Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
225/14.1TBTND.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
ANULABILIDADE
DOLO
ERRO
DECLARAÇÃO
RISCO
DEVER DE INFORMAÇÃO
EXAME MÉDICO
BOA FÉ
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/29/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO / FALTA E VÍCIOS DA VONTADE – EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS.
Legislação Nacional:
REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO (RJCS), APROVADA PELA LEI N.º 72/2008, DE 16 DE ABRIL: - ARTIGOS 24.º, N.ºS 1, 2 E 3, ALÍNEA E), 25.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, N.º 1, 254.º, 342.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 02/12/2013, PROCESSO N.º 2199/10.9TVLSB.L1.S1;
- DE 15/04/2015, PROCESSO N.º 385/12.6TBBRG.G1.S1;
- DE 02/11/2016, PROCESSO N.º 427/11.2TBCNT.C1.S;
- DE 02/02/2017, PROC. Nº 349/14.5TBMTA.L1.S1, TODOS DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Tendo o contrato de seguro como função a transferência do risco de um determinado sinistro para a seguradora, mediante uma contrapartida, assume óbvia relevância a declaração inicial do risco, nomeadamente, no que à correspondente validade ou invalidade respeita (cfr. art. 24.º e ss. do Regime Jurídico do Contrato de Seguro – RJCS).

II - Diz-se frequentemente que essa especial relevância resulta, desde logo, de ser o tomador do seguro ou o segurado quem melhor conhece o risco de que se quer proteger, assim se compreendendo quer o significativo ónus de revelar completamente e com verdade o risco a segurar, quer as severas consequências de declarações falsas ou omissivas, determinantes para a celebração do contrato.

III - O conteúdo da declaração inicial do risco do tomador do seguro ou do segurado encontra-se definido no art. 24.º do RJCS, segundo o qual lhes cabe declarar: (1) com exactidão (2) todas as circunstâncias que conheçam e (3) que razoavelmente devam ter por significativas para a avaliação do risco pelo segurador, não havendo que distinguir entre declarações inexactas ou omissões.

IV - Entende-se que o tomador ou o segurado a que a lei se refere é o contraente concreto e não um contraente médio; é essa consideração do concreto e real tomador ou segurado que melhor se harmoniza com a exigência da revelação das circunstâncias que conheça e não das circunstâncias meramente cognoscíveis.

V - A figura do contraente medianamente diligente, expedito e informado releva para o efeito de determinar com objectividade quais as informações que se espera que sejam significativas para o segurador, do ponto de vista da apreciação do risco.

VI - Nos seguros de saúde, o que o n.º 1 do art. 24.º do RJCS exige ao tomador ou ao segurado é que revele as circunstâncias relativas à saúde do segurado que conhecem no momento da declaração e que, para um segurador medianamente cuidadoso na avaliação dos riscos que assume, são objectivamente de considerar relevantes para a decisão de contratar, ou para a definição concreta do conteúdo dos contratos.

VIII - Tendo resultado provado que, quando subscreveu a declaração de saúde constante do boletim de adesão, o segurado sabia que “sofria de hipertensão desde 20-08-2008, de insuficiência cardíaco congestiva desde 24-12-2008, e de obesidade desde 24-12-2008” e que omitiu intencionalmente que sofria de hipertensão, embora controlada, e de insuficiência cardíaca, não se pode deixar de concluir no sentido de que o segurado omitiu dolosamente informações sobre a sua saúde que foram relevantes para a apreciação do risco pela seguradora.

IX - Uma omissão dolosa determinante da celebração do contrato confere à seguradora o direito de opor a anulabilidade do contrato, nos termos do art. 25.º, n.º 1 do RJCS. Trata-se, no fundo, de uma particularização do regime da anulabilidade do erro causada por dolo, previsto em geral no art. 254.º do CC, cabendo à seguradora o ónus de provar o erro, a sua relevância e a existência do dolo (art. 342.º, n.º 2, do CC).

X - Resultando apenas provado que: “Se a ré tivesse tido conhecimento das doenças do falecido, e dependendo da evolução ao tempo, não teria aceitado celebrar o contrato de seguro ou, pelo menos, e após o pedido de exames médicos com avaliação clínica, teria aplicado um sobre prémio para o risco morte ou recusado cobrir determinados riscos” – e não que, não fora o erro provocado pelo dolo, o contrato não teria sido celebrado –, tal é insuficiente para a procedência da excepção de anulabilidade do seguro, por falta de prova da essencialidade do erro.

XI - A lei portuguesa impôs ao tomador do seguro ou ao segurado uma obrigação de revelação das circunstâncias com relevo na avaliação do risco que excede o âmbito do questionário eventualmente fornecido (sistema do questionário aberto) – cfr. art. 24.º, n.º 2, do RJCS.

XII - Resultando, contudo, provado que do boletim de adesão, predisposto pela seguradora e assinado pelo segurado, consta uma declaração de saúde, cuja assinatura dispensa exames médicos desde que o valor a pagar em caso de sinistro não exceda € 125 000, e um questionário a ser preenchido quando assim não seja, deve entender-se que um destinatário medianamente informado, cuidadoso e diligente entenderia que, caso o capital seguro não excedesse aquele montante, a seguradora apenas queria ter as informações especificadas na declaração de saúde, excedendo os limites da boa fé a invocação de omissão de outras circunstâncias relevantes (art. 236.º, n.º 1, do CC).

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: 



1. AA e marido, BB, instauraram uma acção contra a Companhia de Seguros CC, S.A., pedindo a condenação da ré no pagamento de € 103.243,84, com juros de mora vencidos desde 3 de Setembro de 2013 e vincendos até integral pagamento. Para o efeito, alegaram ser beneficiários do contrato de seguro de vida celebrado com a ré, sendo tomador o Banco DD, S.A. e aderente EE, entretanto falecido, terem comunicado o sinistro à ré e não ter esta procedido ao pagamento devido.

A ré contestou. Impugnou grande parte das afirmações dos autores, alegou que não dispunha de diversos elementos informativos de que carecia, razão pela qual “não aceitou nem recusou o sinistro” e, para o caso de vir a concluir-se que a situação clínica do aderente não correspondia à que foi descrita no boletim de adesão ou que pré-existiam causas de exclusão de cobertura que desconhecia, invocou a anulabilidade do contrato, “por falsas declarações”.

Ao abrigo do despacho de fls. 82, os autores responderam às excepções alegadas na contestação.

Em articulado superveniente, apresentado e admitido liminarmente na audiência final (cfr. fls. 222-223), a ré alegou que, segundo resulta da documentação clínica que entretanto foi junta ao processo, o segurado sofria de hipertensão desde 20 de Agosto de 2008 e de insuficiência cardíaca congestiva e obesidade desde 24 de Dezembro de 2008, “era seguido por médicos para controlo dessas doenças, tomava medicação, fazia consultas e exames de forma regular”, o que não podia ignorar quando aderiu ao seguro; assim, “omitiu de forma deliberada o seu estado de saúde impedindo a ré de avaliar o risco real que iria correr com a celebração do seguro”; a ré, se conhecesse as doenças jám existentes, “não teria aceite o seguro ou após pedido de exames médicos com avaliação clínica teria aplicado um sobreprémio e exclusão das doenças para cobertura de invalidez”.

Os autores responderam a fls. 240, impugnando os factos assim alegados .

A acção foi julgada procedente pela sentença de fls. 294, sendo a ré condenada a pagar aos autores “o montante do capital seguro, no valor de € 100.00.00 (…), acrescido de juros vencidos” (€ 3.243,84, à data da propositura da acção) “e vincendos sobre tal quantia, à taxa de 4% (…),devidos até efectivo e integral pagamento”.

Em síntese, entendeu-se na sentença:

– que ocorreu o sinistro coberto pelo contrato de seguro, celebrado para garantir o pagamento de um capital de € 100.000,00 à beneficiária, a autora;

– que a ré sustenta que “não lhe cabe liquidar o prémio do seguro, por ter havido omissão deliberada de declarações por parte do falecido (…) na declaração de saúde que este subscreveu em 23/1/2012, designadamente por ter omitido qualquer informação relativa a doenças pré-existentes das quais padecia. Por esse motivo, arguiu a seguradora a anulabilidade” do contrato;

– que, nos termos do artigo 24º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aplicável, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, o tomador do seguro ou o segurado estão vinculados ao dever de informação, até espontaneamente, não se esgotando no dever de preencher o questionário que lhe seja fornecido; quanto ao segurador, não pode prevalecer-se de declaração inexacta ou de omissão, se foi negligente no “controlo do dever de informação a cargo do segurado”;

– que, “analisada a factualidade apurada, dúvidas não restam de que, no momento em que preencheu a declaração de saúde – 13/1/2012 –, o falecido (…) já era portador das doenças de que viria a falecer”;

– que o conteúdo da declaração de saúde, “correspondente a declaração pré-elaborada pela ré” e assinada pelo segurado, “reflecte a realidade vivenciada pelo falecido (…) que, de facto, não se encontrava sob observação médica ou em tratamento médico regular, não apresentando qualquer deficiência física ou funcional ou, pelo menos, não tendo consciência de da mesma padecer”, tendo desenvolvido ate morrer a actividade profissional de motorista e “renovado a carta de condução para o efeito (5.19)”;

assim, não procede a anulabilidade oposta pela ré. E, mesmo que se entendesse ter ocorrido informação de “informações relevantes para a apreciação do risco pela ré”, não poderia esta invocar a anulabilidade, por “estar em causa informação conhecida do segurador” – artigo 24º, nº 3, alíneas d) e e) –, no sentido de que o funcionário da instituição bancária que contactou com o falecido observou “o seu estado físico (5.5)” que se deve haver como representante da seguradora, para o efeito. E tal observação abrangeu, inequivocamente, a obesidade de que o falecido padecia que, de harmonia com a prova produzida, era notória e facilmente perceptível”, “sendo do conhecimento comum que a obesidade se mostra associada, frequentemente, às demais patologias de que padecia o falecido”.

“Consequentemente, sendo do conhecimento comum que a obesidade se mostra associada, frequentemente, às demais patologias de que padecia o falecido EE, estaria em causa a eventual inoponibilidade pelo segurador de facto que era do conhecimento de seu representante no momento da celebração do contrato” ou, numa outra construção, de pessoa funcionalmente envolvida “no processo de avaliação do risco, de aceitação da proposta e de emissão do contrato em causa” – citando, aqui, Luís Poças, em obra identificada na sentença e, ali, Filipe Albuquerque Matos.

Conclui a sentença que não pode deixar de ser reconduzida àquele envolvimento funcional a situação do “funcionário perante quem a adesão é feita, ainda que pertença à instituição bancária e não à seguradora, pois nele esta delegou tal tarefa.

Assim, ainda que o dever de informação contratual não exclua os factos que são do conhecimento do segurador, não pode este, porém, impugnar o contrato prevalecendo-se de factos omitidos que fossem do seu conhecimento”;

– Cumpre ainda ter relevantemente em conta que a sentença entendeu que “a factualidade apurada não permite concluir que o falecido EE, ao preencher a declaração de saúde, tenha agido de forma negligente, dolosa, e muito menos como dolo agravado (…).  

2. A Companhia de Seguros recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, pelo acórdão de fls. 353, revogou a sentença e julgou a acção improcedente.

Em primeiro lugar, alterou alguns pontos da matéria de facto, nomeadamente:

– A parte sublinhada do ponto 5.5, no qual se dizia “Tal declaração de adesão foi subscrita no balcão do Banco DD, perante funcionário de tal instituição bancária que com o falecido EE contactou directamente, tendo observado o seu estado físico”, passou a dizer “sendo patente que este era obeso”;

– Acrescentou os pontos 9. e 10. da lista de factos provados, adiante transcrita.

Em segundo lugar, entendeu:

– ser inexacta a declaração do segurado: “dissentimos da sentença proferida quando considera que o aí declarado reflecte a realidade vivenciada pelo declarante. Com efeito, a despeito do falecido ter mantido a sua actividade de motorista internacional até à data do óbito, tendo renovado a carta de condução para o efeito – pelo que não estaríamos efectivamente perante uma qualquer “deficiência física ou funcional”– afigura-se que a factualidade apurada permite afirmar que se encontrava sujeito a tratamento médico regular, uma vez que tomava medicação para as patologias diagnosticadas, o que surge recorrentemente referenciado nos elementos clínicos disponíveis desde 2008 e no relatório de autópsia. Deste modo, e vistos os termos da declaração, afigura-se ser a mesma, quanto a este aspecto, inexacta”;

– que, “conforme resulta do citado art.º 24.º, nos seus n.ºs 1 e 2, a eventual elaboração de questionário pela seguradora – ou, dizemos nós, do texto pré-elaborado de uma declaração sumária de saúde – não isenta o proponente (…) do dever de declarar todas as circunstâncias relevantes suas conhecidas, estejam ou não contempladas na declaração ou questionário, conhecimento indispensável para que a seguradora proceda a uma avaliação correcta do risco. E se se reconhece sem dificuldade que o proponente, detendo embora conhecimento privilegiado das características deste risco, poderá não saber qual a relevância a atribuir a cada uma delas, afigura-se que no caso em apreço estamos perante informação de relevância indiscutível, não podendo razoavelmente sustentar-se, ainda que se trate de declarante com baixo nível cultural e de literacia, que não antecipasse a relevância para a seguradora, no âmbito de um seguro de vida, da informação de que sofria de hipertensão e insuficiência cardíaca no contexto de obesidade mórbida, ainda que se encontrasse medicado para controlo de tais patologias”, tendo portanto o dever de a fornecer;

– que a ré fez prova de que “caso o aderente tivesse dado a conhecer tais factos teria recusado a celebração do contrato ou, no limite, tê-lo-ia celebrado com diverso conteúdo”;

– que, “ao omitir voluntariamente a informação estando ciente da sua relevância, como não podia deixar de estar, violou o proponente dolosamente o assinalado dever de declaração, tornando anulável o contrato celebrado, nos termos previstos no art.º 25.º, n.º 1, e ficando o segurador isentado de cobrir o sinistro ocorrido em data anterior à do conhecimento do incumprimento doloso do contrato (cf. n.º 3 do preceito);

– que “a qualificação como doloso do comportamento do aderente falecido assenta na consideração de que o conceito de dolo pressuposto neste art.º 25.º é o que decorre da sua contraposição ao de negligência referido no art.º 26.º”;

que, apesar de ter de se considerar que “os factos que são do” conhecimento do funcionário bancário com quem o segurado contactou “devem entender-se como sendo também do conhecimento” da seguradora, e de ser patente a obesidade do segurado, não se pode concluir que isso possa ser enquadrado no nº 3 do artigo 24º, “tornando inoponível à autora a excepção de anulabilidade do contrato”; “no caso dos autos, considerando a factualidade apurada, não vemos que o conhecimento da obesidade de que padecia o falecido proponente, tendo este omitido as patologias de que sofria, permita afirmar a existência de uma conduta negligente do segurador.”;

– que, portanto, não ocorre “nenhuma das invocadas causas de inimpugnabilidade do contrato, não podendo subsistir a sentença impugnada”.

3. Os autores recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações de recurso, formularam as seguintes conclusões:


«I)   De acordo com os factos do artigo 5° supervenientemente alegados, a Seguradora/recorrida, ao impugnar a matéria de facto e ao pretender essa alteração não afastou nem afasta a possibilidade de aceitação do seguro, antes colocou a possibilidade de agravamento do prémio de seguro.

II) O que o Tribunal da Relação decidiu é bem para além disto, ao excluir essa possibilidade.

III) O doc. 1 junto com a contestação da seguradora, assume particular relevância no presente recurso de Revista, face ao acolhimento da impugnação da matéria de facto assente pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

IV) Efectivamente, o doc. 1, que constitui o Boletim de Adesão ao Seguro de Vida "subscrita no balcão do Banco DD, perante funcionário(a) de tal instituição bancária que com o falecido contactou directamente, sendo patente que este era obeso (matéria assente pelo TRC)" na parte do questionário referente ao "Estado de Saúde" nada tem assinalado nos quadrados respectivos de não ou sim, apesar de aí constarem questões tão simples como "tem algum problema de saúde?; tem alguma limitação física ou invalidez?".

V) Não se pode assim afirmar que houve omissão na transmissão de informação por parte do segurado, já que a sua obesidade era patente e notória perante o funcionário que com ele contactou e celebrou o contrato de seguro. Acresce que,

VI) O regime relativo ao incumprimento doloso da declaração inicial do risco, na apólice que o enuncie expressamente, terá de constar em caracteres destacados e de maior dimensão do que os restantes, nos termos previsto nas alíneas a) e b) do n° 3 do artigo 37° da Lei do contrato de seguro.

VII) No Boletim de Adesão ao Seguro de Vida — Doc. 1 junto com a Contestação — tais caracteres são em letra minúscula, compactada e quase ilegível para a maioria dos cidadãos e tal dificuldade de legibilidade é notória porquanto alguém ali apôs uma cruz a seguir à data, para indicar ao segurado onde deveria assinar. (…)

XIV) Para se poder extrair eventuais omissões ou inexactidões do segurado acerca do seu estado de saúde e a exoneração da sua responsabilidade, com fundamento na invalidade do contrato, era imperioso que perante aquele estado patente de obesidade ao funcionário que lhe "vendeu" o seguro, que as questões sobre o seu estado de saúde "do Boletim de Adesão, fossem preenchidas ou no mínimo comunicado esse estado (obesidade patente) à seguradora, para que esta tomasse posição sobre o agravamento ou não do prémio de seguro.

XV) E, ao não o fazer, entendem os recorrentes que tal configura abuso de direito da seguradora o facto de, num momento inicial e sem qualquer verificação perante uma situação notória e patente que se lhe apresentava (obesidade) não verificar ou exigir informações do segurado, ter aceite o contrato de seguro e só depois de lhe ter sido comunicado um sinistro (morte do segurado), vir invocar omissões e recusar o pagamento do capital seguro, recebendo e fazendo seus entretanto os prémios pagos. (…)

XIX) Os danos relevantemente causados pela omissão do esclarecimento são apenas as consequências patrimoniais da aplicação do próprio regime legal para os casos de informação ao tomador.

XX) Para a quantificação da obrigação de indemnizar, segundo os artigos 562° e ss. do Código Civil, em especial o artigo 566°, comparar-se-á o resultado da não cobertura com o resultado que existiria se o tomador tivesse cumprido o seu dever de informar. Quando o cumprimento desse dever teria provavelmente conduzido à cobertura, pelo mesmo ou por outro segurador, embora mediante o pagamento de um prémio de valor superior (como a Recorrida admite no próprio pedido de impugnação da matéria de facto perante o Tribunal da Relação, relativamente aos factos do artigo 5º supervenientemente alegados), o segurador deverá satisfazer a sua prestação contratual, embora descontando o acréscimo do valor total do prémio que ficou por pagar.

XXI) Quando o cumprimento do dever teria conduzido à não celebração de contrato de seguro algum que cobrisse o risco em causa, por não haver seguradoras que o aceitassem, a indemnização deveria corresponder à devolução do prémio pago.

XXII) A verificação da anulabilidade do contrato de seguro pressupunha não apenas a prova das declarações omissas quanto ao estado de saúde do segurado, mas também a sua relevância na outorga do contrato.

XXIII) Resulta do próprio pedido de impugnação da matéria de facto que a seguradora viu acolhido no Tribunal da Relação de Coimbra, deu-se como assente que: "Se a Ré tivesse tido conhecimento das doenças do falecido não teria aceitado o seguro ou após pedido de exames médicos com avaliação clínica teria aplicado um sobre prémio e exclusão das doenças para a cobertura da invalidez".

XXIV) Donde necessariamente se terá que concluir que com esse sobre prémio, não existiria qualquer reticência à celebração do contrato de seguro.

XXV) Tendo revogado a decisão da 1ª Instância, que julgou procedente a acção, o Tribunal recorrido violou, entre outros, os artigos 334°, 562° e 566° do Código Civil, artigos 24° nºs 3 e 4, 26° n° 1 e 37° n° 3 da Lei do contrato de seguro, aprovado pelo Dec. Lei n° 72/08, de 16 de Abril e 615°, alínea d) do Código de Processo Civil.

Termos em que,

Dando-se provimento ao presente recurso de revista, deve o Acórdão Recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue integralmente procedente a acção e condene a Ré nos pedidos formulados na p.i. pelos AA., aqui Recorrentes, tudo com as legais consequências.

Assim se decidindo se fará inteira e sã Justiça.”

A Companhia de Seguros ré contra-alegou, defendendo a manutenção do acórdão recorrido, concluindo a alegação desta forma:

«(…) 3º Os recorrentes não aceitam a douta decisão mas ficou provado que quando o falecido EE aderiu ao seguro, em 2012, sofria de hipertensão desde 20/8/2008, de insuficiência cardíaca congestiva desde 24/12/2008 e de obesidade desde 24/12/2008, doenças essas que eram por si conhecidas – factos 4º e 6º.

4º Mais se provou que o falecido omitiu de forma intencional que padecia de hipertensão ainda que controlada e insuficiência cardíaca – facto 9.

5º Com base nos factos provados 5, 10 e 11, não foi considerada conduta negligente do segurador, por efeito da obesidade patente perante a funcionária, tendo em conta que o falecido omitiu as patologias que sofria.

6º E, assim, foi considerada a impugnação do contrato e a sua anulação, o que está de acordo com a aplicação do artº 25º da LCS, pois, trata-se de omissões dolosas e não negligentes.

7º As omissões relevantes para os autos são as que implicam a vontade de mentir ou omitir, independentemente de vontade de prejudicar ou obter vantagem.

(…) 11º (…) de acordo com o regime legal aplicável do contrato de seguro, DL 72/2008 de16/04, o dever especial de declaração do risco e de prestar declarações exactas e completas cabe ao segurado ou tomador – artº 24º da LSC.

12º Trata-se de um dever de revelar todos os factos relevantes conhecidos do proponente.

13º Ou seja, a iniciativa de declarar as circunstâncias que afectam o risco cabia, sim, ao falecido e não à funcionária, devendo cair, por total falta de fundamento, a tese defendida de abuso de direito da recorrida,

14º Como segundo fundamento, os recorrentes levantam uma questão nova, não alegada na p.i. e que também não consta do pedido.

15º Alegam que a consequência da omissão constatada não é a não cobertura do sinistro, mas a cobertura com desconto do prémio que devia ter pago.

16º Por se tratar de questão nova, não deve merecer qualquer decisão deste tribunal, devendo este fundamento ser rejeitado “ab initio”.

17º Se assim não se entender, em qualquer caso não assiste razão aos recorrentes pois, ao contrário do que alegam, ficou provado que a recorrida ao tomar conhecimento das doenças não teria aceite o seguro ou, após pedido de exames médicos, teria aplicado um sobre prémio – facto 10.

(…) 21º Deve, assim, manter-se a impugnação e anulação do contrato de seguro dos autos, por estar factualmente sustentada tal decisão atento o facto 10 provado.

(…)».

3. Vem definitivamente provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

«1. Em 23/1/2012 foi celebrado um contrato de seguro de vida temporário anual, renovável, aí figurando como seguradora a ré, como tomador do seguro o banco “Banco DD, SA”, como segurado EE, sendo beneficiária, em caso de morte do aderente, a autora AA e sendo o capital seguro € 100.000,00 (artigos 1º e 2º da petição inicial e 2º da contestação);

2. Resulta do artigo 2.º das Condições Gerais do contrato mencionado no artigo anterior, relativo a “objecto do contrato”: “(…) a CC garante o pagamento do capital seguro verificando-se o evento a que respeita o risco coberto, se abrangido pela cobertura ou coberturas contratadas e desde que não ocorra nenhuma causa de exclusão” e do seu artigo 3.º, relativo a: “coberturas obrigatórias”: “1. Seguro principal morte: no caso de morte da pessoa segura, nos termos previstos nas condições do contrato, a CC garante o pagamento do capital seguro ao beneficiário” (artigos 3.º e 4.º da petição inicial e 3.º da contestação);

3. Do certificado de adesão nº 201…2 relativo a tal contrato, titulado pela apólice nº 80…1 consta, como data de entrada em vigor das suas condições: “Às 00 horas do dia 23/01/2012”, sendo a data do seu termo: “00 horas do dia 23/01/2013” (artigo 2º da petição inicial);

4. Para celebração de tal seguro de vida foi necessário o preenchimento de um boletim de adesão, instruído com uma declaração de saúde, a qual foi datada e assinada em 23/1/2012 pelo segurado EE, com o seguinte conteúdo:

“Declaração de Saúde

A declaração de saúde, não sendo necessários quaisquer exames médicos, será suficiente nas seguintes condições:

- para capitais seguro Vida Individual Banco DD e/ou Crédito Habitação Banco DD, junto da CC iguais ou inferiores a € 125.000,00.

Declaro não estar sob observação médica ou em tratamento médico regular, não ter interrompido por mais de 15 dias consecutivos, nos últimos 5 anos, a minha actividade laboral por motivos de saúde, não ter sido operado ou internado num estabelecimento hospitalar, não ter fármaco dependência ou toxicomania, não ter alguma deficiência física ou funcional, não ter sido objecto de recusa ou agravamento de prémio aquando da subscrição de um seguro de vida.

Tomei conhecimento das condições contratuais e que as coberturas desta Apólice só terão efeito na condição de a proposta de seguro ter sido aceite pela CC, desde que não me encontre em estado de incapacidade nesta data e que qualquer omissão ou falsa declaração pode anular a minha adesão ao contrato. Autorizo os médicos ou qualquer entidade que me tenha tratado ou examinado a fornecer à CC sempre que esta solicitar todas as informações relacionadas com o meu pedido de adesão ou com um eventual sinistro”, tendo sido com base em tal declaração que a ré aceitou celebrar o contrato de seguro em causa nos autos, não tendo exigido a realização de quaisquer exames médicos (artigos 6.º, 7.º, 11.º, 12.º da contestação e 25.º, 26.º e 27.º da resposta ao articulado superveniente);

5. Tal declaração de adesão foi subscrita no balcão do Banco DD, perante funcionário(a) de tal instituição bancária que com o falecido EE contactou directamente, sendo patente que este era obeso (artigo 28.º da resposta ao articulado superveniente).

6. À data em que aderiu a tal contrato de seguro, o falecido EE sofria de hipertensão desde 20/8/2008, de insuficiência cardíaca congestiva desde 24/12/2008, e de obesidade desde 24/12/2008, doenças essas que eram por si conhecidas (artigos 1.º e 3.º do articulado superveniente – fls. 222);

7. Da documentação clínica junta aos autos a fls. 196 consta que o falecido, além do mais aí exarado, padecia de “hipertensão sem complicações” (artigo 6.º da resposta ao articulado superveniente);

8. Por força de tais doenças, o falecido EE consultava médicos, o que fazia de forma irregular, e tomava medicação, designadamente Olsar, Lasix e Aldactone, utilizados para controlo das patologias mencionadas no artigo anterior (artigos 26.º e 27.º da contestação e 2.º do articulado superveniente);

9. Ao subscrever a declaração referida em 4. o falecido omitiu de forma intencional que padecia de hipertensão, ainda que controlada, e insuficiência cardíaca (resposta ao art.º 4.º do articulado superveniente).

10. Se a ré tivesse tido conhecimento das doenças do falecido, e dependendo da evolução ao tempo, não teria aceitado celebrar o contrato de seguro ou, pelo menos, e após pedido de exames médicos com avaliação clínica, teria aplicado um sobre prémio para o risco morte ou recusado cobrir determinados riscos (resposta ao art.º 5.º do articulado superveniente).

11. O contrato de seguro celebra-se com base nos elementos fornecidos pela pessoa segura constantes do boletim de adesão e declaração de saúde, resultando do artigo 7.º, n.º 4 das respectivas condições gerais: “As omissões, dissimulações ou declarações falsas, inexactas ou incompletas, que alterem a apreciação do risco, prestadas pela pessoa segura, concedem à CC, nos termos legais o direito à resolução do contrato, com as respectivas consequências e sem prejuízo de aquelas pessoas poderem eventualmente responder por perdas e danos” (artigo 8.º da contestação);

12. Resulta ainda do artigo 18.º das condições gerais do contrato de seguro em causa, relativo a “liquidação das importâncias seguras”: “(…) 1.2.1. O pagamento de qualquer indemnização relativa a este contrato só será exigível depois do envio à CC, do pedido do beneficiário e dos seguintes documentos justificativos e: a) Em caso de morte (…) certificado de óbito emitido por entidade oficial competente; (…) – se a morte tiver ocorrido por doença, relatório do médico assistente ou de família (segurança social) ou medicina do trabalho referindo o início, evolução e duração da causa de morte. Para um melhor esclarecimento da patologia associada à causa da morte, a CC poderá solicitar o relatório da autópsia, se assim o entender” (artigo 9.º da contestação);

13. O contrato de seguro foi objecto de uma rectificação, pela qual foi alterado o 1.º nome do beneficiário de “FF” para “AA”, por se ter verificado a existência de um lapso, conforme comunicação de fls. 64 (artigo 4.º da contestação e 1.º do articulado de resposta às excepções);

14. Em 20/5/2012 faleceu EE, constando do respectivo certificado de óbito “causa desconhecida” e das conclusões do relatório de autópsia médico-legal: “1º A morte de EE foi devida a cardiopatia com dilatação e coronariopatia aterosclerótica num contexto de obesidade mórbida. 2º Tal quadro constitui causa de morte natural. 3º O exame post mortem permitiu ainda revelar uma congestão vascular generalizada e alterações morfológicas pulmonares consequentes de cardiopatia. 4º As análises toxicológicas realizadas não revelaram a presença das substâncias pesquisadas” (artigos 6.º e 7.º da petição inicial e 15.º, 19.º e 20.º da contestação);

15. Da alínea C) do relatório de autópsia, relativa a “Informação” consta, além do mais que: “andava medicado com diprogenta, lasix, actidox, olsar, aldactone, nimed, magnesona” (artigo 25.º da contestação);

16. Em 15/5/2013 pelo Magistrado do Ministério Público afecto aos serviços do Ministério Público de T… foi proferido o despacho cuja cópia consta de fls. 32 e ss dos autos, aí se referindo, além do mais: “(…) a causa da morte de EE ficou a dever-se a cardiopatia com dilatação e coronariopatia aterosclerótica num contexto de obesidade mórbida”, sendo esta causa de morte natural (…) Pelo exposto (…) determina-se o arquivamento dos presentes autos (…)” (artigo 8.º da petição inicial e 5.º do articulado de resposta às excepções);

17. Por carta de 14 de Junho de 2013 dirigida à ré pela autora, cuja cópia consta de fls. 36 e 37 dos autos, acompanhada da remessa de certificado de óbito de EE, cópia do cartão de cidadão da autora e após ter requerido a passagem de certidão do relatório de autópsia ao processo de inquérito nº 143/12.8TBATND, pendente nos serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de T…, comunicou esta, além do mais aí exarado, o seguinte:

“O Sr. EE dos Santos faleceu a 20.05.2012, tendo contratado convosco o seguro acima referido.

Ora, sucede que, o financiamento junto do Banco DD, SA, há muito que se encontra liquidado.

Não obstante isso mesmo, sempre o prémio do seguro continuou a ser pago pela pessoa segura até ao seu óbito.

Tem conhecimento a ora exponente que o Tribunal Judicial de T… já vos disponibilizou, há poucos dias atrás, o relatório de autópsia do Sr. EE.

Assim, na posse do referido relatório de autópsia, estão V. Exªs em condições de me liquidarem o valor seguro, na qualidade de beneficiária do mesmo.

Agradeço-vos, por isso, uma resposta tão breve quanto possível a esta minha carta. (…)” (artigos 10º e 11º da petição inicial);

18. A ré recebeu o relatório de autópsia dos serviços do Ministério Público de T…, mas não procedeu ao pagamento à autora da quantia por esta reclamada, o que determinou que esta lhe dirigisse a carta cuja cópia consta de fls. 42 e 43 dos presentes autos, datada de 2/9/2013, na qual, além do mais rectifica um lapso em que incorrera na carta de 14/6/2013, ao intitular-se companheira do falecido, quando na verdade era a mãe da companheira daquele (artigos 11.º, 12.º e 13.º da petição inicial e 17.º da contestação);

19. A ré persistiu na recusa do pagamento do capital reclamado pela autora, argumentando necessitar do relatório do médico assistente ou de família, por forma a obter as datas de diagnóstico das doenças associadas à morte e aos seus antecedentes pessoais, por forma a aferir se o proponente estava ou não nas condições previstas na declaração de saúde (artigo 14º da petição inicial e 13º e 14º da contestação);

20. Até à data da apresentação da contestação, a ré não havia recebido relatório médico do médico assistente ou de família com início, evolução e duração da causa de morte do falecido, desconhecendo as datas de diagnóstico das doenças mencionadas no relatório de autópsia, razão pela qual não aceitou, nem recusou o sinistro (artigos 28º e 38º, 39º, 48º da contestação);

21. Durante muitos anos e até à data da morte, o falecido EE foi camionista de transportes internacionais, tendo renovado a sua carta de condução em Março de 2012, submetendo-se a exames médicos para o efeito, sendo que no próprio dia da sua morte, porque não se encontrava doente, deveria ir trabalhar (artigos 3.º e 4.º do articulado de resposta às excepções e 2.º e 3.º da resposta ao articulado superveniente – fls. 240 e ss);

22. Por vezes, o falecido EE recorria aos serviços de urgência do Hospital de T…, por força de problemas de saúde como insónias, dores musculares, dores nas costas, edemas nos membros (artigos 11.º e 20.º do articulado de resposta ao articulado superveniente);

23. Por volta dos anos de 2010, 2011 e 2012, o falecido António João e a companheira recorreram a vários empréstimos, destinando as quantias financiadas a um negócio de restauração que aquela desenvolvia com a ajuda do falecido nas suas folgas, sentindo-se este com energia e saúde para assumir tais investimentos (artigos 15.º, 16.º, 17.º da resposta ao articulado superveniente). »


4. Cumpre conhecer do recurso, no qual está essencialmente em causa saber se procede ou não a anulabililidade invocada pela ré seguradora, com fundamento em declarações inexactas e omissões na declaração de saúde constante do boletim de adesão e referida no ponto 4 da matéria de facto provada, por parte do segurado.

Como se viu, as instâncias divergiram, quer quanto à própria existência de declarações inexactas e/ou de omissões relevantes, quer quanto à relevância do conhecimento ou da cognoscibilidade da obesidade do segurado por parte da funcionária que recebeu o boletim de adesão com a declaração de saúde do segurado, no contexto das patologias de que o segurado padecia e de que veio a falecer, com referência ao nº 3 do artigo 24º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro; recorde-se que a questão foi considerada em 1 ª instância, como obiter dictum.

Justamente porque a morte resultou dessas patologias (pontos 4, 6, 14, e 16 dos factos provados), não se coloca a questão de saber se, para que um seguro seja anulável com fundamento em declarações inexactas ou em omissões, para além da causalidade relativamente à celebração do contrato é ainda necessário que o sinistro tenha sido causado pelos factos omitidos ou falsamente referidos – cfr. os acórdãos deste Supremo Tribunal de 2 de Novembro de 2016, www.dgsi.pt, proc. nº 427/11.2TBCNT.C1.S ou de 2 de Fevereiro de 2017, www.dgsi.pt, proc. nº 349/14.5TBMTA.L1.S1.


5. Antes de mais, e em primeiro lugar, cumpre excluir a apreciação de uma questão apenas colocada no recurso de revista: a de uma eventual obrigação de indemnizar por parte do Banco, por omissão ilícita da prestação de esclarecimentos ao segurado, quanto às consequências de falsas declarações ou de omissões relevantes, por aplicação “do próprio regime legal para os casos de informação ao tomador” –  conclusões XIX a XXI. Na verdade, tal pretensão equivale a uma alteração inadmissível do pedido e da causa de pedir iniciais – cumprimento de um contrato de seguro de vida, por morte do segurado.

Em segundo lugar, há ainda que referir que os recorrentes não arguiram qualquer nulidade do acórdão recorrido, nomeadamente por ter ido além do pedido: cfr. conclusão II.

Efectivamente, vem provado que “10. Se a ré tivesse tido conhecimento das doenças do falecido, e dependendo da evolução ao tempo, não teria aceitado celebrar o contrato de seguro ou, pelo menos, e após pedido de exames médicos com avaliação clínica, teria aplicado um sobre prémio para o risco morte ou recusado cobrir determinados riscos (resposta ao art.º 5.º do articulado superveniente)”.

Trata-se todavia de matéria invocada por via de excepção, e não de qualquer definição do pedido da acção. E, seja como for, não foi arguida qualquer nulidade do acórdão recorrido.


6. Tendo em conta que o seguro dos autos foi celebrado em 23 de Janeiro de 2012, é-lhe aplicável o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pela Lei nº 72/2008, de 16 de Abril.

Sabemos que a respectiva interpretação e articulação com os princípios da boa fé – marcadamente relevante neste contrato, quanto à definição dos direitos e deveres recíprocos das partes – e da protecção do consumidor, quando de contratos com consumidores se trate, não são sempre isentos de dúvidas. Mas agora interessa especialmente recordar que, tendo o contrato de seguro como função a transferência do risco de um determinado sinistro para a seguradora, mediante uma contrapartida, é óbvia a relevância que assume a declaração inicial do risco, nomeadamente no que à correspondente validade ou invalidade respeita (cfr. artigo 24º e seguintes do Regime Jurídico do Contrato de Seguro).

Diz-se frequentemente que essa especial relevância resulta, desde logo, de ser o tomador do seguro ou o segurado quem melhor conhece o risco de que se quer proteger; deste ponto de vista, compreendem-se, quer o significativo ónus de revelar completamente e com verdade o risco a segurar, quer as severas consequências de declarações falsas ou omissivas, determinantes para a celebração do contrato.

Do lado da seguradora, protege-se por esta via a segurança na decisão de contratar e de aceitação do âmbito e condições de cobertura, ou dos termos da contrapartida, para apenas referir alguns pontos ostensivamente dependentes da possibilidade de real avaliação do risco em jogo – ou seja, da probabilidade de o sinistro ocorrer durante a vida do contrato.

No entanto, em caso algum poderemos esquecer, por exemplo, que a boa fé é por vezes chamada a temperar regimes que têm de ser avaliados nas perspectivas de todos os contraentes  (pense-se, por exemplo, nos casos em que se exclui que a seguradora se possa prevalecer de declarações falsas ou reticentes do segurado ou do tomador do seguro), que frequentemente o clausulado dos contratos é predisposto pela seguradora (o que pode por exemplo ter consequências quanto ao dever de informação ao aderente, ou à interpretação do texto contratual), ou que as exigências de protecção do consumidor podem justificar soluções de reequilíbrio contratual (por exemplo, na definição do regime de retenção ou devolução dos prémios pagos, em caso de invalidade do contrato).


7. Em termos necessariamente sucintos, recorda-se que o conteúdo da declaração inicial do risco do tomador do seguro ou do segurado se encontra definido no artigo 24º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro: cabe-lhes declarar (1) com exactidão (2) todas as circunstâncias que conheçam e (3) que razoavelmente devam ter por significativas para a avaliação do risto pelo regurador, não havendo que distinguir entre declarações inexactas ou omissões (cfr., a título de exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Dezembro de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 2199/10.9TVLSB.L1.S1).

Entende-se que o tomador ou segurado a que a lei se refere é o contraente concreto, e não um contraente médio; o recurso a essa figura do contraente medianamente diligente, expedito e informado releva para o efeito de determinar com objectividade quais as informações que se espera que sejam significativas para o segurador, do ponto de vista da apreciação do risco. É essa consideração do concreto e real tomador ou segurado que melhor se harmoniza com a exigência de revelação das circunstâncias que conheça, e não das circunstâncias meramente cognoscíveis.

Pensando nos seguros de saúde, como é o caso dos autos, o que o nº 1 do artigo 24º exige ao tomador ou ao segurado é que revelem as circunstâncias relativas à saúde do segurado que conhecem no momento da declaração e que, para um segurador medianamente cuidadoso na avaliação dos riscos que assume, são objectivamente de considerar relevantes para a decisão de contratar, ou para a definição concreta do conteúdo dos contratos.

Vem definitivamente assente que, quando subscreveu a declaração de saúde constante do boletim de adesão, o segurado sabia que “sofria de hipertensão desde 20/8/2008, de insuficiência cardíaca congestiva desde 24/12/2008, e de obesidade desde 24/12/2008” (ponto 6.); e que omitiu intencionalmente que sofria de hipertensão, embora controlada, e de insuficiência cardíaca (ponto 9).

Tanto basta para que não se possa deixar de concluir no sentido de que o segurado omitiu dolosamente informações sobre a sua saúde que foram relevantes para a apreciação do risco pela seguradora, pois está igualmente provada essa relevância (ponto 10).  

Essa conclusão, todavia, não implica a procedência da excepção de anulabilidade, oposta pela ré para justificar  a recusa de pagamento da indemnização pretendida pelos autores.


8. Em primeiro lugar, não se afigura que a prova seja suficiente para se poder concluir que, ao subscrever a declaração de saúde, o segurado tenha declarado falsamente que não se encontrava “em tratamento médico regular”, sendo esse o ponto da declaração cuja inexactidão está em causa  – veja-se o ponto 8. dos factos provados.

Assim sendo, adquirirá relevância a circunstância de o segurado ser patentemente obeso (ponto 5)? Ou seja: a circunstância de a funcionária do banco, apesar de não poder ser considerada representante da seguradora (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Abril de 2015. www.dgsi.pt, proc. nº 385/12.6TBBRG.G1.S1), se apresentar perante o público como tendo poderes de receber o boletim de adesão, integrando-se num processo que poderá culminar com a celebração do contrato, poderá ser havida como vinculativa para o banco, no sentido de o impedir de se prevalecer da omissão – al. e) do nº 3 do artigo 24º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro?

A resposta poderá ser afirmativa, se o dolo que vem assente não se considerar como tendo o propósito de obter uma vantagem (corpo no citado nº 3); o que não se afigura fácil.


9. No entanto, e em segundo lugar, entende-se que a prova referida em 10. não é suficiente para fundamentar a invalidade decretada na Relação.

É certo que uma omissão dolosa determinante da celebração do contrato confere à seguradora o direito de opor a anulabilidade do contrato: nº 1 do artigo 25º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro. Trata-se, no fundo, de uma particularização do regime da anulabilidade do erro causado por dolo, previsto em geral no artigo 254º do Código Civil.

É igualmente certo que, no contexto da acção presente, é à seguradora que cabe o ónus de provar o erro, a sua relevância e a existência de dolo (nº 2 do artigo 342º do Código Civil).

Ora a verdade é que não está provado que, não fora o erro provocado pelo dolo, o contrato não teria sido celebrado. O que vem assente é uma alternativa: “10. Se a ré tivesse tido conhecimento das doenças do falecido, e dependendo da evolução ao tempo, não teria aceitado celebrar o contrato de seguro ou, pelo menos, e após pedido de exames médicos com avaliação clínica, teria aplicado um sobre prémio para o risco morte ou recusado cobrir determinados riscos (resposta ao art.º 5.º do articulado superveniente)”.

O que, por si só, é suficiente para a improcedência da excepção de anulabilidade, por falta de prova da essencialidade do erro.


10. Finalmente, poder-se-á acrescentar que, apesar de a lei portuguesa ter imposto ao tomador do seguro ou ao segurado uma obrigação de revelação das circunstâncias com relevo na avaliação do risco que excede o âmbito de questionário eventualmente fornecido (sistema do questionário aberto, nº 2 do artigo 24º do Regime Juídico do Contrato de Seguro), o concreto contrato dos autos obriga a uma interpretação restritiva do âmbito voluntariamente fixado para a declaração inicial.

Do boletim de adesão, predisposto pela seguradora e assinado pelo segurado, consta uma declaração de saúde, cuja assinatura dispensa exames médicos desde que o valor a pagar em caso de sinistro não exceda os € 125.000,00; e um questionário, a ser preenchido quando assim não seja.

Na falta de qualquer indicação sobre um sentido diferente com que deva valer esta informação, deve entender-se que um destinário medianamente informado, cuidadoso e diligente entenderia que, caso o capital seguro não excedesse aquele montante, a seguradora apenas queria ter as informações especificadas na declaração de saúde, excedendo os limites da boa fé a invocação de omissões de outras circunstâncias relevantes (nº 1 do artigo 236º do Código Civil).


11. Considera-se assim que não procede a anulabilidade oposta pela ré seguradora, por falta de prova da essencialidade do erro.

Nestes termos, revoga-se o acórdão recorrido e repristina-se o que foi decidido em 1ª instância.


Custas pela parte vencida.


Lisboa, 29 de Junho de 2017


Maria dos Prazeres Beleza

Salazar Casanova

Nunes Ribeiro (vencido nos termos da declaração de voto que junto)

____________

Declaração de voto

Ao contrato de seguro em causa nos autos, atenta a data da sua celebração, é aplicável o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16/4, em vigor desde 01-01-2009.

Dispõe o artº 24.° de tal diploma (epigrafado de «declaração inicial do risco») que:

« 1 - O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.

2 - O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.

   (…)».

O dever de informação que impende sobre o tomador do seguro ou sobre o segurado destina-se, portanto, a dar a conhecer ao segurador os factos relevantes para a avaliação do risco do seguro. 

E tal dever de informação concernente a todos esses factos relevantes de que tenha conhecimento e que tenha por significativos para o efeito, como decorre do nº 2 do citado preceito, mantém-se mesmo no caso de o segurador ter exigido ao tomador do seguro ou ao segurado a resposta a um questionário pré-elaborado pelo segurador.

Está provado que, na data em que subscreveu a declaração de saúde, o falecido EE sofria de hipertensão desde 20/8/2008, de insuficiência cardíaca congestiva desde 24/12/2008, e de obesidade pelo menos desde 24/12/2008, doenças que eram do seu conhecimento, pois o obrigavam a que recorresse, ainda que de forma irregular, a consultas médicas (quer no contexto de consultas agendadas no Centro de Saúde, quer por via do recurso à urgência hospitalar), e tomasse medicação para controlo das mesmas (cf. nºs 6 a 8 dos factos provados).

Por isso, impunha a lei e a boa fé que dessas patologias informasse a seguradora ora recorrida aquando da subscrição do boletim de adesão ao seguro, tanto mais que tratando-se, como se tratava, de um seguro de vida, ele não poderia ignorar a sua relevância para a aferição do risco do seguro por aquela recorrida.

Só que, ao subscrever a aludida declaração, como também se prova, o falecido EE omitiu de forma intencional que padecia de hipertensão, ainda que controlada, e insuficiência cardíaca (vide nº 9 da factualidade supra provada).

Doenças de que veio a falecer menos de 4 meses depois.

Decorre, por outro lado, do artº 25.° da citada Lei do Contrato de Seguro que:

« 1 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.

2 - Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento.

3 - O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.° 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.

4 - O segurador tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no n.° 2, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante.

5 - Em caso de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito, de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do contrato».

Ora, a Ré seguradora logrou provar sob o nº 10 dos factos apurados que «Se tivesse tido conhecimento das doenças do falecido, e dependendo da evolução ao tempo, não teria aceitado celebrar o contrato de seguro ou, pelo menos, e após pedido de exames médicos com avaliação clínica, teria aplicado um sobre-prémio para o risco morte ou recusado cobrir determinados riscos».

A doutrina costuma distinguir entre erro (absolutamente) essencial, causal ou determinante - ou seja, aquele que levou o errante a concluir o negócio em si mesmo e não apenas nos termos em que foi concluído - e erro incidental (ou relativamente essencial), isto é, aquele que influiu tão-somente nos termos do negócio, por forma a que o errante sempre contrataria embora noutras condições, naturalmente mais favoráveis. E do mesmo modo distingue entre dolo causal, essencial ou determinante e entre dolo incidental. Defendendo que, em princípio, somente o erro ou o dolo essencial produzirá a anulabilidade do negócio. O erro ou o dolo incidental não sendo irrelevante, leva, no entanto, a considerar-se feito validamente o negócio, nos termos em que ele teria sido concluído sem o erro. Mas quando não se possa ajuizar desses termos com segurança ou, pelo menos, com bastante probabilidade e ainda se a contraparte os teria acolhido, deverá ter lugar também a anulabilidade (vide MOTA PINTO, in Teoria Geral do Direito Civil, pag. 388/3889 e 339; MANUEL DE ANDRADE, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pag 237 e 238 nota 3 e 261, e INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, in Manual dos Contratos em Geral, pag. 84/85 e 110/111).

De modo que - na impossibilidade de ajuizar, em face daquela factualidade provada, se a seguradora ora recorrida, sem o erro provocado pelo dolo do segurado, não teria querido em absoluto o contrato, ou se estaria antes disposta a celebrá-lo embora noutros termos, que o segurado aceitasse - não poderá deixar de se concluir, a nosso ver, pela anulabilidade do contrato de seguro em apreço.

Negaria, por isso, a revista e confirmaria o acórdão recorrido, como sustentei no projecto que não obteve vencimento.