Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7825/22.4T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: PODERES DA RELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
VIOLAÇÃO DE LEI
LEI PROCESSUAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - A rejeição pela Relação do recurso sobre a matéria de facto, por incumprimento dos requisitos previstos nos nºs 1 e 2 do art. 640º do CPCivil, é fundamento do recurso de revista por estar em causa o modo de exercício dos poderes da Relação por tal constituir “lei de processo” para os efeitos do art. 674º, nº1, b) do CPCivil;

II – O recorrente que impugna a matéria de facto tem o ónus de indicar relativamente a cada ponto de facto que considera incorrectamente julgado, o “concreto meio probatório” que, em seu entender, impõe decisão diversa da recorrida, sob pena de rejeição do recurso nessa parte (art. 641º, nº1, b) do CPC);

III – A avaliação da gravidade dos danos não patrimoniais para efeitos da sua ressarcibilidade (art. 496º, nº1, do CCivil), tem de aferir-se segundo um padrão objectivo, não do ponto vista subjectivo do lesado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA propôs contra Shine Iberia Portugal, Unipessoal, Lda, e BB, ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo a condenação dos RR a pagarem-lhe a quantia de € 40.000,00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa supletiva legal de 4%, desde a citação até integral pagamento, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.

Fundamenta o pedido alegando, em síntese, que no âmbito de um contrato de participação no programa "...", celebrado com a R sociedade, integrado por uma competição culinária entre os concorrentes e que foi apresentado pelo 2º. R, foi humilhada, constrangida, intimidada, com diminuição e ofensa na sua honra e consideração, de que lhe advieram prejuízos de natureza patrimonial no exercício da sua atividade profissional e afectação da sua saúde, que lhe determinou o recurso a sessões de psicoterapia.

Citados, contestaram cada um dos RR, impugnando a factualidade articulada pela A e pedindo a absolvição do pedido.

Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os RR do pedido.

A Autora interpôs recurso da sentença, visando a sua revogação, a procedência da ação e a condenação dos RR no pedido.

Por acórdão da Relação de Lisboa, embora com voto de vencido, foi a apelação julgada improcedente e confirmada a sentença.

Ainda inconformada, a Autora interpôs recurso de revista, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:

1.º Pede-se a intervenção do Venerando Supremo Tribunal de Justiça para a correta e adequada apreciação jurídica da posição processual da ora Recorrente.

2.º A Recorrente celebrou com a I.ª Recorrida, produtora televisiva, um contrato de participação num concurso culinário a ser transmitido pela “...”.

3.º No dito contrato na Cláusula 2 n.º 15 prevê-se que “O Segundo Outorgante deverá abster-se de praticar qualquer acto de violência e/ou assédio contra os restantes participantes, qualquer convidado do Programa ou colaborador da Primeira Outorgante ou da ....” (vide documento um da petição inicial de fls.).

4.º Da mesma forma, o .../... do programa televisivo em causa e ora 2º Recorrido dever-se-ia abster de tais comportamentos.

5.º A 1ª Recorrida tinha o dever de intervir e, consequentemente obstar e até denunciar tais atitudes.

6.º A Recorrente durante a sua estadia nas gravações do programa denominado “...”, onde se procurava recriar um ambiente de trabalho num espaço de ..., foi alvo de comentários por si considerados ofensivos sobre o seu aspeto físico, de insinuações indesejadas de caráter sexual e de perguntas intrusivas da sua vida íntima e privada.

7.º A Recorrente sentiu-se humilhada, constrangida, intimidada, diminuída e ofendida na sua dignidade, honra e consideração e durante todo o período de gravações do programa.

8.º Como consequência dessa situação, a Recorrente experimentou dificuldades em dormir e descansar em virtude do estado de angústia e ansiedade em que se encontrava, persistindo tais sintomas muito para além do termo do programa, sendo forçada a recorrer a sessões de psicoterapia semanal.

9.º A Recorrente sofreu prejuízos pessoais e profissionais.

10.º A Recorrente no recurso antecedente teve o cuidado de isolar os trechos da prova gravada para sustentação do seu pedido, de fazer a análise crítica de cada um deles, de identificar os episódios e as partes das gravações lesivas dos seus direitos.

11.º O Venerando Tribunal a quo teria de se pronunciar no sentido que a resposta dada em primeira instância judicial aos factos não provados e constantes das Alíneas d); i); l); m); p); q); r); s); t); w) e bb) da douta sentença inicial teria de ser positiva e ter como consequência o aditamento de novos factos provados, que determinariam a condenação dos Recorridos.

12.º No entanto, o Venerando Juiz Desembargador Relator apenas considerou de forma genérica que a Recorrente não demonstrou o desacerto da decisão recorrida e o melhor acerto da decisão que pretendia.

13.º O Mm.º Julgador a quo não realizou qualquer esforço de fundamentação para a não valoração da posição crítica assumida em sede de alegações de recurso e respetivas conclusões.

14.º A Recorrente assistiu a uma mera rejeição tout court da sua apelação.

15.º Mais grave a decisão, no que concerne à denúncia da filmagem abusiva com destaque de partes do corpo da Recorrente na subsequente transmissão televisiva, sem que aquela tivesse autorizado o uso indevido da sua imagem.

16.º Este segmento óbvio e indiscutível do recurso não mereceu qualquer reparo de censura por parte de quem julgou e não fundamentou devidamente a sua decisão.

17.º Nos termos do art.º 671.º n.º 1 do CPC permite-se o recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão da Relação.

18.º De acordo com o n.° 3 do aludido art.º 671.º do CPC, “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

19.º Pelo que, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa verificou a improcedência do recurso de fls., mas a forma como o fez, violou a alínea c) do n.º 1 do art.º 674.º e a alínea b) do n.º 1 do art.º 640.º ambos do CPC.

20.º Acresce que, o Venerando Juiz Desembargador, Exm.º Senhor Dr. CC, considerou que “…daria por verificada a violação dos direitos de personalidade da A., com o correspondente arbitramento da respetiva indeminização por danos não patrimoniais.”, votando vencido contra a decisão ora em recurso.

21.º Assim, torna-se premente a intervenção do Venerando Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que em referência às questões suscitadas em juízo de apelação e à douta decisão subsequente têm de ser devidamente apreciadas por um Tribunal Superior.

22.º Nos presentes autos na apreciação global do recurso ora recorrido, não se verifica a figura da dupla conforme, o que permite a revista.

23.º Existindo voto de vencido, a decisão ora em recurso tem a sua segurança e certeza jurídica colocadas em causa, sendo precisa a adequada intervenção do Venerando Supremo Tribunal de Justiça para afastar a dúvida quanto ao teor e correção jurídica da decisão.

24.º Cita-se o Senhor Professor Rui Pinto no seu estudo, “…mesmo que a Relação repita ipsis verbis a decisão da 1.ª instância, se um Desembargador votar de “vencido”, não cabe dupla conforme.” in “Repensando os requisitos da dupla conforme (artigo 671.º, n.º 3, do CPC)”, JULGAR Online, novembro 2019, pág. 15.

25.º Desta forma, a Recorrente foi sujeita a uma abordagem imprópria à sua vida privada, ao ter sido interpelada diretamente no meio de um concurso televisivo de culinária no sentido de saber se achava interessantes do ponto de vista íntimo, os outros participantes no “HELL´S KITCHEN”.

26.º Nos Pontos 13 a 17 da matéria julgada provada em sede de primeira instância judicial, os mesmos incidem sobre as gravações ocorridas num clube de boxe, tendo sido facultada roupa aos concorrentes para a prática desportiva, designadamente, uma t-shirt lisa de cor branca, que, no caso da Recorrente, deixava sobressair os seus seios.

27.º Perante a situação, a Recorrente manifestou junto dos representantes da empresa Recorrida o seu desconforto, tendo sido assegurado à concorrente que não seriam gravados e transmitidos planos próximos da sua figura física.

28.º A promessa não foi cumprida, sendo visíveis, com destaque e enfoque televisivo os seios da Recorrente.

29.º A atitude da I.ª Recorrida manifesta um total desrespeito da pessoa da Recorrente e do seu pedido enquanto mulher para respeito do seu corpo.

30.º As imagens divulgadas publicamente objetivaram o corpo da concorrente, apenas para tipificarem aquela pessoa como um símbolo sexual, contra a sua vontade manifestada de forma expressa.

31.º Por fim, o Recorrido apelidou a Recorrente de bitch, anglicismo utilizado para significar cabra, galdéria ou puta em referência a alguém.

32.º No art.º 26.º n.º 1 da CRP determina-se que “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.” Este normativo legal prevê “hipóteses típicas de direitos de personalidade, postulados pela exigência angular de respeito pela dignidade humana3” consagrada no art.º 1.º da CRP.

33.º O art.º 70.º n.º 1 do CC estipula uma cláusula geral de tutela da personalidade nos seguintes termos: “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.”, acolhendo, assim, um direito geral de personalidade que protege a personalidade no seu todo, nas suas diversas manifestações, abrangendo “todos os atributos inerentes ao organismo psicossomático (personalidade física) e à componente ético-espiritual (personal e moral) que individualizam cada ser humano”.

34.º A Recorrida assegurou à Recorrente o convencimento de que as imagens de uma parte do seu corpo, aquando das filmagens supra referidas no clube de boxe, não iriam ser exibidas publicamente, cfr. Ponto 17 da matéria provada.

35.º Passou-se o contrário, a imagem da visada foi transmitida e objetivada como símbolo sexual, numa violação grosseira da sua vontade manifestada de forma veemente e do n.º 3 do art.º 79.º do CC.

36.º Para tanto, cite-se, a título de exemplo: Ac. TRL de 26 de setembro de 2019, Proc. n.º 1981/14.2TBOER.L1-2 Ac. TRL de 22 de setembro de 2005, Proc. n.º 5011/2004-6,

37.º A Recorrente autorizou a utilização da sua imagem no âmbito de programa televisivo de culinária e não deu consentimento ao uso abusivo da utilização de imagens do seu corpo, sem a sua concordância e com a sua oposição expressa.

38.º Verifica-se uma ofensa a um direito de personalidade, in casu, o direito à integridade moral, ao bom nome, reputação, imagem e intimidade da Recorrente, o art.º 483.º n.º 1 do CC prevê que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.

39.º Para que se verifique a obrigação de indemnizar é necessário que estejam reunidos todos os pressupostos cumulativos da responsabilidade civil extracontratual: o facto; a ilicitude; a culpa; os danos e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, o que acontece na presente situação.

40.º No recurso antecedente, não foi tido em conta ou sequer minimamente apreciado as declarações prestadas pela Recorrente, o depoimento da testemunha DD quando descreve a situação psicológica da Recorrente, focando-se na comparação entre o antes e o depois da participação nas gravações do programa televisivo, o depoimento das testemunhas EE e FF que corroboram as declarações da Recorrente ou sequer o depoimento de GG, no que respeita à forma como o Recorrido se dirigia à Recorrente com a permissão da Recorrida porque "diz tudo o que lhe vem à cabeça".

41.º Os ataques sofridos pela Recorrente à sua imagem, personalidade e privacidade do seu corpo, num constante de violência psicológica gratuita e desrespeitadora dos seus direitos pessoais, não pode ficar impune e sem a devida compensação reparadora.

42.º Com relevância para a decisão a formular, estão violados pela sua indevida apreciação o teor dos artºs. arts.º 70.ºn.ºs 1 e 3; 483.º; 494.º; 496.º n.º 1 e 3; 562.º; 563.º todos do CC, alínea c) do n.º 1 do art.º 674.º e a alínea b) do n.º 1 do art.º 640.º ambos do CPC e 26.º da CRP.

Deve, pois, a douta decisão ser revogada e substituída por douto acórdão que consagre a posição articulada da Recorrente com as legais consequências.


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Contra alegaram os RR, em articulados próprios, pugnando pela improcedência da revista, tendo formulado as seguintes conclusões.

A 1ª Recorrida:

A. A Recorrente enquadra o seu recurso – ponto I das alegações – alegando factos que não foram dados como provados pela 1.ª instância, nem pelo Tribunal a quo.

B. Concretamente, não ficou demonstrado que a Recorrente foi alvo de comentários por si considerados ofensivos sobre o seu aspecto físico, de insinuações indesejadas de carácter sexual e de perguntas intrusivas da sua vida íntima e privada.

C. Não resulta de nenhum depoimento das testemunhas ouvidas que a Recorrente tenha sido alvo de qualquer comentário.

D. Mais, relativamente à alegada filmagem abusiva que a Recorrente incompreensivelmente volta a mencionar nas suas alegações de recurso, tal filmagem não só nunca ocorreu – é possível visionar o episódio em causa junto aos autos e, bem assim, o print de uma imagem dessa filmagem junta com a contestação da Recorrida – como não ficou efectivamente provada tal filmagem.

E. O que ficou demonstrado é que a Recorrente se apresentou numa sessão de gravação de um dos episódios sem sutiã, como era hábito seu (resulta do depoimento da própria Autora) e foi-lhe entregue vestuário de desporto igual ao vestuário de todos os seus Colegas – uma t-shirt branca.

F. A Recorrente manifestou aos colaboradores da Recorrida desconforto com o facto de sobressaírem os seus seios na mencionada t-shirt, tendo então os colaboradores da Recorrida sugerido soluções que reduzissem o desconforto, designadamente a colocação de adesivos nas zonas do corpo que poderiam sobressair, sendo que essa sugestão foi recusada pela Recorrente.

G. Assim, é incompreensível para a Recorrida que a Recorrente continue a enquadrar as suas alegações de recurso com factos que não ficaram provados no julgamento da 1.ª instância, mas também não ficaram provados após apreciação do tribunal a quo e que não são verdadeiros.

H. Ambas as instâncias ponderaram toda a prova, designadamente os episódios do Programa juntos aos autos, os depoimentos de 3 concorrentes do programa e que participaram nas gravações, o depoimento de elementos da equipa técnica da produção do programa de televisão.

I. Não resulta de nenhum elemento supramencionado a versão dos factos como é relatada pela Recorrente, razão pela qual a matéria de facto dada como provada e não provada é a que resulta da apreciação da 1.ª instância e não outra.

J. Não Assiste qualquer razão à Recorrente, como se exporá em seguida;

K. Uma vez mais, o que a Recorrente vem fazer, ao recorrer do Acórdão do tribunal a quo, é tentar “corrigir” factos que alegou na petição inicial. Mas, mais do que isso, a Recorrente pretende que o Supremo Tribunal de Justiça reaprecie a matéria dada como provada e como não provada e a substitua nos termos que peticiona.

L. Ou seja, a Recorrente invoca o disposto no artigo 671.º, n.º 1.º e 674.º, n.º 1, al.a) e c) do Código do Processo Civil para interpor recurso de revista, alegando a sua admissibilidade, no entanto depois o que pretende é precisamente o que não lhe é permitido por força do n.º 3 do artigo 674.º do Código do Processo Civil.

M. Sucede que, pretende a Recorrente alterar a matéria de facto assente nas instâncias, sem que para o efeito invoque uma única ofensa a uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

N. A razão para a ausência dessa invocação é simples: a decisão do Tribunal a quo não ofende qualquer disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

O. Pelo que, não é verdade, ao contrário do que alega a Recorrente, que o Tribunal a quo “se limitou a considerar de forma genérica que a Recorrente não demonstrou o desacerto da decisão recorrida e o melhor acerto da decisão que pretende, não realizando qualquer esforço de fundamentação para a não valoração da posição crítica assumida em sede de alegações de recurso e respetivas conclusões, limitando-se a rejeitar tout court a apelação sujeita ao seu crive julgador.”.

P. Ou seja, o Tribunal a quo analisou uma das fundamentações expedidas pela Recorrente, para retirar uma conclusão que, na verdade, se aplica a todas as fundamentações da Recorrente expedidas para justificar a necessidade de alteração da matéria de facto: em nenhuma das fundamentações, a Recorrente explica a razão pela qual entende que o tribunal de 1.ª instância andou mal ou violou as “legis artis”.

Q. A Recorrente termina o recurso pedindo que “a douta decisão ser revogada e substituída por douto acórdão que consagre a posição articulada da Recorrente”, ou seja, a Recorrente pretende que a matéria de facto seja no âmbito da apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça e que lhe seja reconhecida razão relativamente à violação dos seus direitos de personalidade.

R. Sucede, porém, que, como se disse em cima, não tendo a Recorrente alegado e demonstrado que o Tribunal a quo ofendeu uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, não pode o Tribunal a quo alterar a matéria de facto.

S. No que diz respeito ao teor do voto de vencido, sempre se dirá que do mesmo não resulta a razão de discordância da decisão no que diz respeito ao preenchimento do ónus de especificação a que alude o artigo 640.º do Código do Processo Civil. Também a própria Recorrente, no recurso a que agora se responde, não demostra tal preenchimento.

T. O tribunal de 1.ª instância e o Tribunal a quo não violaram quaisquer normas de apreciação da prova. Avaliaram o acervo probatório dos autos e concluíram nos termos que se conhece.

U. Acresce ainda o seguinte: considera o voto de vencido que o ónus de especificação do recurso da Recorrente interposto no Tribunal a quo se mostra respeitado na sua vertente primária e na sua vertente secundária. A recorrida estranha tal entendimento.

V. Ora, é suficiente olhar para o recurso interposto pela recorrente junto do tribunal a quo para verificar que estas regras não foram observadas. Com efeito, a Recorrente limitou-se a fazê-lo apenas relativamente ao ponto 12 da matéria dada como provada.

No mais, a Recorrente referiu genericamente os pontos 13 a 17 e transcreveu vários depoimentos de testemunhas e da própria, sem ao menos se dedicar individualmente a cada um dos pontos da matéria de facto fazendo a respectiva correspondência com as transcrições.

W. No que diz respeito à alteração da matéria de facto, fica demonstrado que tal alteração não é admissível por:

a. Não ter sido observado o ónus de especificação;

b. Não poder o Supremo Tribunal de Justiça alterar a matéria de facto,

como decorre do artigo 682.º, n. º2 do Código do Processo Civil;

X. Mantendo-se a matéria de facto inalterada, a Recorrida mantém a posição que manifestou relativamente ao regime jurídico aplicável em sede de contra-alegações de recurso perante o tribunal a quo;

Y. Com efeito, não resulta de nenhum elemento de prova junto aos Autos que a Recorrida tenha concorrido para os alegados danos sofridos pela Recorrente. Com efeito, não pode afirmar-se sem mais que “o facto de participar num programa de televisão causou dano à Recorrente.”.

Z. Mais, a Recorrente bem sabia que ia participar num programa de televisão e que tal participação implica, necessariamente, uma exposição pública.

AA. Termos em que deve improceder, totalmente, o recurso de revista interposto pela Recorrente, nos termos supra descritos.

Conclusões do Recorrido BB:

1. Quer o douto Tribunal de 1.ª instância, quer douto Tribunal a quo, bem analisaram, de forma crítica, as provas produzidas no âmbito dos presentes autos, pelo que, face à documentação carreada para os autos, à prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, bem como a visualização dos programas indicados pela Recorrente, a decisão do douto Tribunal a quo, não poderia ser outra que não aquela que consta do douto Acórdão agora em crise.

2. Impõe-se, aqui, invocar a definitividade do julgamento da matéria de facto no douto Tribunal a quo, a qual só pode ser afastada nas excepções consagradas no n.º 3 do artigo 674.º do Código de Processo Civil, ou seja, “ havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”.

3. Fora das situações elencadas na supra citada disposição legal, não é admissível, no âmbito do recurso de revista, a discussão das questões de facto que o douto Tribunal a quo tenha decidido definitivamente.

4. Ou seja, para que questões de facto pudessem ser discutidas no douto Tribunal ad quem, impendia sobre a Recorrente o ónus de demonstrar o desacerto da decisão recorrida e o melhor acerto da decisão que pretende;

5. A Recorrente teria que alegar a “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”.

6. A Recorrente não só não cumpriu com o ónus de especificação;

7. Como também não invocou uma única ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

8. Sem conceder, por mera cautela de defesa sempre se dirá que, de toda a prova produzida, não resultou provado que “nas gravações do dia ... de ... de 2021, o 2.º Réu dirigiu-se à Autora, aos gritos e em tom agressivo, afirmando que a mesma era uma “bitch”, que não tinha medo dela e que não a respeitava;

9. A testemunha DD limitou-se a relatar o que lhe foi transmitido pela ora Recorrente, pelo que, não teve um conhecimento direto dos factos.

10. Quanto às testemunhas FF e HH [os dois concorrentes finalistas], nenhuma destas testemunhas confirmou tal factualidade, assim como não confirmaram a testemunha II – Técnico de Som, nem a testemunha JJ – o Realizador. Estas duas ultimas testemunhas foram peremptórias a afirmar que nunca ouviram tal expressão, assim como garantiram que o contacto entre os ... e os concorrentes era inexistente fora do set das gravações.

11. Como bem refere o douto Tribunal a quoAnalisado o depoimento da testemunha, na própria transcrição que a apelante dele faz, constatamos que a testemunha em parte alguma do seu depoimento declarou que o epiteto em causa tenha sido dirigido à apelante, limitando-se a responder à pergunta em que é utilizada expressão em causa em termos vagos e imprecisos”.

12. Relativamente aos factos constantes na alínea l), m), p), q), r), s), t), w) e bb) dos factos não provados, da visualização dos programas identificados pela Recorrente, bem como da prova testemunhal e documental produzida, não foi possível verificar, nem nenhuma testemunha confirmou os alegados danos sofridos pela Recorrente, pelo que, também a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo, relativamente a cada um destes factos, não pode deixar de se considerar acertada.

13. Nem durante as gravações, nem nos artigos jornalísticos que foram publicados após o fim das gravações, nunca a ora Recorrente deixou transparecer qualquer um dos mencionados sentimentos - “… humilhada, constrangida, intimidada, diminuída e ofendida na sua dignidade, honra e consideração”.

14. Numa publicação datada de 2 de janeiro de 2022, é mencionado que, a “AA nasceu no ... e vive em ..., tal como quando o programa estreou. Depois do fim do mesmo, AA tornou-se uma mulher casada, tendo oficializado a união com o companheiro, DD,em ..., antes deregressar à ..., que acabou de desconfinar. Nos últimos tempos tem tentado gerir as aulas da filha em casa, o casamento, que "nem todo o dia é fácil", e a vinda de um novo morador: um cachorro que até foi com a família para os ... para "brincar na neve".”.

15. Mais acrescenta a mencionada publicação que “No que toca à cozinha, continua a fazer o mesmo que há uma década (destaque nosso): serviços privados para clientes, com grupos máximos de 15 pessoas. Enquanto criadora de conteúdos, tem publicado pequenos vídeos no Instagram onde ensina algumas receitas aos seguidores.”;

16. “Mas o conteúdo que cria não é de .... Também o ..., serviço procurado maioritariamente para interessados na indústria de entretenimento adulto, merece particular dedicação desta ...: "Adoro contar histórias, criar cenários que na verdade não existem, neste caso com pouca roupa". "Tem que ter a lingerie certa, a maquilhagem, a ideia toda, para contar uma história legal", explicou, defendendo que é necessária muita criatividade e planeamento por detrás destes conteúdos.”.

17. Para além destas múltiplas actividades, a ora Recorrente, ainda de acordo com a mesma publicação, “ encontra-se a comandar e apresentar o segmento "Na ... com AA", um programa de culinária emitido no canal ... B... .. no qual grava" receitas simples para cada pessoa, que todo o mundo consegue fazer", […]. Os episódios são gravados na ..., pela mesma, e emitidos no ....”.

18. Tudo, conforme documentação junta aos autos.

19. A Recorrente não foi capaz de provar que cumpriu a recomendação efetuada pela psicóloga que arrolou como testemunha, nomeadamente, ser acompanhada por um profissional em ..., na ..., face à necessidade das sessões serem realizadas presencialmente;

20. Acompanhamento esse que, pelos vistos, não sucedeu, ao contrário do que a Recorrente referiu nas suas declarações, ao mencionar que fazia as sessões com a psicóloga, que estava em Portugal, através de videochamada!

21. De igual modo, não se pode considerar como séria a alegação de que a Recorrente desistiu de se implantar no sector da restauração nacional.

22. Conforme confirmado pelo seu companheiro/marido, o qual declarou que ela nunca havia tentado tal possibilidade.

23. Face a tudo o exposto, resulta evidente a falta de prova dos alegados danos sofridos pela Recorrente, pelo que, naturalmente, o douto Tribunal de 1ª instância e o douto tribunal a quo tiveram que considerar os mesmos como não provados.

24. E tais danos não existiram porquanto, conforme igualmente demonstrado, o ora Recorrido não praticou qualquer facto ilícito contra a Recorrente.

25. Ora, conforme acima melhor explanado, da análise da factualidade dos presentes autos, bem como de toda a prova produzida, resulta claro que não estão reunidos os pressupostos legais da responsabilidade civil, nomeadamente, o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

26. Desde logo, porque nenhum facto ilícito foi praticado pelo ora Recorrido.

27. Salvo o devido respeito por melhor entendimento, parece correcta e justa a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo, no que aos pontos em análise no presente recurso diz respeito, julgar improcedente a pretensão indemnizatória da Recorrente.

28. Face ao alegado, é assim evidente que o douto Tribunal a quo não violou o disposto no n.º 1 e n.º 3 do artigo 70.º, artigos 483.º, 494.º e n.º 1 e n.º 3 do artigo 496.º, artigos 562.º e 563.º, todos do Código Civil; a alínea c) do n.º 1 do artigo 674.º e a alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º, ambos do Código de Processo Civil; e o 26.º da Constituição da República Portuguesa.

29. Consequentemente, carecendo de fundamento o recurso de revista apresentado pela Recorrente, pelo que, ao mesmo deve ser negado provimento e, consequentemente, ser confirmada, integralmente, a decisão recorrida, com o que se fará a costumada justiça!


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Sendo as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que delimitam o objecto da revista, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, cumpre decidir as seguintes questões:

- a fixação da matéria de facto pela Relação;

- se se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar.

Fundamentação.

O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. A 1ª Ré produziu e realizou em ... um programa televisivo denominado "...", programa que foi transmitido pela ....

2. O programa referido em 1. é uma adaptação do original britânico "..." e consiste numa competição culinária entre 16 concorrentes com o objectivo de escolher e, consequentemente, premiar o melhor ... "...".

3. Sob o comando e escrutínio do 2º. Réu os concorrentes, divididos por equipas, são submetidos a diversas provas técnicas e criativas ao nível da culinária.

4. No final de cada prova e, após avaliação dos pratos confeccionados por parte do ..., uma equipa é declarada vencedora, sendo-lhe atribuída uma recompensa, e à equipa derrotada é atribuída uma penalização, escolhida pelo ..., culminando, no final de cada programa, com a eliminação de um ou mais concorrentes.

5. A Autora e a l. a Ré assinaram o contrato, datado de ... de ... de 2020, junto com a petição inicial como documento n 0 1, cujo teor se dá aqui por reproduzido, denominado de "Contrato de participação no programa "...", do qual consta:

O Programa é baseado no conceito de uma competição ... entre os concorrentes e tem por finalidade premiar o melhor ... .... Para tal, todos os participantes deverão mostrar as suas habilidades e os seus conhecimentos na cozinha, assim como a sua capacidade de trabalhar num grande... Todos os participantes devem ser profissionais na área da ..., ou estar em formação na área. (...) serão preferenciais os participantes que tenham trabalhado ou prestado serviços de ... em ... antes da sua participação no concurso. (...)"; o programa em causa é composto por quatro fases, a saber: "a) Casting (não televisionado); b) Competição .com várias provas por semana); c) Eliminação de um ou mais concorrentes por episódio; d) Final — da qual sairá um vencedor"; em cada episódio os participantes são "avaliados pelo .../... e, nalgumas provas, por convidados do ... ... ou convidados do .../... (...)

6. A Autora integrou o elenco dos 16 concorrentes da 1ª temporada do "..."

7. As gravações do programa em análise tiveram o seu início no dia ...0...21 tendo terminado no dia ... de ... de 2021.

8. A l. a Ré e a ..., subscreveram "Contrato de Obra Audiovisual por Encomenda", datado de ... de ... de 2021, junto com a contestação apresentada pela 1 a Ré como documento n.º1, cujo teor se dá aqui por reproduzido, constando da cláusula 3. a alínea a), que competia à ..., "a indicação, contratação e pagamento da remuneração do Apresentador do programa".

9. O programa televisivo em causa foi repartido em 12 episódios, tendo sido emitidos entre ... e ... de 2021.

10. A Autora é ... e ... de profissão.

11. Após ter sido selecionada, a Autora foi informada da data de início das gravações, tendo comparecido no dia ... de ... de 2020, nos estúdios da "...", sitos em ..., para dar início às gravações do programa.

12. No decurso das gravações, no dia referido em 11., 0 2. 0 Réu questionou todos os participantes se já existia algum tipo de namoro entre eles e, dirigindo-se diretamente à Autora, perguntou-lhe "ainda não viste nenhum rapaz giro", tendo a Autora respondido que achava todos " desinteressantes".

13. No dia ... de ... de 2021 as gravações tiveram lugar num clube de boxe.

14. A 1ª Ré informou os participantes que lhes iria ser dada roupa para a atividade, tendo procedido à entrega a todos os participantes de uma t-shirt lisa, de cor branca, própria para a prática de actividades físicas.

15. Não dispondo a Autora de soutien, a t-shirt fornecida deixava sobressair os seus seios.

16. A Autora manifestou, aos colaboradores da l. a Ré, desconforto com o facto referido em 15., tendo, então, os colaboradores da 1 a Ré sugerido soluções que reduzissem o desconforto, designadamente a colocação de adesivos nas zonas do corpo que poderiam sobressair, tendo tal sugestão sido rejeitada pela Autora.

17. Os colaboradores da 1 a Ré asseguraram à Autora que não seriam gravados e transmitidos planos próximos da Autora.

E julgou não provado que:

a) No dia referido em 11., 0 2. 0 Réu, ao reparar na Autora, que vestia umas calças de ganga e uma t-shirt, num tom jocoso, questionou a Autora se não teria frio, acrescentando que a Autora não deveria estar com pouca roupa;

b) No dia ... de ... de 2021, no ... "...", sito em ..., quando os participantes se encontravam na área exterior do estabelecimento a conversar sobre o período de isolamento a que se encontravam sujeitos, uma vez que já haviam decorrido duas semanas, o 2º. Réu, dirigindo-se à Autora, referiu, insistentemente, que esta já devia sentir falta de sexo;

c) Nas circunstâncias referidas em b), 0 2 0 Réu, questionado pela Autora do motivo pelo qual tinha dito para deixar as vísceras de molho em leite, num tom malicioso e com conotação sexual, questionou a Autora se a mesma "não gostava de/não bebia leite" e, após a resposta negativa da Autora, voltou a insistir na pergunta;

d) Nas gravações do dia ... de ... de 2021, o 2.Réu dirigiu-se à Autora, aos gritos e em tom agressivo, afirmando que a mesma era uma 'I bitch", que não tinha medo dela e que não a respeitava;

e) No dia ..., numa marisqueira, local onde os participantes e o 2ª Réu permaneceram para jantar, à saída do restaurante, após a Autora ter trocado a camisola, o 2 0 Réu afirmou: "AA, você veste-se como se fosse sempre verão! Nós gostamos!";

f) No dia ... de ... de 2021, aquando da preparação para uma das provas eliminatórias, o 2º Réu tentou aliciar a Autora com a seguinte afirmação: "Queres vencer esta competição? Podemos fazer um acordo...Let's make a deal, I love a good deal!";

g) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 13., durante a sessão de alongamentos, o 2º Réu, ao reparar na transparência da t-shirt da Autora, perante todos os presentes, concorrentes, colaboradores e responsáveis da l. a Ré, exclamou, por duas vezes, "Aqui podem ver mamas perfeitas!";

h) A Autora replicou que tal observação não tinha qualquer piada, tendo o 2 0 Réu, num tom agressivo e apontando para a área genital da Autora, exclamado: "Quando fores velha ninguém te vai

i) Nas circunstâncias referidas em 16., a Autora, quando reclamou junto da 1 a Ré, mencionou que a t-shirt fornecida dava força e azo aos comentários do 2 0 Réu;

j) Na sequência do referido em g) e h), no dia ... de ... de 2021, 0 2. 0 Réu abordou a Autora, afirmando que é o maior defensor das mulheres e que tudo fez para a proteger e que o problema era da própria Autora porque não confiava em ninguém;

k) Após o término das gravações do programa e, no seguimento de uma reunião com responsáveis da lª. Ré sobre o que a Autora estava autorizada a falar em entrevistas, uma vez que esta última tencionava denunciar toda a situação, foi a Autora confrontada com a seguinte afirmação: "Fazer uma denúncia não vai dar em nada...ele é famoso, as pessoas adoram-no. Quem é a AA?";

l) Com os comportamentos do 2. 0 Réu, a Autora sentiu-se humilhada, constrangida, intimidada, diminuída e ofendida na sua dignidade, honra e consideração;

m) Em virtude dos comportamentos do 2. 0 Réu, durante todo o período de gravações do programa, a Autora sentiu dificuldades em dormir e descansar pelo estado de angústia e ansiedade em que se encontrava;

n) Cada dia de gravações era penoso para a Autora, uma vez que esta não sabia o que é que poderia suceder nesse dia;

o) Sempre que a Autora se deslocava para o local das gravações possíveis cenários pensava: "Será que hoje vai gritar comigo? Será que hoje vou ser novamente insultada e desrespeitada? Será que hoje vou ser alvo de piadas? Será que hoje vai fazer comentários sobre a minha roupa?..."

p) Em resultado dos comportamentos do 2º Réu, a Autora vivia em constante e permanente tensão, o que acabou por afectar a sua saúde mental, a sua vida pessoal, social e profissional;

q) A Autora, que era uma pessoa alegre, divertida, comunicativa e confiante, viu-se transformada numa pessoa triste, de choro fácil, nervosa e insegura;

r) A Autora passou a estar irritável, cansada e apática, não tendo prazer em executar tarefas simples que anteriormente lhe davam muito prazer;

s) Cozinhar, uma das grandes paixões da Autora e o que a motivou a participar no programa, converteu-se num suplício, bem como numa constante e amarga recordação das humilhações sofridas;

t) Mesmo após a finalização das gravações, a Autora, em resultado dos comportamentos do 2º. Réu, continuou a experienciar insónias, crises de ansiedade e tristeza, tendo recorrido a sessões de psicoterapia semanal para tratar/amenizar tal sintomatologia para publicamente conseguir aparentar uma normalidade de postura social;

u) Quando a Autora procurou arranjar contactos profissionais em Portugal era confrontada com insinuações sobre uma relação com o 2º Réu;

v) A Autora foi sendo sujeita a uma suspeição constante que havia perdido o concurso por um malsucedido envolvimento íntimo com o 2º Réu;

w) A Autora desistiu de se implantar no sector da restauração nacional por estar sempre associada de forma negativa ao 2. 0 Réu;

x) Os comportamentos do 2. 0 Réu impediram a Autora de vencer e de almejar, de forma imparcial, a possibilidade de vitória no "..." e de alcançar o seu prémio nunca inferior a € 20.000,00;

y) Com a imagem que se gerou em torno da Autora, esta ficou arredada da possibilidade de convites pagos para marcar presença em festas, eventos, espectáculos ou sessões fotográficas, gerando perdas, no mínimo, de 5.000,00 €;

z) Aquando da emissão do programa na ... e durante a segunda temporada a Autora voltou a reviver todas as humilhações que sofreu durante as gravações, que ainda hoje assolam a Autora;

aa) Os comportamentos adoptados pelo 2º Réu tiveram por objectivo perturbar e constranger a Autora, afetar a sua dignidade, bem como criar-lhe um ambiente intimidativo, hostil, humilhante e desestabilizador;

bb) A 1 a Ré, através dos seus representantes, pese embora as diversas reclamações efetuadas pela Autora, assistiu passivamente, tolerando todos os comentários, piadas, observações, humilhações e faltas de respeito do 2. 0 Réu para com a Autora.


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O direito.

Nas conclusões 17º a 24ª, a Recorrente justifica a admissão da revista em termos gerais, por não se verificar dupla conforme dada a existência de um voto de vencido na Relação.

Assim é, com efeito.

A circunstância de o acórdão recorrido ter tido um voto de vencido descaracteriza a dupla conforme (art. 671º, nº3 do CPC), ficando assim livre o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça sem necessidade de recorrer à via excepcional do art. 672º, desde que, bem entendido, se verifiquem, como sucede no caso, os pressupostos gerais de recorribilidade.

Entrando no mérito do recurso.

A Recorrente manifesta a sua discordância com a decisão da Relação sobre a matéria de facto, concretamente por ter julgado não provados os factos enunciados nas alíneas d); i); l); m); p); q); r); s); t); w) e bb), os quais, em seu entender, deveriam ter tido resposta positiva.

Diz a Recorrente que “o Venerando Juiz Desembargador Relator apenas considerou de forma genérica que a Recorrente não demonstrou o desacerto da decisão recorrida e o melhor acerto da decisão que pretendia” e que “o Mm.º Julgador a quo não realizou qualquer esforço de fundamentação para a não valoração da posição crítica assumida em sede de alegações de recurso e respetivas conclusões.” (conclusões 12ª e 13ª).

Preliminarmente, cabe referir que um acórdão de um Tribunal Superior não é uma decisão do relator, mas sim uma decisão que exprime o entendimento do colectivo ou, pelo menos, da maioria que aí se formou. Daí que não seja correcta a referência à posição que fez vencimento na Relação como a do Venerando Juiz Desembargador Relator.

Feita esta precisão, vejamos como a Relação justificou a sua decisão de manter inalterada a matéria de facto da sentença:

“ Relativamente à al. d) dos factos não provados, o tribunal a quo fundamentou a sua decisão, aduzindo que apenas a Autora, em seu benefício, se referiu a tal matéria, sabendo DD apenas o que lhe foi relatado pela Autora, sendo certo que, afirmando a Autora que os comportamentos e expressões em causa foram praticados/proferidos sempre na presença de todos os concorrentes e colaboradores da l. a Ré, inquiridos três dos concorrentes do programa — FF, KK e HH -, o realizador — JJ - e o técnico de som do programa — II - , nenhuma das testemunhas confirmou tal factualidade, nem foi possível confirmar a sua ocorrência através da visualização dos episódios do programa juntos aos autos. Por sua vez, não obstante a testemunha FF tenha afirmado que teria ouvido 0 2. 0 Réu a apelidar a Autora de "bitch", não só tal factualidade não foi confirmada pelas demais testemunhas que alegadamente estariam presentes, como a testemunha não soube concretizar o contexto, nem a circunstância, em que tal expressão teria sido utilizada e dirigida à Autora, sendo que a forma tímida e pouco segura com depôs e as contradições no seu depoimento tanto afirmando que o 2º Réu interagia muito com a Autora, como afirmando que tal interacção não era distinta em relação aos demais concorrentes — não logrou convencer o tribunal da ocorrência de tal facto".

A apelante discorda desta decisão e da sua fundamentação e pretende que este facto deve ser declarado provado por este Tribunal da Relação, estruturando esta sua pretensão, tanto quanto é possível extrair do corpo (a fls. sem número) e das conclusões da apelação (a conclusão 370 declara genericamente que "Resulta ainda da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e supra invocada, a forma desrespeitosa como o Apelado se dirige à Apelante trata-a por bitch"), nas suas próprias declarações em audiência e no depoimento da testemunha FF.

Analisado o depoimento da testemunha, na própria transcrição que a apelante dele faz, constatamos que a testemunha em parte alguma do seu depoimento declarou que o epiteto em causa tenha sido dirigido à apelante, limitando-se a responder à pergunta em que é utilizada expressão em causa em termos vagos e imprecisos - Posso dizer que me recordo vagamente de alguma coisa desse género..." — e a assentir com a expressão vaga "Posso dizer que sim" à pergunta do inquiridor "...se se lembra de uma situação dessas?".

Sendo estes os elementos de prova que a apelante invoca para a sua própria estatuição no sentido que o facto sob a al. d) "Resulta ...da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento. não podemos deixar de concluir que a mesma não atendeu na sua formulação à extensa e precisa fundamentação do tribunal a quo, não indicando nenhum elemento de prova que o tribunal a quo não tenha considerado e também não demonstrando que a valoração levada a cabo por esse tribunal violou as respectivas "legis aftis".

Nestas circunstâncias, impendendo sobre a apelante o ónus de demonstrar o desacerto da decisão recorrida e o melhor acerto da decisão que pretende, nos termos previstos na a'. b), do n 0 1, do art. 0 640. 0 , do C. P. Civil e não tendo a mesma logrado dar-lhe cumprimento, não estão reunidos os pressupostos legais, previstos no n. 0 1, do art o 662. 0 do C. P. Civil, para que este Tribunal da Relação possa alterar a decisão do tribunal de julgamento em 1 a instância.

O incumprimento do ónus que impendia sobre a apelante relativamente aos factos das restantes alíneas impugnadas é ainda mais evidente, uma vez que a mesma se limita a uma impugnação global da matéria dessas alíneas, a esmo, sem indicar em relação a cada uma delas os elementos de prova e sua valoração que impunham decisão diversa, escudando-se "...nas suas declarações, do seu marido e da psicóloga que consultou uma vez", como obtempera a apelada sociedade, em cumprimento do ónus que lhe é imposto pela a'. b), do n. 0 2, do art. 0 640 0 do C. P. Civil.

Atenta esta omissão da apelada, em relação às als. i), l), m), p), q), r), s), t), w) e bb) da matéria de facto não provada da sentença, mais do que a improcedência da apelação como acontece em relação à al. d), antes analisada, a omissão da apelante determina uma autêntica rejeição, tout court, da apelação, como determinado pelo corpo do n 0 1, do art. 0 640 0 do C. P. Civil.

Improcede, pois, esta primeira questão da apelação, rejeitando-se liminarmente a impugnação da sentença recorrida em matéria de facto relativamente às als. i), l), m), p), q), r), s), t), w) e bb).”

Resulta do excerto transcrito que a Relação reapreciou a decisão da 1ª instância relativamente ao facto dado como não provado na alínea d), confirmando a decisão da 1ª instância, mas não o fez relativamente aos factos dados como não provados nas alíneas i), l), m), p), q), r), s), t), w) e bb), por a Recorrente ter incumprido o ónus de especificação dos concretos meios probatórios exigido pelo art. 640º, nº1, alínea b) do CPC.

Conhecidas as limitações do STJ em matéria de facto, como flui do nº4 do art. 662º e nº3 do art. 674º do CPC, que vedam ao Supremo a reapreciação do julgamento de facto efectuado pelo tribunal recorrido alicerçado em prova sujeita ao princípio da livre apreciação, como sucedeu com o facto da alínea d), a decisão da Relação quanto a este ponto de facto não pode ser objecto do recurso de revista.

Diferentemente se passam as coisas com a recusa de reapreciar a matéria de facto por incumprimento dos ónus que o artigo 640º, nº1, do CPC, que é susceptível de controlo pelo STJ, por estar em causa julgar o modo de exercício dos poderes da Relação, dado que tal constitui “lei de processo” para os efeitos do art. 674º, nº1, b) do CPC (cfr. Acórdão do STJ de 06.05,2021, P.618/18).

Vejamos então se a decisão recorrida decidiu bem ao recusar apreciar a impugnação dos factos julgados não provados e enunciados nas alíneas i), l), m), p), q), r), s), t), w) e bb).

Comecemos por recordar as conclusões do recurso de apelação da recorrente (suprimem-se as que não respeitam à impugnação da matéria de facto).

2ª. A Apelante alegou que os Apelados adotaram e permitiram comportamentos que a perturbaram, a constrangeram e afetaram a sua dignidade.

3ª. A Apelada produziu e realizou em Portugal um programa televisivo denominado "...", o qual foi transmitido pela "....

4ª. Tratava-se de uma competição culinária entre 16 (dezasseis) concorrentes com o objetivo de escolher e premiar o melhor ... "...", sob o comando e escrutínio de um ..., o Apelado.

5ª. As gravações do programa em causa tiveram o seu início no dia ... de ... de 2020, tendo terminado no dia ... de ... de 2021.

6ª. O material gravado foi sujeito a uma repartição em 12 (doze) episódios distintos, com início de emissão pública no dia ... de ... de 2021 e termo a ... de ... de 2021.

7ª. A Apelante, ... e ... de profissão, apresentou a sua candidatura à participação no programa e, de entre vários candidatos, foi selecionada para integrar o elenco dos 16 (dezasseis) concorrentes da l. a temporada do "...".

8ª. Durante as gravações do programa, a Apelante foi alvo da atenção negativa por parte do ora Apelado.

9ª. Tais comportamentos negativos foram conduzidos com a indiferença da I a Apelada, de comentários e de perguntas intrusivas e ofensivas acerca da sua vida íntima e privada.

10ª. A imagem da Apelante foi objetivada e sexualizada por parte da Apelada.

11ª. A Apelante sofreu danos patrimoniais e morais com a experiência vivida no "..."

12ª. O que resulta da prova produzida em juízo? Salienta-se a seguinte com interesse para o presente recurso:

13ª. Assim, a Apelante entra na competição com uma expetativa legítima e sólida de ganhar, de se destacar, com o intuito manifesto de melhorar as suas qualidades profissionais como ... e para ficar conhecida em termos externos para o grande público.

14ª. Enquanto consequência direta da participação no concurso em causa, a pessoa da Apelante sofreu uma modificação negativa.

15ª. Terminada a participação no "..." a Apelante está deprimida, com falta de disponibilidade emocional para trabalhar, abatida psicologicamente, sentindo-se triste e humilhada

16ª. O que contribuiu diretamente paras este estado de espírito da Apelante e que tenha sido realizada prova em sede de audiência de discussão e julgamento?

17ª. Quanto ao Ponto 12 da matéria julgada provada, está demonstrado que o Apelado interpelou os participantes no concurso em causa para saber se existia algum tipo de namoro entre eles

18ª. O Apelado falando diretamente com a Apelante perguntou-lhe se "ainda não viste nenhum rapaz giro". Esta respondeu-lhe que achava todos "desinteressantes".

19ª. Esta primeira interação pública entre o Apelado e a Apelante, afetou-a.

20ª. Estávamos perante uma situação que nada tinha que ver com um programa de cozinha e a Apelante é confrontada publicamente e com divulgação televisiva com uma questão que chocava com a sua vida privada.

21ª. A Apelante é uma mulher que vivia e vive uma relação amorosa estável, sendo mãe de uma filha menor.

22ª. A Apelante não tinha de ser visada numa abordagem imprópria à sua vida pessoal.

23ª. A Apelante sentiu-se desvalorizada ao ser interpelada diretamente, ou seja, a uma concorrente de um concurso de culinária no sentido de saber se achava interessantes do ponto de vista íntimo, os outros participantes no "..."

24ª. Nos Pontos 13 a 17 da matéria julgada provada, abordam-se as gravações ocorridas num clube de boxe, tendo sido facultada roupa aos concorrentes para a prática desportiva.

25ª. A todos os concorrentes foi atribuída uma t-shirt lisa de cor branca.

26ª. Envergando tal peça de vestuário que lhe foi dada, sobressaíam os seios da Apelante.

27ª. Sabendo estar a ser filmada, a Apelante manifestou junto dos representantes da Apelada o seu desconforto e desacordo com a situação criada.

28ª. A Apelada através dos seus representantes assegurou à concorrente que não seriam gravados e transmitidos planos próximos da sua figura física.

29ª. 0 que não sucedeu.

30ª. Com o necessário destaque e enfoque televisivo os seios da Apelante, surgem num total desrespeito da sua pessoa e do seu pedido enquanto mulher para respeito do seu corpo.

31ª. As imagens divulgadas publicamente e produzidas pela Apelada não respeitaram o pedido da Apelante.

32ª. A Apelante sentiu o seu corpo objetivado e a Apelada foi responsável pela exibição de forma gratuita e explicita os seios da concorrente, apenas para, mais uma vez, tipificarem aquela pessoa como um símbolo sexual.

33ª. Um concurso de cozinha não serve para exibir o corpo dos concorrentes, sexualizando a pessoa.

34ª. A Apelante não deu o seu acordo para tal tratamento.

35ª. A pessoa da Apelante e a sua individualidade própria foram desrespeitadas pela Apelada.

36ª. No que concerne à defesa da sua imagem, a posição da Apelante encontra respaldo na jurisprudência, citando-se a título de exemplo o AC. STJ de 05 de junho de 2018, 7. a Secção, Proc. n. 0 1281/13.5TBTMR.E1.S1,

37ª. Resulta ainda da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e supra invocada, a forma desrespeitosa como o Apelado se dirige à Apelante trata-a por bitch.

38ª. O termo utilizado pelo Apelado, conforme é do conhecimento de qualquer homem comum, em calão é um anglicismo utilizado para significar cabra, galdéria ou puta em referência a uma pessoa em concreto,

39ª. Qual a razão para esta falta de respeito para com a pessoa da Apelante?

40ª. Perante a indiferença generalizada, de quem julgou, da Apelada que produziu o programa, do Apelado que interagia desta forma supra descrita com a Apelante, parece surgir uma explicação para tal e apresentada em sede de audiência de discussão e julgamento.

41ª. A testemunha supra invocada LL, id. a fls., limita-se a uma leitura simples da situação.

42ª. No entender daquela pessoa que priva profissionalmente com o Apelado, este diz o que entende, faz o que quer e dirige-se a terceiros da forma que bem entende.

43ª. A Apelante foi contratada para participar num programa televisivo / concurso de culinária.

44ª. A Apelante não foi contratada para ser simbolizada como um ativo sexual ou uma personagem com determinadas características sensuais do programa em questão.

45ª. A intimidade, a dignidade e o corpo da Apelante não foram respeitados pelos Apelados.

46ª. A resposta aos factos não provados constantes das Alíneas e ter como consequência a consagração de prova dos seguintes novos factos: (…) d); i); l); m); p); q); r); s); t); w) e bb) supra mencionadas tem de ser obrigatoriamente positiva.

Estatui o art. 640º, do CPC, sob epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto”:

1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados decisão diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3. — O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Em decisões sobre o modo de exercício dos poderes previstos no art. 640.º do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário — o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o ónus secundário de facilitação do acesso “aos meios de prova gravados relevantes para a apreciaçãoo da impugnação deduzida”, consagrado no n.º 2

( cfr. acórdão do STJ de 02.06.2016, P. 725/12.8TBCHV.G1.S1, cuja distinção é retomada, p. ex., no acórdão do STJ de 3 de Outubro de 2019 — processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2).

Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte informada, já quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº2 do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso. (cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 21.03.2019, P. 3683/16, de 17.12.219, P. 363/07, de 10.01.2023, P. 3160/16, e de 16.01.2024, P. 818/18).

Concretamente, quanto ao requisito da alínea b) do nº1 do art. 640º, refere Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição, pag. 197: “…” o recorrente deve especificar, na motivação dos meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos”.( sublinhado nosso).

Como se diz no acórdão de 16.01.2024, supra referido,

“a alínea b) do nº1 do art. 640º do CPCivil impõe ao impugnante a obrigação processual que consiste no dever de efectuar a correspondência directa, concreta e objectiva, entre os meios de probatórios por si indicados, e a justificação (por eles representada) para a modificação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados.”

O que se compreende. Só assim se torna possível alcançar, com inteiro rigor e certeza, as razões para a discordância do impugnante, facto a facto, as modificações almejadas, o que evitará a apresentação de impugnações genéricas, proibidas pela norma processual em apreço.

Tendo presente estes princípios, não pode deixar de se concordar com a Relação ao recusar reapreciar a decisão da 1ª instância que julgou não provados os nas alíneas d); i); l); m); p); q); r); s); t); w) e bb),

Pretendendo a Recorrente a alteração da decisão da 1ª instância sobre aqueles pontos de facto, no sentido de serem julgados provados, competia-lhe especificar os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da proferida na 1ª instância.

Ora, se é certo que a Recorrente cumpriu os requisitos das alíneas a) e c) do nº1 do art. 640º, omitiu totalmente o ónus de indicar, relativamente a cada facto que considera incorrectamente julgado o meio de prova que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida.

O incumprimento pela Recorrente do requisito da alínea b) não podia deixar de levar à rejeição da impugnação da decisão de facto relativamente aos factos dados como não provados nas alíneas d); i); l); m); p); q); r); s); t); w) e bb).

Nas conclusões 41º e 42º, reitera a Recorrente o direito a ser ressarcida pelos danos à sua personalidade e privacidade do seu corpo, com uma compensação reparadora.

Isto porque, segundo alega, “durante a sua estadia nas gravações do programa denominado “...”(…) foi alvo de comentários por si considerados ofensivos sobre o seu aspeto físico, de insinuações indesejadas de caráter sexual e de perguntas intrusivas da sua vida íntima e privada”, que se traduziu num “ataque à sua imagem, personalidade e privacidade do seu corpo, num constante de violência psicológica gratuita e desrespeitadora dos seus direitos pessoais”. (conclusões 6ª e 41ª).

Como é consabido, o dever de indemnizar por factos ilícitos (art. 483º do CCivil) só existe quando, cumulativamente se verifiquem os seguintes requisitos: a ilicitude do facto danoso; a culpa, sob a forma de dolo ou negligência; um nexo de causalidade entre o facto e os danos sofridos pelo lesado.

É sabido também que os danos podem ser de natureza patrimonial e não patrimonial, correspondendo estes aos danos insusceptíveis avaliação pecuniária, como sucede com as dores físicas ou morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, que não integram o património do lesado e que apenas podem ser compensados com obrigação pecuniária imposta ao lesado, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.

Pretendendo a Recorrente uma compensação reparadora pelos danos que alega ter sofrido pelo desrespeito da sua personalidade e privacidade do seu corpo, estão em causa danos não patrimoniais, que são indemnizáveis desde que “ pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”(art. 496º, nº1 do CCivil).

Ora, percorrendo a matéria de facto apurada nada se encontra que revele terem os RR praticados actos censuráveis, atentatórios do direito de personalidade da Autora, inexistindo qualquer facto que permita dar por verificadas as ofensas que a Recorrente alega.

Os comentários do 2ª Réu que constam do ponto 12 da matéria e a pergunta que dirigiu à Autora se “ainda não viste nenhum rapaz giro", podendo ser impertinente ou inapropriada, objectivamente não violou qualquer direito de personalidade da Autora. Aliás, a resposta da Autora que “achava todos desinteressantes” é reveladora que não atribuiu importância ao facto.

Como ensina Antunes Varela, “a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo, e não à luz de factores subjectivos, de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada” (Das Obrigações, I, 10ª edição, pag. 606).

É esta também a orientação da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (cf. acórdãos de 15.02.2007, P.07B302, disponível em www.dgsi.pt, de 18.12.2013, P. 09/09 Sumários 2013, p. 664, e de 18.12.2013, P.220/06, Sumários, 2013, p. 819)

Não provado que os RR tenham agido de forma ilícita, nem que a Autora tenha sofrido danos com suficiente relevância para justificar uma indemnização por danos não patrimoniais, a acção estava inevitavelmente condenada a improceder, como correctamente decidiram as instâncias.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 29.02.2024

Ferreira Lopes (relator)

Nuno Ataíde das Neves

Fátima Gomes