Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7078/18.9T9LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: NUNO GOMES DA SILVA
Descritores: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMISSIBILIDADE
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
COMISSÃO
VALORES MOBILIÁRIOS
INTERESSE EM AGIR
INCONSTITUCIONALIDADE
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
Data do Acordão: 10/31/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática:
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO / BURLA / BURLA QUALIFICADA / BURLA INFORMÁTICA E NAS COMUNICAÇÕES.
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROVA / MEIOS DE PROVA / PROVA TESTEMUNHAL / SEGREDO PROFISSIONAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA / PODERES DE COGNIÇÃO.
Doutrina:
- Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes; 1988-9, p. 25;
- Henriques Gaspar e outros, Código de Processo Penal Comentado, 2ª edição, p. 17;
- J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, Volume I, 4ª ed., p. 408-410;
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 79-80.

Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 217.°, N.° 1, 218.°, N.° 2, ALÍNEA A) E 221.°, N.° 1, ALÍNEA B).
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 135.º, 401.º, N.ºS 1, ALÍNEA D) E 2, 419.º, NºS 1, 2 E 3, ALÍNEA A), 432.º, N.º 1, ALÍNEA A) E 434.º.
CÓDIGO DE VALORES MOBILIÁRIO: - ARTIGOS 135.º, 353.º E 354.º, N.º 1.
LEI QUADRO DAS ENTIDADES REGULADORAS, APROVADA PELA LEI N.º 67/2013 - ARTIGO 14.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 16-02-2005 PROCESSO 04P4551;
- DE 21-04-2005, PROCESSO 1300/05;
- DE 12-07-2005, PROCESSO 05B1901;
- DE 09-02-2011, PROCESSO 12153/09.8TDPRT-A.P1.S1;
- DE 23-03-2011, PROCESSO 106/04.7TALMG;
- DE 10-04-2014, PROCESSO 17468/08.8TDPRT.P1.S1;
- DE 25-07-2014, PROCESSO 4910/08.9TDLSB-E.L1.S1;
- DE 04-04-2019, PROCESSO 5837/16.6T9LSB-A.L1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 442/07, IN DR 1ª SÉRIE, DE 11-09- 2007.
Sumário :

I - A “reclamação” para a conferência não é um recurso da “decisão sumária” mas somente um pedido de reapreciação colegial da “decisão sumária” em que já intervirá, para discussão e votação, além do relator, o presidente da Secção e o juiz-adjunto. Nessa circunstância o recurso, é então julgado em conferência. como claramente expresso nos nºs 1, 2 e 3, al. a) do art. 419º CPP.
II - O uso da expressão “reclamação” para designar esse pedido de reapreciação da decisão sumária é, crê-se, desadequado e tem origem numa escusada reminiscência da que foi a orientação processual civil dominante, a coberto da influência de José Alberto dos Reis, de par com uma outra que advém da perfusão do regime de recursos do processo civil no regime de recursos do processo penal, na vigência do CPP 1929, hoje claramente posta de lado.
III - Os fundamentos da “reclamação” não poderão ir além dos da motivação do recurso, não se prestando a oportunidade processual para reconfigurar essa mesma motivação com novos argumentos como se de um “alongue” do recurso se tratasse.
IV - A cláusula geral de recorribilidade das decisões judiciais comporta excepções e uma delas respeita à intervenção do STJ que está reservada para situações de considerável gravidade. Há limitações por razões de razoabilidade e celeridade processual na selecção/restrição de causas susceptíveis de reapreciação pelo STJ.
V - Para identificar a recorribilidade de um acto decisório necessário se torna atender não só à unidade do sistema jurídico – rectius do sistema de recursos – como levar em conta a presunção de que, na fixação do sentido e alcance da lei, o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, segundo os princípios gerais sobre interpretação da lei consagrados no art. 9º C.C.
VI - A ideia que atravessa o sistema na parte dos recursos é a de que o STJ é um tribunal de “fim de linha” – passe a expressão em benefício da clarificação da ideia – cuja competência no tocante aos recursos ordinários está reservada para situações sobre a apreciação do mérito, a justiça da condenação – e mesmo assim com constrições várias – ou em que o acto decisório ponha termo definitivo ao processo, que encerre a relação jurídica entre os sujeitos processuais, seja por razões de natureza adjectiva, seja por razões de natureza substantiva. Por isso se lhe atribui a função de tribunal de revista, como inequivocamente ressalta do art. 434º, do CPP.
VII - Com esta perspectiva se deve interpretar a al. a) do nº 1 do art. 432.º CPP que dispõe haver recurso para o STJ das decisões das relações proferidas em 1ª instância. Fazendo intervir aí um outro tópico de interpretação: as decisões da relação proferidas em 1ª instância, logo recorríveis, são as que respeitem ao julgamento, isto é, em que a Relação, nesse acto decisório, faça uma primeira apreciação do mérito da causa com extensão, naturalmente, às pertinentes questões interlocutórias que um tal julgamento suscite; ou quando esse primeiro acto decisório encerre em definitivo o processo por ser, designadamente, um despacho de não pronúncia, de arquivamento decorrente do conhecimento de uma qualquer questão prévia ou da apreciação de uma causa de extinção da relação jurídica como a prescrição.
VIII - O acórdão da Relação que autorizou a quebra do segredo profissional invocado pela recorrente no âmbito de uma “Decisão Europeia de Investigação” (DEI) cujo “Estado de emissão” é a República da Polónia, e cujo objectivo – para o qual foi solicitada a intervenção Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa enquanto “Autoridade de execução” – é a obtenção de determinadas informações respeitantes à actividade da sucursal portuguesa de uma empresa polaca de corretagem, informações essas que a recorrente declinou prestar, não só não tomou qualquer posição sobre o mérito da causa como não pôs termo ao processo. A intervenção da Relação justifica-se somente para decisão de uma questão incidental, de cariz processual, cujo conhecimento por lei lhe foi deferido. Questão incidental essa com uma «estrutura especial que não segue as regras normais de competência jurisidicional».
IX - Não se afigura procedente a alegação da recorrente CMVM de que tem a defender um direito afectado pela decisão, que é o fundamento da 2º parte da alínea d) do sobredito nº 1 do art. 401º pois nenhum seu direito foi afectado nem lhe sobra interesse em agir, pressuposto processual fundamental para a sua pretensão de recurso a que se refere o n.º 2 do art. 401º CPP.
X - No processo penal, a coberto do princípio acusatório, como consagrado no art. 32º, n.º 5, da CRP, persegue-se a busca da paz jurídica comunitária posta em causa por um crime mediante a procura da verdade material a respeito da existência desse crime que visa a protecção de certos bens jurídicos, do seu autor e da sua culpabilidade, para, no fim lhe impor (ou não) uma reacção criminal. Decorre com regras pré-estabelecidas, claras e precisas, enunciando direitos e deveres, isto é, regras sobre a competência dos órgãos e sobre o exercício de funções, sobre os meios adequados a utilizar, as formas e as garantias. Tudo de acordo com um critério de concordância prática que esbata o «caracter irremediavelmente antinómico e antitético» de certas das suas medidas salvaguardando a sua finalidade última «o princípio da dignidade do homem e da sua intocabilidade e da consequente obrigação de a respeitar e proteger».
XI - Nesse quadro, a intervenção dos sujeitos processuais é relativamente ampla mas já muito mais restrita quanto a terceiros mormente nas hipóteses previstas na alínea d) do n.º 1 do art. 401.º que a recorrente invoca. A sua intervenção ao nível do recurso está legitimada por uma eventual condenação que queira colocar em causa ou por qualquer “ataque” (assim entendido) à sua dignidade.
XII - Para recorrer é preciso que haja para o terceiro um interesse em agir, (n.º 2 do citado art. 401.º, do CPP), que da procedência do recurso resulte um benefício com repercussão na esfera jurídica do putativo recorrente, isto é, que um qualquer seu direito possa estar carecido de tutela judicial necessitando ele de usar o processo – rectius o recurso – para ver reconhecido esse direito; não poderá ser um interesse vago e remoto mas «um interesse concreto, juridicamente relevante, relevância que terá de ser aferida em relação aos concretos termos da causa, nunca de uma abstracção (…) sempre em vista de um interesse concreto e concretizável». Que salvaguarde o interessado de prejuízos efectivos, reais e concretos.
XIII - O sistema legal prescrito no art. 135.º, do CPP, não confere à CMVM que se escusou a prestar informações com base no dever de sigilo a que estava obrigada por força do disposto nos arts. 354.º, n.º 1 do Código de Valores Mobiliários e 14.º, da Lei 67/2013, escusa essa que foi considerada legítima, a prerrogativa de aferir da conveniência de dar, ou não dar, as informações solicitadas.
XIV - Outra seria a circunstância se a escusa da recorrente fosse considerada ilegítima caso em que, então sim, teria legitimidade para recorrer e interesse em agir para fazer valer a sua pretensão/direito ao reconhecimento de ter agido dentro da legalidade e, do mesmo passo, ver restaurada a sua dignidade institucional face ao que poderia considerar um “ataque” que, nesses termos, lhe fosse dirigido.
XV - Na medida em que a imprescindibilidade das informações tidas como pertinentes visa o esclarecimento da verdade quanto à lisura de procedimentos, no caso em matérias de âmbito financeiro, a respeito da actividade da sociedade investigada pelas autoridades polacas sobre a qual existentes reclamações dessa essa actividade em Portugal e que não pode ser obtido senão através da quebra do sigilo profissional a que a entidade interpelada está vinculada poderia até dizer que é até do interesse de uma entidade de supervisão que se esclareça a verdade sobre a matéria alvo de controvérsia, decerto um interesse muito mais ponderoso do que o da preservação do segredo “à outrance” em nome de uma vaga «confiança do sistema financeiro internacional». O que, “transportado” para o âmbito do recurso redundaria – o que se afirma como imagem –, num autêntico “desinteresse” em agir.
XVI - Se a CMVM, como entidade reguladora independente prossegue as suas atribuições e desenvolve a sua actividade «no quadro cada vez mais densificado do Sistema Europeu de Supervisão Financeira (“SESF”)» não é menos certo que dessas suas atribuições, por ser integrante desta entidade (“SEFS”) faz parte a supervisão micro e macroprudencial. Uma, com o objectivo de controle e limitação das dificuldades de instituições financeiras individuais de forma a proteger os consumidores. Outra, acautelando a exposição do sistema financeiro no seu todo a riscos comuns e procurando limitar as suas dificuldades, para proteger a economia global de perdas significativas em termos de produção real.
XVII - Estando nos objectivos da “SEFS”, no domínio “microprudencial”, a protecção dos consumidores é singularmente que se queira de algum modo obstaculizar uma actividade investigatória levada a cabo a coberto de uma Directiva Europeia (2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho) e que mais não visa do que objectivos congruentes ou pelo menos complementares dos das autoridades de supervisão: em primeira linha proteger os consumidores e, eventualmente, a economia global de perdas significativas em termos de produção global.
XVIII - Tratando-se da prevalência de legislação europeia não se dirá, decerto que a dita Directiva Europeia é um minus em relação à demais sendo ainda de notar que, a “DEI” no âmbito da qual se desencadeou o incidente de quebra de sigilo tem origem numa queixa da “Autoridade de Supervisão Financeira da Polónia”, isto é, do “estado de emissão”. Não se vislumbra, pois, que se possa ter a decisão recorrida como desfavorável aos fins primordiais que a recorrente persegue e dela derivem, para si, prejuízos efectivos, reais e concretos. E que, por isso, haja um interesse da recorrente também ele concreto, juridicamente relevante, em obter uma decisão diversa da que autorizou a quebra do sigilo.
XIX - Como ensina a doutrina o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP) é uma “norma-princípio” estruturante, corolário lógico do monopólio tendencial de solução dos litígios por órgãos do Estado. A que é atribuída a natureza de «direito prestacional dependente e de direito legalmente conformado». Carecida, portanto, de conformação através da lei. Se ninguém pode ser privado de levar a sua causa à apreciação de um tribunal é certo que essa forma de tutela fundamental não é irrestrita. Necessário se torna que haja relação «com a defesa de um direito ou interesse legítimo» ainda que difuso e que seja vedada ao interessado o reconhecimento desse direito através da via judiciária o que no caso não acontece por não haver da parte da recorrente nem legitimidade nem interesse em agir à luz do direito infraconstitucional.
XX - Não está em causa a «proibição da indefesa» que consiste na privação ou limitação do direito de defesa ou do direito a uma tutela judicial efectiva pela simples e patente razão de que o seu dever de sigilo, o que à face da lei lhe cumpria salvaguardar foi reconhecido como legítimo. O que se segue a partir daí no incidente de quebra de sigilo envolve já uma ponderação de interesses, uma apreciação proporcionalmente ponderada em a recorrente não tem de interferir. Não está em equação uma sua causa, reconhecida que foi a legitimidade da sua recusa.
XXI - No incidente previsto no art. 135.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, no âmbito de uma investigação desencadeada por uma autoridade judiciária, na decorrência do art. 182.º, n.º 1, de acordo com o qual as entidades sujeitas a segredo profissional invocam esse mesmo segredo quando confrontadas com a ordem dessa autoridade judiciária a salvaguarda do direito de reacção contra a intervenção do Estado - rectius da autoridade judiciária - é assegurada pela invocação do segredo profissional e pela subsequente decisão do incidente que cabe a um tribunal superior e que se quer célere e expedita. Como se afigura compreensível não caberá à entidade a quem são solicitados os elementos cobertos pelo segredo, uma vez considerada legítima a sua invocação, aquilatar (ou não) do interesse para a investigação dos elementos pedidos. Elementos esses cujo conhecimento pela investigação podem até ser do maior interesse do investigado.
XXI - É jurisprudência constitucional firmada a de que a garantia do duplo grau de jurisdição em processo penal releva de alguma situação que contenda com a privação, limitação ou restrição de direitos dos sujeitos processuais, podendo admitir-se que a faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e relativamente a certos actos judiciais. A recorrente nem sequer tem esse estatuto de sujeito processual a coberto do qual lhe fosse conferida uma especial protecção legal de interesses e direitos.
XXIII - A impossibilidade de recurso no âmbito do incidente de quebra de sigilo pela entidade convocada a prestar determinadas informações e uma vez reconhecida a legitimidade da sua escusa, além de estar de acordo com as regras gerais processuais sobre a legitimidade e o interesse em agir, de modo algum configura um injustificado, intolerável, irrazoável ou arbitrário regime discriminatório de acesso ao direito previsto no art. 20.º, nºs 1 e 4 CRP e, em detalhe, do acesso ao recurso.
XXIV - Estando em causa a necessidade de reafirmar o valor de normas jurídicas especialmente relevantes como aquelas que punem actividades enganosas causadoras de prejuízos patrimoniais aos investidores que terão sido postas em crise pois se investiga a prática, à luz da lei portuguesa, de crimes de burla qualificada e/ou de burla informática e nas comunicações, p. p. , respectivamente, pelos arts. 217°, n.° 1, e 218.°, n.° 2, al. a), e 221.°, n.° 1, al. b), do CP, do que se trata é de fazer respeitar o interesse público que consiste na averiguação de crimes punidos com penas de prisão, interesse que visando a boa administração da justiça foi tido na decisão recorrida como preponderante nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade da informação ou do documento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos e, por isso, prevalente sobre o interesse privado acautelado pelo sigilo profissional a que a recorrente está obrigada e que foi tido também como justificadamente restringido (art. 18.º, n.º 2, da CRP).
XXV - Como propugna o TC (acórdão nº 442/07) a propósito do segredo bancário com argumentos transponíveis para o sigilo profissional invocado pela recorrente «bem protegido pelo segredo bancário caiba no âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada consagrado no artigo 26º, nº 1 da Constituição da República …o segredo bancário localiza-se no âmbito da vida de relação, à partida, fora da esfera mais estrita da vida pessoal, a requer maior intensidade de tutela. Ainda que compreendido no âmbito de protecção, ocupa uma zona de periferia, mais complacente com restrições advindas da necessidade de acolhimento de princípios e valores contrastantes». Com a quebra do sigilo não é atingido o núcleo central daquele interesse privado pois não haverá uma intromissão na «esfera mais estrita da vida pessoal» dos investidores.
XXVI - A missão da recorrente é, com as atribuições definidas no art. 353.º, do Código dos Valores Mobiliários, e no art. 4.º do seu próprio Estatuto, a de proteger o regular funcionamento do mercado de capitais e, em decisiva e última linha, de protecção dos interesses dos investidores mas certamente que apenas e só na veste que estes assumem de alguém que faz uso dos instrumentos financeiros disponíveis no mercado. Mas não lhe caberá a protecção «da reserva da intimidade da vida privada» dos investidores ou das pessoas sujeitas a supervisão na dimensão delineada pela jurisprudência constitucional tanto mais que pela possibilidade legal quebra de sigilo se conclui que o sistema vigente não é um «sistema de segredo reforçado», cada vez mais raro, aliás, precisamente porque valores de superior relevância se sobrepõem ao sigilo profissional em geral.

Decisão Texto Integral:

1. -A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) vem reclamar para a conferência, da “decisão sumária” proferida em 2019.07.11 que rejeitou o recurso que interpusera do acórdão do TR Lisboa, de 2019.02.07, que autorizou a quebra do segredo profissional invocado por si invocado no âmbito de uma “Decisão Europeia de Investigação” (DEI) cujo “Estado de emissão” é a República da Polónia, e cujo objectivo – para o qual foi solicitada a intervenção Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa enquanto “Autoridade de execução” – é a obtenção de determinadas informações respeitantes à actividade da sucursal portuguesa de uma empresa polaca de corretagem, informações essas que a recorrente declinou prestar.

          Na “decisão sumária” considerou-se ser inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do mencionado acórdão do TR Lisboa.

          Na “reclamação” a CMVM conclui o seguinte (transcrição):

I. Da recorribilidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que decidiu a quebra do segredo profissional

1.ª Por Acórdão datado de 7 de fevereiro de 2019, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu deferir o requerido levantamento do segredo profissional da CMVM, pondo termo ao incidente de quebra de segredo profissional suscitado pelo Ministério Público nos presentes autos.

2.ª De tal Acórdão, a CMVM interpôs recurso perante este Venerando Tribunal no dia 4 de abril de 2019, o qual foi liminarmente admitido por douto Despacho proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 23 de abril de 2019.

3.ª Por Decisão Sumária, datada de 11 de julho de 2019, e da qual ora se reclama, o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso interposto pela Recorrente, fundando-se na irrecorribilidade da decisão recorrida, mais considerando improcedente a inconstitucionalidade arguida pela CMVM (rectius, uma das inconstitucionalidades arguidas pela CMVM).

4.ª Nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 135.° do CPP, invocada a escusa perante o Tribunal, pode este decidir por uma de duas vias: i) ou considera que a escusa é ilegítima e determina a junção dos documentos ou ii) considera que a escusa é legítima e, oficiosamente ou a requerimento, requer ao tribunal superior, isto é, in casu, ao Tribunal da Relação, a quebra do segredo profissional.

5.ª Existe, pois, uma competência sequencial e bifurcada no contexto do processo de quebra de segredo, cabendo numa primeira fase a decisão sobre a legitimidade da escusa e só depois, perante outra autoridade, a decisão sobre o incidente de quebra do segredo profissional (decisão sobre a justificação da quebra).

6.ª Assim, o Tribunal da Relação de Lisboa constituiu-se, deste modo, como a primeira instância de decisão quanto à justificação da quebra do segredo profissional, uma vez que o Juízo de Instrução Criminal de Lisboa apenas decidiu se a escusa era ou não legítima.

7.ª Para além de funcionar como primeira instância de decisão quanto à quebra de segredo profissional, o Tribunal da Relação pôs termo ao incidente de quebra do segredo profissional, cujo objeto consiste em saber se o dever de segredo profissional deve ceder perante o interesse probatório do Ministério Público no inquérito (conjugado com o interesse na administração da justiça), sendo, nesse caso, injustificada a escusa.

8.ª Não podendo ser atribuído ao objeto do presente processo outra qualificação que não seja a de decisão proferida em primeira instância pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a mesma terá de ser, obviamente, considerada recorrível nos termos do disposto nos artigos 399.° e 432.°, n.º 1, alínea a), do CPP.

9.ª O entendimento segundo o qual não deve ser admitido o presente recurso por se considerar que a decisão do Tribunal da Relação que quebra o segredo profissional invocado nos termos do artigo 135.º do CPP é irrecorrível só pode julgar-se inconstitucional por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.°, n ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

10.ª Pelo que, para os devidos efeitos legais, se invoca a inconstitucionalidade das normas contidas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.° do CPP, conjugado com o disposto no artigo 399.°, e 432.°, n.º 1, alínea a) do CPP, na interpretação segundo a qual a decisão do Tribunal da Relação que quebra o segredo profissional invocado nos termos do disposto no artigo 135.° do CPP é irrecorrível, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.°, n.ºs 1 e 4 da CRP.

11.ª O entendimento segundo o qual o tribunal superior pode quebrar o dever de segredo profissional sem ouvir o sujeito desse mesmo dever no momento da ponderação dos interesses em conflito só poderá julgar-se inconstitucional por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.°, n.ºs 1 e 4 da CRP.

12ª Razão pela qual, para os devidos efeitos legais, reitera-se a invocação da inconstitucionalidade das normas contidas nos nºs 3 e 4 do artigo 135.° do CPP na interpretação segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante a autoridade judiciária, o tribunal superior pode quebrar o dever de segredo sem ouvir o titular desse dever quanto aos pressupostos de que depende a quebra do mesmo, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.°, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.

13.ª Mais se invocando a inconstitucionalidade, para os devidos efeitos legais, da norma contida no n.° 4 do artigo 135.° do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1.ª instância, o tribunal superior pode não permitir uma entidade não dotada de organismo representativo da profissão de exercer o princípio do contraditório e os direitos de defesa constitucionalmente garantidos no processo/incidente de quebra de segredo profissional em que é requerida, por violação do artigo 20.°, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.

14.ª Em face do que vem dito, o presente recurso deve ser admitido de acordo com o disposto nos artigos 399.° e 432.°, n.° 1, alínea a), do CPP.

II. Da Decisão Sumária proferida pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator

15.ª O Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator, na Decisão Sumária proferida, decidiu rejeitar o recurso apresentado pela CMVM, suportando a sua decisão, em síntese, nos seguintes fundamentos: (i) a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, ainda que se admita ser uma primeira decisão, não só não tomou qualquer posição sobre o mérito da causa como não pôs termo ao processo, não sendo, consequentemente, recorrível nos termos do disposto nos artigos 399.° e 432.°, n.° 1 , alínea a) do CPP; (ii) a Recorrente carece de legitimidade para o recurso à luz do artigo 401.°, n.° 1, alínea d), segunda parte, do CPP, porquanto nenhum direito seu foi afetado nem lhe sobra interesse em agir, pressuposto processual fundamental para a sua pretensão de recurso, nos termos do artigo 401.º, n.° 2, do CPP ; e (iii) a impossibilidade de recurso no âmbito do incidente de quebra de sigilo pela entidade convocada a prestar determinadas informações e uma vez reconhecida a legitimidade da sua escusa, além de estar de acordo com as regras gerais processuais sobre a legitimidade e o interesse em agir, de modo algum configura um injustificado, intolerável, irrazoável ou arbitrário regime discriminatório de acesso ao direito previsto no artigo 20.°, n.ºs 1 e 4, da CRP e, em detalhe, do acesso ao recurso.

II.A - Da interpretação dos artigos 399.° e 432.°, n.° 1, alínea a) do CPP

16.ª Em primeiro lugar, defende o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, ainda que se admita ser uma primeira decisão, não só não tomou qualquer posição sobre o mérito da causa como não pôs termo ao processo, não sendo, consequentemente, recorrível nos termos do disposto nos artigos 399.° e 432.°, n.° 1 , alínea a) do CPP.

17.ª A interpretação propugnada na Decisão Sumária para o artigo 432.°, n.° 1, alínea a) do CPP não permite fundamentar a irrecorribilidade da decisão colocada em crise pelo recurso apresentado pela CMVM, sob pena de conduzir a uma restrição inadmissível do direito à tutela jurisdicional efetiva, concretizada, in casu, no direito ao recurso.

18.ª A quebra do sigilo profissional é subsumida, pelo legislador, a um incidente processual; com efeito, prevêem os n.ºs 2 e 3 do artigo 135.° do CPP: "2 - (...) a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. (...) 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado (...) " (sublinhados nossos). E assim tem sido qualificado jurisprudencial e doutrinalmente.

19.ª Ao proferir a decisão a que alude o n.° 3 do artigo 135.° do CPP, o Tribunal da Relação pôs termo ao incidente de quebra do segredo profissional, cujo objeto consiste em saber se o dever de segredo profissional deve ceder perante o interesse probatório do Ministério Público no inquérito (conjugado com o interesse na administração da justiça), sendo, nesse caso, injustificada a escusa.

20.ª Está-se perante uma decisão proferida no âmbito de um incidente com autonomia face ao processo principal, autonomia essa que se manifesta tanto no seu objeto, como nos sujeitos que nesse incidente participem e no qual pretendem fazer valer direitos próprios.

21.ª Pelo que, no acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa pronuncia-se sobre o mérito do incidente, tendo decidido quebrar o segredo profissional invocado pela CMVM.

22.ª O acórdão recorrido configura um ato decisório que encerra em definitivo o incidente de quebra do segredo profissional e, consequentemente, a relação jurídica entre os sujeitos processuais que nele figuram: o Ministério Público, enquanto requerente, e a CMVM, enquanto requerida.

23.ª Ou seja, tomando como correta a interpretação dos artigos 399.° e 432.°, n.° 1, alínea a) do CPP propugnada na Decisão Sumária - segundo a qual, em síntese, são recorríveis os atos decisórios que "respeit[em] à apreciação do mérito", "ponham termo definitivo ao processo" ou "encerrem a relação jurídica entre os sujeitos processuais" - é bom de ver que, quando a mesma é aplicada ao caso dos presentes autos, tomando em devida consideração o facto de se estar no âmbito de um incidente processual com autonomia objetiva e subjetiva, o resultado é que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa é recorrível, porquanto se pronuncia quanto ao mérito e encerra em definitivo o incidente de quebra do segredo profissional.

24.ª E não se defenda que o acórdão sub judice configura uma decisão interlocutória irrecorrível, à luz do disposto no artigo 400.°, n.º 1, alínea c) do CPP, pois o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, do qual se interpôs recurso, não é proferido em recurso e conheceu, a final, do objeto do incidente.

25.ª Note-se, em todo o caso, que a Decisão Sumária proferida, neste segmento, assenta numa interpretação restritiva do disposto nos artigos 399.° e 432.°, n.° 1, alínea a) do CPP, porquanto a irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa não se encontra expressamente prevista.

26.ª Tal entendimento - que seleciona como atos decisórios recorríveis praticados pela Relação os que respeitem ao julgamento ou que encerrem o processo na economia da forma de processo penal comum (nomeadamente, despachos de não pronúncia ou de arquivamento) - é incompatível com o caso sub judice em que se está perante um pedido de cooperação judiciária internacional, que, naturalmente, não obedece às fases processuais típicas do processo penal (aquisição da notícia do crime, inquérito, instrução, julgamento e recurso).

27.ª Para além do exposto, o entendimento da existência de uma irrecorribilidade implícita (que não decorra de lei expressa) sempre seria inadmissível à luz do disposto no artigo 18.° n.ºs 2 e 3, conjugado com o consignado no artigo 20.°, ambos da Constituição da República Portuguesa.

28.ª Considerando que o direito ao recurso é um corolário do direito de acesso ao direito e aos tribunais (consagrado no artigo 20.° da CRP), sobretudo quando estejam em causa decisões judiciais que afetem direitos fundamentais, a suscetibilidade de recurso destas decisões apenas por lei pode ser restringida (princípio da reserva de lei, ínsito nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.° da CRP).

29.ª Adicionalmente, decorre do disposto no artigo 399.° do CPP o princípio, comummente aceite, do "in dubio pro recurso", o qual tem obtido acolhimento expresso pela jurisprudência dos nossos tribunais.

30.ª Donde, mesmo que se entendesse que o recurso interposto pela CMVM fosse de duvidosa admissibilidade - o que não se concede - os casos de dúvida devem ser decididos em favor da admissão do recurso, em linha com o consignado no artigo 399.° do CPP.

II.B - Da legitimidade e do interesse em agir da CMVM

II.B.I - Da sustentação da legitimidade e interesse em agir da CMVM

31.ª A aplicação do artigo 401.°, n.º 1, alínea d), do CPP ao incidente de quebra de segredo profissional, impõe a legitimidade da CMVM no processo/incidente em que é requerida e recorrente para interpor o presente recurso ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que determinou a quebra do segredo profissional da CMVM.

32.ª A intervenção da CMVM deve ser assegurada também em sede de ponderação dos interesses em conflito, pois que a CMVM é quem melhor pode dar a conhecer os concretos interesses que, em cada caso, são protegidos pelo segredo profissional, para que o Tribunal possa, como prevê o n.° 3 do artigo 135.° do CPP, decidir "segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos" (sublinhado nosso).

33.ª É por demais evidente que a CMVM não pretende qualquer obstaculização à atividade investigatória. O que a CMVM pretende, ao invés, é que na quebra do segredo profissional que lhe é legalmente imposto seja respeitado o regime jurídico aplicável -designadamente que, desde logo, sejam respeitados o direito de acesso aos tribunais e o princípio do contraditório e que o princípio da prevalência do interesse preponderante seja aplicado corretamente, ponderando os concretos interesses em causa nos presentes autos, promovendo um juízo de concreto de adequação e necessidade da documentação para os fins investigatórios, e limitando ao mínimo indispensável a quebra do segredo profissional da CMVM.

34.ª O facto de uma das atribuições da CMVM consistir em "[r]egular e supervisionar os mercados de instrumentos financeiros, promovendo a proteção dos investidores" (cfr. artigo 4.°, n.° 2, alínea a) dos Estatutos da CMVM, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 5/2015, de 8 de janeiro) não autoriza toda e qualquer quebra do segredo profissional da CMVM quanto esteja em causa uma investigação que vise, direta ou indiretamente, a proteção de investidores.

35.ª Num Estado de Direito, em que o processo penal é de matriz essencialmente acusatória, os interesses da investigação e da realização de justiça não constituem valores absolutos, nem podem conduzir a verdadeiros atropelos de outros direitos e valores constitucionalmente consagrados.

36.ª A atribuição de poderes de recolha de informação e a institucionalização de procedimentos tendentes a fomentar a participação das entidades supervisionadas, visando eliminar assimetrias de informação existentes entre regulador e regulado, têm, em regra, como pedra de toque a imposição às entidades administrativas independentes de um dever de segredo sobre os factos e elementos de que tenham conhecimento no exercício das suas funções.

37.ª A imposição à CMVM, enquanto entidade de supervisão do mercado de instrumentos financeiros, de um dever de segredo profissional assume-se também como a transposição para o direito interno português de várias normas que, no quadro da regulação europeia do mercado de instrumentos financeiros, impõem aos Estados-membros da União Europeia que as respetivas autoridades de supervisão fiquem sujeitas a uma obrigação de guardar segredo profissional.

38.ª Tendo em conta as atribuições de supervisão da CMVM (cf. artigo 353.° do CdVM) e as entidades sujeitas à sua supervisão (cf. artigo 359.° do CdVM), tal segredo profissional abrange factos ou elementos que se encontram sujeitos a diferentes tipos de segredo, a saber, (i) ao segredo bancário, (ii) ao segredo empresarial, e (iii) ao segredo das próprias autoridades supervisoras, o dito segredo «prudencial», imposto à autoridade supervisora do setor financeiro e às pessoas que aí trabalham.

39.ª Ora, como resulta do exposto, os factos e elementos objeto do segredo profissional da CMVM podem ter diferentes "proveniências": entidades sujeitas a supervisão (artigos 359.° e 361.° do CdVM), outras autoridades de supervisão nacionais, como o Banco de Portugal ou a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (artigo 355.°, n.° 1, do Cód.VM), outras instituições nacionais (artigo 375.° do CdVM), instituições congéneres estrangeiras (artigo 355.°, n.º 2, do CdVM), os clientes das entidades sujeitas a supervisão, etc.

40.ª A imposição às entidades de supervisão do mercado de instrumentos financeiros de um dever de segredo profissional apresenta, na sua essência, um duplo fundamento: de um lado, pretende-se assegurar a proteção dos direitos e interesses legítimos das entidades sujeitas a supervisão e demais pessoas que com elas se relacionam; do outro, visa-se garantir a protecão da eficácia da própria supervisão.

41.ª O segredo profissional da CMVM protege (i) a reserva da intimidade da vida privada de todas as pessoas sujeitas a supervisão da CMVM, que se encontram sujeitas a um dever de colaboração com o supervisor, estando obrigadas a revelar a este um conjunto de informações relativas à sua atividade que, por natureza, têm carácter confidencial e cuja reserva deve ser salvaguardada, e bem assim de todos aqueles que, de alguma forma, se relacionam com entidades supervisionadas pela CMVM, (ii) os segredos comerciais, industriais ou da vida interna das empresas supervisionadas pela CMVM, e (iii) a eficácia da supervisão dos mercados de instrumentos financeiros, a qual é "uma incumbência constitucional do Estado".

42.ª Sucede, assim, que os interesses subjacentes ao segredo profissional da CMVM são múltiplos, não podendo qualquer ponderação de interesses tomar o segredo profissional como um fim em si mesmo.

43.ª O dever de segredo das autoridades de supervisão é um dos princípios da regulação dos valores mobiliários, consagrado expressamente no documento "Objectives and Principies of Securities Regulation" elaborado pela International Organization of Securities Commissions (IOSCO).

44.ª Qualquer quebra do segredo profissional da CMVM deva ser especial e cuidadosamente ponderada, na medida em que, para além de colocar em causa a confiança das entidades supervisionadas, pode também limitar a própria cooperação de entidades congéneres estrangeiras com as autoridades de supervisão nacionais e contribuir para a menor eficácia da supervisão.

45.ª E tal cuidado deve ser redobrado quando, como no caso em apreço, a informação requerida diz respeito a uma entidade com atividade transnacional e no âmbito da ação de supervisão presencial realizada pela CMVM à AA, S.A. - Sucursal em Portugal, foram transmitidas informações por uma autoridade de supervisão estrangeira, pelo que a irrestrita quebra do segredo profissional da CMVM poderá afetar igualmente o segredo profissional daquela autoridade.

46.ª Ao omitir a ponderação dos concretos interesses subjacentes ao segredo profissional da CMVM que no caso se façam sentir, interpretou e aplicou de forma errada o disposto no artigo 354.° do CdVM e do artigo 14.° da LQER.

47.ª A menção avulsa à abstrata proteção dos consumidores (e eventualmente da economia global) demonstra que a Decisão Sumária não avalia no seu iter argumentativo que a ponderação de interesses a que alude o artigo 135.°, n.° 3, do CPP é uma ponderação concreta.

48.ª A audição da CMVM é condição essencial para que se possa proceder à mencionada ponderação concreta - conhecendo o conteúdo das informações e documentos a que teve acesso no exercício da sua atividade de supervisão, está em melhores condições que contribuir com elementos necessários para a realização do juízo de ponderação ínsito no artigo 135.º, n.º 3, do CPP.

49ª Sob pena de os interesses que a consagração do segredo profissional da CMVM visa salvaguardar não serem objeto de ponderação concreta por parte do Tribunal superior, por via da não admissão de intervenção de qualquer sujeito (nem dos titulares primários da informação nem da autoridade administrativa que acede à informação) no incidente de quebra do segredo profissional, que não a entidade requerente e interessada na quebra do segredo.

50.ª Ora, o entendimento sufragado pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator, segundo o qual se veda a possibilidade de participar no incidente de quebra do segredo profissional e, simultaneamente, a possibilidade de recorrer do acórdão que decidiu a quebra à revelia da entidade escusante não poderá deixar de se reputar inconstitucional.

II.B.2 - Das inconstitucionalidades da interpretação sufragada na Decisão Sumária sub Júdice

51.ª Ao não assegurar a intervenção da CMVM (e não lhe reconhecendo legitimidade) em sede de ponderação dos interesses em conflito no incidente de quebra do segredo profissional, o Tribunal não deu cumprimento ao artigo 20.º da CRP nas suas duas dimensões: (a) a de um direito de ação ou de defesa e (b) a de um direito a um processo equitativo.

52.ª Ou seja, se no regime do artigo 401.°, n.° 1, alínea d), do CPP inexiste uma intenção reguladora específica quanto aos sujeitos processuais do incidente de quebra do segredo profissional, previsto no artigo 135.° do CPP, nunca poderia a teleologia imanente à lei ser a de sustentar a falta de legitimidade do requerido e recorrente naquele incidente, in casu, a CMVM.

53ª Perante eventuais dúvidas acerca da interpretação de certa norma com reflexo em matéria de direitos, liberdades e garantias (in casu, o direito de acesso ao direito e aos Tribunais, previsto no artigo 20.°, n.º 1 da CRP e o princípio da igualdade de armas decorrente do direito ao processo equitativo, previsto no artigo 20.°, n.° 4 da CRP), deve o intérprete/aplicador convocar a aplicação do conjunto de regras e princípios de interpretação próprias, entre os quais releva, desde logo, o princípio da máxima efetividade ou da interpretação efetiva e o princípio da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais.

54.ª Por sua vez, o cumprimento do princípio da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais significaria que a efetivação do direito de acesso ao direito e aos tribunais e do princípio da igualdade de armas decorrente do direito ao processo equitativo sempre seria independente de intervenção legislativa concretizadora, existindo, por isso, tal aplicabilidade qualquer que fosse a posição interpretativa adotada em relação ao artigo 401.°, n.° 1, alínea d), do CPP (valendo inclusivamente sem lei).

55.ª Com base nestes princípios, ficaria vedada a esse Venerando Tribunal outra interpretação que não fosse a de garantir à CMVM o exercício do seu direito de acesso ao direito e aos tribunais (de que o direito ao recurso é um corolário) bem como a igualdade de armas no processo/incidente em que é requerida e recorrente, já que se trata da interpretação que reconhece maior eficácia aos direitos fundamentais.

56.ª A eventual decisão de negar in casu a legitimidade da CMVM equivale a negar na prática o acesso ao recurso por parte do requerido no âmbito do incidente de levantamento de segredo profissional, quando inexiste norma específica que estabeleça a irrecorribilidade daquelas decisões e vigora em sede de processo penal o princípio da recorribilidade das decisões (artigo 399.° do CPP).

57.ª Tendo em conta que o direito ao recurso é um corolário do direito de acesso ao direito e aos tribunais (consagrado no artigo 20.° da CRP), sobretudo quando estejam em causa decisões judiciais que afetem direitos fundamentais, a suscetibilidade de recurso destas decisões apenas por lei pode ser restringida (princípio da reserva de lei, ínsito nos n.ºs 2 e 3, do artigo 18.º da CRP).

58.ª Donde, em face do exposto, suscitam-se dois problemas atinentes à conformidade constitucional da interpretação sustentada na Decisão Sumária proferida: (i) inconstitucionalidade da interpretação da norma contida no artigo 401.°, n.º 1, alínea d), do CPP no sentido de existir uma irrecorribilidade implícita para o requerido no incidente de quebra do segredo profissional e (ii) inconstitucionalidade da interpretação da norma contida no artigo 401.°, n.° 1, alínea d), do CPP no sentido de não ter o requerido no incidente de quebra do segredo profissional legitimidade para recorrer da decisão de quebra.

59.ª (i) A norma do artigo 401.º n.° 1 alínea d) do CPP, na interpretação acabada de referir será inconstitucional na medida em que consagra implicitamente a inadmissibilidade do recurso no âmbito do incidente de levantamento de segredo profissional previsto no artigo 135.°, n.° 3, do CPP, para o requerido, sem que exista uma norma legal que consagre expressamente tal irrecorribilidade e atento o princípio geral da recorribilidade previsto no artigo 399.º do CPP.

60.ª Assim, para os devidos efeitos legais, desde já se invoca a inconstitucionalidade da norma contida na alínea d) do n.º 1 do artigo 401.º do CPP, na interpretação segundo a qual ocorre proibição implícita, para o requerido e recorrente, no âmbito do incidente de levantamento de segredo profissional, de lançar mão do recurso da decisão de proferida pelo Tribunal da Relação de levantamento do segredo profissional, ao abrigo do artigo 135.°, n.º 3, do CPP, por violação do disposto no artigo 18.°, n.ºs 2 e 3, conjugado com o consignado no artigo 20.°, ambos da CRP.

61.º

(ii) Acresce que, a norma constante do artigo 401.°, n.° 1, alínea d), do CPP, interpretada no sentido de que o requerido e recorrente no incidente de levantamento/quebra do segredo profissional previsto no artigo 135.°, n.ºs 3 e 4 do CPP, ao contrário do requerente e recorrido (Ministério Público), não tem legitimidade para interpor recurso da decisão que quebrou o segredo profissional a que se encontra sujeito o requerido, é inconstitucional por violação do artigo 20.°, n.ºs 1 e 4, da CRP, inconstitucionalidade que, para os devidos efeitos legais, se invoca.

II.C - Das inconstitucionalidades arguidas

62.ª Por último, defende-se na Decisão Sumária que a impossibilidade de recurso no âmbito do incidente de quebra de sigilo pela entidade convocada a prestar determinadas informações e uma vez reconhecida a legitimidade da sua escusa, além de estar de acordo com as regras gerais processuais sobre a legitimidade e o interesse em agir, de modo algum configura um injustificado, intolerável, irrazoável ou arbitrário regime discriminatório de acesso ao direito previsto no artigo 20.°, n.ºs 1 e 4, da CRP e, em detalhe, do acesso ao recurso.

63.ª Extrai-se do argumento do Exmo. Senhor Conselheiro Relator que i) nem todos os atos são recorríveis e que ii) a garantia de do duplo grau de jurisdição só existe quanto a situações que contendam com a privação, limitação ou restrição de direitos dos sujeitos processuais.

64ª A afirmação da Decisão Sumária de que "a garantia do duplo grau de jurisdição no âmbito do processo penal releva d[c] alguma situação que contenda [com a] privação, limitação ou restrição de direitos dos sujeitos processuais, podendo admitir-se que a faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e relativamente a certos atos judiciais", não atende, por um lado, ao facto de, in casu, inexistir norma legal que consagre expressamente a irrecorribilidade e, por outro lado, na natureza do segredo profissional nem nos direitos e bens jurídicos que o mesmo pretende salvaguardar.

65.ª Pelo que, o entendimento da existência de uma irrecorribilidade implícita sempre seria inadmissível à luz do disposto no artigo 18.° n.ºs 2 e 3, conjugado com o consignado no artigo 20.°, ambos da CRP.

66ª Assim, para os devidos efeitos legais, se invoca a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 3 do artigo 135.° do CPP, conjugado com o disposto no artigo 399.°, e 432.°, n.º 1, alínea a) do CPP, na interpretação segundo a qual ocorre proibição implícita de recurso da decisão proferida pelo tribunal superior, que decide o incidente de quebra do segredo profissional, por violação do disposto no artigo 18.°, n.ºs 2 e 3, conjugado com o consignado no artigo 20.°, ambos da CRP.

67ª Considerando que deve existir um duplo grau de jurisdição "relativamente às decisões jurisdicionais que imponham restrições a direitos, liberdades e garantias e direitos fundamentais de natureza análoga", não pode proceder o fundamento invocado na Decisão Sumária proferida, devendo o recurso apresentado pela CMVM do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa ser admitido e apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

68.ª Para além das demais inconstitucionalidades já invocadas previamente nos autos - e reiteradas na presente Reclamação (ou seja, as interpretações do artigo 135.° do CPP, conjugado com o disposto no artigo 399.°, e 432.°, n.° 1, alínea a) do CPP, no sentido de: (a) a decisão do tribunal superior é irrecorrível, (b) o tribunal superior pode quebrar o dever de segredo sem ouvir o titular desse dever quanto aos pressupostos de que depende a quebra do mesmo, (c) não se assegura o contraditório e simultaneamente não se admite recurso da decisão; (d) ocorre proibição implícita de recurso) - entende-se que não poderá deixar de se invocar a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 135.°, n.ºs 3 e 4, do CPP, no sentido ora vindo de expor.

69.ª Pelo que, para os devidos efeitos legais, se invoca a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 4 do artigo 135.° do CPP, conjugado com o disposto no artigo 399.°, e 432.°, n.º 1, alínea a) do CPP, na interpretação segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1ª instância, uma entidade não dotada de organismo representativo da profissão não pode intervir, para tutela dos direitos salvaguardados com a consagração do segredo profissional dessa entidade (designadamente, do direito à reserva da intimidade da vida privada), no processo/incidente de quebra de segredo profissional em que é requerida, nem que a decisão proferida é suscetível de recurso, por violação do disposto no artigo 18.°, n.ºs 2 e 3, da CRP.

70.ª Acresce que o caso sub judice - atentas as irregularidades arguidas de que padece o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa e para cuja apreciação é convocado este Venerando Tribunal - é prova manifesta de que uma decisão de quebra de segredo proferida pelo tribunal da Relação tem de ser recorrível sob pena de uma regulação discriminatória do sistema recursivo ou de uma excessiva limitação do direito ao recurso, violadoras do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.°, n.ºs 1 e 4 da CRP.

71.ª Isto é, afigura-se completamente inadmissível que o legislador, de caso pensado, tenha optado (1) pela desnecessidade de se notificar uma decisão de quebra do segredo profissional à entidade escusante, (2) pela desnecessidade de que essa decisão seja precedida da participação da entidade escusante e do exercício dos seus de direitos de defesa e do contraditório e, ainda, (3) pela desnecessidade de se garantir a possibilidade de recurso de uma decisão proferida nesses termos.

72.ª Para os devidos efeitos legais, reitera-se a invocação da inconstitucionalidade das normas contidas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.° do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou  documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1.ª instância, o tribunal superior pode quebrar o dever de segredo sem ouvir o titular desse dever quanto aos pressupostos de que depende a quebra do mesmo, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.°, n.ºs 1 e 4 da CRP.

73.ª  Mais se reiterando, a invocação da inconstitucionalidade da norma contida no n.° 4 do artigo 135.° do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1.ª instância, uma entidade não dotada de  organismo representativo da profissão não pode intervir, para tutela dos direitos              salvaguardados  com   a  consagração  do   segredo  profissional  dessa entidade (designadamente, do direito à reserva da intimidade da vida privada), no processo/incidente de quebra de segredo profissional em que é requerida, nem que a decisão proferida é suscetível de recurso, por violação do disposto no artigo 18.°, n.ºs 2 e 3, da CRP.

74.ª Por tudo o exposto, deve o recurso interposto pela CMVM ser admitido de acordo com o disposto nos artigos 399.° e 432.°, n.° 1, alínea a), do CPP.

A Sra. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se “reiterando” o parecer de fls 137 e “acompanhando os fundamentos da “decisão sumária”.

                                            *

2. - As conclusões do recurso que foram transcritas na “decisão sumária” e sobre as quais incidiu a argumentação feita foram as seguintes (transcrição):
1. O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, por Acórdão proferido no dia 07.02.2019 (de cuja cópia foi a CMVM notificada por ofício datado de 29.03.2019), a quebra do dever de segredo profissional da CMVM nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, determinando em consequência a dispensa da observância de tal segredo. Não se conformando com tal decisão, vem a CMVM, nos termos do disposto nos artigos 399.º, 401.º, n.º 1, alínea d), 411.º e 412.º, todos do CPP, apresentar recurso do referido Acórdão.
2. O Tribunal da Relação funcionou como primeira instância de decisão quanto à justificação da quebra do segredo profissional da CMVM, pondo termo ao incidente.
3. - Ora, não podendo ser atribuída ao objeto do presente processo outra qualificação que não seja a de uma decisão proferida em primeira instância, a mesma terá de ser obviamente considerada recorrível nos termos do disposto no artigo 399.º e 432.º, n.º 1, alínea a) do CPP.
4. De outro modo, as normas contidas nos n.os 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal são inconstitucionais na interpretação segundo a qual a decisão do Tribunal da Relação que quebra o segredo profissional invocado nos termos do disposto no artigo 135.º é irrecorrível, por violação do disposto no artigo 20.º, n.os 1 e 4 da CRP.
5. Mais se invocando a inconstitucionalidade, para os devidos efeitos legais, da norma contida no n.º 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1.ª instância, o tribunal superior pode não permitir a uma entidade não dotada de organismo representativo da profissão o exercício do direito ao contraditório e os direitos de defesa constitucionalmente garantidos no processo/incidente de quebra de segredo profissional em que é requerida, e simultaneamente não admitir o recurso da decisão proferida, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP.
6. O prazo de que a CMVM dispõe para arguição de irregularidade do Acórdão, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 123.º, n.º 1 e 410.º, n.º 3 do CPP, quanto muito, apenas se iniciou com a notificação de cópia do Acórdão.
7. Só quando o sujeito processual tem conhecimento efetivo da decisão final proferida, que determinou a quebra do mencionado segredo, é que está em condições de poder apreciar se e com que fundamentos pretende reagir à decisão proferida, quer em sede de arguição de invalidades, quer em sede de recurso
8. Assim, invoca-se a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 135.º, n.º 3, do CPP na interpretação segundo a qual, no âmbito do incidente de quebra do segredo profissional, se considera que o prazo para arguição de invalidades ou para interposição de recuso começa a correr sem que o mesmo tenha sido previamente objeto de notificação ao titular do dever de segredo, parte escusante no incidente, por violação dos artigos 2.º e 20.º, n.os 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.
9. Por ofício datado de 08.10.2018 (Ref.ª 7078/18.9T9LSB), foi a CMVM notificada pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa para, no âmbito da instrução da carta rogatória recebida das autoridades judiciárias polacas com o n.º 1090/2018, remeter os seguintes esclarecimentos: (a)“se a sociedade “AA S.A. Sucursal em Portugal” está autorizada a exercer, em Portugal, a intermediação financeira relacionada com a transmissão de valores mobiliários;” (b) “se receberam alguma queixa/denúncia quanto à atividade de “AA S.A. Sucursal em Portugal” (na afirmativa, deverá ser enviada cópia da respetiva queixa e despacho que pôs termo ao processo instaurado)”; e (c) “se a “AA S.A. Sucursal em Portugal” foi alvo de alguma inspeção por parte da CMVM (na afirmativa, deverá ser enviado cópia do relatório de inspeção)”, tendo invocado, no ofício de resposta à notificação (ofício n.º SAI-OFIC/74510/CAJ/DI/2018/28713, de 23.10.2018), segredo profissional, nos termos do disposto no artigo 354.º do Código dos Valores Mobiliários (CdVM).
10. Por ofício datado de 19.11.2018 (Ref.ª 7078/18.9T9LSB), foi a CMVM novamente notificada pelo DIAP, com referência ao ofício anteriormente enviado a 08.10.2018, tendo reiterado a invocação do segredo profissional no ofício de resposta (ofício n.º SAI-OFIC/74510/CAJ/DI/2018/33675, de 05.12.2018).
11. Sucede que, após a invocação do segredo profissional perante o DIAP, o mesmo deu origem a um incidente de quebra de segredo profissional, nos termos do disposto no artigo 135.º do CPP, sem que a CMVM tenha sido notificada de qualquer momento da respetiva tramitação processual: i) a CMVM não tomou conhecimento de que a quebra do segredo foi requerida; ii) a CMVM não foi notificada para se pronunciar sobre o pedido de quebra; e iii) a CMVM não foi notificada do Acórdão que quebrou o segredo.
12. O disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP institui um regime de quebra de segredo profissional que, como já salientou o Supremo Tribunal de Justiça, apresenta “dois momentos de tramitação que respondem a duas questões distintas”: um primeiro momento, que versa sobre a legitimidade ou ilegitimidade da escusa; um segundo momento, que versa sobre a justificação da quebra do segredo profissional (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.10.2014, processo n.º 1233/13.5YRLSB.S1).
13.  Não basta que o sujeito obrigado ao segredo seja ouvido no primeiro momento da tramitação, já que cada momento de tramitação responde a questões distintas: uma coisa é participar na invocação e averiguação da legitimidade da escusa com base em segredo profissional (primeiro momento); outra é participar no processo de ponderação dos interesses em confronto para efeitos da quebra do segredo profissional (segundo momento).
14. Tratando-se de “dois momentos de tramitação que respondem a duas questões distintas”, o titular dos interesses em causa (nomeadamente o sujeito obrigado ao segredo profissional que invocou a escusa) tem o direito de participar em qualquer dos momentos do processo decisório, quer (naturalmente) invocando a escusa e sustentando a sua legitimidade quer, posteriormente, pronunciando-se sobre a verificação (ou não) dos pressupostos de que depende a quebra do segredo.
15. É evidente que quem invoca escusa com base em segredo profissional deve participar no processo de ponderação dos interesses em conflito, já que, devendo tal ponderação ser feita em concreto, é ele quem, enquanto sujeito do dever, está em melhores condições para expor perante o tribunal superior as questões em causa – não se podendo aceitar que a decisão de ponderação seja orientada apenas pelos fundamentos de quem requer a quebra do segredo.
16. No caso em apreço, uma vez que não existe um organismo representativo da profissão com poderes de tutela do segredo profissional da CMVM, é evidente que a aplicação (com as devidas adaptações) do artigo 135.º do CPP ao incidente de quebra de segredo profissional da CMVM, impõe que a CMVM seja ouvida, primeiro, na apreciação da legitimidade da sua escusa e, depois, na apreciação da justificação para a (eventual) quebra de segredo.
17. Com efeito, salvo o devido respeito, o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação violou o direito de acesso aos tribunais e ao direito, na sua dupla vertente de direito de defesa e de direito a um processo equitativo, constitucionalmente consagrado no artigo 20.º, n.os 1 e 4 da CRP, uma vez que, sendo a CMVM escusante e destinatária da decisão proferida pelo Tribunal a quo, apenas teve conhecimento do processo com a notificação de cópia do referido Acórdão, efetuada pelo Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, não tendo tido oportunidade de se pronunciar quanto à quebra do segredo profissional a que se encontra sujeita.
18. O direito de acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo constitucionalmente consagrados impõem que fosse dada à CMVM a oportunidade de se pronunciar, de invocar as suas razões de facto e de direito, de poder influenciar a decisão da causa quanto à justificação para a quebra do segredo profissional, dando cumprimento ao princípio do contraditório, que constitui uma decorrência do referido direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo, bem como à proibição da prolação de decisões surpresa.
19. No âmbito próprio do processo penal, onde ocorre o presente incidente, o princípio do contraditório vigora ubiquamente e não se limita aos sujeitos processuais (Tribunal, Arguido e seu Defensor, Ministério Público e Assistente), antes se projetando em qualquer participante ou interveniente no processo.
20. Mais, a qualificação da quebra de segredo profissional como incidente não pode deixar de implicar a convocação das normas processuais previstas, no CPC, para os incidentes da instância, por via do disposto no artigo 4.º do CPP.
21. Ora, independentemente da consagração de regras especiais para o incidente de quebra do segredo profissional, maxime no artigo 135.º do CPP (aplicável ex vi artigo 417.º do CPC), a verdade é que é transversal à regulação dos incidentes, consignada nos artigos 292.º e ss. do CPC, a previsão de audiência do Requerido, apanágio do princípio do contraditório.
22. Ao que acresce que, além do princípio do contraditório, o Acórdão recorrido não deu cumprimento ao princípio da igualdade de armas, enquanto decorrência do processo equitativo, encontrando respaldo no artigo 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 1, ambos da CRP, e nos artigos 283.º, n.º 3, alínea d), e n.º 7, e 315.º, n.º 4, do CPP, não podendo deixar de ter aplicação relativamente aos demais intervenientes processuais, nomeadamente à entidade escusante no âmbito do incidente de quebra do segredo profissional relativamente à entidade que promove o respetivo incidente.
23. O direito de acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo constitucionalmente consagrados postulam que tivesse sido dada à CMVM a oportunidade de se pronunciar, de invocar as suas razões de facto e de direito, de poder influenciar a decisão da causa quanto à justificação para a quebra do segredo profissional, dando cumprimento ao princípio do contraditório, que constitui uma decorrência do referido direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo, bem como à proibição da prolação de decisões surpresa.
24. A omissão da notificação da CMVM para se pronunciar quanto ao pedido de quebra do segredo profissional que terá sido suscitado pelo Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, por impulso da promoção do Ministério Público, é contrária ao disposto nos artigos 20.º, n.os 1 e 4 da CRP e no artigo 3.º, n.os 1 e 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 4.º ao processo penal, o que acarreta a irregularidade da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa por preterição do contraditório da entidade escusante, nos termos do artigo 123.º do CPP e por violação do direito de acesso aos tribunais.
25. Além do mais, não se poderá deixar de invocar a inconstitucionalidade das normas contidas nos n.os 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante a autoridade judiciária, o tribunal superior pode quebrar o dever de segredo sem ouvir o titular desse dever quanto aos pressupostos de que depende a quebra do mesmo, por violação do artigo 20.º, n.os 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.
26. O Tribunal da Relação de Lisboa, na sequência da prolação do Acórdão que pôs termo ao incidente de quebra do sigilo profissional, deveria ter notificado a CMVM do Acórdão proferido, tanto mais quanto, é certo, a CMVM é um interveniente processual afetado pelo referido incidente, tendo sido requerida a informação e tendo a CMVM invocado o segredo profissional.
27. Sendo o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa uma decisão suscetível de recurso, é a partir da notificação do mesmo aos sujeitos processuais afetados que se estabelece o termo inicial do prazo de recurso (cfr. artigo 411.º, n.º 1, alínea a)), cujo decurso extingue o direito de praticar o ato, por caducidade do direito de recorrer, nos termos do disposto no artigo 139.º, n.os 1 e 3 do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP.
28. A comunicação do termo inicial de um prazo legalmente estipulado sob pena de caducidade do direito de recorrer deve revestir a forma de notificação, nos termos do disposto no artigo 112.º, n.º 3, alínea a) do CPP.
29. Por não ter comunicado, sob a forma de notificação, o Acórdão recorrido, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 112.º, n.º 3, alínea a) do CPP, o que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 123.º do CPP, configura uma irregularidade.
30. Caso se entenda que da interpretação extensiva e teleológica dos preceitos que impõem a notificação de certos em processo penal ou da norma contida no artigo 112.º, n.º 3, alínea a) do CPP não resulta a obrigatoriedade de se comunicar, sob a forma de notificação, o Acórdão sub judice – o que não se concede e só se pondera por mera hipótese de raciocínio – então sempre estaremos necessariamente perante uma lacuna de previsão no CPP, a qual será integrada pela aplicação analógica das normas do processo penal e, na impossibilidade dessa aplicação, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal, em conformidade com o plasmado no artigo 4.º do CPP.
31. Quer se entenda possível a aplicação analógica das normas do processo penal ao presente caso, quer se defenda, por impossibilidade daquela aplicação, a aplicação subsidiária do processo civil, sempre teremos de concluir pela necessidade da notificação do acórdão recorrido à CMVM.
32. A omissão de notificação à CMVM do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa configura uma irregularidade, a qual, in casu, para além de determinar a invalidade do ato a que se refere afeta igualmente os termos subsequentes dos atos absolutamente dependentes da nulidade cometida (artigo 123.º, n.º 1 CPP), implicando: (i) a necessidade de suprir a nulidade com a prática do ato omitido (ou seja, a notificação do Acórdão à CMVM por parte do Tribunal da Relação de Lisboa); (ii) a conclusão que o prazo para a arguição de irregularidades processuais e para eventual recurso só começa a correr com a notificação para qualquer termo do processo, visto que a CMVM nunca havia sido chamada a participar no mesmo (nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 123.º do CPP)
33. A atribuição de poderes de recolha de informação e a institucionalização de procedimentos tendentes a fomentar a participação das entidades supervisionadas, visando eliminar assimetrias de informação existentes entre regulador e regulado, têm, em regra, como pedra de toque a imposição às entidades administrativas independentes de um dever de segredo sobre os factos e elementos de que tenham conhecimento no exercício das suas funções.
34. O reconhecimento de que sobre as entidades administrativas independentes deve impender um dever de segredo levou à sua consagração expressa no artigo 4.º da LQER que consagra um dever de segredo (ou de sigilo) profissional que se impõe aos titulares dos órgãos das entidades reguladoras, ao seu pessoal, aos respetivos prestadores de serviço e colaboradores, relativamente a todos os assuntos que lhe sejam confiados ou de que tenham conhecimento por causa do exercício das suas funções, e que se aplica transversalmente a todas as entidades administrativas independentes, qualquer que seja a área da economia objeto de regulação.
35. No que à CMVM diz respeito tal dever de segredo já se encontrava (e encontra) consagrado no artigo 354.º do CdVM, podendo-se afirmar que o dever de segredo profissional da CMVM encontra no direito interno português uma dupla consagração: no artigo 14.º da LQER e no artigo 354.º do CdVM.
36. Acresce que a imposição à CMVM, enquanto entidade de supervisão do mercado de instrumentos financeiros, de um dever de segredo profissional assume-se também como a transposição para o direito interno português de várias normas que, no quadro da regulação europeia do mercado de instrumentos financeiros, impõem aos Estados-membros da União Europeia que as respetivas autoridades de supervisão fiquem sujeitas a uma obrigação de guardar segredo profissional (cf. art. 22.º da Diretiva 2003/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Novembro de 2003, art. 76.º da Diretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, art. 25.º da Diretiva 2004/109/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Dezembro de 2004, art. 27.º do Regulamento (EU) n.º 596/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de abril de 2014).
37. Tendo em conta as atribuições de supervisão da CMVM (cf. artigo 353.º do Cód.VM) e as entidades sujeitas à sua supervisão (cf. artigo 359.º do Cód.VM), tal segredo profissional abrange factos ou elementos que se encontram sujeitos a diferentes tipos de segredo.
38. Desde logo, o segredo profissional da CMVM pode abranger factos ou elementos que se encontram sujeitos a segredo bancário (o qual, nos termos do disposto nos artigos 361.º, n.º 2, al. a) do Cód.VM e 79.º, n.º 2, al. b), do RGICSF, não é oponível à CMVM).
39. Mas o segredo profissional da CMVM pode também abranger factos ou elementos que, não estando sujeitos a segredo bancário, ainda assim se encontram sujeitos a segredo comercial, industrial ou da vida interna das empresas ou a segredo de supervisão em sentido estrito.
40. O segredo de supervisão em sentido estrito inclui, nomeadamente, os métodos de supervisão aplicados pelas autoridades competentes, as comunicações e as transmissões de informações entre as diferentes autoridades competentes, bem como entre estas e as entidades sujeitas à supervisão, e qualquer outra informação não pública sobre o estado dos mercados sujeitos à supervisão e as transações nele realizadas.
41. O que significa que o segredo profissional da CMVM consagrado no artigo 354.º do CdVM e no artigo 14.º da LQER não se reconduz nem se confunde com o segredo bancário previsto no artigo 78.º do RGICSF, antes deste sendo material, estrutural e funcionalmente bem distinto, e que, consequentemente, os interesses a ponderar no caso de quebra do segredo profissional da CMVM não são (apenas) proteção destinada a evitar prejuízos comerciais para as entidades supervisionadas.
42. A imposição às entidades de supervisão do mercado de instrumentos financeiros de um dever de segredo profissional apresenta, na sua essência, um duplo fundamento: de um lado, pretende-se assegurar a proteção dos direitos e interesses legítimos das entidades sujeitas a supervisão e demais pessoas que com elas se relacionam; do outro, visa-se garantir a proteção da eficácia da própria supervisão.
43. A necessidade de consagrar um dever de segredo profissional para proteção dos direitos e interesses legítimos (seja a reserva da intimidade da vida privada seja os segredos comerciais, industriais ou da vida interna das empresas) das entidades sujeitas a supervisão reside na circunstância de estas se encontrarem sujeitas a um dever de colaboração com o supervisor, estando obrigadas a revelar a este um conjunto de informações relativas à sua atividade que, por natureza, têm carácter confidencial e cuja reserva deve ser salvaguardada.
44. Mas esta necessidade de proteção de direitos e interesses legítimos estende-se também a todos aqueles que, de alguma forma, se relacionam – direta ou indiretamente – com a autoridade de supervisão: repare-se que na atividade de supervisão a CMVM obtém elementos de pessoas que não são suas supervisionadas (é o caso, desde logo, dos clientes das entidades supervisionadas, mas também de outras entidades que com elas se relacionam, como colaboradores ou prestadores de serviços)
45. Por outro lado, a salvaguarda do segredo profissional (das informações recolhidas pelo supervisor) é fundamental para assegurar a eficácia da supervisão.
46. Desde logo porque se as entidades supervisionadas não tiverem, do lado do supervisor, a garantia de que a informação que lhe fornecem em cumprimento do dever de colaboração se manterá confidencial e só será utilizada no âmbito das competências específicas do supervisor, tenderão a omitir a prestação de informação ao regulador, colocando em causa a própria eficácia da supervisão.
47. Neste sentido, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a propósito do artigo 54.º da Diretiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de Abril de 2004 (que, repita-se, o artigo 354.º do Cód.VM transpõe para a ordem jurídica interna), referiu já precisamente que [o] funcionamento eficaz do sistema de controlo da atividade das empresas de investimento, baseado numa supervisão exercida no interior de um Estado-Membro e na troca de informações entre as autoridades competentes de vários Estados-Membros, tal como foi sucintamente descrito nos números anteriores, requer que tanto as empresas controladas como as autoridades competentes possam estar seguras de que as informações confidenciais fornecidas conservarão, em princípio, o seu caráter confidencial (v., por analogia, acórdão Hillenius, 110/84, EU:C:1985:495, n.° 27)” (Acórdão do TJUE proferido no Processo C-140/13).
48. Tendo acrescentado que a falta dessa confiança pode comprometer o processamento harmonioso da transmissão das informações confidenciais necessárias para o exercício da atividade de supervisão, concluindo que [p]or conseguinte, para proteger não apenas as empresas diretamente afetadas mas também o funcionamento normal dos mercados de instrumentos financeiros da União, o artigo 54.°, n.° 1, da Diretiva 2004/39 impõe, como regra geral, a obrigação de guardar o segredo profissional”.
49. Em síntese: o segredo profissional da CMVM, visando proteger a eficácia da supervisão dos mercados de instrumentos financeiros, tem um fundamento de ordem pública (nacional e supranacional), que radica na essencialidade dos sistemas de supervisão, que deve ser ponderado no momento de decidir a sua quebra, sendo que o tribunal a quo, ao omitir a ponderação dos concretos interesses subjacentes ao segredo profissional da CMVM que no caso se façam sentir, interpretou e aplicou de forma errada o disposto no artigo 354.º do CdVM e do artigo 14.º da LQER.
50. Com efeito, a adequada interpretação e aplicação daquelas normas impunha que o tribunal a quo tivesse chegado à conclusão que o segredo profissional da CMVM tem características materiais, estruturais e funcionais próprias e específicas e engloba tanto segredo bancário, como segredo comercial, industrial e da vida interna das empresas ou ainda e em qualquer caso e sobretudo segredo da própria autoridade de supervisão, protegendo não só os direitos e interesses legítimos das entidades supervisionadas e das pessoas que com elas se relacionam, mas também a própria eficácia da supervisão (nacional e internacional).
51. Nos termos do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, a decisão de quebra de segredo profissional exige que a mesma “se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante”, o que impõe ao tribunal superior a realização de uma “atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.02.2015, Processo 60/10.6TAMGR-A.C1).
52. O tribunal tem, assim, de proceder a um juízo que consiste em avaliar se, tendo presente os documentos sujeitos a segredo profissional cuja quebra é requerida, os interesses subjacentes à investigação prevalecem sobre os interesses protegidos pelo segredo, à luz, nomeadamente, (i) da imprescindibilidade daqueles documentos para a descoberta da verdade, (ii) da gravidade do crime/importância da causa e (iii) da proteção dos bens jurídicos em causa.
53. Nos termos conjugados do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, no artigo 354.º do CdVM e no artigo 14.º da LQER, o Tribunal a quo devia ter ponderado como interesses protegidos pelo segredo profissional da CMVM (e, consequentemente, afetados pela respetiva quebra) (i) os direitos e interesses legítimos das entidades sujeitas a supervisão da CMVM, (ii) os direitos e interesses legítimos das entidades que se relacionam com entidades sujeitas a supervisão da CMVM, e (iii) a proteção da eficácia da supervisão.
54. A inadequada configuração e caracterização do segredo profissional da CMVM a que procedeu o acórdão recorrido (porquanto omitiu a identificação e ponderação dos interesses subjacentes a esse segredo) impossibilitou que, no juízo de ponderação nele levado a efeito, tivessem sido considerados todos os interesses cuja convocação se impunha, nos termos anteriormente referidos, levando a que o acórdão apresente uma errada interpretação e aplicação do artigo 135.º, n.º 3, do CPP conjugado com o artigo 354.º do CdVM e com o artigo 14.º da LQER.
55. Em segundo lugar, o tribunal a quo Tribunal a quo não procedeu corretamente ao juízo concreto de ponderação dos interesses, o que também constitui erro de direito na interpretação e aplicação do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, que deve determinar a revogação do acórdão recorrido.
56. Depois de colocar, erradamente, a identificação dos fatores a ponderar, o tribunal não curou de analisar a necessidade e adequação dos documentos solicitados à CMVM para a investigação no âmbito do inquérito em causa, limitando-se a, sem qualquer fundamentação, afirmar a sua relevância e indispensabilidade: em momento algum o Tribunal a quo explica em que medida a documentação solicitada à CMVM é apta a alcançar o mencionado objetivo de investigação.
57. Adicionalmente, uma vez que a quebra do segredo “apenas se justifica se for necessária”, impunha-se ao Tribunal a quo a ponderação em concreto da adequação e necessidade dos documentos para instrução da carta rogatória – o que não se basta com a invocação por parte do tribunal a quo da relevância dos documentos solicitados à CMVM, sem qualquer fundamentação.
58. Deste modo, ao realizar um juízo que não avalia a adequação e a necessidade da quebra em função do interesse probatório do Ministério Público, nem valora corretamente o critério de indispensabilidade dos documentos, mas que se basta, antes, com um juízo de “relevância” ou de “importância” não fundamentado, o Tribunal a quo cometeu erro de direito na interpretação do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP.
59. Para além de não ter promovido corretamente um juízo sobre a indispensabilidade dos documentos solicitados para o interesse probatório do Ministério Público, o Tribunal a quo não promoveu a limitação da “agressão” dos interesses protegidos pelo segredo profissional da CMVM ao mínimo indispensável à realização de tal interesse (nomeadamente circunscrevendo o pedido de relatórios ao período temporal relevante para a investigação), violando o princípio da proibição do excesso.
60. Em síntese: acórdão recorrido encontra-se ferido de erro de direito, na medida em que interpretou e aplicou o princípio da prevalência do interesse preponderante constante do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, de forma errada, ao (i) não ter em conta os efetivos interesses em causa nos presentes autos e ao (ii) não promover corretamente o juízo concreto de adequação e necessidade da documentação para os fins probatórios Ministério Público, nomeadamente quanto à apreciação da imprescindibilidade da mesma para efeitos de prova dos factos especificamente em causa, e sem limitar a quebra ao mínimo indispensável (em violação do princípio da proibição do excesso).
61. Decidindo-se pela quebra do segredo profissional da CMVM, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, o acesso aos factos ou elementos sujeitos a segredo também deverá ser feito de acordo com o princípio da proporcionalidade (ou seja, limitado ao que seja estritamente necessário, de forma adequada e proporcional).
62. Ou seja, deverá ser permitido o acesso apenas à informação contida na documentação que seja imprescindível para a prossecução da finalidade probatória do Ministério Público e há que ponderar os diversos meios ou formas de acesso possíveis, de modo a não pôr em causa o núcleo duro do bem jurídico que o segredo profissional da CMVM visa proteger.
63. Sendo certo que o Ministério Público não transmitiu a esta Comissão nenhuma autorização para que fossem solicitadas as autorizações escritas dos interessados para a transmissão ao Ministério Público das reclamações apresentadas junto da CMVM, tendo ao invés optado por promover o presente incidente de quebra do segredo profissional da CMVM.
64. Pelo que, se deverá entender que o Ministério Público, pelo menos no que às reclamações diz respeito, dispunha de um meio alternativo à quebra do segredo profissional da CMVM, não sendo, consequentemente, justificada a quebra.
65. Ora, o Tribunal a quo, tendo decidido pela prevalência do interesse da administração da justiça e do acesso à prova sobre o segredo profissional da CMVM, determinou o acesso à totalidade dos documentos solicitados pelo Ministério Público, não tendo tido em conta nem ponderado o âmbito desse acesso de acordo com o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, n.º 2, 2.ª parte da CRP, de forma a circunscrever o acesso aos documentos ao estritamente necessário, salvaguardando, na medida do possível, o referido segredo profissional.
66. Ainda que o Tribunal a quo entendesse, por qualquer razão, que não deveria dar a conhecer os presentes autos à CMVM ou dar-lhe direito ao contraditório, então deveria ter realizado ou ordenado, oficiosamente, todas as diligências necessárias à justa composição do litígio, designadamente procurando conhecer os bens jurídicos que o segredo profissional visa proteger e os conteúdos gerais dos documentos solicitados pelo Ministério Público.
67. O n.º 4 do artigo 135.º do CPP ao estabelecer que a decisão do Tribunal ao qual é requerida a quebra do segredo profissional nos termos do n.º 3 do mesmo preceito legal, é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, prevê uma diligência instrutória que permite carrear para os autos elementos que lhe permitam decidir com vista à justa composição do litígio.
68. Não tendo o Tribunal a quo realizado ou ordenado diligências instrutórias com vista à devida ponderação concreta dos interesses em causa, interpretou e aplicou erradamente os n.os 3 e 4 do artigo 135.º do CPP, os quais exigem que para que o Tribunal decida devidamente do mérito da causa tenha em sua posse os elementos que fundamentem os interesses em conflito e que pratique os necessários atos de instrução nesse sentido.

                                                                 *

3. – A argumentação da decisão “sumária” que agora a recorrente pretende ver submetida à conferência é a seguinte (transcrição):

«2. – A primeira questão suscitada pela recorrente, dir-se-ia prévia, é a da, na sua perspectiva, admissibilidade do recurso.

 Defende, para isso, que a decisão do Tribunal da Relação é uma decisão proferida em 1ª instância sendo recorrível nos termos do disposto nos arts. 399º e 432º, nº 1, al. a).

Aquela disposição estabelece uma cláusula geral de recorribilidade das decisões judiciais logo aludindo à existência de excepções.

A última, integrada nas normas que prevêem a recorribilidade para o STJ, estabelece que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões das relações proferidas em primeira instância.

Crê-se, contudo, que lhe não assiste razão.

Decorre da orientação do legislador, designadamente a partir da reforma operada pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, que a intervenção do STJ está reservada para situações de considerável gravidade estabelecendo-se, por isso, limitações por razões de razoabilidade e celeridade processual na selecção/restrição das causas susceptíveis de reapreciação pelo STJ.

Como se consignou no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2005.02.16[1] há na orientação do legislador um critério de «concordância prática entre a concretização dos direitos processuais dos interessados e os interesses em presença, por uma acomodação entre a integridade do direito ao recurso e imposições de racionalidade e bom uso dos meios disponíveis, nos casos em que, em função da natureza que revestem e da existência de uma identidade de decisões, não seria justificado um segundo ou terceiro grau de jurisdição». O que tem de ser aferido – prossegue o aresto em causa – de acordo com uma perspectiva de coerência interna do modelo que tem de estar traduzida, naturalmente, nas disposições da lei de processo mas buscando uma interpretação ponderada com a adjuvação do critério que presidiu a essa matriz do sistema de recursos em processo penal.

O que isto significa não é mais do que o seguinte: para identificar a recorribilidade de um acto decisório que, como é sabido, nos termos do art. 97º, nº 1, pode ser um despacho, uma sentença ou um acórdão, necessário se torna não só atender à unidade do sistema jurídico – rectius do sistema de recursos – como, além disso, levar em conta a presunção de que, na fixação do sentido e alcance da lei o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, em conformidade com os princípios gerais sobre interpretação da lei consagrados no art. 9º do Código Civil.

Ora, a ideia que atravessa todo o sistema processual penal na parte atinente aos recursos é a de que o STJ é um tribunal de “fim de linha” – passe a expressão em benefício da clarificação da ideia – cuja competência no tocante aos recursos ordinários está reservada para situações respeitantes à apreciação do mérito, à justiça da condenação – e mesmo assim com constrições várias – ou em que, porventura, o acto decisório ponha termo definitivo ao processo, o mesmo é dizer que encerre a relação jurídica entre os sujeitos processuais, seja por razões de natureza adjectiva, seja por razões de natureza substantiva. Por isso se lhe atribui a função de tribunal de revista, como inequivocamente ressalta do art. 434º.

É nesta perspectiva, crê-se, que tem de ser interpretada a alínea a) do nº 1 do art. 432º ao dispor que há recurso para o STJ das decisões das relações proferidas em 1ª instância. Havendo ainda que fazer intervir um outro tópico de interpretação como decorrência do que fica dito: as decisões da relação proferidas em 1ª instância e logo recorríveis são as que respeitem ao julgamento, isto é, em que a relação, nesse acto decisório, faça uma primeira apreciação do mérito da causa com extensão, naturalmente, às pertinentes questões interlocutórias que um tal julgamento suscite; ou quando esse primeiro acto decisório encerre em definitivo o processo por ser, designadamente, um despacho de não pronúncia, de arquivamento decorrente do conhecimento de uma qualquer questão prévia ou da apreciação de uma causa de extinção da relação jurídica como a prescrição.

Neste contexto, concluir-se-á que o acórdão do TR Lisboa de que foi interposto recurso ainda que se admita ser uma primeira decisão não só não tomou qualquer posição sobre o mérito da causa como não pôs termo ao processo. A sua intervenção justifica-se somente para decisão de uma questão incidental, de cariz processual, cujo conhecimento por lei lhe foi deferido[2]. Questão incidental essa com uma «estrutura especial que não segue as regras normais de competência jurisidicional»[3].

É, pois, insuficiente, de acordo com a perspectiva exposta, a invocação feita pela recorrente de que o acórdão do TR Lisboa é uma decisão de primeira instância como, aliás, tem sido defendido pela larga maioria da jurisprudência do STJ[4].

                                                                  *

3. – Não sendo a recorrente, seguramente um dos sujeitos processuais aos quais a lei atribui legitimidade para recorrer, nos termos das alíneas a) a c) do nº 1 do citado art. 401º nem havendo sido condenada ao pagamento de qualquer importância, restava-lhe para invocar a sua legitimidade de recorrente a alegação de que tinha a defender um direito afectado pela decisão, que é o fundamento da 2º parte da alínea d) do sobredito nº 1 do art. 401º. Foi o que fez.

Não se afigura, porém, que assim seja pois nenhum direito da recorrente foi afectado nem lhe sobra interesse em agir, pressuposto processual fundamental para a sua pretensão de recurso a que se refere o nº 2 do art. 401º.

O processo penal não é um processo de “partes”, nomenclatura adequada ao processo civil, mas antes um processo em que, a coberto do princípio acusatório tal como está consagrado no art. 32º, nº 5 da Constituição, se persegue a busca da paz jurídica comunitária posta em causa por um crime mediante a procura da verdade material a respeito da existência desse crime que visa a protecção de certos bens jurídicos, do seu autor e da sua culpabilidade, para, no fim lhe impor (ou não) uma reacção criminal. É um processo que decorre de acordo com regras pré-estabelecidas, que devem ser claras e precisas enunciando direitos e deveres, isto é, regras sobre a competência dos órgãos e sobre o exercício de funções, sobre os meios adequados a utilizar, as formas e as garantias[5]. Tudo de acordo com um critério de concordância prática que esbata o «caracter irremediavelmente antinómico e antitético»[6] de certas das suas medidas salvaguardando a sua finalidade última «o princípio da dignidade do homem e da sua intocabilidade e da consequente obrigação de a respeitar e proteger»[7].

Num tal quadro, a intervenção dos sujeitos processuais é relativamente[8] ampla mas já muito mais restrita quanto a terceiros mormente nas hipóteses previstas na alínea d) do nº 1 do art. 401º que a recorrente invoca. A sua intervenção ao nível do recurso está legitimada por uma eventual condenação que queira colocar em causa ou por qualquer “ataque” (assim entendido) à sua dignidade.

É então preciso que haja da sua parte um interesse em agir, como prescreve o nº 2 do citado art. 401º sem o qual o recurso não pode ser admitido. Ou seja, que da procedência do recurso resulte um benefício com repercussão na esfera jurídica da entidade que pretende recorrer. Há interesse em agir quando um qualquer direito do putativo recorrente possa estar carecido de tutela judicial necessitando ele de usar o processo – rectius o recurso – para ver reconhecido esse direito; não poderá ser, pois, um interesse vago e remoto[9] mas «um interesse concreto, juridicamente relevante, relevância que terá de ser aferida em relação aos concretos termos da causa, nunca de uma abstracção (…) sempre em vista de um interesse concreto e concretizável»[10]. Que salvaguarde, pois, o interessado de prejuízos efectivos, reais e concretos.

Ora, nada disso se passa no caso presente.

Vejamos os argumentos da recorrente a este respeito, expressos nos pontos 10 e 11 da sua motivação.

«10. A decisão de quebra do segredo profissional de uma autoridade de supervisão assume particular importância na delimitação do alcance do segredo profissional das autoridades de supervisão, com inevitável repercussão na eficácia da supervisão e, em última análise, na confiança do sistema financeiro nacional.

11. Estamos, na verdade, perante um caso cuja solução produzirá efeitos sobre a própria atividade regulatória e de supervisão do Estado português, através de entidades independentes, que prosseguem as suas atribuições e desenvolvem a sua actividade no quadro cada vez mais densificado do Sistema Europeu de Supervisão Financeira (“SESF”) e que, como tal importa analisar e tratar com o máximo rigor, com a profundidade que se impõe e no escrupuloso cumprimento de todo o bloco de legalidade aplicável, tendo igualmente em consideração que uma parte deste corresponde à transposição de Diretivas da União Europeia».

Prossegue a recorrente afirmando que não teve conhecimento da promoção do titular da acção penal tendente à quebra do segredo profissional.

Antes de mais, convirá notar que o acórdão que a recorrente pretende impugnar fornece todos os elementos necessários para que ficasse a par dos fundamentos do pedido de quebra de sigilo. Nestes termos (transcrição):

«Conforme resulta dos elementos constantes do apenso remetido a este tribunal da Relação, onde vem suscitado o incidente de quebra de segredo profissional, as autoridades polacas encontram-se a investigar a prática de factos susceptíveis de configurar, à luz da lei portuguesa, crimes de burla qualificada e/ou de burla informática e nas comunicações, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 217.°, n.°1, e 218.°, n.°2, alínea a), e 221.°, n.°1, alínea b), do Código Penal.

Com efeito, investiga-se a actividade da casa de corretagem, denominada "AA", com sede em ..., a qual, no período compreendido entre Maio de 2013 e Janeiro de 2017, terá levado clientes daquela cidade, de outras localidades da ... e até do estrangeiro, a entregar-lhe quantias monetárias, com o intuito de investirem na Bolsa, através de plataformas disponibilizadas on line.

De acordo com as autoridades polacas, os responsáveis daquela sociedade terão manipulado o referido sistema informático por forma a impedir que os seus clientes visualizassem correctamente os gráficos e informações actuais da Bolsa, bem como configuraram parâmetros de desvio assimétrico no software da plataforma de negociação. Acresce que, através da mencionada intromissão naquela plataforma on line, impediram os clientes de transmitir ordens que eram desfavoráveis à "AA" e atrasaram o tempo de execução de outras, de maneira a que apenas fossem transmitidas no momento mais vantajoso para si (ou seja, quando fosse obtido o melhor preço).

Como consequência da conduta ora descrita a sociedade denunciada logrou obter uma vantagem patrimonial de 8.000.000 zlotys (cerca de 1.863.140,64 euros).

A "AA" tem sucursais em várias cidades europeias, designadamente em Lisboa (cfr. fls. 54 e seg.).

Tendo em vista determinar se aquela sociedade exerceu a supra descrita actividade ilícita em Portugal foi solicitado pelas autoridades polacas que, além do mais, fosse averiguado se a "AA" foi alvo de acção inspectiva por parte da CMVM.

Assim, no dia 8 de Outubro de 2018, foi solicitado àquele organismo que informasse se a sociedade denunciada se encontra autorizada a exercer, em Portugal, a intermediação financeira relacionada com a transmissão de valores mobiliários; se receberam alguma queixa/denúncia quanto à actividade por ela desenvolvida e se a mesma foi alvo de alguma inspecção por parte da CMVM — cfr. fls. 62.

Em resposta, a CMVM informou que a mencionada entidade encontra-se registada junto daquele organismo como sucursal de empresa de investimento com sede na Polónia.

Mais referiu que estão na posse de outra documentação referente à mesma, designadamente o resultado de uma acção de supervisão presencial e dez reclamações sobre a actividade da visada em Portugal.»

São várias as ilações a tirar, salvo o devido respeito, da posição da recorrente.

A primeira é a que se afigura pretender a recorrente ser a entidade que

teria a prerrogativa de aferir da conveniência de dar, ou não dar, as informações solicitadas[11]. Mas não é esse o sistema legal português prescrito no art. 135º que, por enquanto, vigora de pleno.

A segunda, que resulta dos autos, é a de que a recorrente ao escusar-se a prestar as informações com base no dever de sigilo a que estava obrigada por força do disposto nos arts. 354º, nº 1 do Código de Valores Mobiliários e 14º da Lei nº 67/2013 agiu a coberto da lei e, por isso, a sua recusa foi considerada legítima, ou seja, adequada e correcta. Outra seria a circunstância se a escusa da recorrente fosse considerada ilegítima caso em que, então sim, teria legitimidade para recorrer e interesse em agir para fazer valer a sua pretensão/direito ao reconhecimento de ter agido dentro da legalidade e, do mesmo passo, ver restaurada a sua dignidade institucional face ao que poderia considerar um “ataque” que, nesses termos, lhe fosse dirigido.

Ora, ao enunciar-se a imprescindibilidade das informações tidas como pertinentes mais não se fez do que consignar que o esclarecimento da verdade quanto à lisura de procedimentos, no caso em matérias de âmbito financeiro, não pode ser obtido senão através da quebra do sigilo profissional a que a entidade interpelada está vinculada.

Nessa estrita medida, também se poderia dizer que é até do interesse de uma entidade de supervisão que se esclareça a verdade sobre a matéria alvo de controvérsia, decerto um interesse muito mais ponderoso do que o da preservação do segredo “à outrance em nome de uma vaga «confiança do sistema financeiro internacional».

O que, “transportado” para o âmbito do recurso redundaria, em rigor  –  permita-se a imagem –, num autêntico “desinteresse” em agir. Na concreta circunstância seria do interesse da recorrente, isso sim, o esclarecimento de tudo o que respeite à actividade da sociedade investigada pelas autoridades polacas tanto mais que, como deu a conhecer, existentes reclamações sobre essa actividade da visada em Portugal.

Além disso, se é certo que a CMVM, como entidade reguladora independente prossegue as suas atribuições e desenvolve a sua actividade «no quadro cada vez mais densificado do Sistema Europeu de Supervisão Financeira (“SESF”)» não é menos certo que dessas suas atribuições, por ser integrante desta entidade (“SEFS”)[12] faz parte a supervisão micro e macroprudencial. Aquela, com o principal objectivo de controle e limitação das dificuldades de instituições financeiras individuais de forma a proteger os consumidores. Esta, acautelando a exposição do sistema financeiro no seu todo a riscos comuns e procurando limitar as suas dificuldades, a fim de protegera economia global de perdas significativas em termos de produção real[13].

Se nos objectivos da “SEFS”, o que a recorrente expressamente invoca, está, no domínio “microprudencial”, a protecção dos consumidores é singularmente estranho que se queira de algum modo obstaculizar uma actividade investigatória levada a cabo a coberto de uma Directiva Europeia (2014/41/EU do Parlamento Europeu e do Conselho) e que mais não visa do que objectivos congruentes ou pelo menos complementares dos das autoridades de supervisão: em primeira linha proteger os consumidores e, eventualmente, a economia global de perdas significativas em termos de produção global. Só esse fito  - o de obstaculizar – pode justificar a posição da recorrente que, como consta da parte decisória do acórdão do TR Lisboa, foi autorizada a quebrar o sigilo bancário. Se do que se trata é da prevalência de legislação europeia não se dirá, decerto que a Directiva acima mencionada é um minus em relação à demais sendo ainda de notar que, a “DEI” no âmbito da qual se desencadeou o incidente de quebra de sigilo tem origem numa queixa da “Autoridade de Supervisão Financeira da ...”, isto é, do “estado de emissão”.

Não se vislumbra, pois, que se possa ter a decisão recorrida como desfavorável aos fins primordiais que a recorrente persegue e dela derivem, para si, prejuízos efectivos, reais e concretos. E que, por isso, haja um interesse da recorrente também ele concreto, juridicamente relevante, em obter uma decisão diversa da que autorizou a quebra do sigilo.

Em suma, não tem a recorrente nem legitimidade nem um atendível interesse em agir razão pela qual, também ao abrigo do supracitado art. 401º, nº 2 o recurso não é de admitir.

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2.2 – Invoca ainda a recorrente, a este respeito «a inconstitucionalidade das normas dos nºs 3 e 4 do art. 135º do CPP na interpretação segundo a qual a decisão do tribunal da Relação que quebra o segredo profissional invocado nos termos do disposto no art. 135º  do CPP é irrecorrível, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art. 20º, nºs 1 e 4 da CRP» (ponto 41 da motivação).

O nº 1 do normativo invocado estabelece, como é sabido, que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e o nº 4 estabelece que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante um processo equitativo.

Como ensina a doutrina[14] o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva é uma “norma-princípio” estruturante, corolário lógico do monopólio tendencial de solução dos litígios por órgãos do Estado. Que, outrossim, lhe atribui a natureza de «direito prestacional dependente e de direito legalmente conformado». Carecida, portanto, de conformação através da lei.

Se é certo que ninguém pode ser privado de levar a sua causa à apreciação de um tribunal não é menos certo que essa forma de tutela fundamental não é irrestrita. Necessário se torna que haja relação «com a defesa de um direito ou interesse legítimo» ainda que difuso e que seja vedada ao interessado o reconhecimento desse direito através da via judiciária. Isto por um lado.

Ora, já supra se procurou evidenciar que não há, da parte da recorrente nem legitimidade nem interesse em agir à luz do direito infraconstitucional.

Não está em causa a «proibição da indefesa» consistindo esta na privação ou limitação do direito de defesa ou do direito a uma tutela judicial efectiva pela simples e patente razão de que o seu dever de sigilo foi reconhecido como legítimo. Era esse o direito que à face da lei lhe cumpria salvaguardar e que realmente foi reconhecido. O que se segue a partir daí no incidente de quebra de sigilo envolve já uma ponderação de interesses, uma apreciação proporcionalmente ponderada em a recorrente não tem de  interferir. Não está em equação uma sua causa reconhecida que foi a legitimidade da sua recusa.

O incidente previsto no art. 135º, nºs 2 e 3 tem lugar, é bom não esquecê-lo, no âmbito de uma investigação desencadeada por uma autoridade judiciária, na decorrência do art. 182º, nº 1, de acordo com o qual as entidades sujeitas a segredo profissional invocam esse mesmo segredo quando confrontadas com a ordem dessa autoridade judiciária para apresentarem elementos de interesse para essa investigação que, em princípio, se não compadece com delongas.

A salvaguarda do direito de reacção contra a intervenção do Estado – rectius da autoridade judiciária – é assegurada pela invocação do segredo profissional e pela subsequente decisão do incidente que cabe a um tribunal superior e que se quer célere e expedita.

Como se afigura compreensível não caberá à entidade a quem são solicitados os elementos cobertos pelo segredo, uma vez considerada legítima a sua invocação, aquilatar (ou não) do interesse para a investigação dos elementos pedidos que, ao cabo e ao resto, é o que a recorrente visa. Elementos esses cujo conhecimento pela investigação podem até ser do maior interesse do investigado.

De resto, é jurisprudência constitucional firmada a de que a garantia do duplo grau de jurisdição no âmbito do processo penal releva da alguma situação que contenda coma privação, limitação ou restrição de direitos dos sujeitos processuais, podendo admitir-se que a faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e relativamente a certos actos judiciais.

Ora, a recorrente nem sequer tem esse estatuto de sujeito processual a coberto do qual lhe fosse conferida uma especial protecção legal de interesses e direitos.

Do exposto resulta, salvo o devido respeito, que a impossibilidade de recurso no âmbito do incidente de quebra de sigilo pela entidade convocada a prestar determinadas informações e uma vez reconhecida a legitimidade da sua escusa, além de estar de acordo com as regras gerais processuais sobre a legitimidade e o interesse em agir, de modo algum configura um injustificado, intolerável, irrazoável ou arbitrário regime discriminatório de acesso ao direito previsto no art. 20º, nºs 1 e 4 CRP e, em detalhe, do acesso ao recurso não procedendo, pois a, pretensão da recorrente também a este respeito.»

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4. – Valerá a pena assinalar, em primeiro lugar, que, contra o que parece ser o entendimento da reclamante, a “reclamação” para a conferência a que alude o art. 417º, nº 8 CPP (diploma a que pertencem as normas adiante referidas sem menção de origem) não pode ser tida como um recurso da decisão que foi proferida pelo relator ao abrigo do nº 6, alínea b) do citado artigo, ou seja,  quando após exame preliminar, o relator considere que o recurso deve ser rejeitado.

A “reclamação” para a conferência mais não é, e em rigor mais não pode ser, do que um pedido de reapreciação colegial da “decisão sumária” em que já há-de intervir, para discussão e votação, além do relator, o presidente da Secção e o juiz-adjunto. Nessa circunstância o recurso, é então julgado em conferência. Tudo como está claramente expresso nos nºs 1, 2 e 3, al. a) do art. 419º.

O uso da expressão “reclamação” para designar esse pedido de reapreciação da decisão sumária é, crê-se, desadequado e tem origem numa escusada reminiscência da que foi a orientação processual civil dominante, a coberto da influência de José Alberto dos Reis, de par com uma outra que advém da perfusão do regime de recursos do processo civil no regime de recursos do processo penal, na vigência do CPP 1929, hoje claramente posta de lado.

Na linha de pensamento e na nomenclatura de José Alberto dos Reis[15] as decisões judiciais podiam (e podem) ser impugnadas perante o tribunal que as proferira ou perante outro tribunal. No primeiro caso, a impugnação teria o nome de reclamação e no segundo caso teria o nome de recurso. Ora, a impugnação da decisão perante o mesmo tribunal «por meio de reclamação» acontecia (e acontece) quando fosse entendido pelo impugnante haver nulidades ou irregularidades da sentença ou do despacho. Nos demais casos, ou seja, quando fosse entendido haver um julgamento «contra o direito» a via de impugnação seria o recurso, fazendo intervir o tribunal superior.

Por conseguinte, como já se referiu, a conferência é chamada a julgar somente o recurso e nada mais. Nem faria sentido que fosse de outra maneira quando, desde logo, nela intervém, o relator, autor da “decisão sumária”. Ter a reclamação como uma impugnação dessa decisão sumária, fora do âmbito do que seja, eventualmente, uma arguição de nulidade por omissão ou por comissão, seria, ao cabo e ao resto, admitir a existência de um recurso da “decisão sumária”, algo que manifestamente não pode acontecer.

A reacção à “decisão sumária”, isto é, a sobredita “reclamação” em virtude de o recorrente se não conformar com aquela é, pois, somente, a suscitação da «intervenção da conferência para que, nesta, se proceda, afinal, a uma “apreciação” colegial das razões subjacentes ao julgamento do recurso por decisão sumária»[16]. Os seus fundamentos não poderão ir além dos da motivação do recurso, não podendo prestar-se a oportunidade processual para reconfigurar essa mesma motivação com novos argumentos como se de um “alongue do recurso se tratasse.

Dito isto.

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5. – O que a reclamante põe primeiramente em destaque é a questão da consideração da decisão da Relação como decisão de 1ª instância implicar a possibilidade de recurso para o STJ, ao abrigo dos arts. 399º e 432º, nº 1, al. a) com invocação de inconstitucionalidade das normas dos nºs 3 e 4 do art. 135º por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional consagrado no art. 20º, nºs 1 e 4 CRP.

Essa questão foi tratada no ponto 1 da “decisão sumária” em termos e com os fundamentos que a conferência acolhe por inteiro.

Seguidamente, a “reclamação” desenvolve o argumento de que a quebra do sigilo profissional é um incidente processual objectiva e subjectivamente autónomo face ao processo principal e que os sujeitos que participam nesse incidente nele pretendem fazer valer direitos próprios pelo que a decisão que o decide é de mérito e que, consequentemente, não se pode considerar o acórdão do TR Lisboa uma decisão interlocutória. Além de que o caso sub judice, por ser um pedido de cooperação judiciária internacional, não obedece às fases típicas do processo penal (aquisição da notícia do crime, inquérito, instrução, julgamento e recurso). Ao que acresce existir na jurisprudência o princípio comummente aceite do in dubio pro recurso.

Que a apreciação do pedido de quebra de sigilo tem lugar no âmbito de um incidente com uma estrutura especial é matéria também abordada na “decisão sumária”. Por esse prisma, é concordante com a perspectiva da reclamante. É inequívoco, portanto, que esse incidente nada tem a ver com as referidas fases típicas do processo penal mas isso não autoriza que se classifique como de mérito a decisão que o encerra e que, note-se bem, nem sequer tem de ser um acórdão do tribunal superior. Como também não autoriza que se conclua que há um interesse próprio. Desde           logo, porque o sigilo não visa a protecção de nenhum interesse directo da entidade que a ele está obrigado.

Tendo sido invocada a escusa de uma entidade sujeita a dever de sigilo (uma entidade bancária, por exemplo, ou, como é o caso, uma entidade reguladora) para fornecer elementos necessários a uma investigação duas hipóteses se colocam à partida.

Na primeira, a autoridade judiciária (seja o juiz, o juiz de instrução ou o Ministério Público cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência – art. 1º, al. b)) tem dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa e, nesse caso, procede às averiguações que entenda necessárias. Se depois dessas averiguações concluir que é ilegítima a invocação da escusa, (tratando-se de segredo profissional, ouvido o organismo representativo da profissão relacionada) o tribunal (o juiz ou o juiz de instrução, conforme os casos) decide, havendo lugar a recurso dessa decisão. Precisamente por isso consta da parte final do nº 2 a expressão “ordena (se for o juiz) “ou requer (o Ministério Público) “ao tribunal que ordene”.

Na segunda, a autoridade judiciária (aqui já só o juiz ou o juiz de instrução, naturalmente) convence-se da validade dessa invocação e de duas, uma. Ou a questão finda por aí, ou a autoridade judiciária concluindo embora que o motivo da escusa é legítimo, considera ser indispensável o fornecimento dos elementos recusados. Então, oficiosamente ou a requerimento pedirá ao tribunal superior que determine que sejam fornecidos os elementos ainda que com quebra do sigilo (profissional, bancário ou de outra natureza).

Não há, portanto, uma necessidade incontornável de sempre fazer intervir o tribunal superior, como parece ser o entendimento da reclamante. A intervenção do tribunal superior em sede de incidente está reservada para as situações em que feita a avaliação concreta se conclui que a escusa é legítima mas que, mesmo assim, se torna imperiosa a ponderação da importância do binómio quantidade/qualidade das informações em termos de intromissão na vida privada das pessoas atingidas pela quebra do sigilo (os titulares das contas no caso do sigilo bancário ou, porventura, os investidores no específico caso) e o contraponto a fazer com o respeito pelo interesse público na averiguação de um crime e por conseguinte na administração da justiça (cfr art. 18º, nº 2 CRP). É essa avaliação que deve ser pedida ao tribunal superior.

Tudo isto pressupõe, claro está, que a instituição obrigada ao sigilo tenha sido interpelada para fornecer os elementos tidos como pertinentes e que se tenha recusado a fornecê-los. Como está bem de ver só perante os motivos aduzidos para essa recusa se pode tomar uma das posições que a lei prevê.

É, de resto, o que resulta do regime previsto no art. 182º. As pessoas ou entidades submetidas às várias formas de segredo são notificadas para apresentar os elementos considerados relevantes que tiverem na sua posse e podem recusar fazê-lo se invocarem por escrito segredo profissional, de funcionário ou de Estado. Só depois dessa invocação é que, no caso do segredo profissional, é correspondentemente aplicável o disposto nos arts. 135º, nºs 2 e 3.

Ora, como já foi salientado na decisão sumária, não se vê como pode ser conferido o estatuto de sujeito processual a uma entidade “externa” – passe a expressão em benefício da clarificação da ideia – ao desenvolvimento das várias fases do processo que a reclamante correctamente menciona e a quem apenas é solicitado que forneça elementos tidos como pertinentes para o desenvolvimento desse processo, mas tidos como pertinentes pelas autoridades judiciárias competentes.

Além de que, como se referiu – e este é o ponto essencial – essa entidade não tem um interesse próprio a proteger.

Como já mencionado, de acordo com o regime legal que decorre do citado art. 135º, aplicável por força do determinado no art. 182º, tendo sido invocada a escusa por uma entidade bancária ou por uma entidade reguladora para fornecer os elementos necessários à investigação e sendo a escusa considerada legítima o tribunal da relação pode decidir da prestação de informações com quebra do sigilo profissional sempre que esta se mostre justificada segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade da informação ou do documento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.

Para a interpretação deste critério deu o seu contributo o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 442/07[17]. A propósito do segredo bancário os seus argumentos são transponíveis para o sigilo profissional invocado pela reclamante. Naquele aresto, explicitou-se que embora o «bem protegido pelo segredo bancário caiba no âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada consagrado no artigo 26º, nº 1 da Constituição da República …o segredo bancário localiza-se no âmbito da vida de relação, à partida, fora da esfera mais estrita da vida pessoal, a requer maior intensidade de tutela. Ainda que compreendido no âmbito de protecção, ocupa uma zona de periferia, mais complacente com restrições advindas da necessidade de acolhimento de princípios e valores contrastantes».

Ora, está em causa, precisamente, a necessidade de reafirmar o valor de normas jurídicas especialmente relevantes como aquelas que punem actividades enganosas causadoras de prejuízos patrimoniais aos investidores normas essas que, no caso, terão sido postas em crise pois como se consignou na “decisão sumária”, transcrevendo o acórdão do TR Lisboa está em investigação a prática, à luz da lei portuguesa, de crimes de burla qualificada e/ou de burla informática e nas comunicações, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 217°, n°1, e 218°, n° 2, alínea a), e 221°, n° 1, alínea b), do Código Penal.

Efectivamente, para a eventual identificação do autor ou autores de tais crimes e de acordo com a linha de investigação seguida no inquérito desencadeado pelas autoridades polacas, torna-se necessário conhecer determinados elementos de que a reclamante será conhecedora. Mas pela prática desses crimes os lesados não são, seguramente, nem a reclamante nem a sua congénere que apresentou queixa junto dessas autoridades.

Por conseguinte, do que se trata é de fazer respeitar o interesse público que consiste na averiguação de crimes contra o património punidos com penas de prisão, interesse que visando a boa administração da justiça foi tido na decisão recorrida como preponderante sobre o interesse privado acautelado pelo sigilo profissional a que a reclamante está obrigada e que foi tido também como justificadamente restringido (art. 18º, nº 2 CRP) tanto mais que, como propugna o Tribunal Constitucional, não se atingirá o núcleo central daquele interesse privado pois não haverá, como é frisado, uma intromissão na «esfera mais estrita da vida pessoal» dos investidores.

Como é evidente, estão em causa práticas que nada têm a ver com um regular funcionamento do mercado ou sequer com a normal vida interna das empresas ou muito menos com segredos comerciais ou industriais.

Não se discute que a missão da reclamante é, realmente, com as atribuições definidas no art. 353º do Código dos Valores Mobiliários e no art. 4º do seu próprio Estatuto a de proteger o regular funcionamento do mercado de capitais e, em decisiva e última linha, de protecção dos interesses dos investidores mas certamente que apenas e só na veste que estes assumem de alguém que faz uso dos instrumentos financeiros disponíveis no mercado. Não lhe caberá, contudo, a protecção «da reserva da intimidade da vida privada» dos investidores ou das pessoas sujeitas a supervisão na dimensão delineada pela jurisprudência constitucional mencionada, ao contrário do que se arroga tanto mais que pela possibilidade legal da sua quebra se conclui que o sistema vigente não é um «sistema de segredo reforçado», cada vez mais raro, aliás, precisamente porque valores de superior relevância se sobrepõem ao sigilo profissional em geral.

É de notar também que com a decisão de quebra de sigilo subsequente à recusa tida como legítima, para os efeitos definidos, não está em equação uma total derrogação desse sigilo pois a tutela da vida privada é assegurada, ainda que indirectamente, pelo carácter secreto da investigação criminal e pelo dever de guardar segredo de justiça. Daí que se não possa afirmar que a actuação dos órgãos próprios da justiça seja de molde a debilitar a confiança dos mercados ou a protecção dos investidores.

Mais, os elementos a fornecer, porque visam lançar luz sobre uma investigação com o objectivo de alcançar a verdade material sobre factos a partir de uma dada queixa podem até ser determinantes para clarificar uma situação porventura perturbadora do bom nome da entidade suspeita.

Do que não sobra dúvida, contudo –  reafirma-se –  é que não há um qualquer interesse ou direito próprios da reclamante que se torne indispensável proteger configurando-se a sua intervenção à margem da que cabe, segundo a lei, aos sujeitos processuais.

O que a “decisão sumária” assinalou, contrariando a tese da invocação expressa do art. 401º, nº 1, al. d) que a reclamante fez na motivação do recurso o que é, do mesmo passo, o reconhecimento da sua parte que não tem o estatuto de sujeito processual.

De referir que o princípio geral da recorribilidade consagrado no art. 399º visa assegurar o direito ao recurso, é certo, direito esse consagrado no art. 32º, nº 1 CRP mas para a protecção dos direitos de defesa em processo penal. Ora, a reclamante nenhum direito de defesa tem a garantir no âmbito do incidente de quebra de sigilo profissional. Se a lei consagra um dever geral de sigilo com as excepções tidas por adequadas esse dever não é imposto para defesa dos interesses das entidades que a ele estão obrigadas não lhe assistindo para esse efeito um direito de acesso ao direito ou a invocação do direito a um processo equitativo com igualdade de armas.

Fica por explicar, diga-se já agora, como é que uma decisão de mérito que a reclamante diz existir afecta um terceiro na relação jurídica material que se procura deslindar mediante a busca da verdade material.

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6. – Argumenta também a reclamante  que a sua intervenção derivando da aplicabilidade do art. 401º, nº 1, al. b) deve ser assegurada em sede de ponderação dos interesses em conflito pois é ela quem melhor pode avaliar e dar a conhecer os concretos interesses que, em cada caso, são protegidos pelo segredo profissional segundo o princípio do interesse preponderante e dos demais critérios estabelecidos no nº 3 do art. 135. E diz ainda que, em consequência, para a ponderação dos interesses em causa a avaliação do juízo concreto de adequação e necessidade de documentação para fins investigatórios lhe deve ser assegurado o direito de acesso aos tribunais e o princípio do contraditório. Diz até que pelas suas atribuições, a protecção dos investidores, não fica autorizada toda e qualquer quebra do seu sigilo profissional «quando esteja em causa uma investigação que vise directa ou indirectamente a protecção dos investidores».

É razoável traduzir este argumento de uma forma mais pragmática e mais clara como aliás se consignou noutros termos na “decisão sumária”: mesmo depois de a sua recusa inicial ser declarada legítima, como foi, a reclamante arroga-se o direito de ter a palavra final na selecção dos elementos que lhe são pedidos. Considera, em suma, que a ela própria é que cabe avaliar a pertinência e relevância para a investigação desses elementos em nome da protecção dos investidores.

É patente a fragilidade destes argumentos.

Em primeiro lugar a reclamante pretende sobrepujar a «protecção dos investidores» seja lá o que preencha este vaguíssimo conceito pois não o explicita, aos interesses da realização da justiça nem já do Estado de Direito numa perspectiva nacional  mas transnacional (no âmbito da União Europeia).

É claro que os interesses da investigação e da realização da justiça não são valores absolutos mas decerto que não será passível de discussão que são sobreponíveis aos valores de promoção do mercado e do seu regular funcionamento. Até por uma razão simples e clara: sem um eficaz funcionamento na perseguição e repressão de certas práticas como aquelas que estão em averiguação não pode haver um funcionamento do mercado com decisões seguras e eficientes, proveitosas  e estáveis em termos financeiros. Por isso se consignou na “decisão sumária” figuradamente, claro, que à reclamante assistiria, em boa verdade, um autêntico “desinteresse” em agir pois a sua prioridade haveria de ser, em nome de uma eficaz e abrangente protecção do mercado, o contributo pedido para o esclarecimento da verdade sobre a matéria alvo de controvérsia.

Além de que para proteger os valores e direitos constitucionais serve a lei ordinária que acautela de modo bastante o uso desses meios, as formas e as garantias tal como se consignou na “decisão sumária” com validade que se reafirma. Parece a reclamante esquecer que em causa, nem já só perante a sociedade nacional, está a prática de crimes. O que se pretende, pois, é fazer valer um superior interesse social ou de ordem pública sendo certo que o sigilo profissional não poderá considerar-se como estando no mesmo plano desse superior interesse. Ora, na interpretação da reclamante o segredo a que está obrigada teria uma extensão quase absoluta oponível ao interesse público da administração da justiça pois traduzir-se-ia numa incontrolável multiplicação de casos em que seria lícito recusar a cooperação com essa administração.

Na verdade, quem controlaria, então, a actividade selectiva da reclamante sobre os elementos que lhe fossem solicitados?

Em segundo lugar, escamoteia a reclamante que no tal «caso concreto» de que fala amiúde está principalmente em equação a tão evocada protecção de investidores ou não tivesse sido a “DEI” desencadeada a partir de uma queixa de uma sua congénere, a “Autoridade de Supervisão Financeira” polaca.

Tudo isto está, aliás, claramente explicitado no acórdão do TR Lisboa.

Pelo que se afigura até irrazoável argumentar, como faz, que a «irrestrita quebra do sigilo profissional da CMVM poderá afectar igualmente o segredo profissional daquela autoridade».

Em terceiro lugar, afigura-se absurda a pretensão da reclamante acerca do superlativo conhecimento que invoca sobre a pertinência e relevância para a investigação dos elementos que se recusa a fornecer. Só a autoridade que superintende a investigação criminal está em condições de avaliar a importância do que solicitou.

Em quarto lugar, depois de a recusa da reclamante em fornecer os elementos pedidos ter sido considerada legítima, conferir-lhe a prerrogativa de avaliar a pertinência dos elementos pedidos – e por essa via conferir-lhe um interesse próprio – seria o mesmo que uma vez considerada legítima a prestação de um testemunho com quebra do segredo profissional, a testemunha desobrigada do segredo respondesse ou rejeitasse responder ao tribunal consoante achasse, ela própria, pertinentes ou não as perguntas que lhe fossem dirigidas para que esse testemunho contribuísse para a descoberta da verdade.

À reclamante não é lícito confundir a sua actividade investigatória e a aplicação das consequentes penalizações relativamente à específica violação das regras do mercado com a actividade investigatória de criminalidade grave de cariz nacional ou transnacional sob pena de, ao contrário do que afirma, se lhe poder atribuir um efeito obstaculizando ou paralisante da investigação com graves prejuízos na estrutura da sociedade.

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7. - Eis, em suma, porque, contrariamente às expectativas da reclamante, a conferência adere aos fundamentos, da “decisão sumária” do relator, de rejeição do recurso por inadmissibilidade legal.

A implicar o indeferimento da reclamação apresentada e, consequentemente, que seja mantida essa “decisão sumária”.

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8. - Em face do que se decide confirmar na íntegra a “decisão sumária” ora reclamada.

Pagará a reclamante 3 UC de taxa de justiça.

Feito e revisto pelo 1º signatário.
Nuno Gomes da Silva (relator) *
Francisco Caetano

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[1] No proc nº 04P4551, mencionado pela Sra. Procuradora-Geral Adjunta, que se cita precisamente por se reportar a uma situação semelhante a esta de recurso de uma decisão da relação sobre sigilo bancário.
[2] Neste sentido o Acórdão STJ citado supra.
[3] Cfr Acórdão de 2005.07.12, proc 05B1901 da 7ª Secção (Cível).
[4] Cfr., para uma recensão dessa jurisprudência, o Acórdão de 2014.07.25, proc. 4910/08.9TDLSB-E.L1.S1 in www.dgsi.pt. Também, por muito recente, o Acórdão de 2019.04.04, proc 5837/16.6T9LSB-A.L1.S1 (contra o que o TR Lisboa havia decidido  e a que a recorrente alude no ponto 35 da sua motivação).
Não se ignora a existência de jurisprudência contrária. O Acórdão de 2005.04.21, proc 1300/05 não se pronunciou expressis verbis sobre a recorribilidade. Aceitou-a, sem mais. Os Acórdãos de 2011.02.09 e 2011.03.23, nos proc 12153/09.8TDPRT-A.P1.S1 e 106/04.7TALMG, respectivamente, ambos com um voto de vencido, pronunciaram-se nos seguintes termos similares (que são os dos seus textos e não dos sumários): «Em nosso entender estamos perante uma decisão proferida em primeira instância o que a torna susceptível de recurso nos termos do artigo 432º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal».
[5] Cfr Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar et all., 2ª ed., pag 17.
[6] Cfr  Figueiredo Dias “Direito Processual Penal”, Lições coligidas por Maria João Antunes; 1988-9, pag 25
[7] Cfr ob cit. pag 26.
[8] Há limitações por exemplo, no que toca à matéria dos recursos que aqui se equaciona, ao nível da legitimidade do assistente ou da legitimidade das partes civis espartilhada pelas regras da sucumbência.
[9] Cfr Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pag 79-80.
[10] Cfr Código de Processo Penal Comentado cit., pag 1219.
[11] Atitude pela qual parece perpassar uma certa ideia de exclusividade intelectual que traz à lembrança a velha pergunta de Goethe: «Se eu sou, pode alguém mais ser?»
[12] Que integra o Comité Europeu de Risco Sistémico (ESBR), a Autoridade Bancária Europeia (EBA) a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos mercados (ESMA) a Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma (EIOPA) e os supervisores nacionais
[13] Cfr, sobre o “SEFS” e suas atribuições www.europarl.europa.eu/ftu/pdf/FTU_2.6.14.pdf
[14] Cfr J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Anotada”, Volume I, 4ª ed., pag 408-410.
[15] Cfr “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pag 137
[16] Acórdão STJ de 2014.04.10, proc 17468/08.8TDPRT.P1.S1
[17] DR, 1ª Série, de 2007.09.11