Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3042/21.9T8PRT.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
BENS COMUNS DO CASAL
ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DOS CÔNJUGES
ATO DE ADMINISTRAÇÃO
ADMINISTRADOR
FACTO ILÍCITO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
FORMA DE PROCESSO
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :
I – Sendo a regra a de que o cônjuge administrador de bens comuns não tem de prestar contas da sua administração, a dispensa de prestação de contas não exclui a responsabilidade daquele pelas consequências dos actos praticados intencionalmente em prejuízo do casal, consoante previsto no nº 1 do art. 1681 do CC – responsabilidade extracontratual, nos termos do art. 483 do CC, mas com a especificidade de não bastar uma qualquer culpa.
II – O cônjuge pode recorrer ao meio previsto no nº 1 do art. 1681, preenchidos os seus pressupostos, mesmo no decurso do casamento.
III - Os créditos de compensação não se confundem com outros créditos entre os cônjuges, créditos que nascem de factos específicos que não se relacionam com o curso normal das transferências de valores entre os patrimónios, tratando-se de créditos autónomos e excepcionais - podendo, designadamente, nascer créditos entre os cônjuges por força de responsabilidade civil baseada em actos de administração intencionalmente prejudiciais.

IV – No caso dos autos estamos perante uma acção que se fundamenta na responsabilidade civil da R. enquanto cônjuge administrador, por acto ilícito que lhe é imputado, gerador da obrigação de indemnizar (subsidiariamente sendo invocado o enriquecimento sem causa da R.) que não perante um simples pedido de determinação de compensações entre patrimónios, comum e pessoais dos cônjuges; o A. configurou a acção como de responsabilidade civil do cônjuge administrador por facto ilícito por ele intencionalmente praticado, querendo fazer responder a R. nesses mesmos termos, atendendo à previsão do nº 1 do art. 1681 do CC e, para o efeito, utilizou uma acção declarativa comum de condenação, acção adequada para o fim pretendido, atento o disposto no art. 10 do CPC.

Decisão Texto Integral:



Proc. nº 3042-21.9T8PRT.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):
                                               *
I - AA intentou a presente acção declarativa com processo comum contra BB.
Alegou o A., em resumo:
O A. e a R. casaram em 30-4-1998, sob o regime de bens de  comunhão de adquiridos, separando-se de facto em 12-10-2017.
Na pendência do casamento, a R., deliberada, dolosa e intencionalmente, desviou do património comum, impedindo que o A. deles usufruísse, lucros e dividendos resultantes de participações sociais por ela adquiridas e que integram um bem comum do casal; o mesmo sucedeu com os rendimentos de trabalho dependente da R., desviados parcialmente, deliberada, dolosa e intencionalmente.
As aludidas quantias não entraram nas contas comuns do casal nem foram utilizadas em proveito comum.
Dizendo recorrer à responsabilização do cônjuge administrador pelos actos praticados em prejuízo do outro cônjuge, consoante previsto no nº 1 do art. 1681 do CC, ou, por via subsidiária, ao instituto do enriquecimento sem causa, concluiu o A. dever a R. ser condenada a pagar-lhe uma indemnização no valor de 355.051,10 €, ou a restituir-lhe aquele mesmo valor com que enriqueceu à custa do A..
Pediu o A. a condenação da R. a pagar-lhe aquela indemnização no valor de 355.051,10 €, acrescida dos juros vencidos e vincendos, ou, subsidiariamente, a condenação da R. a restituir-lhe, ao abrigo do enriquecimento sem causa, a quantia de 355.051,10 € acrescida dos respetivos juros.
Citada, a R. contestou. Na contestação oferecida invocou a excepção da “autoridade do caso julgado” e apresentou uma diversa versão da factualidade que o A. alegara, concluindo pela improcedência da acção.
O processo prosseguiu.
Entretanto, por sentença de 10-2-2022, transitada em julgado em 21-3-2022, foi dissolvido por divórcio o casamento entre as partes (fls. 82-83).
No saneador,  o Tribunal de 1ª instância, considerando «não ser este processo o próprio para a satisfação da pretensão do A.», julgou «verificada a correspondente excepção dilatória inominada», absolvendo a R. da instância.
O A. interpôs recurso “per saltum” para o STJ, formulando as seguintes conclusões na alegação de recurso oferecida:
A. Requer-se, ao abrigo do disposto no art. 678º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que o presente recurso da decisão, proferida em 1ª instância, que pôs termo à causa (art. 644º, n.º 1, al. a) do CPC), suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que se verificam os requisitos exigidos por lei (art. 678º/1, als. a) e d) do CPC):
a) O valor da causa é superior à alçada da Relação;
b) O valor da sucumbência é superior a metade da alçada da Relação;
c) O Autor/recorrente, nas presentes alegações, suscita apenas questões de direito;
d) O Autor/recorrente não impugna, no presente recurso, quaisquer decisões interlocutórias.
B. Ocorreu erro de direito na decisão da 1.ª instância, ora recorrida, uma vez que o Tribunal a quo interpretou de forma manifestamente errada a disposição plasmada no artigo 1681º, n.º 1, 2ª parte do Código Civil.
C. Se por um lado se admite que o pagamento do crédito em causa na presente ação apenas pode ser exigível no momento da partilha, por outro não se aceita, data vénia, que tal crédito apenas possa ser apurado e declarado nessa sede, nem que o mesmo se trata de compensação entre patrimónios (comum e próprio do cônjuge lesante).
DO CRÉDITO SOBRE O OUTRO CÔNJUGE
D. Em primeiro lugar, se fosse intenção do legislador que a responsabilidade do art. 1681.º, n.º 1, 2.ª parte do CC, conferisse ao património conjugal comum um crédito sobre o património próprio dos cônjuges, tal como nas situações previstas nos arts. 1682.º, n.º 4 e 1687.º, n.º 2 do CC (como o refere a Mma. Sra. Juiz a quo), tê-lo-ia previsto expressamente, ou seja, teria consagrado uma norma nesse sentido (tal como fez para os demais preceitos legais) – mas não o fez.
E. Além disso, o dano indemnizado por ser um dano num bem próprio ou um dano em bens comuns. In casu, trata-se de um dano em bens comuns (a Ré desviou os seus rendimentos de trabalho dependente e os lucros e dividendos resultantes das quotas comuns do casal).
F. Tratando-se de um dano em bens comuns, poderá entender-se que o crédito daí resultante é i) integral – neste caso pertence ao património comum (o cônjuge autor assume a qualidade de defensor da comunhão); ou ii) correspondente a metade do dano – neste caso pertence ao cônjuge meeiro que se achou prejudicado (o cônjuge credor considera o crédito (metade do dano) um bem próprio).
G. In casu, o Autor não atua na veste de defensor da comunhão, protegendo mais o património comum como um todo, nem requer que o cônjuge lesante pague uma indemnização no que diz respeito ao prejuízo total e, portanto, mesmo no que diz respeito à sua metade no património comum.
H. O pedido formulado pelo Autor/recorrente na ação de responsabilidade civil instaurada consiste na condenação da Ré/recorrida a pagar-lhe uma determinada quantia correspondente a metade do valor dos bens comuns de que a mesma, durante o casamento de ambos, se apoderou, ou seja, a metade do dano.
I. Nesta medida, estamos perante um crédito do Autor/recorrente sobre a Ré/recorrida.
J. A jurisprudência e a doutrina têm-se pronunciado no sentido de que na ação de responsabilidade civil do art. 1681º, n.º 1 do CC o cônjuge lesado poderá obter a fixação do seu direito à indemnização e o direito aí obtido pela sentença traduzir- se-á num crédito sobre o outro cônjuge. – Vide, entre outros, Acórdãos de STJ de 26-11-2014 e de 08-04-2021; AUGUSTO LOPES CARDOSO (in “A Administração dos Bens do Casal”, Livraria Almedina, 1973, Coimbra, p.299) e FRANCISCO PEREIRA COELHO E GUILHERME DE OLIVEIRA (in Curso de Direito da Família, Vol. I – Introdução Direito Matrimonial, 5.ª ed., 2016, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, pp. 507 e 508).
DA FIXAÇÃO DO DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO EM AÇÃO PRÓPRIA E PRÉVIA À PARTILHA
1) AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL PREVISTA NO ART. 1681º/1 DO CC…
K. Sustentar que os prejuízos causados pelo cônjuge administrador durante a pendência do matrimónio apenas podem ser apreciados e reconhecidos no processo de inventário (como o faz a Mma. Sra. Juiz a quo) é, desde logo, entender que não é necessária a instauração de qualquer ação de responsabilidade civil com vista ao reconhecimento do direito a uma indemnização por esses prejuízos, designadamente (como é o caso) quando estamos perante um crédito sobre o outro cônjuge – quando é jurisprudência e doutrina dominante que o cônjuge que se sentir prejudicado com um ato de gestão praticado pelo outro pode reagir através da propositura de uma ação de responsabilidade civil por facto ilícito doloso prevista no art. 1681º, n.º 1 do CC – Vide, entre outros: Acs. do STJ de 08-04-2021, de 26-11-2014, de 02-05-2012, de 22-02- 2011; do TRP de 09-03-2020, 09-02-2017; do TRG de 08-03-2018; e do TRL de 04-02-2016.
L. Aliás, «[p]or ser uma ação especial e pela sua configuração legal o inventário nunca é o lugar próprio para discutir a responsabilidade civil dos ex-cônjuges e fixar indemnizações a favor do cônjuge lesado» (Ac. do TRP de 09-02-2017).
2) …SOB PENA DE REDUÇÃO DAS GARANTIAS DE DEFESA DAS PARTES
M. Sustentar que os prejuízos causados pelo cônjuge administrador durante a pendência do matrimónio apenas podem ser apreciados e reconhecidos no processo de inventário (como o faz a Mma. Sra. Juiz a quo) é, data vénia, reduzir, significativamente, as garantias de defesa das partes.
N. A responsabilidade civil do cônjuge administrador é excecional, pressupondo que a conduta do cônjuge administrador seja dolosa (Acórdão do TRG de 08-03-2018).
O. Assim, para apurar a existência do direito de crédito não basta uma simples operação aritmética, mas sim a avaliação e discussão, desde logo, da intenção dolosa do cônjuge administrador.
P. Acresce que, não existindo os bens no património comum à data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (porque a Ré/recorrida ocultou/desviou avultadas quantias monetárias (bens comuns) das contas comuns do casal vários anos antes da instauração da ação de divórcio) e sendo necessário o seu reconhecimento, há matérias e factos que devem ser conhecidos que vão para além da mera divisão.
Q. Vide a este propósito o Ac. do TRP de 15-02-2021 que dispõe que «[r}equerendo a questão mais aprofundada instrução, averiguação e análise, que não pôde ser objeto de suficiente indagação incidental no processo de inventário, deve o juiz remeter os interessados para os meios comuns, que oferecem garantias processuais acrescidas».
R. E o Ac. do TRL de 02-05-2017 que refere que a «remessa dos interessados para os meios comuns (…) pressupõe a subsequente instauração de uma acção judicial autónoma, a impulsionar pelos respectivos interessados, no âmbito da qual a matéria controvertida será devidamente discutida, dilucidada e decidida».
S. Por outro lado, se se tiver de aguardar pelo processo de inventário para ver reconhecido o seu direito de crédito, existirão, igualmente, graves obstáculos à produção de prova, atento o período temporal entretanto decorrido. Vide, neste sentido, também AUGUSTO LOPES CARDOSO (ibidem, p.299).
T. Em suma, a questão suscitada nos presentes autos (de responsabilidade civil por factos ilícitos) consubstancia uma questão complexa que não se coaduna com a simplicidade do processo de inventário, que não pode ser decidida por incidente e que sempre teria de ser remetida para os meios comuns.
U. Com a agravante da permanente diluição da prova da intenção dolosa da aqui Ré na administração destes bens – sobretudo num caso como o presente, em que, em virtude da presente ação já ter sido instaurada, a Ré já conhecer a posição, a prova existente e a já requerida pelo Autor.
V. Pelo que, dúvidas não restam de que a presente ação é o meio próprio para o Autor ver conhecido, discutido e fixado o seu direito de crédito sobre a Ré, sob pena de se violar as garantias de defesa das partes.
DO MOMENTO (DA EXIGIBILIDADE) DO PAGAMENTO DO CRÉDITO
W. Se se compreende o motivo pelo qual o direito à indemnização deve ser conhecido, discutido e fixado numa ação autónoma e prévia à partilha, maxime na ação de responsabilidade civil do art. 1681º, n.º 1 do CC e que tal ação pode ser instaurada a todo o tempo, inclusive, durante o matrimónio, também se compreende que o direito obtido pela sentença só possa ser exigido, isto é, só seja possível obter o pagamento da indemnização, no momento da partilha e não antes, pois antes da partilha não há divisão de meações.
X. Na partilha devem ser relacionados não só os bens existentes no património coletivo do casal à data da propositura da ação de divórcio (se a momento anterior não deverem retrotrair os seus efeitos), mas também aqueles que a esse património cada cônjuge deve conferir, por lho dever.
Y. Mas a partilha é, também, o momento de os cônjuges se exigirem reciprocamente o pagamento das dívidas entre si, aqui se incluindo a indemnização que tiver sido fixada na ação de responsabilidade civil, que o administrador pode ser devedor ao outro cônjuge, resultante de gerência dolosamente má (art. 1681.º).
Z. Com esta ação, o Autor poderá obter a fixação do seu direito à indemnização, a qual se traduzirá num crédito sobre a Ré, sendo então o seu pagamento considerado em sede de partilha do casal, de acordo com o estatuído no citado art. 1689.º, n.º 3 do CC, mais concretamente, este crédito deverá ser pago pela meação do cônjuge devedor no património comum ou, não existindo bens comuns ou não sendo estes suficientes, pelos bens próprios do cônjuge devedor.
AA. Neste sentido: ABÍLIO NETO (In Código Civil Anotado, anotação ao artigo 1689º, 11ª ed. refundida e atualizada, 1997, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda., Lisboa, pág. 1112), FRANCISCO PEREIRA COELHO E GUILHERME DE OLIVEIRA (ibidem, pp. 448 e 449) e AUGUSTO LOPES CARDOSO (ibidem, p.299). Cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 26-11-2014, também citado no Acórdão do STJ de 08-04-2021 e a declaração de voto de vencida (Des. Sílvia Pires) ao Acórdão do TRC de 18-10-2016.
A R. contra alegou nos termos de fls. 125 e seguintes, pugnando pela improcedência do recurso.
                                                        *

II – Tendo em conta o teor das conclusões da alegação de recurso, a questão que se coloca é, essencialmente, a de ponderar se este processo é (ou não) o meio próprio para o A. obter a declaração do direito a uma indemnização pelos alegados prejuízos decorrentes de actos intencionalmente praticados pela R. no decurso do casamento, com referência à administração por esta de bens comuns.
                                                        *
III – 1 - O Tribunal de 1ª instância cursou, essencialmente,  o seguinte percurso:
- O pedido do A. consiste na condenação da R. a pagar-lhe determinado quantia correspondente a metade do valor dos bens comuns de que a mesma, durante o casamento de ambos, se apoderou;
- Antes de estar dissolvido o casamento ou de ser decretada a separação de pessoas e bens entre os cônjuges, não podem estes dispor da sua meação nos bens comuns, assim como não lhes é permitido pedir partilha dos mesmos bens antes da dissolução do casamento;
- Se um cônjuge utilizou bens ou valores comuns deverá, no momento da partilha, compensar o património comum pelo valor actualizado correspondente; nos casos em que se verifica um relacionamento entre o património comum e o património próprio dos cônjuges o regime aplicável é o da sua compensação, que apenas tem lugar no momento da partilha;
- O A. imputa à R. a ocultação e apropriação de dinheiros comuns em prejuízo intencional do património conjugal comum que, assim, merece ser compensado por forma a que a sua meação por força da partilha não seja afectada negativamente;
- A possível responsabilidade gerada no âmbito do art. 1681.º, n.º 1, 2.ª parte do CC, confere ao património conjugal comum um crédito sobre o património próprio dos cônjuges, sendo esse património comum, e não o património próprio dos cônjuges, que, por ter o respectivo crédito, é compensado, finalidade que é por via da partilha que se cumpre, em caso de litígio entre os cônjuges, através de processo de inventário;

- É o inventário (e não o presente processo) o meio próprio destinado à partilha do casal - no que se inclui a compensação do património comum por aquilo que cada um dos cônjuges dever a esse património.

Vejamos.

Na p.i. o A. manifestou claramente pretender exercer o seu direito a uma indemnização por danos decorrentes de actos praticados pela R., enquanto administradora de bens que afirma serem comuns, com intenção de lhe causar prejuízo, escorando-se na previsão do art. 1681, n.º 1, do CC; subsidiariamente, o A. recorre ao instituto do enriquecimento sem causa.

O nº 1 do art. 1681 do CC determina: «O  cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a f) do nº 2 do art. 1678º, não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge».

Assim, em regra o cônjuge administrador de bens comuns não tem de prestar contas da sua administração. Todavia, a dispensa de prestação de contas não exclui a sua responsabilidade pelas consequências dos actos praticados intencionalmente em prejuízo do casal ou do outro cônjuge – responsabilidade extracontratual, nos termos do art. 483 do CC, mas com a especificidade de não bastar uma qualquer culpa, exigindo-se a intenção; não será responsável pelas consequências de uma administração negligente, ainda que isso resulte em prejuízo do casal ou do outro cônjuge

Nesta vertente, a responsabilidade civil do cônjuge administrador perante o outro cônjuge é excepcional ([1]).

Comenta, a propósito, Rute Teixeira Pedro ([2]) que se limita «a responsabilidade do cônjuge administrador aos atos dolosos, praticados intencionalmente em prejuízo do casal ou do outro cônjuge. Afasta-se, assim, por um lado a responsabilidade em caso de mera omissão e, por outro lado, em caso de mera negligência, exigindo-se uma culpa qualificada do agente. O objectivo desta irresponsabilização parcial é o de evitar a litigiosidade na constância da relação matrimonial».

Segundo Cristina Dias ([3]) o nº 1 do art. 1681 «consagra o princípio da irresponsabilidade do cônjuge administrador», tendo em conta que só poderá ser exigida a prestação de contas da administração dos bens do casal depois da dissolução do casamento ou da separação de pessoas e bens e só em relação ao tempo posterior ao divórcio ou à separação – terminada a sociedade conjugal, o cônjuge não administrador pode exigir do outro a prestação de contas desde a propositura da acção. Decorrendo da lei que, no decurso do casamento, o cônjuge só responde pelos prejuízos resultantes de actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge, esta autora menciona como uma das razões que justifica o estatuto especial do cônjuge administrador no que respeita à sua responsabilidade «as graves perturbações que as acções de indemnização de um dos cônjuges contra o outro, facilitadas pela obrigação periódica da prestação de contas, podem causar nas suas relações pessoais, em prejuízo da estabilidade familiar», sendo que somente «nos casos mais nítidos de actuação prejudicial do cônjuge administrador  se deve conceder ao lesado o direito a uma indemnização» ([4]). Salientando que o «cônjuge pode recorrer ao meio de defesa do art. 1681, preenchidos os seus pressupostos, mesmo no decurso do casamento»; referindo que para Lopes Cardoso, não será possível ao cônjuge lesado obter o pagamento da indemnização, a execução da sentença, enquanto não chegar o momento da partilha da comunhão, exprime que em sua opinião só assim será se o prejuízo se deu no património comum, considerando-se a indemnização dali resultante um bem comum ([5]).

Por seu turno, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira ([6]) referem que «no caso de se pedir responsabilidades a um  cônjuge administrador, vai ser necessário decidir se o crédito de indemnização é próprio ou comum» e que se «o dano indemnizável for um dano em bens comuns, é difícil optar entre duas possibilidades: ou o crédito integral pertence ao património comum, ou o crédito corresponde a metade do dano e pertence ao cônjuge meeiro que se achou prejudicado», bem como, também «é preciso resolver qual é o momento em que se pode exigir o pagamento de um crédito destes — imediatamente ou só no momento da partilha». Ponderando que a «sugestão dada pelo regime do art. 1697.º e a harmonia do sistema levarão a preferir o segundo momento, apesar de se tratar de um crédito de indemnização que goza, em geral, de alguns favores, em atenção à sua natureza reparadora».

Todavia, mais adiante ([7]) mencionam que durante o casamento se operam transferências de valores entre os patrimónios (o património comum e os dois patrimónios próprios dos cônjuges) formando-se «uma espécie de conta-corrente entre o património comum e os patrimónios próprios, uma conta que se fecha apenas no momento da partilha» e que a «técnica das compensações visa restabelecer as forças dos patrimónios, reconstituir o seu valor, corrigindo os desequilíbrios da conta-corrente através do reconhecimento de créditos de compensação em favor de cada património empobrecido».

Esclarecendo: «Os créditos de compensação não se confundem com outros créditos entre os cônjuges ou entre os seus patrimónios próprios.

Podem nascer créditos entre os cônjuges, designadamente por força de responsabilidade civil baseada em atos de administração intencionalmente prejudiciais (art. 1681.º, n.º 1) ou em administração contra a vontade do dono dos bens (art. 1681.º, n.º 3); ou ainda por força de responsabilidade por danos não patrimoniais que assente na violação culposa de direitos fundamentais ou do estatuto matrimonial do outro cônjuge.

Estes créditos nascem de factos específicos que não se relacionam com o curso normal das transferências de valores entre os patrimónios, com a tal conta-corrente de financiamentos que os créditos de compensação pretendem encerrar com justiça. Esses créditos são, neste sentido, autónomos e excecionais.

Uma diferença importante entre os dois tipos de créditos estará em que esses créditos entre cônjuges seguem o regime geral da responsabilidade civil, nomeadamente no que diz respeito ao seu vencimento e pagamento. De facto, nada impõe que só sejam cobrados na altura da partilha; nem há regra que o diga, nem eles se fundam numa razão semelhante aos créditos de compensação que pretendem encerrar uma conta que se mantém aberta ao longo de todo o matrimónio» (itálico nosso).

Já no acórdão do STJ de 26-11-2014 ([8]) foi consignado: «… se a requerente se sentir prejudicada com esse acto de gestão praticado pelo recorrente, pode reagir através da propositura de uma acção de indemnização de perdas e danos conforme decorre do art. 1681 nº1 do C. Civil.

É nessa acção que a requerente poderá obter a fixação do seu direito á indemnização.

E o direito aí obtido pela sentença traduzir-se-á num crédito sobre o outro cônjuge, sendo, então, o seu pagamento considerado em sede de partilha do casal de acordo com o estatuído no citado art. 1689 do C . Civil».

E no acórdão do STJ de 8-4-2021 ([9]) foi considerado a propósito do caso ali em análise:

«A acção proposta é configurada como de responsabilidade civil por facto ilícito, a partir da indicação da própria previsão do art. 1681 nº 1 do CCivil que consagra o direito de o cônjuge não administrador fazer responder aquele que administra, por actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal (ou do outro cônjuge o que não é o segmento da acção). Resulta da literalidade e do sentido antes apurado do texto legal que o lesado, mesmo que o seja de um património comum, pode intentar a acção a partir do momento em que verificar a existência da prática de actos dolosos do cônjuge administrador sobre os bens, sem ter de esperar pela prestação de contas, e nessa acção pode e deve ser discutida a responsabilidade do lesante».

Tecidas estas considerações com o propósito de melhor nos enquadrarmos, face ao que extraímos das mesmas, concluímos, no que interessa à decisão a proferir no presente recurso, que, na vigência do casamento, é possível ao cônjuge que entenda verificarem-se os respectivos pressupostos, recorrer à acção de indemnização por responsabilidade civil por fatos ilícitos, a que se reporta a parte final do nº 1 do art. 1681.

                                                           *

III – 2 - A pretensão do A. formulada em termos principais, tal como por ele é configurada na p.i., é a de obter a condenação da R. numa indemnização porque, segundo alega, na pendência do casamento entre ambos (no regime da comunhão de adquiridos), a R. enquanto cônjuge administrador de certos bens comuns do casal (rendimentos de trabalho da R. e lucros e dividendos resultantes de participações sociais por ela adquiridas) intencionalmente os desviou do património comum, impedindo que o A. deles usufruísse, não havendo as correspondentes quantias entrado nas contas comuns do casal ou sido utilizadas em proveito comum.

Estamos, assim, perante uma acção que se fundamenta na responsabilidade civil da R. enquanto cônjuge administrador, por acto ilícito que lhe é imputado, gerador da obrigação de indemnizar (subsidiariamente sendo invocado o enriquecimento sem causa da R.) que não perante um simples pedido de determinação de compensações entre patrimónios, comum e pessoais dos cônjuges.

Não cuidamos, agora, de ponderar sobre o bem ou mal fundado da pretensão do A., nem de discorrer sobre se o crédito indemnizatório a que ele se reporta será um crédito comum ou poderá configurar-se como próprio, nem mesmo se, a existir, quando é que esse crédito seria exigível (se logo que reconhecido pelo Tribunal ou, apenas, quendo da partilha).

O Tribunal de 1ª instância concluiu “não ser este processo o próprio para a satisfação da pretensão do A.” e é nesse âmbito que nos situamos – ora, ser, ou não, o processo o próprio para a satisfação da pretensão do A. adquire-se em face dos contornos daquela mesma pretensão, tal como o A. a configurou e independentemente daquilo que se possa perspectivar quanto ao seu resultado.

O A. configurou a acção como de responsabilidade civil do cônjuge administrador por facto ilícito por ele intencionalmente praticado, querendo fazer responder a R. nesses mesmos termos, atendendo à previsão do nº 1 do art. 1681 do CC.

Para o efeito utilizou uma acção declarativa comum de condenação, acção adequada para o fim pretendido, atento o disposto no art. 10 do CPC ([10]).

De qualquer modo, como vimos, podem nascer créditos por força da responsabilidade civil, nos termos apontados – esses créditos, nascem de factos específicos que não se relacionam com o curso normal das transferências de valores entre os patrimónios, tratando-se de créditos autónomos e excepcionais.

Querendo, o cônjuge prejudicado pela gestão poderá reagir por via de uma acção de indemnização para que seja fixado o direito à indemnização - foi o que o A. fez através da presente acção.

Concluímos, pois, não se verificar a excepção dilatória aludida pelo Tribunal de 1ª instância.

                                                           *

IV – Pelo exposto, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em conceder a revista, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento do processo

Custas pela R..

                                                           *

Lisboa, 15 de Junho de 2023


Maria José Mouro (Relatora)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia


SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora).

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[1]              Classificação operada por Remédio Marques, no “Código Civil Anotado”, Livro IV, Direito da Família, coordenação de Clara Sottomayor, Almedina, 2020, pag. 254.
[2]              No «Código Civil Anotado», coordenação de Ana Prata, Almedina, 2017, pag. 562.
[3]              Em “Breves notas sobre a responsabilidade civil dos cônjuges entre si: O novo regime do art. 1792º do Código Civil”, Estudos dedicados ao Professor Doutor Carvalho Fernandes, Revista Direito e Justiça, Universidade Católica Portuguesa, volume I, 2011, pág. 407.
[4]              Local citado, pags. 407-408.
[5]              Local citado, pag. 410.
[6]            No «Curso de Direito de Família», I vol., Imprensa da Universidade de Coimbra, 5ª edição, pag. 448.
[7]              Pags. 506-508.
[8]              Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 2009/06.1TBAMD-B.L1.S1.
[9]              Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 5577/18.1T8LSB.L2.S1.
[10]            É pela pretensão que se pretende fazer valer que se aquilatará do acerto da forma processual - questão distinta das razões da procedência ou improcedência da acção. Assim, é em função da providência jurisdicional concretamente solicitada pelo autor em juízo que o juiz deve aferir da propriedade e da adequação do meio processual por aquele eleito.