é claro, menos ainda se poderia afirmar que, por força de eventual mora sua, os RR tenham deixado de cumprir em prazo que os AA/reconvindos, eventualmente, lhes tenham fixado para o efeito.

De facto, as únicas comunicações havidas e retratadas nos factos provados foram as dirigidas pelos RR aos promitentes compradores.

Nenhuma, mesmo nenhuma, foi pelos (originários) promitentes-compradores, ou pelos ora Autores (seus sucessores), endereçada aos RR (cfr. factos 9, 18 e 23). E, querendo, bem o podiam ter feito, no fito de lograr obter o que ora vêm tentar!


**


Em suma: 1. os factos assentes apenas revelam uma situação de incumprimento definitivo dos AA/promitentes compradores originários – a quem os AA sucederam, após a sua morte, assim assumindo, a título universal, os direitos e as obrigações emergentes do contrato-promessa; 2. não se vislumbra incumprimento do contrato por banda dos RR/promitentes vendedores; 3. teve lugar a conversão da mora dos promitentes compradores em incumprimento definitivo, com a válida e eficaz interpelação admonitória operada pelos RR/promitentes vendedores (e, pelas apontadas razões, não assiste aos AA direito a resolver o contrato – maxime por alegada ocorrência de comportamento dos RR, concludente da vontade de não cumprir o contrato promessa celebrado), permitindo a estes resolver o contrato e fazer seu o sinal recebido.

Daí que se considere como acertado o decidido no acórdão recorrido, claudicando as conclusões da alegação da revista.


***


IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, confirmando-se o Acórdão da Relação.

Quanto pelos Autores/Recorrentes.


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

_____

[1] Texto integral disponível em PDF, por não estar publicado nas bases de dados de internet. No mesmo sentido cfr. o Ac. do STJ de 23-04-2020, Revista n.º 6295/13.2TBSTB.E1.S1, em que também foi relatora a Conselheira Rosa Ribeiro Coelho, disponível também em PDF, e cujo sumário é: “I - Se em alegações de recurso de revista apenas é arguida a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, o novo acórdão da Relação que supra essa nulidade é complemento e parte integrante do primeiro, ficando o recurso de revista já interposto a ter como objeto a nova decisão e podendo o recorrente, em dez dias, desistir do recurso ou alargar ou restringir o respetivo âmbito. II - Abstendo-se a Relação de apreciar aquela nulidade, e ordenando-se no STJ a baixa do processo àquele tribunal para que conheça da mesma, a situação resultante do novo acórdão que vier a ser proferido pela Relação no seguimento dessa determinação é absolutamente equiparável à referida em I, pelo que se não admite a interposição de um segundo recurso de revista, mas apenas que se desista do primeiro ou que se proceda ao alargamento ou restrição do seu âmbito. III - Sendo apenas pedido no recurso de revista o suprimento daquela nulidade por omissão de pronúncia, e mostrando-se esse suprimento feito através do acórdão referido em II, fica esvaziado o conteúdo do recurso de revista, que deve ser julgado findo.”.

[2] Diz-se, é certo, no Acórdão: “É verdade que os Réus, promitentes vendedores, interpelaram pela vez, os Autores, promitentes-compradores, para comparecerem a fim de ser realizada a escritura pública no dia 9/7/2003, desta vez com cominação de se não comparecessem consideravam o contrato definitivamente incumprido (factos nºs 18 e 19), mas após nova falta no acto da escritura dos autores, enviam nova carta em 2/9/2005 dizendo que os AA se encontram em mora, concedendo-lhe o prazo de 15 dias para cumprir o contrato (factos nºs 20 e 21).”.

Porém, não foi aos Autores que foram dirigidas tais comunicações. Foram-no, sim, à mulher do promitente comprador, já falecido em 01.2.2001, a quem os AA sucederam, maxime nas respectivas obrigações contratuais, como à frente melhor se verá.

[3] Cfr. VAZ SERRA, RLJ, 111º/94, ABEL PEREIRA DELGADO, Do contrato-promessa, p. 41, Ac. STJ, BMJ, 268º/211, e RL, CJ, 1993, V, 115.
Tal normativo refere-se apenas à morte da pessoa física, excluindo, portanto, do seu campo de aplicação, pelo menos literalmente, as situações de extinção de pessoa colectiva, sujeitando-as ao regime geral.
[4] Manual Do Contrato-Promessa, 2022, p. 101.
[5] Manual…cit., p. 102.
[6] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código, anot, I-273); M. DE BRITO, Cód. Civ. Anot., II-77 e VAZ SERRA, Bol. do M. da Just., 76-97).
[7] Aliás (o que apenas obiter dictum se refere, por a nosso ver, não ser preponderante para o mérito), a promitente-compradora (mulher do falecido promitente comprador), a quem foram dirigidas 3 das 4 referidas comunicações, era também cabeça de casal da herança aberta por óbito do promitente comprador, como decorre da habilitação junta aos autos com a petição sob o nº 2 e do disposto no artigo 2.080º nº 1 al. a) e 2.084º do Código Civil.

O que quer dizer que, mesmo que não vigorasse a solidariedade entre os promitentes compradores, se atendermos aos poderes de administração e disposição de que dispõe o cabeça de casal (ut artigos 2.079º e 2.087º a 2.090º do Código Civil), sempre se consideraria bastante a interpelação feita apenas na pessoa da cabeça de casal, primitiva promitente-compradora.

[8] Com o seguinte teor:

“Exmª Senhora:

Venho por este meio interpelar V. Exª para comparecer no próximo dia 26 de Julho corrente no Cartório Notarial da Drª II na Rua … pelas 12 horas a fim de outorgar, como compradora, a escritura de compra e venda da fracção predial, com localização correspondente ao seu domicílio.

Deverá proceder ao pagamento do correspondente IMT e comparecer munida do respectivo comprovativo e dos seus elementos de identificação civil e fiscal.

Devo desde já manifestar a V. Exª que caso não compareça ou não outorgue a escritura em causa perderei definitivamente o interesse na manutenção do contrato e farei operar a respectiva resolução, tendo como consequência a perda das importâncias pagas e a restituição da fracção.

Os meus respeitosos cumprimentos,”” (facto 23).
[9]Pressupostos da resolução por incumprimento, pp. 164‑5, in Obra Dispersa, vol. I, pp. 125 e ss.
[10] Assim, também, CALVÃO DA SILVA, "Estudos de Direito Civil e Processo Civil", p. 159.
[11]-Cfr. art. 808.º do CCiv.
[12] GALVÃO TELLES, in “O Direito”, 120 – 587.
[13] R.L.J 128.º, 138.
[14] P.º 07A2378.
[15] Destaque nosso.
[16]- Direito das Obrigações, 7.ª ed., pp. 456-7.
A este propósito, ainda, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6.ª ed., II vol., pp. 122-124, e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8.ª ed., pp. 971 e ss.
[17] Mesmo a considerar-se que este novo prazo é suplementar – o que é defendido, v.g., por GRAVATO MORAIS, ob. Ob cit., p 170, ao dispor que “Este prazo é, deve realçar-se, suplementar. Trata-se, portanto, de um prazo novo e distinto daquele que porventura terá existido para a hipótese de atraso tendo em vista o cumprimento”.
[18] GRAVATO MORAIS, Ob. cit., p 170.
[19] In Contratos Privados Das Noções à Prática Judiciária, 2ª Ed., vol. I, Coimbra Editora (no Item BOA FÉ).
[20]In R.L.J. 111.º, 215.
[21]Ver, ainda, a Boa Fé nos Contratos, de Armando Torres Paulo, p. 124, e “A Boa Fé no Direito Comercial”, in “temas de Direito Comercial”, conferência no Conselho Distrital do Porto da ordem dos Advogados, pp. 177 e ss., e Baptista Machado, in Obras Dispersas, vol. I.
[22]-Coutinho de Abreu, in "Do Abuso de Direito", Coimbra, 1983, p. 55.
[23]- Baptista Machado, "Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium", in Obras Dispersas, vol. I, Braga, 1991, p. 352.
[24]- Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, p. 61.
[25]- Orlando de Carvalho, “Teoria Geral do Direito Civil”, Centelha, Coimbra, 1991, p. 56.
[26]- Fernando Cunha de Sá, “Abuso do Direito”, p. 172.
[27]- “Do Abuso de Direito”, p. 55.
[28] Sabe-se, na verdade, que para a conversão de uma situação de mora em incumprimento definitivo a interpelação admonitória não se torna necessária naqueles casos em que tenha verificado uma situação qualificável como recusa de cumprimento ou tenha ocorrido e sido justificadamente invocada a perda de interesse do credor; nestes referidos casos relevam, de forma direta ou indireta, enquanto princípios sempre presentes nas relações jurídicas os princípios da boa fé e da confiança, princípios fundamentais que impõem num plano ético-jurídico que uma parte não defraude as expectativas da outra e que o iter negocial decorra, sem exceções, com a lisura normalmente exigível às pessoas de bem.

[29] Sobre o que sejam tais comportamentos concludentes, com o significado de implicarem a constituição em mora ou mesmo o incumprimento definitivo, ensina BRANDÃO PROENÇA (Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral, pp 87 ss ) como sendo aqueles que se manifestam, por exemplo, através de uma declaração de resolução ou de denúncia do contrato por parte do contraente incumpridor, da apresentação de uma proposta com condições objetivamente inaceitáveis ou apresentação de reivindicações arbitrárias, assim como do estabelecimento de negociações paralelas com terceiro ou da inércia relativamente à realização de diligências preparatórias indispensáveis à celebração do contrato definitivo.
Nessa circunstâncias, concluiu o aludido autor, “a partir do momento em que o comportamento do devedor (maxime declarativo e de repúdio ou não) provoca «a disfunção da relação, alertando o credor fiel para o perigo efetivo do incumprimento ou criando-lhe a convicção fundada do fracasso da vinculação” o mesmo credor fica legitimado “ao exercício mais racional dos direitos de indemnização e (ou) resolução do contrato, mas sem que se excluam as possibilidades de uma ação de cumprimento ou da sua execução específica” (pág. 351).
[30] Há um manifesto lapsus calami neste ponto 4, pois a entrega das chaves foi aos promitentes compradores e não, como ali se refere, aos promitentes vendedores.
[31] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, Limitada, p. 72.
[32] V.g. Ac. do STJ, de 15.03.2012, GABRIEL CATARINO, nota 10 e jurisprudência aí mencionada, in www.dgsi.pt.
[33] Sobre a Perda de interesse do credor, pode ver-se, mais desenvolvidamente, FERNANDO BAPTISTA, in Contratos Privados, 2ª ed., cit…, precisamente no Item “PERDA DE INTERESSE DO CREDOR.
Escreveu-se, designadamente, ali:
«Resulta do artigo 808.º, n.os 1 e 2, do Código Civil que o direito de resolução do contrato pode fundar-se na mora, se o credor, em consequência dela, perder o interesse que tinha na prestação, o que será apreciado objectivamente — ou se a prestação não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor.  A demonstração da “perda de interesse” do credor apenas releva nos casos de ocorrência de mora, mostrando-se desnecessária quando o incumprimento se torna definitivo pelo decurso do prazo fixado para o cumprimento.  No primeiro caso, a conversão da mora em incumprimento definitivo concretiza-se com “a perda de interesse na prestação”; no segundo caso, é o decurso do prazo fixado para cumprir que determina aquele efeito, por significar, nos termos da lei, recusa de cumprimento (Cfr. entre outros, os Acórdãos do STJ, in BMJ 327/642, 376/598, 391/538, 395/567 e Ana Prata, in Contrato-Promessa, 1999, p. 781).
O artigo 808.º equipara, assim, ao incumprimento definitivo a perda do interesse do credor que seja subsequente à mora.  Quer isto dizer que o cumprimento já não pode ser oferecido se a mora tiver sido convertida em incumprimento definitivo por qualquer das vias abertas pelo referido preceito.
E, segundo o n.º 2 do citado art. 808.º, a perda do interesse no contrato prometido tem que ser apreciada objectivamente.
A perda do interesse susceptível de legitimar a resolução do contrato afere-se, por conseguinte, em função da utilidade que a prestação teria para o credor, “embora atendendo a elementos” capazes de serem valorados “pelo comum das pessoas”.  Há‑de, portanto, “ser justificada segundo o critério da razoabilidade própria do comum das pessoas” (Cfr. RLJ 118/55 e 124/95).
(…).
Não basta «uma perda subjectiva de interesse na prestação», sendo necessário, pondera a doutrina, que «essa perda transpareça numa apreciação objectiva da situação», que se trate de uma «perda objectiva e imediata» daquele interesse.
O critério significa, por outras palavras, que a importância de tal interesse, embora aferida em função da utilidade concreta que a prestação teria para o credor, não se determina de acordo com o seu juízo arbitrário, mas considerando elementos susceptíveis de valoração pelo comum das pessoas.
Exige-se, além disso, «a efectiva perda do interesse do credor», sendo o caso mais frequente o «desaparecimento da necessidade que a prestação se destinava a satisfazer» (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, p. 72)».
[34] É que não há «razão para manter o credor vinculado, até ao vencimento, a uma relação jurídica que, em virtude de declaração séria, certa e segura, ante diem, de não cumprir do devedor, perdeu a força originária e desapareceu como vínculo em cuja actualidade final o sujeito activo possa confiar para satisfação plena e integral do seu interesse, razão existencial da obrigação. É exacto, por isso, configurar a declaração antecipada de não cumprir (ou o comportamento inequívoco demonstrativo da vontade de não cumprir, ou da impossibilidade antes do tempo de cumprir) como incumprimento (antes do termo), pressuposto suficiente de consequências jurídicas imediatas, como a exigibilidade do cumprimento e a execução especifica do contrato-promessa, se o credor nisso ainda tiver interesse, ou a própria resolução do contrato e, em geral, todos os remédios ou sanções previstos contra o incumprimento - JOÃO CALVÃO DA SILVA , Sinal e Contrato-Promessa, 8a edição, Almedina, p. 127 e 129.

[35] Para além da jurisprudência e doutrina já referidas, pode ver-se, ainda, os Acórdãos do STJ de 11/11/2020 (Abrantes Geraldes) e de 25-2-14 (proc. 1987/1996), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

[36] Permitimo-nos relembrar:

Quanto à luz, temos as já avultadas facturas por pagar (e que os promitentes compradores se obrigaram, no contrato promessa, a pagar - cfr. ponto 5 dos factos provados); quanto à água, e sendo, embora, certo que não ficou provado que as contas da água da fracção tenham deixado de ser pagas, provado está, porém, que a fracção deixou de ser habitada por qualquer dos promitentes compradores pelo menos desde o falecimento da promitente compradora (facto 30) e, outrossim, que “Entre finais de 2016 e início de 2017 houve infiltrações de água na fracção do 2.º andar direito, situada por baixa da fração dos autos, provenientes das águas pluviais que se infiltravam na zona da varanda desta última, o que foi reclamado junto dos RR” (facto 31), sendo que “Ao tempo, o morador do supra id. 2.º andar direito, tentou contactar os moradores do 3.º dto. não tendo encontrado ninguém”, e bem assim que quando em Março de 2017, os RR, na presença da PSP, abriram a porta da fracção e trocaram as respectivas fechaduras, já depois de cancelado o abastecimento de água à dita fracção, constatou-se que “no interior da habitação encontravam-se haveres dos falecidos promitentes compradores”, mas que “A fracção não tinha sinais de estar a ser habitada” (factos 39 a 42). Assim se reitera que o cancelamento do fornecimento de água se justificou, de todo: para além das aludidas infiltrações a escorrer para a fracção do 2º andar, não estava ninguém a habitar a fracção em causa nos autos. Pergunta-se: para quê manter ligada a água, com custos desnecessários e risco de inundações no interior da fracção, com consequências imprevisíveis, quer para esta (com os consequentes danos), quer para as fracções inferiores, quando a mesma não está a ser habitada por quem quer que seja e sendo fácil estabelecer, a qualquer momento, a ligação do abastecimento de água à fracção?

Não se podendo olvidar, ainda, o pagamento pelos RR das prestações do condomínio, nos sobreditos termos.