Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
21025/19.7T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: ANULAÇÃO
CESSÃO DE QUOTA
CONFISSÃO DE DÍVIDA
DECLARAÇÃO
CONVOLAÇÃO
PEDIDO
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO
INEFICÁCIA
EFEITOS
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Verifica-se que, não obstante ter formulado pedido de anulação do contrato de cessão de quota, assim como pedido de anulação da declaração confessória de dívida, o efeito jurídico pretendido pela autora é a cessação dos efeitos daqueles negócios jurídicos por incumprimento da obrigação de financiamento assumida pelo réu; cessação de efeitos que corresponderá à pretensão de resolução do contrato de cessão e à ineficácia da declaração confessória de dívida.

II. De acordo com a doutrina especializada e com a orientação da jurisprudência do STJ, a convolação do pedido é admissível desde que se respeite o princípio de correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a pronúncia jurisdicional obtida pela parte.

III. Ao pretender a autora que não se produza o efeito de transmissão da titularidade da quota a seu favor e que fique desvinculada do pagamento do preço da cessão, o objecto peticionado é equiparável ao objecto do pedido de resolução do contrato, sem cumulação com qualquer pedido de indemnização.

IV. Quanto ao pedido de anulação da declaração confessória temos que: (i) tal declaração reveste a  natureza de negócio unilateral presuntivo de causa, dispensando o credor da prova da causa (art. 458.º do CC); (ii) no caso dos autos, ficando provado que a dívida confessada tem como causa o contrato de cessão, constituindo o preço de aquisição da quota e do crédito dos suprimentos; (iii) conclui-se que a resolução do contrato de cessão, levando ao desaparecimento da causa, determina a ineficácia da confissão de dívida

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e mulher, CC, pedindo:

a) a anulação do contrato de cessão de quotas celebrado entre a A. e os RR., relativo à D..., Ld.ª, outorgado em 09.10.2018, com as demais consequências legais;

b) a anulação da confissão de dívida celebrada entre A. e R., no dia 30.07.2018, com as demais consequências legais;

c) a anulação da declaração emitida pela A. a 30.07.2018, com as demais consequências legais; e

d) o cancelamento do registo de aquisição daquela quota a favor da A., celebrado através do Depósito 1596/2018-10-10.

Alegou para tanto, e em síntese, que o contrato de cessão de quotas que celebrou com os RR., em 09.10.2018, e a confissão de dívida, outorgada em 30.07.2018, se encontram viciados por erro motivado pelo R..

Por sentença de 15 de Novembro de 2021 foi a acção julgada improcedente e, consequentemente, absolvidos os RR. do peticionado.

Inconformada, interpôs a A. recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão da matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 8 de Junho de 2022 foi alterada a matéria de facto e, a final, foi proferida a seguinte decisão:

«Termos em que julgando apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida e, em consequência, decreta-se:

a) a anulação do contrato de cessão de quotas celebrado entre a A. e os RR., relativo à D..., Ld.ª, outorgado em 09.10.2018;

b) a anulação da confissão de dívida celebrada entre A. e R., no dia 30.07.2018;

c) a anulação da declaração emitida pela A. a 30.07.2018;

d) o cancelamento do registo de aquisição daquela quota a favor da A., celebrado através do Depósito 1596/2018-10-10.».


2. Vêm os RR. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«1. Da(s) nulidade(s) do Acórdão recorrendo

I – O Acórdão recorrendo é nulo, nos termos do disposto no artigo 615.º, número 1, alínea c), aplicável ex vi artigo 674.º, número 1, alínea c), ambos do CPC, porque os fundamentos nele aduzidos estão em oposição com a decisão ou, no limite, porque ocorre obscuridade que torna a decisão ininteligível.

II – A respeito da impugnação da decisão que deu como PROVADOS os pontos 38, 41, 51, e

ainda que deu como não provado o facto descrito na alínea b) dos FACTO NÃO PROVADOS, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de que se interpõe o presente recurso de revista expende que

“(...) qualquer avanço dependia de financiamento à J... pelas razões já enunciadas.

Com já se referiu, o financiamento à J... poderia revestir várias formas que foram aventadas: empréstimo pessoal ao apelado, empréstimo de terceiros, financiamento através da sociedade T... (cfr. pontos 56 e 57 da matéria de facto provada, situada em momento posterior àquela troca de mensagens), abertura de lojas, no país e no estrangeiro (a loja ... abriu ao público em 01 de Agosto de 2018 – ponto 54 da matéria de facto provada -, igualmente em momento posterior àquela troca de mensagens).”

III – Atendendo aos pontos 34., 36., 46., 54. e 59. dos FACTOS PROVADOS, não se antolha como pode o Acórdão recorrendo subsumir os FACTOS PROVADOS ao direito, decidindo, a final, como se nenhuma das formas de financiamento aventadas pelo próprio Tribunal a quo tivesse ocorrido, sem com isso incorrer em contradição que fere de nulidade a decisão.

IV – A Recorrida impugnou a parte da douta sentença da primeira instância que deu como provados os pontos 53. e 55., apelando para que estes fossem considerados NÃO PROVADOS, convocando, para o efeito, os depoimentos das testemunhas DD e EE.

V – O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto decidiu que eliminar os pontos 53. e 55. do elenco de FACTOS PROVADOS, estribando a respectiva decisão nos depoimentos das testemunhas DD, EE, FF e GG, dos quais destaca que foram referidos aos atrasos havidos na entrega, pela J... dos móveis para a loja ...; que móveis encomendados não foram todos entregues, tendo um dos pisos da loja ficado inacabado; e que alguns dos móveis efectivamente fornecidos tinham defeitos; depoimentos, aliás, corroborados pelos documentos constantes de fls 167 a 168 dos autos.

VI – Ao mesmo tempo, manteve inalterada a decisão da primeira instância relativamente aos pontos 52. e 54 dos FACTOS PROVADOS, com o que atestou a relevância dos factos em análise para a decisão da causa.

VII – A decisão de eliminar os pontos 53. e 55. dos FACTOS PROVADOS encontra-se em manifesta contradição com a fundamentação aduzida pelo Tribunal da Relação do Porto no Acórdão recorrendo, em particular ou em concreto quando neste se refere ou conclui que ocorreram, efectivamente, problemas com a entrega dos móveis pela J..., S.A..

VIII – Mesmo considerando que os ditos problemas não foram, apesar de tudo, “responsáveis pelo encerramento da loja”, é decorrência lógica da fundamentação aduzida pelo Tribunal da Relação do Porto que o ponto 53. dos FACTOS PROVADOS deve ser mantido, tal e qual, no rol dos FACTOS PROVADOS, e que ao ponto 55. dos FACTOS PROVADOS devia ter sido dada a seguinte redacção:

“55. A J..., S.A., apesar de interpelada para o efeito, não procedeu à entrega dos artigos efectivamente encomendados pela T..., Lda., nem à substituição daqueles que apresentavam defeitos”.

Finalmente,

IX – a fundamentação apresentada pelo Tribunal da Relação do Porto para julgar procedente a apelação da agora Recorrida relativamente aos pontos 38., 41. e 51. dos FACTOS PROVADOS, e alínea b) dos FACTOS NÃO PROVADOS, no que respeita ao depoimento da testemunha EE, e à credibilidade que lhe é dada, está em contradição com o ponto 32. da matéria de facto dada como provada.

X – Em 32. dos FACTOS PROVADOS, encontra-se definitivamente assente que a testemunha EE, advogado, interveio nas negociações que conduziram à celebração, entre o Recorrente marido e a Recorrida, do contrato de cessão de quota e de suprimentos de que os Recorrentes eram titulares na D..., LDA., e ainda nos restantes documentos e contratos assinados e celebrados pelo Recorrente marido e pela Recorrida, o que fez na qualidade de advogado da J... e da Recorrida – ver ponto 32 dos FACTOS PROVADOS.

XI – Ao relevar, na reapreciação dos pontos da matéria de facto acima identificados, o depoimento da referida testemunha, o Acórdão recorrendo destaca a circunstância de se tratar do “advogado que coadjuvou e aconselhou juridicamente as partes outorgantes na prossecução e concretização dos negócios em análise nos presentes autos”, o que está em contradição com o referido ponto 32. dos FACTOS PROVADOS, ou, pelo menos, torna obscura ou ininteligível a fundamentação do Acórdão recorrendo relativamente à valoração feita do depoimento da testemunha EE.

2. Da(s) violação(ões) de lei substantiva e ou errada aplicação da lei de processo

XI – A parte da decisão do Tribunal da Relação do Porto que incide sobre o ponto 51. dos FACTOS PROVADOS e sobre as alíneas a) e b) dos FACTOS NÃO PROVADOS assenta em presunções judiciais.

XII – Tal como definidas no artigo 349.º do Código Civil, as presunções traduzem-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido à luz das regras da experiência.

XIV – Salvo melhor opinião, os factos acima destacados, resultantes, de um turno, da alteração do ponto 51. dos FACTOS PROVADOS e da integração, neste último, da matéria da alínea b) da matéria de FACTO NÃO PROVADA, e, de outro, da inclusão do facto descrito na alínea a) dos FACTOS NÃO PROVADOS no elenco dos FACTOS PROVADOS, foram extraídos pelo Tribunal da Relação do Porto por presunção judicial em violação com a lei.

XV – Bem se sabe que a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no apuramento da factualidade relevante da causa é verdadeiramente residual, restringindo-se a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes.

XVI – Sem prejuízo, cabe nas competências do Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso de presunções judiciais pela Relação sempre que tal uso ofenda norma legal, padeça de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.

No caso concreto,

XVII – o Tribunal da Relação do Porto expendeu o seguinte raciocínio para decidir como decidiu relativamente ao ponto 51. dos FACTOS PROVADOS e quanto à alínea b) da matéria de FACTO NÃO PROVADA:

“Os factos constantes da alínea b) da matéria de facto não provada ficaram demonstrados à saciedade. Aliás, só assim se alcança alguma racionalidade para o negócio em apreço, atendendo a que:

- a J... não tinha nenhum interesse objectivo na aquisição das quotas da D..., pois tinha um sector de estofos, não representando aquela aquisição qualquer mais valia para a empresa, tanto mais que esta trabalhava no segmento de luxo (gama alta), o que não sucedia com a D...;

- a J... se encontrava envolvida num processo de expansão, com financiamento do IAPMEI, para o que necessitava de investimento, quer com capitais próprios, quer com recurso à Banca;

- a J... atravessava uma fase de dificuldade financeira, por causa do fracasso do negócio em Angola e na Costa do Marfim, tendo mesmo recorrido ao apelado que lhe cedeu quatro cheques pré-datados, no valor total de € 300.000,00 para servir de garantia junto de fornecedores como resulta do ponto 46 da matéria de facto provada (esses cheques não foram descontados, servindo apenas de garantia até ao pagamento da dívida);

-num momento inicial, estava previsto que a apelante adquirisse apenas 30% das quotas da D..., por € 300.000,00, não implicando o pagamento de qualquer esforço financeiro, pois seria feito à custa [d]os resultados e lucros que coubessem à apelante resultantes da actividade da empresa S..., e D... (ponto 30 da matéria de facto provada reformulada); na versão final, a aquisição passou para 50%, sendo o pagamento efectuado através de uma confissão de dívida no valor de € 500.000,00 a pagar em cinco prestações anuais.

Ora, a única justificação plausível para esta confissão de dívida é esse montante corresponder a um financiamento – que não existiu –, e já que as quotas (cuja aquisição inicialmente não implicaria qualquer esforço financeiro) não tinham esse valor.

Embora não se tenha apurado o respectivo valor, valeriam muito pouco (...)” (destaque e sublinhado nossos).

XVIII – O Tribunal da Relação do Porto concatena todos e cada um dos factos por si hifenizados, dos quais parte para firmar o novo facto agora descrito sob o ponto 51. dos FACTOS PROVADOS.

Sucede que

XIX – a quase totalidade dos factos base de que o acórdão recorrendo lança mão para inferir o referido novo ponto 51. não constam dos FACTOS PROVADOS, sobre eles não tendo sido feita prova, ou prova adequada, ao mesmo tempo que a inferência concretamente usada pela Relação padece de ilogicidade.

XX – Importa ter presente, desde já, que a J... não foi parte nos negócios celebrados entre os Recorrentes e a Recorrida.

XXI – Não consta dos FACTOS PROVADOS que a J... tivesse um sector de estofos, ou qual o segmento – baixo, médio ou alto – em ou para que a D... exercia a sua actividade.

XXII – A situação financeira da J... à data das negociações havidas entre o Recorrente marido e a Recorrida não foi objecto de prova alguma; sendo que apenas poderia ser provada através da respectiva escrituração comercial.

XXIII – O facto de a J... estar a “concretizar um projecto de expansão das suas instalações industriais” indicia precisamente o contrário daquilo em que o Tribunal da Relação do Porto assenta para reapreciar a parte da decisão da matéria de facto sob censura.

XXIV – Quanto ao (in)sucesso dos negócios da J... no estrangeiro, a única referência lateral que lhes foi feita foi pela própria Recorrida em sede de depoimento de parte.

XXV – Não foi dado como PROVADO, pela primeira instância ou sequer pela Relação, que os cheques sacados pelo Recorrente marido e entregues ao pai da Recorrida, no valor total de € 375.000,00 (trezentos e setenta e cinco mil euros) tivessem ou não tivessem sido descontados.

XXVI – A Relação faz referência aos termos do “Contrato Promessa de Cessão de Quota” celebrado entre Recorrentes e Recorrida em 18 de maio de 2018, comparando-os, no que respeita à forma de pagamento, ao “Contrato Promessa de Cessão de Quota” celebrado entre aqueles em 30 de julho de 2018, concluindo que o primeiro dos referidos contratos, não implicava “qualquer esforço financeiro” para a Recorrida na medida em que o pagamento haveria de ser feito “à custa [d]os resultados e lucros” que lhe houvessem de caber nas sociedades comerciais S...” e D...”, enquanto o segundo a obrigava a pagar o preço total acordado em cinco prestações anuais.

XXVII – A afirmação, tal qual, é falsa, e o argumento é ilógico, o que contamina a ilação operada pela Relação.

XXVIII – O pagamento do preço total acordado no “Contrato Promessa de Cessão de Quota” de 18 de maio de 2018 sempre haveria de ser pago pela Recorrida – ainda que a partir dos lucros que lhe houvessem de caber na S... e na D... – e não directamente pelas sociedades em causa. I.e., o esforço financeiro sempre haveria de ser da Recorrida.

XXIX – Tendo em conta o disposto no artigo 65.º, número 5, do Código das Sociedades Comerciais, no “Contrato Promessa de Cessão de Quota” celebrado em 18 de maio de 2018, a Recorrida poderia começar a pagar o preço logo após o primeiro trimestre de 201935, enquanto que nos termos do “Contrato Promessa de Cessão de Quota” e da “Confissão de dívida”, a primeira prestação do preço total haveria de começar a ser pago até 31 de agosto de 2019.

XXX – Poderiam até dar-se os casos de a primeira prestação do preço total pago pela Recorrida nos termos do primeiro contrato promessa ser de valor superior ao da primeira prestação do segundo contrato promessa; ou de o preço total ser pago de uma só vez.

XXXI – Isto sem descurar que, num como no outro caso, a Recorrida poderia já ter recebido da D... parte ou a totalidade dos suprimentos que acabaram por lhe ser cedidos pelos Recorrentes; facto que o Tribunal da Relação do Porto esquece, com as repercussões que adiante se destacarão para a decisão recorrenda.

XXXII – Fazendo uso da lógica da Relação, também no caso do “Contrato Promessa de Cessão de Quota” e da “Confissão de dívida” celebrados em 30 de julho de 2018 a Recorrida poderia começar a pagar, aliás com prazo dilatado no tempo, “sem qualquer esforço financeiro”, recorrendo aos suprimentos que adquirira do próprio Recorrente marido.

XXXIII – A Relação do Porto afirma, como facto base, que a quota cedida pelos Recorrentes à Recorrida não tinha o valor de € 500.00,00.

XXXIV – Não foi produzida qualquer prova sobre o valor de mercado ou, sequer, sobre o valor contabilístico da quota.

XXXV – O apuramento do valor real da quota ou, pelo menos, do seu valor contabilístico, apenas poderia ser feito com recurso à análise, eventualmente pericial, da escrituração comercial da D....

XXXVI – Convém não esquecer, ainda a este respeito, que a transferência da actividade da D... para a S..., inclusive com a celebração dos contratos de arrendamento das instalações industriais e de aluguer da totalidade dos “maquinismos, equipamentos, ferramentas e mobiliário” celebrados em 04 de maio de 2018 e 18 de maio de 2018, foi feita de forma concertada entre o Recorrente marido, a Recorrida e seu pai, e a testemunha HH, sócio da D..., com o exclusivo objectivo de continuarem a exercer a actividade até então exercida por esta sociedade mas sob uma entidade e marca diferentes.

XXXVII – Quando, em 30 de julho de 2018, os Recorrentes e a Recorrida celebraram entre si os denominados “Contrato Promessa de Cessão de Quota” e “Confissão de dívida”, a D... não tinha actividade porque a havia transferido, com a participação activa da Recorrida, para a S....

XXXVIII – No contexto da operação gizada entre o Recorrente marido, a Recorrida e o pai desta última, o filho do primeiro transferiu, gratuitamente, para II, “por indicação da A. [agora Recorrida] e do seu pai”, a quota de que era titular no capital da S..., cujo capital social passou a ser directa e indirectamente detido ou controlado pela Recorrida em 70% (setenta por cento).

XXXIX – E o mais “curioso” – e que devia ter sido levado em linha de conta pelo Tribunal da Relação do Porto, houvesse este escrutinado, de forma lúcida e crítica, todos os factos alegados e todos os elementos probatórios da presente acção – é que a Recorrida não põe, de forma alguma, em causa essa parte do negócio ou da operação que montou com o Recorrente marido.

XL - Com a procedência da presente acção, a Recorrida deixaria de ser sócia da D..., mas continuaria, enquanto assim quisesse, a ser sócia e gerente da S..., que é tão somente a sociedade que exerce, desde 2018, a actividade industrial e comercial da D..., que a decisão recorrenda desvaloriza na operação presuntiva sob crítica nestas linhas das presentes alegações.

Ademais,

XLI – o referido valor de € 500.000,00 (quinhentos mil euros) não correspondia (apenas) ao preço da quota na D... cedida pelo Recorrente marido à Recorrida; correspondia, isso sim, ao preço global da referida quota e ainda dos suprimentos de que aquele era titular na D... – ver ponto 45. dos FACTOS PROVADOS.

XLII – Não tendo sido alegado nos presentes autos o valor dos suprimentos e, logo, sobre ele não tendo sido produzida qualquer prova, não se antolha como pode, senão de forma errónea e merecedora de crítica, o Tribunal da Relação do Porto afirmar que “a única justificação plausível para esta confissão de dívida é esse montante corresponder a um financiamento – que não existiu –, e já que as quotas (cuja aquisição inicialmente não implicaria qualquer esforço financeiro) não tinham esse valor”.

XLIII – Esta presunção, como aquela que conduz ao firmar do novo facto descrito sob o ponto 51. dos FACTOS PROVADOS, parte de factos base que não constam dos FACTOS PROVADOS, que estão em contradição com alguns destes, e que são, em si mesmos, ilógicos, o que consubstancia violação do disposto no artigo 349.º do Código Civil, devendo determinar a reversão da decisão do Tribunal da Relação do Porto no que se refere à redação do ponto 51. dos FACTOS PROVADOS, e à integração neste último da alínea b) dos FACTOS NÃO PROVADOS.

XLIV – Houvesse a Recorrida efectivamente adquirido a quota na D... no pressuposto de que se manteria a parceria com o Recorrente marido, e aquela não demoraria, seguramente, um ano a “reagir” à não verificação ou cumprimento do dito pressuposto – ver ponto 61. dos FACTOS PROVADOS – o que demonstra a ilogicidade do silogismo da Relação.

XLV – Destaca-se a mensagem de whatsapp constante de fls. 84 e 85, enviada pelo Recorrente marido à Recorrida, que faz contraprova do facto presumido.

XLVI – A mesma crítica apontada à parte da decisão recorrenda que incidiu sobre o ponto 51. dos FACTOS PROVADOS e sobre a alínea b) da matéria de facto NÃO PROVADA merece a parte da decisão do Tribunal da Relação do Porto que transitou para o elenco dos FACTOS PROVADOS a alínea a) da matéria de facto NÃO PROVADA, com uma nova redacção.

XLVII – Conforme resulta da matéria de facto PROVADA, o Recorrente marido não “foi alimentando” a ideia de financiar a J....

XLVIII – O Recorrente marido fê-lo efectivamente, e em quantia muito superior aos € 500.000,00 (quinhentos mil euros) referidos na redacção dada pelo Tribunal da Relação do Porto ao facto transitado para os FACTOS PROVADOS: através da angariação, desinteressada e gratuita, de negócios no valor global de € 2.000.000,00 (dois milhões de euros) para a J... – ver ponto 33. dos FACTOS PROVADOS –; através do saque de um total de cinco cheques, no valor global de € 375.000,00 (trezentos e setenta e cinco mil euros), que a J... usou de garantia junto dos seus fornecedores, donde decorre que, sem tais cheques, a J... não obteria fornecimentos para desenvolver a sua actividade, ou não os obteria nas mesmas condições comerciais – ver pontos 46. e 59. dos FACTOS PROVADOS – e fê-lo através da abertura da loja ..., exclusivamente dedicada ao mobiliário da J..., S.A., e com a qual esta última não teve qualquer despesa – ver pontos 52 e 54 dos FACTOS PROVADOS.

XLIX – O que, tudo, contraria a dedução feita pelo Tribunal da Relação do Porto para dar como PROVADO, da forma como o fez, o novo facto por si incluído no elenco dos FACTOS PROVADOS.

L – Não foi produzida qualquer prova e, mais relevantemente nesta sede, não existe qualquer facto base a partir do qual o Acórdão recorrendo possa inferir a) que a J... necessitava de uma “injecção de capitais próprios”; b) que a não obtenção de financiamento constituísse um “entrave à celebração do negócio de cessão de quotas”; c) que o Recorrente marido se tenha disponibilizado para “financiar pessoalmente a J..., S.A., através de um empréstimo de € 500.000,00, por forma a convencerem a A. para adquirir a quota”.

LI – Relembra-se a circunstância de, no momento em que a Recorrida prometeu comprar, pelo preço de € 500.000,00, a quota e os suprimentos de que os Recorrentes eram titulares na e sobre a D..., já a Recorrida ter prometido comprar aos Recorrentes, sem pressuposto algum, e sem que se mostre provado que o Recorrente marido tivesse usado de qualquer suposto artifício para tal, 30% do capital social da D..., e os suprimentos de que os Recorrentes eram titulares sobre a sociedade, pelo valor de € 300.000,00 (trezentos mil euros) – ver pontos 22 e 30 dos FACTOS PROVADOS.

LII – Também a parte do Acórdão recorrendo que fez transitar a alínea a) dos FACTOS NÃO PROVADOS viola o artigo 351.º do Código Civil, devendo ser revertida pelo Tribunal ad quem.

LIII – O Acórdão recorrendo decretou a anulação da cessão, feita pelos Recorrentes à Recorrida, da quota de que os primeiros eram titulares no capital social da D....

LIV – O Acórdão recorrendo não podia, mesmo após a reapreciação da prova, sem mais, ter anulado a cessão de quota.

LV – O contrato celebrado entre os Recorrentes e a Recorrida em 09 de outubro de 2018 não teve apenas por objecto a quota de que os primeiros eram titulares no capital social da D...; teve também por objecto os suprimentos de que os Recorrentes eram titulares sobre a D... – ver ponto 47 dos FACTOS PROVADOS.

LVI – Inexiste na matéria de facto PROVADA qualquer elemento que permita concluir que a aquisição, pela Recorrida, dos créditos de que os Recorrentes eram titulares sobre a D... ficou condicionada seja ao que for, ou que a Recorrida apenas os tenha adquirido onerosamente pelo facto de o Recorrente marido a ter convencido de algo que não fosse verdade.

LVII – A cessão de quotas, como acto voluntário transmissivo da respectiva titularidade, não é, por regra, acompanhada da transmissão de quaisquer direitos de que o cedente seja titular.

VLIII – Os empréstimos efectuados pelos sócios às sociedades em cujo capital participam não integram, portanto, a participação social, e são dela cindíveis.

LIX – No caso concreto, porém, os Recorrentes e a Recorrida negociaram e acordaram a cessão da quota dos primeiros na D..., LDA. mas também dos suprimentos de que aqueles eram titulares, não existindo nos autos qualquer elemento que permita aferir o valor dos referidos suprimentos, o respectivo preço, ou sequer a capacidade da D... para os reembolsar.

LX – Não se antolha como pode o Tribunal da Relação do Porto, sem nunca se referir à cessão de suprimentos e, portanto, sem considerar que a mesma foi, também ela, celebrada pela Recorrida no pressuposto da manutenção da parceria com o Recorrente marido, decretar, sem mais, a anulação do “Contrato de Cessão de Quota” celebrado entre as partes em 09 de outubro de 2018.

LXI - Tendo a cessão de suprimentos sido celebrada livre de erros e ou dolo, conforme resulta, a contrario, da matéria de facto PROVADA, não se compreende nem aceita como pode o Acórdão recorrendo anular, na sua totalidade, o referido contrato.

LXII – O Acórdão recorrendo interpreta e aplica erradamente os artigos 253.º, número 1, e 254.º, número 1, ambos do Código Civil, na medida em que não resulta da decisão da matéria de facto, sequer na versão resultante da reapreciação levada a cabo pelo Tribunal da Relação do Porto, que a Recorrida tenha sido induzida em erro pelo Recorrente marido, por meio de sugestão ou artifício, a prestar uma declaração, relativamente à totalidade do negócio que fez com os Recorrentes – cessão de quota e de suprimentos – , que doutro modo não prestaria.

LXIII – Não resulta da decisão da matéria de facto – da original ou sequer da resultante da reapreciação – que o Recorrente marido tenha usado de qualquer artifício, sugestão ou embuste, na consciência e com a vontade de que a Recorrida prestasse a declaração de compra da quota na e dos suprimentos sobre a D..., LDA. que de outro modo não prestaria.

LXIV – Não decorre do elenco dos FACTOS PROVADOS que o Recorrente tenha, de forma premeditada, e através de artifício ou falácia, levado a Recorrida a adquirir a quota e os suprimentos nos exactos termos em que o fez.

LXV – O erro só geraria anulabilidade do negócio se fosse essencial para a formação da vontade da Recorrida, sendo que uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para a celebração do negócio, conforme a finalidade económica ou jurídica deste; e não existe na decisão recorrenda qualquer referência ao erro da Recorrida na aquisição dos suprimentos e à sua essencialidade.

LXVI – O suposto erro não pode ser qualificado como essencial pelo Tribunal da Relação do Porto quando, um ano após a celebração do “Contrato Promessa de Cessão de Quota”, o pai da Recorrida apenas pretendia atrasar por mais um ano o pagamento dos € 500.000,00 devidos a título de preço pela quota e pelos suprimentos – ver ponto 61 dos FACTOS PROVADOS.

LXVII – Não decorre, portanto, da matéria de facto PROVADA que a Recorrida tenha celebrado em erro – induzido pelo Recorrente marido – o “Contrato de Cessão de Quota” em execução do qual adquiriu a quota e os suprimentos dos Recorrentes; ou que, a estar em erro, o mesmo fosse efectivamente essencial para a formação da vontade da Recorrida.

LXVIII – Sendo que, nos termos da lei, a concretização do dolo sempre pressuporia que o erro da Recorrida tivesse sido determinado intencionalmente pelos Recorrentes.

Finalmente,

LXIX – decorre dos pontos 34., 36., 46., 54. e 59 dos FACTOS PROVADOS que os Recorrentes não enganaram a Recorrida.

LXX – Os Recorrentes financiaram efectivamente a J..., não tendo sido considerado PROVADO que se tenham recusado, após a celebração do “Contrato de Cessão de Quota”, a continuar a ajudar a empresa.».

Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido com a consequente absolvição dos RR. do peticionado.

A Recorrida contra-alegou, pugnando, sem formular conclusões, pela manutenção do acórdão recorrido com fundamento na verificação dos pressupostos do erro sobre a base do negócio.


3. Por acórdão de 11 de Outubro de 2022, pronunciou-se o tribunal a quo no sentido da não verificação da invocada nulidade do acórdão recorrido.


Cumpre apreciar e decidir.


4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção do acórdão recorrido):

1. A sociedade comercial J..., S.A., tem como objecto social o fabrico e comércio de mobiliário de alta gama, conforme documento de fls. 16 a 16v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2. A A. é a Presidente do Conselho de Administração da sociedade comercial aludida em 1., conforme documento de fls. 16 a 16v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. Porém, a administração da sobredita sociedade comercial é, de facto, realizada pela A. em conjunto com o seu pai, DD, com experiência de décadas no fabrico e comércio de mobiliário.

4. Em finais de 2017, o pai da A. conheceu o R. marido, tendo este se apresentado como empresário de sucesso, emigrado na ..., e sócio da sociedade comercial U, tendo a partir daí ocorrido vários contactos e conversações entre ambos com vista ao estabelecimento de uma parceria entre as respectivas empresas.

5. Por via e no decurso desses contactos, o pai da A. e o R. marido desenvolveram uma relação de confiança e amizade mútua.

6. O objecto social da sociedade comercial D..., Ld.ª consiste, entre outros, na indústria de estofos, empreendimentos imobiliários, compra e venda de imóveis, conforme documento de fls. 101 a 109 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

7. A referida sociedade D..., Ld.ª, anteriormente denominada M..., Ld.ª, foi objecto de processo de insolvência que correu termos sob o nº 542/17.... no Juiz ... do Juízo de Comércio ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., conforme documentos de fls. 71 a 82 e 101 a 109 dos presentes autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

8. Antes de se tornar sócio da aludida sociedade comercial, o R. marido contratou, por sua conta, os serviços de uma consultora para analisar a situação económico-financeira da empresa e para estudar a sua viabilidade.

9. A referida consultora elaborou, depois, e a expensas do R. marido, uma proposta de plano de insolvência em nome da D..., Ld.ª.

10. Tal plano de insolvência previa, entre o mais, a realização de um aumento de capital no valor de € 50.000,00 e a alteração da composição do capital social da sociedade, conforme documento de fls. 71 a 80 dos presentes autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

11. Ainda de acordo com o aludido plano, para o capital social da sociedade entrariam dois novos sócios, o R. marido e HH, que subscreveriam, respectivamente, € 25.000,00 e € 15.000,00 do capital social e os novos sócios deveriam ainda realizar suprimentos na aludida sociedade, dotando-a de meios financeiros imediatos.

12. O plano de insolvência foi aprovado e homologado judicialmente, conforme documento de fls. 81 a 82 dos presentes autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

13. E o R. marido subscreveu e realizou € 25.000,00 no capital da D..., Ld.ª, e realizou os suprimentos previstos no plano de insolvência.

14. O R. marido e o sócio HH foram, ambos, nomeados gerentes, conforme documento de fls. 101 a 109 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

15. O R. marido passou a exercer as funções de gestão da D..., Ld.ª, nas áreas administrativa e financeira.

16. Passado relativamente pouco tempo, o sócio originário da D..., Ld.ª, JJ – que, entretanto, passara, por razões de conveniência própria, a respectiva posição no capital da sociedade a favor da filha menor KK – constituiu, em nome de um terceiro, uma nova empresa também dedicada à produção e comercialização de estofos e sofás.

17. E contratou, para aquela empresa concorrente, uma parte significativa dos funcionários da D..., Ld.ª.

18. O R. marido ficou muito desagradado com o sucedido e prontamente tomou a decisão de sair do capital social e da gerência da D..., Ld.ª.

19. O R. marido abordou o sócio HH, propondo-se ceder-lhe, pelo valor total do investimento que fizera na empresa, a quota representativa de 50% do capital social da D..., Ld.ª, e os suprimentos de que era titular sobre esta.

20. O sócio HH informou o R. marido que não estava interessado em adquirir para si a posição deste na D..., Ld.ª.

21. Tendo então o R. marido abordado o pai da A., o referido DD, propondo-lhe a transmissão da quota que detinha na D..., Ld.ª.

22. Após alguns contactos, foi acordado que a A. entraria para o capital social da D..., Ld.ª, adquirindo do R. marido uma quota representativa de 30% daquele capital.

23. Tendo, logo em Fevereiro de 2018, a A. começado, com a autorização do R. marido e do sócio HH, a exercer, de facto, as funções de gerentes da D..., Ld.ª, especificamente na área da produção.

24. No âmbito dos contactos assim estabelecidos entre a A., o pai desta e o R. marido e filho deste LL, em 05.04.2018, a A. e este último constituíram entre si a sociedade comercial T..., Ld. ª, conforme documento de fls. 17 a 18v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

25. A referida sociedade foi constituída com vista à instalação e montagem de uma loja de mobiliário denominada “...”, numa fracção autónoma pertencente a uma outra sociedade comercial detida também pelo R. marido, de nome Te..., Lda, e à comercialização dos produtos fornecidos pela J..., S.A.

26. Em 4.05.2018, o filho do R. marido cedeu a este a sua quota na T..., Ld.ª, passando doravante o R. a assumir a gerência juntamente com a A., conforme documento de fls. 17 a 18v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

27. Entretanto, e por acordo de todos, foi decidido criarem uma nova sociedade, com o mesmo objecto social da D..., Ld.ª, dado esta ter má reputação no sector nacional havendo toda a conveniência em, aproveitando o know how e a capacidade produtiva daquela fazer aparecer no mercado os produtos por aquela fabricados sob uma nova marca não associada àquela empresa.

28. Em 11.04.2018, foi constituída a sociedade comercial por quotas S..., Ld.ª, pelo filho dos RR., LL, e por HH, que ficaram a participar no capital da sociedade nas percentagens de 50%, 20% e 30%, respectivamente, conforme documento de fls. 19 a 20 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

29. Em 4.05.2018, a D..., Ld.ª, arrendou à S..., Ld.ª, pelo prazo de cinco anos, as suas instalações industriais, conforme documento de fls. 21 a 23 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

30. Em 18.05.2018, por documento escrito que denominaram de “Contrato promessa de divisão e cessão de quota” os RR. declararam prometer ceder à A., que declarou prometer adquirir uma quota com o valor nominal de € 15.000,00, representativa de 30% do capital social da D..., Ld.ª, pelo preço de € 300.000,00, a pagar no prazo de 24 meses, e com os resultados e lucros que coubessem à A. resultantes da actividade da empresa S..., Ld.ª, e os resultados e lucros que resultassem da actividade da D..., Ld.ª, na percentagem de 30%, sendo o contrato definitivo realizado após esse pagamento, conforme documento de fls. 82v a 84. [alterado pela Relação]

31. E em 24.05.2018, a D..., Ld.ª, representada pelo R. marido, e a S..., Ld.ª, representada pela A. e pelo filho do R. marido, celebraram um documento escrito denominado de “Contrato de aluguer”, mediante o qual a primeira declarou alugar à segunda, pelo prazo de cinco anos, a totalidade dos “maquinismos, equipamentos, ferramentas e mobiliário” existentes nas suas instalações industriais, conforme documento de fls. 24 a 25 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

32. Quer a constituição da sociedade S..., Ld.ª, quer os supra referidos contratos foram minutados pelo advogado da J..., S.A., e da A., Dr. EE, que, após o início do exercício, pela A., das funções de gerente da D..., Ld.ª, celebrou uma avença com esta empresa.

33. A D..., Ld.ª, passou, então, e por decisão conjunta da A., do R. marido e do sócio de ambos, HH, a ter uma actividade residual.

34. Ainda no âmbito da aludida parceria que encetaram, o R. marido angariou para a J..., S.A., e sem o pagamento de qualquer contrapartida, negócios com o “Grupo C...” e com a rede hoteleira “...”, no valor global de € 2.000.000,00.

35. No entretanto, e tendo o pai da A. transmitido ao R. marido que a J..., S.A., necessitava de um financiamento bancário para concretizar um projecto de expansão das suas instalações industriais, aprovado pelo IAPMEI, no âmbito da parceria que estabeleceram, o R. marido comprometeu-se junto daquele a encetar diligências para a obtenção do pretendido financiamento.

36. Com tal objectivo, o R. marido logrou, através dos seus contactos pessoais e profissionais, agendar reuniões entre a administração daquela sociedade e representantes de várias entidades bancárias.

37. Porém, nenhuma das referidas instituições de crédito acedeu em conceder à J..., S.A., o financiamento por esta pretendido.

38. Então, o pai da A. propôs ao R. marido este adquirir uma participação na J..., S.A., o que o R. marido se recusou a fazer, justificando-se com o facto de pretender afastar-se do sector da produção de mobiliário, canalizando os seus investimentos em Portugal exclusivamente para as áreas comercial e de imobiliário. [alterado pela Relação]

39. Na sequência, o R. marido propôs à A. e ao seu pai que, ao invés de lhe adquirirem apenas 30% do capital social da D..., Ld.ª, lhe adquirissem os 50% de que era titular no capital social desta e, ainda, a totalidade dos suprimentos.

40. A A. e o seu pai manifestaram-se interessados na compra da quota e dos suprimentos, tendo proposto ao R. marido que a aquisição da totalidade da participação social dos RR. na D..., Ld.ª, se fizesse simultaneamente com a sua eventual entrada no capital social da J..., S.A., ou com a realização de um financiamento a esta sociedade.

41. [Eliminado pela Relação]

42. No dia 30.07.2018, os RR. celebraram com a A. um documento escrito que denominaram de “Contrato promessa de cessão de quota” através do qual declararam prometer ceder-lhe uma quota, com o valor nominal de € 25.000,00, representativa de 50% do capital social da sociedade comercial por quotas D..., Ld.ª, bem como o direito de crédito de que eram titulares, a título de suprimentos, sobre a dita sociedade, conforme documento de fls. 28 e 29 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

43. Tendo nesse mesmo dia, a A. e o R. marido subscrito um documento intitulado “Confissão de dívida”, no qual a primeira declarou dever ao segundo a quantia € 500.000,00, que se obrigou a pagar “(...) no prazo de cinco anos, e da seguinte forma:

a) € 50.000,00 (cinquenta mil euros) até ao dia 31.08.2019;

b) € 50.000,00 (cinquenta mil euros) até ao dia 31.08.2020;

c) € 100.000,00 (cem mil euros) até ao dia 31.08.2021;

d) € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) até ao dia 31.08.2022;

e) € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) até ao dia 31.08.2023”; conforme documento de fls. 65 a 66v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

44. Simultaneamente com a celebração do contrato promessa de cessão de quota e da “Confissão de dívida”, a A. e o R. marido assinaram um documento intitulado “Declaração”, no qual ambos declararam que “(...) a validade da confissão de dívida referida está sujeita à condição de vir a ser efectivamente celebrado, definitivamente registado, e considerado eficaz, nomeadamente perante a sociedade e os restantes sócios da mesma, o contrato definitivo de cessão de quotas relativo à promessa constante do contrato celebrado nesta mesma data entre os outorgantes”, conforme documento de fls. 67 a 68v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

45. O valor de € 500.000,00 que consta da aludida “Confissão de dívida” correspondente ao preço global acordado entre a A. e os RR. para a cessão da quota e dos suprimentos prometida celebrar.

46. Entretanto, o R. marido acedeu a entregar à J..., S.A., a pedido do pai da A., um conjunto de quatro cheques pós-datados, sacados à ordem daquela sociedade, no valor global de € 300.000,00, para esta os utilizar como garantia junto dos seus fornecedores.

47. Após obterem o consentimento da D..., Ld.ª, os RR. cederam à A., no dia 09.10.2018, a quota e os suprimentos, tendo a cessão da quota a favor da A. sido registada na Conservatória do Registo Comercial, através do Dep. 1596/2018-10-10, conforme documentos de fls. 32 a 38 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

48. Tendo o R. marido renunciado ao exercício da gerência da D..., Ld.ª, conforme documento de fls. 34 a 38 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

49. E o filho do R. marido, LL, transmitiu, por indicação da A. e do seu pai, a quota com o valor nominal de € 2.000,00 de que era titular na S..., Ld.ª, a favor de II, conforme documento de fls. 19 a 20 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

50. O filho do R. marido não recebeu da A. qualquer valor a título de contrapartida pela cessão da quota no capital social da S..., Ld.ª.

51. A A. adquiriu a aludida quota no pressuposto que se manteria a parceria com o R. relativamente à abertura de lojas e à angariação de clientes por este, e que ele financiaria a J..., S.A., com o valor de € 500.000,00, de forma a permitir o desenvolvimento do projeto do IAPMEI. [alterado pela Relação]

52. Ainda no seguimento do acordado no âmbito da aludida parceria, a T..., Lda encomendou à J..., S.A., um conjunto variado de artigos, que deveriam mobilar integralmente a loja de acordo com um projecto pré-aprovado.

53. [Eliminado pela Relação]

54. Ainda assim, a loja ... acabou por abrir ao público em 01.08.2018.

55. [Eliminado pela Relação]

56. No entretanto, com vista a tentar obter o financiamento para a J..., S.A., através da sociedade T..., Lda, a A., o pai desta e o R. marido combinaram que a primeira alienaria a sua quota ao filho do R., dado aquela pertencer à estrutura accionista da J..., S. A., com exposição à banca considerável e tal poder constituir um entrave à obtenção do dito financiamento.

57. Em 18.09.2018, a A. cedeu a LL a quota de que era titular no capital social da T..., Ld.ª, sem o pagamento de qualquer contrapartida e renunciou ao exercício da gerência, conforme documento de fls. 17 a 18v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

58. Em Outubro de 2018, na reunião onde estiveram presentes as testemunhas DD e EE, o R. informou o pai da A. que já não iria fazer o financiamento à J... e na mesma altura solicitou-lhe a entrega dos cheques que havia entregue à J.... [alterado pela Relação]

59. O pai da A. informou o R. que não lhe podia entregar de imediato os cheques, tendo o [R. marido] entregue um novo cheque com data para Janeiro para substituir o cheque cuja data de vencimento se aproximava. [alterado pela Relação]

60. [Eliminado pela Relação]

61. Posteriormente, em Agosto de 2019, o pai da A. tentou negociar com o R. marido os termos e condições do pagamento do preço global da quota e dos suprimentos, solicitando uma dilação de, pelo menos, um ano no vencimento da primeira prestação do preço global.

62. Para aceitar tal proposta, o R. marido exigiu que fossem prestadas garantias, o que a A. não aceitou fazer.

63. Em 31.08.2019, a A. não pagou aos RR. a quantia de € 50.000,00, referente à primeira prestação acordada na “Confissão de dívida”.

64. Por carta datada de 04.09.2019 e recebida no dia seguinte, os RR. interpelaram a A. para que procedesse ao pagamento da totalidade do preço global da quota e dos suprimentos, conforme documentos de fls. 69 a 70 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

65. À qual a A. respondeu por carta datada de 19.09.2019, conforme documento de fls. 91 e 91v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

- Facto aditado pela Relação [e que tinha sido dado como não provado pela 1.ª instância]: O R. sabendo que, para o desenvolvimento do Projeto do IAPMEI ao qual J..., S.A., se havia candidatado, se tornava necessário financiamento bancário e injecção de capitais próprios na sociedade, não se afigurando estes fáceis de obter, e que tal se afigurava também um entrave à celebração do negócio de cessão de quotas, disponibilizou-se para financiar pessoalmente a J..., S. A., através de um empréstimo de € 500.000,00, por forma a convencerem a A. para adquirir a quota.


5. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Nulidade do acórdão recorrido por contradição entre os fundamentos de facto e a decisão, bem como por obscuridade que torna a decisão ininteligível (conclusões I a XI);

- Violação das regras de direito probatório relativas ao uso de presunções judiciais (conclusões XI a LIII);

- Erro de direito que afecta a decisão de anulação do contrato de cessão de quota em virtude de o contrato ter também como objecto (o crédito dos) suprimentos de que os RR. eram titulares (conclusões LIII a LX);

- Erro de direito que afecta a decisão de anulação do contrato de cessão de quota por não se encontrarem preenchidos os pressupostos do regime do erro qualificado por dolo (conclusões LXII a LXX).


6. Invocando a previsão do art. 615.º, n.º 1, alínea c), primeira parte, do CPC, alegam os Recorrentes que o acórdão recorrido padece de nulidade por contradição entre os fundamentos de facto e a decisão.

Laboram os Recorrentes no equívoco de confundir o vício de nulidade por contradição entre a decisão de direito e os respectivos fundamentos de direito com um eventual erro de aplicação do direito aos factos provados, o qual, a existir, não gera nulidade.

Não cabe, assim, pronúncia sobre a invocada nulidade.

Quanto à nulidade por obscuridade que torna a decisão ininteligível, prevista na segunda parte do art. 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, a mesma ocorre caso não seja possível compreender o sentido da decisão proferida. Ora, a decisão do acórdão recorrido é inteiramente compreensível, concluindo-se, assim, pela não verificação da referida nulidade.


7. Invocam os Recorrentes, em extensas e prolixas conclusões recursórias (conclusões XI a LIII), que o tribunal a quo desrespeitou as regras de direito probatório relativas ao uso de presunções judiciais, designadamente ao apreciar a impugnação da matéria de facto a respeito do ponto 51. dos factos dados como provados pela sentença e das alíneas a) e b) dos factos dados como não provados pela mesma sentença.  

De acordo com o entendimento prevalecente na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça este Tribunal (apenas) pode sindicar tal matéria quando o uso (ou não uso) de tais presunções seja susceptível de ofender norma legal, possa padecer de ilogicidade manifesta ou tenha por base factos não provados. Cfr., neste sentido, a título exemplificativo, os acórdãos de 24.11.2016 (proc. n.º 96/14.8TBSPS.C1.S1) e de 19.01.2017 (proc. n.º 841/12.6TBMGR.C1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

Compulsada a fundamentação do acórdão recorrido, constata-se que, a págs. 50-67 do mesmo, se apreciaram de forma circunstanciada os pontos da decisão de facto impugnados, com base na audição da prova testemunhal indicada; constata-se ainda que, partindo de factos dados como provados por tal meio de prova, e mediante uso de presunções judiciais, se formularam determinados juízos fácticos.

Verifica-se assim que, contrariamente ao alegado pelos Recorrentes, o uso de presunções judiciais, não foi realizado com base em factos não provados nem tampouco padece de qualquer ilogicidade, manifesta ou não.

Considera-se inadmissível que, a pretexto da sindicância do uso de presunções judiciais, pretendam os Recorrentes – reafirme-se, em extensas e prolixas conclusões recursórias – que se proceda, afinal, à reapreciação da decisão de facto, o que, como se afirmou acima, não cabe nas competências deste Supremo Tribunal, salvo nas situações excepcionais previstas na parte final do art. 374.º, n.º 3, do CPC, que não se verificam no caso dos autos e nem sequer foram invocadas pelos Recorrentes.

Em particular, no que se refere ao valor da quota cedida, limitam-se os Recorrentes a alegar que «[o] apuramento do valor real da quota ou, pelo menos, do seu valor contabilístico, apenas poderia ser feito com recurso à análise, eventualmente pericial, da escrituração comercial da D...». Ora, o que o acórdão recorrido ajuizou, com base em meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, foi tão-só que o valor de mercado da quota não correspondia ao valor de custo da aquisição da mesma pela A.. Não estando a determinação do valor de mercado de uma quota societária sujeito a prova vinculada, não ocorre a invocada irregularidade.

Conclui-se não assistir razão aos Recorrentes, nesta parte.


8. Invocam ainda os Recorrentes padecer de erro de direito a decisão de anulação do contrato de cessão de quota em virtude de o contrato ter também como objecto (o crédito de) suprimentos de que os RR. eram titulares, alegando essencialmente o seguinte:

- «[O]s Recorrentes e a Recorrida negociaram e acordaram a cessão da quota dos primeiros na D..., LDA. mas também dos suprimentos de que aqueles eram titulares, não existindo nos autos qualquer elemento que permita aferir o valor dos referidos suprimentos, o respectivo preço, ou sequer a capacidade da D... para os reembolsar»;

- Não se admite, pois, que o tribunal a quo, «sem nunca se referir à cessão de suprimentos e, portanto, sem considerar que a mesma foi, também ela, celebrada pela Recorrida no pressuposto da manutenção da parceria com o Recorrente marido, decretar, sem mais, a anulação do “Contrato de Cessão de Quota” celebrado entre as partes em 09 de outubro de 2018.».

Quid iuris?

A impugnação dos Recorrentes assenta no pressuposto de que a decisão de anulação do contrato de cessão celebrado entre as partes se reporta única e exclusivamente à quota societária, quando o objecto do dito contrato incluía tanto a quota como os suprimentos (ou o crédito deles resultante).

Vejamos se assim é, efectivamente.

Quer se considere que o contrato de cessão é um contrato único com dois objectos (a quota e o crédito respeitante a suprimentos), quer se considere que o contrato configura antes uma situação de união de contratos, o resultado será o mesmo.  

Na hipótese de qualificação como um contrato único, consistindo o vício afirmado no acórdão recorrido em erro sobre os motivos respeitante à base do negócio, qualificado por dolo (cfr. arts. 252.º, n.º 2 e 253.º do Código Civil), a relevância atribuída ao erro afectará todo o negócio e não apenas a parte do mesmo que tem como objecto a cessão da quota.

Na hipótese de qualificação como união de contratos, a cessão do crédito respeitante a suprimentos, encontrando-se dependente da transmissão da qualidade de sócio, determina que o destino do contrato de cessão (do crédito) de suprimentos acompanhe necessariamente o destino do contrato de cessão da quota. Razão pela qual, a invalidade do segundo contrato afectará a validade, ou pelo menos, a eficácia, do primeiro.

Improcede, assim, nesta parte, a impugnação dos Recorrentes.


9. Por último, e naquela que se afigura ser a questão nuclear do presente recurso, invocam os Recorrentes padecer o acórdão recorrido de erro de direito no que se refere à decisão de anulação do contrato de cessão de quota por não se encontrarem preenchidos os pressupostos do regime do erro qualificador por dolo.

A A. invocou (cfr. art. 86.º da p.i.) a anulação do contrato de cessão de quota com fundamento em erro, convocando o regime do art. 247.º do Código Civil relativo ao erro na declaração.

A 1.ª instância, apreciando a factualidade dada como provada à luz das diferentes modalidades de erro (erro na declaração, erro-vício, erro qualificado por dolo), concluiu pela não verificação dos respectivos pressupostos, absolvendo os RR. dos pedidos.

A Relação, tendo alterado substancialmente a matéria de facto, entendeu que não estão preenchidos os pressupostos do erro-vício simples, designadamente do erro sobre a base do negócio previsto no art. 252.º, n.º 2, do Código Civil, por falta de verificação do requisito da bilateralidade do erro, mas que, em face da alteração da matéria de facto, se encontram reunidos os pressupostos do erro qualificado por dolo (art. 253.º, n.º 1, do CC), anulando o contrato de cessão de quota e (de crédito) de suprimentos e, em consequência, julgando procedentes os demais pedidos da A..

Insurgem-se os Recorrentes contra este entendimento, alegando essencialmente o seguinte:

- O acórdão recorrido interpreta e aplica erradamente os arts. 253.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, do Código Civil, na medida em que não resulta da decisão da matéria de facto que a Recorrida tenha sido induzida em erro pelo Recorrente marido, por meio de sugestão ou artifício, a prestar uma declaração, relativamente à totalidade do negócio que fez com os Recorrentes (cessão de quota e de suprimentos) que doutro modo não prestaria.

- O erro só geraria anulabilidade do negócio se fosse essencial para a formação da vontade da Recorrida, sendo que uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para a celebração do negócio, conforme a finalidade económica ou jurídica deste.

- O suposto erro não pode ser qualificado como essencial pelo tribunal a quo quando, um ano após a celebração do Contrato-Promessa de Cessão de Quota, o pai da Recorrida apenas pretendia atrasar por mais um ano o pagamento dos € 500.000,00 devidos a título de preço pela quota e pelos suprimentos.

- Não decorre, portanto, da matéria de facto provada que a Recorrida tenha celebrado em erro, induzido pelo Recorrente marido, o Contrato de Cessão de Quota em execução do qual adquiriu a quota e os suprimentos dos Recorrentes; ou que, a estar em erro, o mesmo fosse efectivamente essencial para a formação da vontade da Recorrida.

Quid iuris?

Como se referiu, e não obstante a A. ter invocado, em sede de petição inicial, o regime do erro na declaração (art. 247.º do Código Civil), entenderam as instâncias que a pretensão formulada corresponderia antes ao regime do erro-vício (arts. 251.º e sesg. do CC), o qual:

«[É] um vício na formação da vontade, contemporâneo da celebração do negócio e consiste no desconhecimento ou falsa representação de uma circunstância, de facto ou de direito, passada ou presente relativamente ao momento da emissão da declaração negocial e que determinou a celebração do negócio ou, pelo menos, a celebração naqueles termos. A vontade real e a declarada são coincidentes, mas a vontade é mal formada atendendo ao erro. Numa palavra, a vontade não se formou em termos esclarecidos. Há uma divergência entre a vontade real (o que se quis, a vontade efetivamente formada e exteriorizada pelo declarante) e a vontade conjetural ou hipotética (aquela que teria sido manifestada se não fosse a interferência do erro no processo de formação da vontade).» (Ana Filipa Morais Antunes, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, anotação ao artigo 251.º, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pág. 592).

Sendo que «[o] erro-vício pode ser classificado em duas categorias, em função do critério da autoria do erro: o erro simples (no sentido de espontâneo e que se funda na conduta do próprio declarante) e o erro qualificado por dolo (enquanto provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro)» E que «[o] erro simples está regulado nos artigos 251.º a 252.º Aqui se compreendem quatro modalidades, de acordo com o critério do elemento do negócio afetado pelo erro: i) o erro sobre a pessoa do declaratário (cf. artigo 251.º); ii) o erro sobre o objeto negocial (cf. artigo 251.º); iii) o erro sobre os motivos (cf. artigo 252.º, n.º 1); iv) o erro sobre a base do negócio (cf. artigo 252.º, n.º 2). Deve entender-se que, de acordo com a previsão legal das modalidades de erro-vício espontâneo, o erro sobre os motivos constitui a categoria geral, com natureza de tipo residual, e as demais modaliades, subtipos (que traduzem hipóteses particulares de erro sobre os motivos) v. CARVALHO FERNANDES, 2010: 200. O erro qualificado por dolo tem consagração nas normas subsequentes, a saber, nos artigos 253.º e 254.º» (ob. cit., pág. 594). [negritos nossos]

É precisamente em razão da índole essencialmente unitária das diversas modalidades de erro-vício que as instâncias apreciaram a pretensão da A. tanto à luz do regime do art. 251.º do CC, como do regime dos arts. 252.º e 253.º do mesmo Código. Em todo o caso, para que se verifique uma situação de erro, sempre será necessário que o vício na formação da vontade seja «contemporâneo da celebração do negócio e consist[a] no desconhecimento ou falsa representação de uma circunstância, de facto ou de direito, passada ou presente relativamente ao momento da emissão da declaração negocial e que determinou a celebração do negócio ou, pelo menos, a celebração naqueles termos». (ob. cit., acima transcrito).

Vejamos se assim é, considerando os factos provados relevantes para o efeito:

42. No dia 30.07.2018, os RR. celebraram com a A. um documento escrito que denominaram de “Contrato promessa de cessão de quota” através do qual declararam prometer ceder-lhe uma quota, com o valor nominal de € 25.000,00, representativa de 50% do capital social da sociedade comercial por quotas D..., Ld.ª, bem como o direito de crédito de que eram titulares, a título de suprimentos, sobre a dita sociedade, conforme documento de fls. 28 e 29 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

43. Tendo nesse mesmo dia, a A. e o R. marido subscrito um documento intitulado “Confissão de dívida”, no qual a primeira declarou dever ao segundo a quantia € 500.000,00, que se obrigou a pagar “(...) no prazo de cinco anos, e da seguinte forma:

a) € 50.000,00 (cinquenta mil euros) até ao dia 31.08.2019;

b) € 50.000,00 (cinquenta mil euros) até ao dia 31.08.2020;

c) € 100.000,00 (cem mil euros) até ao dia 31.08.2021;

d) € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) até ao dia 31.08.2022;

e) € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) até ao dia 31.08.2023”; conforme documento de fls. 65 a 66v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

44. Simultaneamente com a celebração do contrato promessa de cessão de quota e da “Confissão de dívida”, a A. e o R. marido assinaram um documento intitulado “Declaração”, no qual ambos declararam que “(...) a validade da confissão de dívida referida está sujeita à condição de vir a ser efectivamente celebrado, definitivamente registado, e considerado eficaz, nomeadamente perante a sociedade e os restantes sócios da mesma, o contrato definitivo de cessão de quotas relativo à promessa constante do contrato celebrado nesta mesma data entre os outorgantes”, conforme documento de fls. 67 a 68v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

45. O valor de € 500.000,00 que consta da aludida “Confissão de dívida” correspondente ao preço global acordado entre a A. e os RR. para a cessão da quota e dos suprimentos prometida celebrar.

46. Entretanto, o R. marido acedeu a entregar à J..., S.A., a pedido do pai da A., um conjunto de quatro cheques pós-datados, sacados à ordem daquela sociedade, no valor global de € 300.000,00, para esta os utilizar como garantia junto dos seus fornecedores.

47. Após obterem o consentimento da D..., Ld.ª, os RR. cederam à A., no dia 09.10.2018, a quota e os suprimentos, tendo a cessão da quota a favor da A. sido registada na Conservatória do Registo Comercial, através do Dep. 1596/2018-10-10, conforme documentos de fls. 32 a 38 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

48. Tendo o R. marido renunciado ao exercício da gerência da D..., Ld.ª, conforme documento de fls. 34 a 38 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

49. E o filho do R. marido, LL, transmitiu, por indicação da A. e do seu pai, a quota com o valor nominal de € 2.000,00 de que era titular na S..., Ld.ª, a favor de II, conforme documento de fls. 19 a 20 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

50. O filho do R. marido não recebeu da A. qualquer valor a título de contrapartida pela cessão da quota no capital social da S..., Ld.ª.

51. A A. adquiriu a aludida quota no pressuposto que se manteria a parceria com o R. relativamente à abertura de lojas e à angariação de clientes por este, e que ele financiaria a J..., S.A., com o valor de € 500.000,00, de forma a permitir o desenvolvimento do projeto do IAPMEI.

Facto aditado pela Relação: O R. sabendo que, para o desenvolvimento do Projeto do IAPMEI ao qual J..., S.A., se havia candidatado, se tornava necessário financiamento bancário e injecção de capitais próprios na sociedade, não se afigurando estes fáceis de obter, e que tal se afigurava também um entrave à celebração do negócio de cessão de quotas, disponibilizou-se para financiar pessoalmente a J..., S. A., através de um empréstimo de € 500.000,00, por forma a convencerem a A. para adquirir a quota.

52. Ainda no seguimento do acordado no âmbito da aludida parceria, a T..., Lda encomendou à J..., S.A., um conjunto variado de artigos, que deveriam mobilar integralmente a loja de acordo com um projecto pré-aprovado.

56. No entretanto, com vista a tentar obter o financiamento para a J..., S.A., através da sociedade T..., Lda, a A., o pai desta e o R. marido combinaram que a primeira alienaria a sua quota ao filho do R., dado aquela pertencer à estrutura accionista da J..., S. A., com exposição à banca considerável e tal poder constituir um entrave à obtenção do dito financiamento.

57. Em 18.09.2018, a A. cedeu a LL a quota de que era titular no capital social da T..., Ld.ª, sem o pagamento de qualquer contrapartida e renunciou ao exercício da gerência, conforme documento de fls. 17 a 18v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

58. Em Outubro de 2018, na reunião onde estiveram presentes as testemunhas DD e EE, o R. informou o pai da A. que já não iria fazer o financiamento à J... e na mesma altura solicitou-lhe a entrega dos cheques que havia entregue à J....

59. O pai da A. informou o R. que não lhe podia entregar de imediato os cheques, tendo o [R. marido] entregue um novo cheque com data para Janeiro para substituir o cheque cuja data de vencimento se aproximava.

61. Posteriormente, em Agosto de 2019, o pai da A. tentou negociar com o R. marido os termos e condições do pagamento do preço global da quota e dos suprimentos, solicitando uma dilação de, pelo menos, um ano no vencimento da primeira prestação do preço global.

62. Para aceitar tal proposta, o R. marido exigiu que fossem prestadas garantias, o que a A. não aceitou fazer.

63. Em 31.08.2019, a A. não pagou aos RR. a quantia de € 50.000,00, referente à primeira prestação acordada na “Confissão de dívida”.

64. Por carta datada de 04.09.2019 e recebida no dia seguinte, os RR. interpelaram a A. para que procedesse ao pagamento da totalidade do preço global da quota e dos suprimentos, conforme documentos de fls. 69 a 70 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

65. À qual a A. respondeu por carta datada de 19.09.2019, conforme documento de fls. 91 e 91v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

Resulta da factualidade dada como provada que estamos perante uma situação de coligação entre os seguintes negócios jurídicos:

(i) Contrato de cessão da quota e de crédito de suprimentos, relativo à sociedade D..., Lda., celebrado entre o R. marido, na qualidade de cedente, e a A., na qualidade de cessionária (facto 47);

(ii) Declaração de dívida da A. a favor do R. marido, no montante de € 500.000,00, como contrapartida da cessão de quota e do crédito de suprimentos relativo à sociedade D..., Lda.;

(iii) Compromisso assumido pelo R. marido de financiar pessoalmente a sociedade J..., S.A., administrada pela A. e pelo seu pai (cfr. factos 1 a 3) e aos mesmos pertencente (cfr. facto 38), mediante um empréstimo no montante de €500.000,00, compromisso que determinou que a A. aceitasse celebrar o contrato de cessão descrito em (i) relativo à sociedade D..., Lda..

Perante a prova feita, entendeu o tribunal a quo – o que não merece censura – que o compromisso de financiamento da sociedade J..., S.A., assumido pelo R. marido, constituía, o “pressuposto”, ou, numa qualificação mais rigorosa, a contrapartida, para a A. se ter confessado (facto 43) devedora perante o mesmo R. do montante de € 500.000,00, enquanto preço (facto 45) pela aquisição da quota e (do crédito) dos suprimentos da sociedade D..., Lda. cujo valor comercial era praticamente nulo.

Que, posteriormente, o R. marido se tenha recusado (facto 58) a cumprir o compromisso de financiamento da J..., S.A. por si assumido não pode deixar de ter relevância jurídica. Porém, e neste ponto têm os Recorrentes razão, tal relevância não é subsumível em qualquer das modalidades de erro-vício simples ou de erro-vício qualificado por dolo, uma vez que não está em causa um vício «contemporâneo da celebração do negócio», mas antes a conduta do R. marido, em momento posterior à celebração dos diferentes negócios jurídicos coligados, e que se traduz essencialmente no incumprimento da obrigação por ele assumida como contrapartida das vinculações assumidas pela A. em tal coligação de negócios.

Temos, pois, que, não obstante ter formulado o pedido de anulação do contrato de cessão outorgado em 09.10.2018, assim como o pedido de anulação da declaração confessória de dívida de 30.07.2018 (facto 43), e, ainda da declaração da mesma data que condiciona a validade/eficácia da declaração confessória à celebração do contrato definitivo de cessão de quota (facto 44), o efeito prático-jurídico pretendido pela A. é a cessação dos efeitos daqueles negócios jurídicos por incumprimento da obrigação de financiamento assumida pelo R. marido. Cessação de efeitos que corresponderá à pretensão de resolução do contrato de cessão outorgado em 09.10.2018 e à ineficácia da declaração confessória da dívida de 30.07.2018

Conclusão esta que suscita o problema da admissibilidade da convolação do(s) pedido(s) de anulação formulado(s) pela A., que passaremos a considerar em seguida. E que, além disso, e a fim de prevenir a prolação de decisão-surpresa, exige a notificação prévia das partes.


10. Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a possibilidade da explanada convolação, veio a Recorrida pronunciar-se, afirmando, no essencial, o seguinte:

«Como referiu a recorrida na sua resposta ao recurso dos recorrentes, afigura-se-lhe que o douto acórdão proferido pela Veneranda Relação aplicou criteriosamente o Direito aos factos dados como provados.

De todo o modo, mesmo que se possa vir a entender estar em causa a resolução do contrato de cessão outorgado em 09/10/2018, da matéria de facto dada como provada resulta à saciedade que tal contrato foi incumprido pelos recorrentes, e sempre o efeito jurídico será o mesmo, ou seja, a cessação dos efeitos daquele contrato (e correspondente declaração de dívida) com efeitos retroativos.».

Por sua vez, e para além de reiterarem a posição assumida em sede de alegações recursórias, pronunciaram-se os Recorrentes nos seguintes termos:

«1. Convidada a pronunciar-se “a respeito da possibilidade de convolação e de apreciação dos pedidos [por si] formulados [na petição inicial]” em “resolução do contrato de cessão outorgado em 09.10.2018 e à ineficácia da declaração confessória da dívida de 30.07.2018”, veio a Recorrida assumir uma posição titubeante.

2. De um turno proclama que “o douto acórdão proferido pela Veneranda Relação aplicou criteriosamente o Direito aos factos dados como provados”; de outro refere que se verificou um “incumprimento definitivo do contrato, e que sempre conduziria à sua resolução”.

I.e.,

3. a Recorrida não responde afirmativamente à possibilidade aventada por V. Exa. no douto despacho com a referência citius ...07.

4. Sobre a possibilidade de convolação, importa destacar que a chamada regra do dispositivo constitui pedra angular do nosso processo civil.

5. O artigo 260.º do Código de Processo Civil (“CPC”), sede do princípio da estabilidade da instância, prescreve que, salvo nas apertadas situações em que a lei o consente, citado o réu, não há espaço para a sua alteração subjectiva ou objectiva, i.e., nem quanto aos sujeitos nem quanto ao pedido e à causa de pedir.

6. Já o artigo 264.º do CPC determina que “o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura”, desde que ocorra acordo das partes, mas necessariamente em primeira ou segunda instância.

7. Atenta a circunstância de estarmos em plena terceira instância, dúvidas não restam sobre a inaplicabilidade do disposto no artigo 264.º do CPC.

8. Também a alteração unilateral do pedido, prevista no artigo 265.º do CPC, soçobra liminarmente atendendo ao actual momento da lide.

9. Não se ignora que o propósito do despacho sob análise é o do aprimoramento jurídico do pedido, e, por outro lado, que, nos termos do artigo 5.º, número 3, do CPC, as alegações de direito das partes não vinculam o Tribunal, que pode – e, quantas vezes deve – extravasar o seu âmbito, conferindo à realidade material por si considerada provada o enquadramento jurídico que acredite melhor lhe assentar.

10. Não se pode, contudo, ignorar que a Recorrida nunca resolveu, nos termos prescritos no número 1 do artigo 436.º do Código Civil, o contrato de cessão de quota que outorgou com os Recorrentes em 09 de outubro de 2018; e que nunca pediu ao Tribunal que o fizesse. Nem agora!

11. Salvo melhor opinião, entre a pretensão formulada pela Recorrida na petição inicial e a que, no entendimento soprado no douto despacho de V. Exa., teria sido adequado aquela formular, existem diferenças substanciais que transcendem o plano da mera qualificação jurídica.».

Considera-se que os termos em que a Recorrida se pronunciou, ao manter a rejeição da procedência do recurso, e ao afirmar que «mesmo que se possa vir a entender estar em causa a resolução do contrato de cessão outorgado em 09/10/2018, da matéria de facto dada como provada resulta à saciedade que tal contrato foi incumprido pelos recorrentes, e sempre o efeito jurídico será o mesmo, ou seja, a cessação dos efeitos daquele contrato (e correspondente declaração de dívida) com efeitos retroativo», demonstram a aceitação da possibilidade de convolação do pedido.

Deste modo, passemos em seguida, a apreciar a questão da admissibilidade da convolação do pedido, tendo em conta as objecções invocadas pelos Recorrentes.


11. A respeito da possibilidade de convolação do pedido, socorramo-nos, antes de mais, da fundamentação do acórdão deste Supremo Tribunal de 02.03.2011 (proc. n.º 823/06.7TBLLE.E1.S1),[1] disponível em www.dgsi.pt, na qual se afirma o seguinte:

«[S]erá possível convolar do pedido deduzido – da pretensão material formulada pela A na petição inicial e não modificada durante o decurso do processo na 1ª instância – para pretensão juridicamente diferenciada, apenas invocada na fase de recurso?

(...)

Embora se trate de matéria menos linear e mais controversa do que a simples – e corrente - alteração da qualificação jurídica da factualidade integradora da causa de pedir, tem sido admitido, com fundamento numa visão funcional e menos rigidificante do processo, que, em certos casos, possa o tribunal corrigir e adequar , quer a pretensão material, reconfigurando no plano normativo o efeito jurídico pretendido pelos litigantes, quer as próprias pretensões adjectivas formuladas pelas partes convolando da configuração jurídica que os litigantes lhes haviam erroneamente atribuído para a que se mostra adequada à realidade normativa (veja-se, de forma paradigmática, o acórdão uniformizador 2/10, estendendo o tradicional regime do «erro na forma do processo» ao suprimento da forma incorrecta que revestiu a impugnação deduzida pela parte, convertendo, em consequência, o inadmissível requerimento de interposição de recurso de decisão do relator na reclamação para a conferência prevista no nº3 do art. 700º do CPC).

Neste último tipo de situações, o que normalmente se pretenderá através da convolação e correcção realizadas pelo tribunal é evitar a sujeição da parte a um gravoso – e, porventura, desproporcionado - efeito preclusivo, que inelutavelmente decorreria do erro cometido acerca do âmbito dos meios procedimentais utilizados, não sendo já possível à parte, pelo jogo dos prazos peremptórios que a oneravam, fazer uso do meio procedimental próprio, no momento em que ficasse assente a impropriedade do meio processual erroneamente utilizado.

Por sua vez, no primeiro grupo de situações, consubstanciadas no correcção da qualificação ou «coloração» jurídica dada à pretensão material, o que, no essencial, se pretende evitar com a convolação operada é, no plano da celeridade e da eficácia processuais, dispensar a propositura de uma nova acção, em que apenas fosse corrigido pelo autor o modo como este havia configurado normativamente o efeito jurídico extraído dos mesmos factos: sendo naturalmente admissível a propositura de uma acção nova em que, apesar de fundada exactamente nos mesmos factos, se deduzisse um pedido diferente (art. 498º do CC), a repetição do litígio envolveria um desproporcionado esforço de alegação de factos e de prova dos mesmos, quando o que, afinal, estava em causa era apenas a reconfiguração – no estrito plano normativo - da via jurídica através da qual se pretendia alcançar o reconhecimento do direito a determinados bens.

E, nesta perspectiva, pode afirmar-se que o que, afinal, identifica decisivamente a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico.

Assim, será lícito ao tribunal convolar, mesmo oficiosamente, por exemplo, de um pedido de anulação do negócio jurídico para a declaração da respectiva ineficácia, sem que tal permita afirmar que, ao fazê-lo, o tribunal julgou objecto diverso do que havia sido peticionado (veja-se o acórdão uniformizador 3/01, de 23 de Janeiro, facultando ao juiz a correcção oficiosa , em acção de impugnação pauliana, do pedido de «declaração de nulidade ou anulação» do negócio impugnado para o de «ineficácia do acto em relação ao autor»); ou a possibilidade (reconhecida pelo Assento de 28/3/95) de fazer derivar o direito do autor a determinada prestação, não da via jurídica por ele construída e estruturada ao longo do processo – o cumprimento de determinada relação contratual – mas de via juridicamente diversa, resultante de o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade desse contrato, acabando por atribuir o bem pretendido pelo autor por força da actuação da regra da restituição do recebido, com fundamento no nº1 do art. 289º do CC (e não no cumprimento do contrato tido por nulo, invocado pelo autor no pressuposto de que seria válido).». [negritos nossos]

Esta orientação corresponde à posição assumida pelo relator do acórdão em «O princípio dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, págs. 789 e segs., texto no qual se pode ler que:

A convolação do pedido há-de respeitar «um princípio de correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a pronúncia jurisdicional obtida pela parte, devendo o decidido pelo juiz adequar-se às pretensões formuladas, ser com elas harmónico ou congruente, sob pena de se verificar a nulidade da sentença por excesso de pronúncia» (pág. 789).

Trata-se de posição que encontra acolhimento na doutrina processualista. Cfr., a este respeito, Vaz Serra, Anotação ao acórdão do STJ de 15/10/1971, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 105.º, págs. 217 e segs.; Miguel Mesquita, «A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC – anotação ao Ac. Rel. Porto de 08-07-2010, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 143.º, págs. 129 e segs.; Manuel Tomé Gomes, “Da Sentença Cível”, in Jornadas de Processo Civil organizadas pelo CEJ[2], 2014, págs. 44 e segs.; Miguel Teixeira de Sousa, Comentário ao Acórdão do STJ de 04/10/2016 (processo n.º 762/04.6TYLSB.L1.S1), publicado em 25-01-2017 no blog do IPPC; José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, anotação ao artigo 609.º, págs. 718 e seg.; António Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed, Almedina, Coimbra, 2022, anotação ao artigo 609.º, págs. 728 e segs.

Da extensa jurisprudência deste Supremo Tribunal que vem admitindo a possibilidade de convolação oficiosa do pedido, respeitados que sejam os limites supra enunciados, refiram-se - para além do AUJ n.º 3/2001 e do Assento 28/3/95, convocados na fundamentação, acima reproduzida, do acórdão do STJ de 02-03-2011 - os seguintes acórdãos, transcrevendo-se, na parte relevante, os respectivos sumários:

- Acórdão de 04-10-2018 (proc. n.º 588/12.3TBPVL.G2.S1), consultável em www.dgsi.pt:

«(...)

X - Pedindo a autora, na ação de impugnação pauliana, a restituição dos bens ao património do réu transmissário para aí poderem ser executados, não constitui excesso de pronúncia, não enfermando, por isso, da nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. e), do CPC, a decisão judicial que limitou-se a declarar que a autora podia executar tais bens no próprio património do obrigado à restituição, pois estamos perante uma mera correção da forma como a autora formulou tal pedido, sem alteração do seu teor substantivo, de modo a conformá-lo com o regime legalmente consagrado nos arts. 616.º, n.º 1 e 618.º, ambos do CC e garantir a efetividade da sentença.

(...)».

- Acórdão de 07-04-2016 (proc. n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1), consultável em www.dgsi.pt:

«I - O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado. 

II - Assim, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao autor, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o autor procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular. 

III - Tendo o autor optado por formular um pedido de reconhecimento de um direito relativamente à contitularidade em determinado património imobiliário, na óptica fundamental de um contrato de associação em participação, decorrente de actividade exercida conjuntamente com o réu, não é possível, como decorrência da subsunção da relação material controvertida no âmbito da figura normativa das sociedades irregulares, atribuir-lhe antes o direito a uma determinada participação ou quota na dita sociedade, tendo como fim e objecto a actividade de rentabilização do património imobiliário entretanto adquirido pelos interessados. 

IV - Na verdade, neste caso verifica-se urna perfeita heterogeneidade - quer jurídica, quer prático-económica - entre o pedido efectivamente formulado pelo autor, situado claramente no plano real da compropriedade sobre determinado património imobiliário, e o resultado da convolação operada pelo juiz, reconhecendo-lhe, não qualquer direito de natureza real sobre tais imóveis, mas antes determinada quota ou participação na sociedade que se teve por existente, face à qualificação jurídica da relação material litigiosa. 

(...)».

- Acórdão de 22-02-2017 (proc. n.º 598/15.9YRLSB.S1), não publicado:

«(...)

III - A diferente qualificação jurídica feita pelo tribunal arbitral, sem qualquer subversão do pedido ou da causa de pedir, da indemnização peticionada pela demandante pela via do interesse contratual negativo (dano da confiança) e não pela invocada via do art. 289.º do CC, não consubstancia condenação em objecto diverso do pedido, nem decisão surpresa por violação do princípio do contraditório, não se verificando, portanto, os fundamentos de anulação da sentença arbitral previstos no art. 46.º, n.º 3, al. a), pontos ii) e v), por referência ao art. 30.º, als. b) e c), da LAV. 

(...)».

- Acórdão de 18-12-2012 (proc. n.º 9495/05.5TBVNG.P1.S1), não publicado:

«(...)

II - Não existe condenação em objecto diverso do pedido quando, tendo a ré/reconvinte peticionado a devolução do preço com base na anulação por erro do contrato, se entende que – não se verificando os pressupostos do erro – se verificam os requisitos da redução do preço e se condena em conformidade. 

III - Na situação referida em II não se concede maior quantidade ou objecto diverso do peticionado – pois é concedida à ré/reconvinte parte do preço, quando ela havia pedido a totalidade –, nem se altera a causa de pedir, apenas se efectuando uma qualificação jurídica dos factos provados diversa e distinta da efectuada pela ré/reconvinte. 

IV - A qualificação do contrato celebrado não depende da qualificação que lhe é dada pelas partes, mas sim da interpretação da vontade dos contraentes, valendo as suas declarações com o sentido que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante. 

(...)».

- Acórdão de 25-10-2012 (proc. n.º 529/06.7TVPRT.P1.S1), não publicado:

«I - Sendo o tribunal livre na qualificação jurídica dos factos, desde que não altere a causa de pedir (art. 664.º do CPC), nada impede que se convole o pedido de declaração de nulidade (e, subsidiariamente, de inexistência), formulado na petição inicial, para o de ineficácia, sem violação do disposto no art. 661.º, n.º 1, do CPC. 

II - O abuso dos poderes representativos constitui justa causa de revogação de uma procuração irrevogável (art. 265.º, n.º 3, do CPC).».

- Acórdão de 16-12-2010 (proc. n.º 1737/04.0TBAVR.C1.S1), não publicado:

«I - Provando-se serem os autores titulares duma quota correspondente a metade do imóvel alienado, a compra e venda efectuada entre os primeiros e os segundos réus, por ser res inter alios acta, torna-se ineficaz relativamente àquele que se arroga a titularidade do direito de propriedade sobre a coisa vendida, podendo tal ineficácia ser invocada a todo o tempo, ainda que sem prejuízo das regras da aquisição por usucapião. 

II - O verdadeiro titular do direito sobre a coisa carece de legitimidade para invocar a nulidade do negócio, tal como prevista no art. 892.º do CC. 

III - Se os autores, invocando serem titulares duma quota correspondente a metade do imóvel alienado, formulam um pedido de declaração de nulidade da compra e venda do imóvel, uma vez que o efeito prático visado com o pedido apresentado se traduz, na realidade, na não produção dos efeitos jurídicos a que tende a compra e venda realizada, nada obsta a que, qualificando correctamente, do ponto de vista jurídico, a pretensão deduzida, o tribunal aprecie se a ineficácia (que não a alegada nulidade) existe ou não.».

Por fim, refira-se ainda o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 33/2000, de 12 de Janeiro, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que decidiu não julgar inconstitucionais as normas dos arts. 610.º, alínea b), e 616.º, ambos do Código Civil, e do art. 661.º, n.º 1, do CPC antigo (correspondente ao actual art. 609.º, n.º 1, do CPC), quando interpretadas no sentido de permitirem que uma decisão jurisdicional condene em algo qualitativamente diverso do pedido formulado.

Conclui-se, assim, que a convolação do pedido é admissível desde que se respeite o princípio de correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a pronúncia jurisdicional obtida pela parte.

12. Aqui chegados, importa, pois, considerar se o pedido de anulação de um contrato pode ser convolado numa decisão de resolução do contrato.

Em sentido favorável, pronunciaram-se, por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 17-06-1992 (proc. n.º 82428), publicado no BMJ n.º 418, Julho de 1992, págs. 710 e segs. e de 07-04-2011 (proc. n.º 9289/05.8TBSTB.E1.S1), não publicado. Cfr. também, entre outros, o acórdão de 23-09-1999 (proc. n.º 510/99), consultável em www.dgsi.pt. 

Vejamos.

De acordo com a lição de Lopes do Rego (ob. cit., pág. 796), importa definir «os parâmetros dentro dos quais se move» a «possibilidade de convolação jurídica, não se podendo olvidar que – segundo a regra do dispositivo pedra angular do processo civil que nos rege – o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objecto do pedido e o objecto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspectivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida.».

Consideremos o caso concreto.

A A. formulou os pedidos de anulação do contrato de cessão e da declaração confessória, assim como de cancelamento do registo da quota em seu nome, pretendendo com isso que a cessão e a confissão de dívida não produzam quaisquer efeitos.

Entre o objecto destes pedidos e o objecto do pedido de resolução do contrato existirá homogeneidade e equiparação prática, desde que, cumulativamente com a resolução, não se pretenda a produção de efeito incompatível com a anulação, como seria, em regra, a pretensão de, cumulativamente, ser fixada uma indemnização pelo interesse contratual positivo.

No caso dos autos, ao pretender a A. que não se produza o efeito de transmissão da titularidade da quota a seu favor, ficando, consequentemente, desvinculada do pagamento do preço da cessão, o objecto peticionado é equiparável ao objecto do pedido de resolução do contrato, sem cumulação, aliás, com qualquer pedido de indemnização. Ora, como se sabe, a própria lei determina que a eficácia retroactiva da resolução equivale à eficácia retroactiva da anulação (cfr. art. 432.º do Código Civil), pelo que, no presente caso, se entende que nada obsta à convolação do pedido de anulação da cessão em decisão de resolução do mesmo contrato.

No que se refere aos pedidos de anulação da declaração confessória de 30.07.2018 (facto 43) e de anulação da declaração da mesma data descrita no facto 44, afigura-se que a convolação é facilmente justificável.  

Com efeito, considerada em abstracto, uma declaração confessória reveste a natureza de negócio unilateral presuntivo de causa, dispensando o credor da prova da causa (cfr. art. 458.º do CC). Contudo, no caso dos autos, ficou provado (facto 45) que a dívida confessada tem como causa o contrato de cessão, constituindo o preço de aquisição da quota e do crédito dos suprimentos pelo que a resolução de tal contrato, levando ao desaparecimento da causa, determinará a ineficácia da confissão de dívida. Ao mesmo resultado se chega através do funcionamento da própria declaração constante do facto 44 («documento intitulado “Declaração”, no qual ambos declararam que “(...) a validade da confissão de dívida referida está sujeita à condição de vir a ser efectivamente celebrado, definitivamente registado, e considerado eficaz, nomeadamente perante a sociedade e os restantes sócios da mesma, o contrato definitivo de cessão de quotas relativo à promessa constante do contrato celebrado nesta mesma data entre os outorgantes”») que mais não faz do que condicionar a validade/eficácia da declaração confessória à eficácia do contrato de cessão.

Temos, pois, que, diversamente do alegado pelos Recorrentes, se conclui não estar em causa qualquer alteração do pedido, mas antes a requalificação do pedido formulado em função do efeito prático-jurídico pretendido. Sendo assim admissível: (i) que, tendo sido formulado pedido de anulação do contrato de cessão, seja decretada a resolução do mesmo contrato, sem cumulação com qualquer indemnização; (ii) que, tendo sido formulado pedido de anulação da declaração confessória, seja decretada a ineficácia da dita declaração; (iii) que seja de desconsiderar o pedido de anulação da declaração descrita no facto 44, atendendo a que, diversamente daquilo que se afigura ter sido entendido pela A., dela não resultam quaisquer obrigações para a mesma A..

13. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, e, requalificando-se os pedidos formulados nos termos supra expostos, decide-se:

a) Declarar a resolução do contrato de cessão de quota e de crédito de suprimentos celebrado entre a autora e o réu marido em 09.10.2018;

b) Declarar a ineficácia da declaração confessória de 30.07.2018;

c) Cancelar a inscrição no registo de aquisição da quota da sociedade D..., Lda. a favor da autora, realizado através do Depósito 1596/2018-10-10.

Custas pelos Recorridos.

Lisboa, 2 de Março de 2023

Maria da Graça Trigo (Relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira


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[1] Relatado pelo Cons. Lopes do Rego.
[2] Disponível no site do CEJ: https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202.