Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1363/09.8TBSTR.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: NEGÓCIO INDIRECTO
SIMULAÇÃO
ESCRITURA PÚBLICA
SOCIEDADE POR QUOTAS
SOCIEDADE ANÓNIMA
DOAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 04/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Abílio Neto, “Código de Processo Civil”, Anotado, 8.ª Ed. (1987), pp. 514-515 nota 5, em anotação ao art.º 668º. (vide jurisprudência aí citada).
- J. A. Reis, “Código de Processo Civil”, Anotado, Vol. V, pp. 49 e segs., 53 e segs., 142-143 nota 5.
- J. Lebre de Freitas e outros, “Código de Processo Civil”, Anotado, Vol. 2, Coimbra Editora – 2001, pp. 645-646 nota 2.
- J. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, p. 228 nota 2 e 247 nota 5.
- Oliva Santos, Andrés de la, e Diez-Picazo Giménez, Ignacio, Derecho Procesal Civil - El proceso de declaración, Editorial Universitária Ramón Areces, 3.ª edición. 2008, pp. 445-466.
- Orlando de Carvalho, in “Negócio Jurídico Indirecto” (Teoria Geral), Boletim da Faculdade de Direito, (Suplemento X), Coimbra Editora, pp. 14, 15, 22, 42, 36, 62, 91 a 92, 111 a 118.
- Pais Vasconcelos, Pedro, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 7.ª edição, 2012, pp. 544-546.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 980.º.
CÓDIGO PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 264.º, 659.º, 660.º, N.º2, 661.º, 668.º, N.º1, ALÍNEA D).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 01-06-1973, B.M.J. 228, P. 136; DE 06-01-1977, B.M.J. 263, P. 187; DE 09-07-1982, B.M.J. 319, P. 199.
Sumário :
I - O tribunal só comete a infracção de omissão de pronúncia quando deixa de emitir expressamente um juízo valorativo e apreciativo sobre uma questão que as partes lhe tenham trazido nos respectivos articulados; esta ausência de pronúncia consubstancia-se ou expressa-se numa preclusão insolvente do tema factual ou jurídico que as partes sujeitaram à apreciação do tribunal.

II - O problema conceitual do negócio indirecto depende, por um lado, da tipicidade do negócio adoptado, e, por outro, da verificação ou destinação de um fim indirecto perante aquele negócio, autónomo em face das respectivas consequências normais, mas a derivar imediatamente da própria actuação do negócio.

III - O negócio indirecto não se confunde com o negócio simulado.

IV - Se, em concreto, não resulta adquirido que a sociedade constituída tivesse por fim esconder, ocultar ou esquivar um outro fim, diverso ou oculto, que não fosse a contribuição em bens ou serviços, de duas ou mais pessoas, para o exercício em comum de uma actividade económica, com o objectivo de repartirem os lucros resultantes dessa actividade, não se descortinando outros motivos ou intenções subjacentes ou com projecção no negócio jurídico formado, não se pode concluir que tal negócio jurídico ocultava uma liberalidade (doação).
Decisão Texto Integral:

I. – Relatório.

AA, BB e CC, intentaram contra DD, acção, com processo ordinário, pedindo: “1.1. O reconhecimento de que a escritura de constituição da sociedade AA & Filhos Ldª celebrada em 20 de Dezembro de 1989 foi feita com simulação;

1.2. O reconhecimento de que aquela escritura titula um negócio dissimulado válido, a doação à CC e ao réu DD do estabelecimento comercial do autor AA, através das participações sociais da sociedade;

1.3. O reconhecimento de que a doação da participação social do réu DD na sociedade “AA & Filhos Ld.ª” foi feita em consideração do estado de casado com a autora CC;

1.4. Que se declare perdida a favor da autora CC aquela doação feita ao réu, em face do divórcio a que este deu causa, quando o mesmo vier a ser decretado;

Subsidiariamente, e caso se considere que a escritura de constituição da sociedade não titula uma doação dissimulada, pedem:

2.1. O reconhecimento de que a participação social da autora CC na escritura de constituição da sociedade “AA & Filhos Ld.ª” com uma quota de um milhão duzentos e cinquenta mil escudos, corresponde a 25 % do capital social, constitui liberalidade que fizeram seus pais e por isso é bem próprio seu;

2.2. O reconhecimento de que a participação social do réu DD na escritura de constituição da sociedade “AA & Filhos Ld.ª” com uma quota de um milhão duzentos e cinquenta mil escudos, corresponde a 25 % do capital social, constitui liberalidade que lhes fizeram seus sogros em virtude do seu casamento com a filha deles e atendendo ao estado de casado;

2.3. Que se declare que, em consequência do divórcio a que deu causa e quando este vier a ser decretado, perde a favor da autora CC aquela liberalidade;

2.4. O reconhecimento de que o aumento de capital social titulado pela escritura de 13 de Dezembro de 1993 não foi feito com dinheiro próprio dos sócios mas em parte com empréstimo bancário feito à Sociedade e pago depois pelas forças da Sociedade;

2.5. O reconhecimento de que, por esse efeito, aumentou o valor e passou a integrar a quota de cada um dos sócios na proporção das suas participações sociais;

2.6. O reconhecimento de que parte do dinheiro do aumento do capital social – 18.989.852$00 - foi dado pelos autores AA e BB aos sócios para que subscrevessem esse aumento, na proporção das quotas de cada um;

2.7. O reconhecimento de que a doação desse dinheiro ao réu DD foi feita por estar casado com a filha deles, doadores, e tendo em consideração o casamento;

2.8. O reconhecimento e declaração de que o aumento de capital social subscrito pela sócia CC constitui bem próprio dela, em face das liberalidades que lhe fizeram ao pais;

2.9. O reconhecimento e declaração de que o aumento de capital social subscrito pelo sócio DD foi feito através de liberalidades que lhe fizeram os sogros em consideração ao estado de casado e que quando decretado o divórcio deve perder em benefício da mulher;

2.10. O reconhecimento de que dos 30.000.000$00 de prestações suplementares de capital, realizados em Dezembro de 2000, 10.000.000$00 constituem liberalidade do pai da sócia CC feita aos sócios e a cada um na proporção da sua participação social, para reali­zação de suprimentos;

2.11. O reconhecimento de que esta liberalidade foi feita ao réu DD tendo em consideração o seu estado de casado com a sócia CC;

2.12. O reconhecimento de que, do dinheiro com que os sócios aumentaram o capital social na escritura de 27 de Setembro de 2002, 58.832,11 € constitui liberalidade que lhes foi feita pelo pai da sócia CC para realizarem o aumento do capital social, na proporção das suas participações sociais;

2.13. O reconhecimento de que a parte proporcional daquele dinheiro dado ao sócio DD pelo sogro para realização do aumento do capital social, foi dado tendo sempre em consideração o estado de casado com a filha dele, a sócia CC;

2.14. O reconhecimento e declaração de que a quota no valor nominal de 749.700,00 € resultante do aumento de capital social feito em Dezembro de 2002, constitui bem próprio da sócia CC, devendo compensar o património comum do seu casal em 121.248,16 €;

2.15. O reconhecimento e declaração de que a quota no valor nominal de 250.000,00 € resultante do aumento de capital social de Dezembro de 2002, em nome do sócio DD, resulta de liberalidades que lhe fizeram os sogros tendo em vista o estado de casado com a sócia CC, perdendo-a em benefício desta quando vier a ser decretado o divórcio a que deu causa;

2.16. O reconhecimento e declaração de que da quota de 250.000,00 € em nome do sócio DD, deve compensar-se o património comum do seu casal em 40.416,00 €;

2.17. O reconhecimento e declaração de que pela transformação em sociedade anónima realizada na escritura de 27 de Setembro de 2002 e por efeito da conversão do capital social em acções, deve operar-se a distinção entre bens comuns e bens próprios e a compensação ao património comum do casal constituído pelos sócios DD e CC;

2.18. O reconhecimento e declaração de que a sócia CC passou a deter como accionista 149.940 acções, das quais 125.690 acções são bens próprios seus e 24.250 acções são bens comuns do seu casal;

2.19. O reconhecimento e declaração de que o sócio DD passou a deter como accionista 50.000 acções das quais 41.917 acções constituem resultado de liberalidades que lhe foram fei­tas pelos sogros e 8.083 acções são bens comuns do seu casal;

2.20. O reconhecimento e declaração de que as 41.917 acções que o accionista DD detém, em resultado de liberalidades que lhe fizeram seus sogros tendo em consideração o seu estado de casado, constituem benefício que deve perder a favor do seu cônjuge por efeito do divórcio a que deu causa quando este vier a ser decretado.”

Para o petitório que concitam, induzem a factualidade que, em síntese apertada, a seguir se enuncia:

- O autor AA era empresário em nome individual e exerceu a actividade de industrial de moagem de farinhas em rama e espoadas, explorando um estabelecimento comercial de moagem;

- Porque a sua filha – a Autora CC - trabalhava com o pai naquela actividade, decidiram os dois primeiros Autores doar-lhe o referido estabelecimento, para preenchimento da sua quota hereditária; para concretização dessa intenção, optaram por constituir uma sociedade para a qual transitaria o referido negócio de moagem, com posterior doação à filha da quota que o Autor detinha nessa sociedade, mais acordando que o Réu também participaria nessa sociedade por estar casado com a Autora, CC;

- Para a concreção do planeado, no dia 20 de Dezembro de 1989 os Autores AA e CC, e o Réu celebraram uma escritura de constituição de uma sociedade comercial por quotas, com a firma “AA & Filhos, Ld.ª”, cujo capital social integralmente realizado em dinheiro era de cinco milhões de escudos e que correspondia à soma de três quotas, uma de dois milhões e quinhentos mil escudos do sócio AA, e duas de um milhão duzentos e cinquenta mil escudos cada, subscritas uma pela Autora CC e outra pelo Réu DD;

 - A Autora, CC, e o Réu nunca realizaram qualquer entrada de dinheiro para a subscrição das quotas; no dia 20 de Maio de 1991;

- Foram os Autores, AA e BB, que doaram à Autora CC, por conta da quota disponível de seus bens, a quota de valor nominal de dois milhões e quinhentos mil escudos que o autor AA ainda detinha na sociedade “AA & Filhos, Ld.ª;

- Ainda durante o ano de 1999, o Autor, AA, transferiu para a sociedade todo o activo imobilizado do seu estabelecimento, passando a sociedade a exercer aquela actividade, com as existências, a clientela, os empregados e o espaço físico da moagem do Autor;

- O Autor nunca pretendeu constituir uma sociedade com a filha e o genro e que apenas pretendeu doar à filha o estabelecimento comercial;

- O negócio foi, por isso, foi simulado, correspondendo a uma doação o negócio dissimulado; Para além da factualidade, em sede principal, alegam, as participações da Autora, CC e do Réu na referida sociedade não foram subscritas com dinheiro deles, antes corresponderam a doações dos Autores que, no que respeita ao Réu, apenas foram efectuadas em virtude do casamento que este mantinha com a CC e, encontrando-se pendente uma acção de divórcio na sequência da violação dos deveres conjugais por parte do Réu, as liberalidades que lhe foram concedidas sempre deverão ser declaradas perdidas a favor de CC, por força do disposto no art. 1791.º do C.C. e na sequência da dissolução do casamento. - - - O Autor, AA, fez várias entregas de dinheiro próprios para a sociedade sob a forma de suprimentos, pagou a fornecedores e entrou com o dinheiro para o aumento de capital, sendo que a CC e o Réu nunca fizeram à sociedade qualquer entrega em dinheiro, sendo que sempre actuaram com espírito de liberalidade, pretendendo beneficiar a filha e, apenas por via do casamento, também o Réu.   

Na contestação que apresentou, o Réu incoa por suscitar a ilegitimidade da Autora, CC, e erro na forma de processo, por não se encontrar ainda dissolvido o casamento que entre ambos foi celebrado e por não ser este o processo adequado para discutir as questões referentes ao património do casal.

No atinente á impugnação, o demandado contrapõe aos factos constante do petitório, que aquilo que foi pretendido foi a efectiva constituição de uma sociedade que desenvolvesse o modernizasse o estabelecimento de pequena dimensão que o Autor possuía e sustentando, em suma, que todas as dívidas que a Sociedade, a Autora, CC, e o Réu tinham para com os dois primeiros Autores foram liquidadas, inexistindo quaisquer liberalidades que os Autores tivessem efectuado ao Réu, por causa do seu casamento com a referida Autora.

Conclui pedindo a procedência das excepções que invocou, a improcedência da acção e a condenação dos Autores, como litigantes de má fé, em multa e indemnização a seu favor, mais requerendo a intervenção provocada da Sociedade “EE, S.A”.

Os Autores replicaram e alteraram a causa de pedir e o pedido que haviam formulado, pedindo agora: “1. O reconhecimento de que a sociedade “AA & Filhos Ld.ª” foi constituída para explorar o estabelecimento industrial e comercial de moagem de farinhas em rama e espoadas, com sede em M..., A..., propriedade do autor AA;

2. O reconhecimento de que com a subscrição das participações sociais da sociedade “AA & Filhos Ld.ª”, a autora CC e o réu DD vieram a receber e integrar no seu património cada um deles uma parte correspondente a um quarto do estabelecimento comercial e industrial de moagem de farinhas em rama e espoadas do autor AA;

3. O reconhecimento de que a participação social da autora CC na escritura de constituição da sociedade “AA & Filhos Ld.ª” com uma quota de um milhão duzentos e cinquenta mil escudos, corresponde a 25 % do capital social, constitui liberalidade que fizeram seus pais e por isso é bem próprio seu;

4. O reconhecimento de que a participação social do réu DD na escritura de constituição da sociedade “AA & Filhos Ld.ª” com uma quota de um milhão duzentos e cinquenta mil escudos, corresponde a 25 % do capital social, constitui liberalidade que lhe fizeram seus sogros em virtude do seu casamento com a filha deles e atendendo ao estado de casado;

5. O reconhecimento de que o aumento de capital social titulado pela escritura de 13 de Dezembro de 1993 não foi feito com dinheiro próprio dos sócios mas em parte correspondente a 130.050,74 € com empréstimo bancário feito à Sociedade e pago depois pelas forças da Sociedade;

6. O reconhecimento de que por esse efeito o aumento do capital social assim obtido, aumentou o valor e passou a integrar a quota de cada um dos sócios na proporção das suas participações sociais;

7. O reconhecimento de que parte do dinheiro do aumento do capital social – 18.989.852$00 correspondente a 94.949,26 € - foi dado pelos autores AA e BB aos sócios para que subscrevessem esse aumento, na proporção das quotas de cada um;

8. O reconhecimento de que a doação desse dinheiro ao réu DD foi feita por estar casado com a filha deles, doadores, e tendo em consideração o casamento;

9. O reconhecimento e declaração de que o aumento de capital social subscrito pela sócia CC em 1993 constitui bem próprio dela, em face das liberalidades que lhe fizeram os pais;

10. O reconhecimento e declaração de que o aumento de capital social subscrito pelo sócio DD em 1993 foi feito através de liberalidades que lhe fizeram os sogros em consideração ao estado de casado;

11. O reconhecimento de que dos 30.000.000$00 (150.000,00€) de prestações suplementares de capital, realizados em Dezembro de 2000, 10.000.000$00 (50.000,00€) constituem liberalidade do pai da sócia CC feita aos sócios e a cada um na proporção da sua participação social, para realização de suprimentos;

12. O reconhecimento de que esta liberalidade foi feita ao réu DD tendo em consideração o seu estado de casado com a sócia CC;

13. O reconhecimento de que do dinheiro com que os sócios aumentaram o capital social na escritura de 27 de Setembro de 2002, 58.832,11 € constitui liberalidade que lhes foi feita pelo pai da sócia CC para realizarem o aumento do capital social, na proporção das suas participações sociais;

14. O reconhecimento de que a parte proporcional daquele dinheiro dado ao sócio DD pelo sogro para realização do aumento do capital social, foi dado tendo sempre em consideração o estado de casado com a filha dele, a sócia CC;

15. O reconhecimento e declaração de que a quota no valor nominal de 749.700,00€ resultante do aumento de capital social feito em Dezembro de 2002, constitui bem próprio da sócia CC, devendo compensar o património comum do seu casal em 121.248,16€;

16. O reconhecimento e declaração de que a quota no valor nominal de 250.000,00 € resultante do aumento de capital social de Dezembro de 2002, em nome do sócio DD, resulta de liberalidades que lhe fizeram os sogros tendo em vista o estado de casado com a sócia CC;

17. O reconhecimento e declaração de que da quota de 250.000,00€ em nome do sócio DD, deve compensar-se o património comum do seu casal em 40.416,00 €;

18. O reconhecimento e declaração de que pela transformação em sociedade anónima realizada na escritura de 27 de Setembro de 2002 e por efeito da conversão do capital social em acções, deve operar-se a distinção entre bens comuns e bens próprios e a compensação ao património comum do casal constituído pelos sócios DD e CC;

19. O reconhecimento e declaração de que a sócia CC passou a deter como accionista 149.940 acções, das quais 125.690 acções são bens próprios seus e 24.250 acções são bens comuns do seu casal;

20. O reconhecimento e declaração de que o sócio DD passou a deter como accionista 50.000 acções das quais 41.917 acções constituem resultado de liberalidades que lhe foram feitas pelos sogros e 8.083 acções são bens comuns do seu casal;

21. O reconhecimento e declaração de que as 41.917 acções que o accionista DD detém, são resultado de liberalidades que lhe fizeram seus sogros tendo em consideração o seu estado de casado.”

O Réu respondeu, mantendo o que havia alegado na contestação e sustentando o indeferimento da alteração do pedido e da causa de pedir.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu nos seguintes termos: “a) declaro que a sociedade “AA & Filhos Ld.ª” foi constituída para explorar o estabelecimento industrial e comercial de moagem de farinhas em rama e espoadas, com sede em M..., A..., propriedade do autor AA;

b) declaro que o aumento de capital social titulado pela escritura de 13 de Dezembro de 1993, deu-se na proporção das quotas de cada um dos sócios, CC e DD, ou seja trinta e três milhões, setecentos e cinquenta mil escudos pela CC e onze milhões duzentos e cinquenta mil escudos pelo sócio DD.

c) julgo improcedentes os demais pedidos”.
Interposto recurso de apelação, pelos demandantes e demandado, veio o tribunal da Relação de Coimbra, a decidir (sic); “[nega-se] provimento ao recurso interposto pelo Réu, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelos Autores e, em consequência:
- Confirma-se a sentença recorrida na parte em que decidiu nos seguintes termos: “a) declaro que a sociedade “AA & Filhos Ld.ª” foi constituída para explorar o estabelecimento industrial e comercial de moagem de farinhas em rama e espoadas, com sede em M..., A..., propriedade do autor AA; b) declaro que o aumento de capital social titulado pela escritura de 13 de Dezembro de 1993, deu-se na proporção das quotas de cada um dos sócios, CC e DD, ou seja trinta e três milhões, setecentos e cinquenta mil escudos pela CC e onze milhões duzentos e cinquenta mil escudos pelo sócio DD.
- Revogando-se, nesta parte, a sentença recorrida, decide-se:
- Reconhecer e declarar que a quota no valor nominal de 749.700,00€, resultante do aumento do capital social feito em Dezembro de 2002, constitui bem próprio da sócia CC, sem prejuízo das compensações devidas ao património comum do casal, nos termos supra mencionados;
 - Reconhecer e declarar que, pela transformação em sociedade anónima, realizada na escritura de 27/09/2002 e por efeito da conversão do capital em acções, a sócia CC passou a deter, como accionista, 149.940 acções (que correspondem bens próprios dela, sem prejuízo das necessárias compensações ao património comum a efectuar no momento da partilha, nos termos supra explanados) e o sócio, DD, passou a deter 50.000 acções (que correspondem a bens comuns do casal);
- Confirma-se a sentença recorrida na parte em que julgou improcedentes os demais pedidos formulados.”

I.A. – QUADRO CONCLUSIVO.

“1) Os AA., ora recorrentes, alegaram factos de onde se extrai que os contraentes ao constituírem a sociedade “AA & Filhos, Ld.ª” tiveram o propósito de celebrar um negócio indirecto com um fim ulterior que conduz a um resultado económico diverso.

2) Além de alegarem que a sociedade “AA & Filhos, Ld.ª” foi constituída para dar continuidade ao estabelecimento comercial e industrial de moagem de farinhas de AA, alegaram que a intenção deste e da mulher BB era a de inteirarem o quinhão hereditário da filha CC com o negócio da família, o dito estabelecimento comercial e industrial, ainda em vida, evitando a partilha do estabelecimento com a outra filha.

3) Alegaram que o meio encontrado para o fazerem foi através da constituição da sociedade “AA & Filhos, Ld.ª” de que a filha CC e o genro DD, por estar casado com ela, passaram a ser sócios e posteriormente os únicos sócios.

4) Acordaram constituir a Sociedade com esse propósito e com o mesmo fim transferiram para a Sociedade o dito estabelecimento.

5) Os factos alegados pelos AA., que alicerçam a acção e constituem a causa (. pedir, permitem um enquadramento jurídico diverso da simulação, o que o douto Acórdão recorrido não perspectivou.

6) Os factos alegados configuram um negócio indirecto que num primeiro plano se traduz na constituição da Sociedade como negócio-meio mas que ulteriormente actua o efeito económico da transmissão para os sócios, a filha CC e o genro DD, do estabelecimento comercial e industrial do AA.

7) O douto Acórdão não se pronunciou sobre factos alegados nos pontos 6, 7, 8, 9,1O, 11, 14, 15,16, 17,35 e 36 da matéria de facto, que foram objecto de Recurso de Apelação, por entender que não estava já em causa a simulação e como tal a apreciação dos mesmos não se justificava.

8) Aqueles factos configuram a existência de um negócio indirecto, como no Recurso de Apelação se defendeu (conclusões 29 a 31 das alegações) e ao Tribunal cabia apreciar os factos alegados tendo em vista as várias soluções plausíveis para a decisão do aspecto jurídico da causa.

9) Ao deixar de apreciar os factos constantes da decisão da matéria de facto objecto do Recurso de Apelação, o douto Acórdão está ferido de nulidade – art. 615.º, n.º 1 al. d) do CPC, que agora se invoca.

10) Deve, por isso, produzir-se Acórdão que aprecie a decisão da matéria de facto posta em crise com o Recurso, designada mente aqueles pontos da matéria de facto referidos supra em 7.

11)A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades resulta do ordenamento jurídico na sua generalidade e particularmente dos princípios da boa-fé e do fim social e económico de cada direito.

12) Em sentido amplo a desconsideração pode ser entendida como desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus sócios.

13) Constituem pressupostos da desconsideração o abuso objectivo de instituto de que a confusão e promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios são exemplo;

14) Dos factos alegados e provados descritos nos números, 31, 32, 33, 36, 37, 39,40, 41 da matéria provada constante do douto Acórdão, resulta que a confusão e promiscuidade entre os bens de AA e os bens da sociedade “AA & Filhos, Ld.ª”, de que a A. CC e o R. DD são os únicos sócios com direito a voto; a utilização dos suprimentos realizados por aquele, que transformaram em prestações suplementares de capital que se mantêm na Sociedade de que só os sócios CC e DD podem dispor, o facto de só eles terem poder de decidir sobre os bens da Sociedade, analisada à luz dos princípios da boa-fé, leva a concluir que a sociedade “AA & Filhos, Ld.ª” foi utilizada de forma abusiva para transferir para os sócios os bens do AA;

15) A figura da desconsideração resulta do claro abuso dos princípios da boa-fé e do fim social e económico do direito com que foi utilizada a figura da Sociedade, o que deve ser declarado ao abrigo do disposto no art. 334º do C. Civil e por integração de lacuna de lei, nos termos do dis­posto no n.º 3 do art. 10.º do C. Civil;

16) Os AA. pediram o reconhecimento de que com a subscrição das participações sociais da sociedade “AA & Filhos, Ld.ª” a A. CC e o R. DD vieram a receber e integrar no seu património cada um deles uma parte correspondente a um quarto do estabelecimento comercial e industrial de moagem de farinhas do AA.

17) Em face da desconsideração que resulta dos factos provados, o pedido formulado pelos AA. em segundo lugar deve proceder, devendo em consequência revogar-se o douto Acórdão recorrido, substituindo-se por outro que decida pela procedência daquele pedido;

18) Para alicerçar os terceiro e quarto pedidos formulados na Réplica, os AA. alegaram que sob a forma de subscrição de capital social com quotas (da sociedade “AA & Filhos, Ld.ª) pretenderam os AA. AA e BB dar à filha CC e ao genro DD, por com ela estar casado, o negócio de moagem de farinhas, cedendo-lhes gratuitamente na proporção de um quarto a cada um - factos levados à base instrutória sob os números 35 e 36.

19) O douto Acórdão recorrido não apreciou os factos alegados por entender não haver lugar à apreciação da vontade dos contraentes uma vez que não se apreciava já a simulação do negócio;

20) O douto Acórdão também não apreciou os factos à luz da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

21) A apreciação dos factos alegados em 35 e 36 ficou condicionada pela falta de apreciação dos factos sob o prisma de solução diferente da figura da simulação, designada mente à luz da qualificação jurídica do negócio celebrado pelas partes como um negócio indirecto.

22) O douto Acórdão deve ser revogado e substituído por outro que aprecie e decida a matéria de facto à luz das várias soluções plausíveis para a decisão do litígio.

23) Em consequência, deve o douto Acórdão ser substituído por outro que apreciando os factos alegados, julgue provados os terceiro e quarto pedidos nos termos em que foram formulados, na sequência do segundo pedido.

Nas contra-alegações que produziram dessumem a respectiva fundamentação, como o sumário conclusivo que a seguir queda transcrito.

“1.ª - O Recurso de Revista interposto pelos Autores-Recorrentes deverá ser objecto de rejeição, por não ter havido omissão de pronúncia com referência aos pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 14, 15, 16, 17, 35 e 36, não se podendo aplicar o disposto na alínea d) n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C.

2.ª - De qualquer forma, mesmo que assim não fosse entendido, as excepções que decorrem do n.º 3 do art. 674 e do n.º 3 do art. 682.º do C.P.C, com referência à regra genal de que o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece da matéria de direito, também não se confirmam no caso vertente.

3.ª - Os Recorrentes configuram a escritura da Sociedade como negócio indirecto, o que nunca foi alegado pelos mesmos em qualquer fase dos articulados, ou mesmo no Recurso de Apelação da 1 a. Instância.

4.ª - É Jurisprudência do STJ de que as presunções judiciais não poderão ser usadas neste Supremo Tribunal de Justiça - Assim, Ac. do STJ de 12102/2009, CJSTJ, Tomo I, pág. 90, Ac. do STJ de 11/04/2013 (www.dgsi.pt) e Ac. de 30/09/2010 (www.dgsi.pt).

5.ª - Os Recorrentes nunca conseguiram fazer prova das liberalidades que alegaram.

6.ª - Todas as conclusões constantes das alegações do aludido Recurso de Revista não poderão ter qualquer aceitação.

7.ª - O douto Acórdão em apreço, porquanto deu cumprimento às correspondentes disposições legais em que se alicerça, quer substantivamente, quer adjectivamente, não merece qualquer censura, devendo ser confirmado integralmente.

1 - Seja rejeitado o Recurso de Revista interposto pelos Recorrentes-Autores do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, porquanto não se fundamenta na alínea d) n.º 1 do artigo 615 do C.P.C.

2 - Ou, se assim não houver de ser entendido, seja negado provimento a tal Recurso, confirmando-se, integralmente, o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.”

I.C. – QUESTÕES A MERECER APRECIAÇÃO NA REVISTA.

Reputam-se, á luz do quadro conclusivo que se extractou supra, passíveis de cognoscibilidade, as sequentes questões:

a) – Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à impugnação da decisão de facto, por haver estimado que os factos objecto de impugnação atinavam com um tema decidendum que havia sido objecto de alteração/supressão no pedido modificado formulado pelos demandantes na réplica - v. g. a simulação negocial;

b) – Caracterização de negócio indirecto e respectiva integração na factualidade adquirida (não ocorrendo a nulidade com que se acoima a decisão recorrida).

II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.A.- DE FACTO.

Da alteração da decisão de facto que havia sido proferida em primeira instância, veio a Relação a fixar a matéria de facto que a seguir queda extractada.

“1. O A. AA era empresário em nome individual e exerceu a actividade de industrial de moagem de farinhas em rama e espoadas, explorando um estabelecimento comercial de moagem, contribuição industrial grupo B, em M... - A..., com moinhos, apetrechos vários, veículos de transporte, trabalhadores - alínea A) dos factos assentes.

2. O moinho e instalações onde funcionava o negócio de moagem do A. AA, recebeu-o nas partilhas por óbito de seu pai e ao lado de quem aquele trabalhou desde os 9 anos de idade - alínea B) dos factos assentes.

3. A A. CC é filha dos AA. AA e BB - alínea C) dos factos assentes.

4. Viveu sempre com seus pais em M..., e depois de acabar os estudos em 1983, passou a trabalhar com o pai na moagem, na parte administrativa, tratamento de documentos para a contabilidade, contactos com os bancos, declarações de impostos, facturação, cobranças, e toda a actividade burocrática - alínea D) dos factos assentes.

5. Os AA. AA e BB têm ainda uma outra filha, que optou por continuar os estudos e tirar o curso de direito, exercendo a actividade de técnica superior na administração pública, e passando a residir em Lisboa - alínea E) dos factos assentes.

6. Esta filha dos AA. nunca se interessou pelo negócio de moagem do pai, nem lhe deu qualquer auxílio no mesmo - alínea F) dos factos assentes.

7. No dia 20 de Dezembro de 1989 os AA. AA e CC, e o R. celebraram uma escritura de constituição de sociedade no Cartório Notarial de A..., conforme consta do documento n.º 5 junto com a petição inicial e aqui se dá por integralmente reproduzido - alínea G) dos factos assentes.

8. Nessa escritura ficou dito que entre eles constituíam uma sociedade comercial por quotas com a firma “AA & Filhos, Ld.ª”, com sede em M..., freguesia da L..., e cujo objecto era a actividade de “moagem de farinhas em rama e espoadas” - alínea H) dos factos assentes.

9. Disseram ainda que o capital social integralmente realizado em dinheiro era de cinco milhões de escudos e que correspondia à soma de três quotas, uma de dois milhões e quinhentos mil escudos do sócio AA, e duas de um milhão duzentos e cinquenta mil escudos cada, subscritas uma pela A. CC e outra pelo R. DD - alínea I) dos factos assentes.

10. Os AA. AA e BB, no dia 20 de Maio de 1991, no Cartório Notarial de A..., celebraram uma escritura de doação de quota e alteração do pacto social - alínea J) dos factos assentes.

11. Nessa escritura os AA. AA e BB doaram à filha, a A. CC, por conta da quota disponível de seus bens, a quota de valor nominal de dois milhões e quinhentos mil escudos que o A. AA ainda detinha na sociedade AA & Filhos, Ldª - alínea K) dos factos assentes.

12. O R. DD outorgou a escritura de doação, tendo declarado autorizar a cessão de quota para a A. CC - alínea L) dos factos assentes.

13. No dia 13 de Dezembro de 1993, a A. CC e o R. celebraram a escritura de aumento de capital na Secretaria Notarial de Tomar, tendo aí declarado que sendo os únicos sócios da sociedade “AA & Filhos, Ld.ª”, com o capital social de cinco milhões de escudos, aumentavam o capital para cinquenta milhões de escudos, com a entrada então efectuada em dinheiro de quarenta e cinco milhões de escudos, correspondendo trinta e três milhões setecentos e cinquenta mil escudos pela A. CC, e onze milhões duzentos e cinquenta mil escudos pelo R., o sócio DD; conforme consta do documento n.º 47 junto com a petição inicial e aqui se dá por integralmente reproduzido - alínea M) dos factos assentes.

14. Mais declararam que o dinheiro representativo do aumento já dera entrada na Caixa Social, o que de facto sucedera - alínea N) dos factos assentes.

15. Em seis de Dezembro de 2000 os sócios reunidos em Assembleia Geral – acta nº 14 do Livro de Actas da Sociedade -, acordaram em realizar prestações suplementares de capital no valor de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos), conforme consta do documento n.º 58 junto com a petição inicial e aqui se dá por integralmente reproduzido - alínea O) dos factos assentes.

16. No ano de 2002 os sócios deliberaram em Assembleia Geral aumentar o capital social da sociedade “AA & Filhos Ld.ª” para um milhão de escudos e transformar a sociedade em sociedade anónima, conforme acta nº 18 de 28 de Junho de 2002 - alínea P) dos factos assentes.

17. No dia 27 de Setembro de 2002 os sócios realizaram a escritura de aumento do capital so­cial, no Cartório Notarial de Tomar - alínea Q) dos factos assentes.

18. Na escritura referida em Q), entraram na sociedade três novos sócios, com uma quota social no valor nominal de cem euros cada um, designadamente AA, GG e HH - alínea R) dos factos assentes.

19. Na mesma escritura os sócios transformaram a sociedade “AA & Filhos Ld.ª” em sociedade anónima, com uma nova firma “EE, S.A. - alínea S) dos factos assentes.

20. Nesta nova sociedade transformada os sócios passaram a deter, como accionistas, as posi­ções correspondentes às quotas que detinham pela sua conversão em acções de valor nominal de cinco euros cada - alínea T) dos factos assentes.

21. O R. DD deixou o emprego como bancário - alínea U) dos factos assentes.

22. Nos autos n.º 1603/08.0TBSTR foi decretado o divórcio entre A. CC e Réu DD que transitou em 12.01.2011 sendo este último declarado o único culpado conforme certidão junta a fls. 218 e segs que aqui se dá por integralmente reproduzida - alínea V) dos factos assentes.

23. O estabelecimento referido em A) era de natureza industrial – resposta ao ponto 1º da base instrutória.

24. II era industrial de moagem – resposta ao ponto 2º da base instrutória.

25. A autora CC, nas circunstancias referidas em D), ainda ajudava no processo de fabrico e ensaque de farinhas, sempre que era necessário, actividade que exerceu desde 1983 e que continuou a exercer depois de casar em 1986 – resposta aos pontos 3º, 4º e 5º da base instrutória.

26. A autora CC e o réu DD tiveram conhecimento da doação quota de 20 de Maio de 1991 e o réu DD autorizou a cessão – resposta aos pontos 10º e 11º da base instrutória.

27. No dia 20 de Dezembro de 1989, CC depositou na JJ a quantia de dois milhões e quinhentos mil escudos, quantia que pertencia a AA – resposta ao ponto 18º da base instrutória.

28. Disse-se na escritura de 20.12.89 que a restante parte do capital seria realizado em seis meses – resposta ao ponto 19º da base instrutória.

29. As quotas dos sócios CC e DD foram consideradas (em termos contabilísticos) realizadas – resposta ao ponto 21º da base instrutória.

30. Após a constituição da sociedade “AA & Filhos Ld.ª” em 20.12.1989, o autor AA continuou na moagem – resposta aos pontos 25º e 26º da base instrutória.

31. Em 30 de Junho de 1990, 30 de Novembro de 1990 e 2 de Dezembro de 1990 o autor AA transferiu para a sociedade AA & filhos, através das facturas nºs 357, 358, 359, 360 e 361, o seguinte: três noras, cinco senfins, uma tarara “Denis”, uma lavadoura e secadoura, cinco casais de mós, um cilindro de 80 cm, dois peneiros centrífugos, um panchister, duas misturadoras, um tapete rolante, dois veículos pesados, um Iveco e outro MAN, um transformador, um quadro primário, um quadro secundário, um veículo ligeiro de mercadorias, quinhentos sacos de farinha de trigo, quinhentos e sessenta sacos de trigo, 783 210 Kg de trigo, tudo no valor que fixaram de 53 879 851$00 – resposta aos pontos 28º, 29º, 30º e 31º da base instrutória.

32. A sociedade “AA & Filhos Ld.ª” através dos seus sócios continuou a explorar o negócio familiar do autor AA, exercendo a actividade de moagem de farinhas, no mesmo local, com as mesmas máquinas, os mesmos clientes, e os mesmos empregados – resposta ao ponto 32º da base instrutória.

33. O autor AA deixou de ter actividade como comerciante em nome individual, passou a integrar a sociedade “AA & Filhos Ld.ª” e foi nomeado um dos gerentes – resposta aos pontos 33º e 34º da base instrutória.

34. A autora BB não outorgou na escritura de constituição da sociedade – resposta ao ponto 37º da base instrutória.

35. Em 20 de Maio de 1991 a autora BB com seu marido, o autor AA, doaram a sua fi­lha CC a quota de dois milhões e quinhentos mil escudos que o autor AA detinha na sociedade “AA & Filhos Ld.ª” – resposta ao ponto 39º da base instrutória.

35.a) – (aditado) – Na escritura de doação de quota a que alude a alínea J), a A. CC, declarou aceitar essa doação, mais declarando unificar essa quota – aí recebida por doação – com a quota de 1.250.000$00 que já possuía numa só de 3.750.000$00 – resposta ao ponto 40.º da base instrutória.

36. O autor AA fez suprimentos à sociedade, para dar continuidade ao negócio e permitir liquidez de tesouraria – resposta ao ponto 41.º da base instrutória.

37. O Balancete Auxiliar referente a Dezembro de 1992 reflectia um débito a favor de AA – decorrente de suprimentos, por este, efectuados – de valor superior a 54.000.000$00, sendo que este valor de 54.000.000$00 foi convertido, em termos contabilísticos e em Dezembro de 1992, em prestações suplementares de capital que, no Balanço referente ao ano de 2002, ainda se mantinham com o valor de 268.990,24€ – respostas aos pontos 44.º e 45.º da base instrutória.

38. (eliminado).

39. Em 2.8.94 foi outorgado um contrato de crédito segundo o sistema de conta corrente entre o KK SA e a sociedade AA & Filhos, da quantia de 20 000 000$00 (vinte milhões de escudos), tendo ficado garantes desta quantia, CC, DD, AA e BB; e que em data indeterminada mas anterior a 1.7.96 a mesma sociedade pediu ao mesmo banco uma garantia bancária de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos) tendo ficado garantes do bom pagamento, os mesmos, ou seja, CC, DD, AA e BB – resposta ao ponto 47.º da base instrutória.

40. O autor AA, até ao ano de 2004, fazia encomendas de cereais, ia buscar os cereais para fazer as farinhas, acompanhava os turnos na moagem, e conduzia os veículos da sociedade para transporte das mercadorias – resposta ao ponto 48.º da base instrutória.

41. O autor AA ainda é a figura que os trabalhadores e muitos clientes reconhecem como referência da moagem – resposta ao ponto 49.º da base instrutória.

42. No dia 13 de Dezembro de 1993, o capital social da sociedade AA & Filhos Ldª no quantitativo de cinco milhões de escudos, foi aumentado para cinquenta milhões de escudos – resposta ao ponto 50.º da base instrutória.

43. Entre Agosto e Dezembro de 1993 foram emitidos seis cheques sobre a conta nº …, sediada na Caixa LL, agência de P..., nos quantitativos respectivamente de 6.000.000$00, 4.000.000$00, 5.000.000$00, 3.000.000$00, 5.000.000$00 e 3.000.000$00, quantias estas depositadas na conta nº …  do Banco MM, de P... – resposta aos pontos 51.º e 52.º da base instrutória.

44. Na contabilidade da sociedade “AA & Filhos Ld.ª” a quantia global aposta nos seis cheques referidos nos quesitos anteriores, foi contabilizada como se de suprimentos feitos pelo autor AA se tratasse, foram dados como pagos na mesma contabilidade, mas nem o AA entregou esta quantia à sociedade nem a recebeu – resposta aos pontos 53.º e 54.º da base instrutória.

45. Em 2.12.1993 o autor AA procedeu a uma transferência bancária interna na C LL de P... de uma conta sua n.º …  para uma conta n,º … da sociedade AA & Filhos, da quantia de 18.989.852$00 (dezoito milhões novecentos e oitenta e nove mil oitocentos e cinquenta e dois escudos) – resposta aos pontos 55.º e 56.º da base instrutória.

46. No fecho da contabilidade da sociedade e no balancete auxiliar referente a Dezembro de 1993, os suprimentos do autor AA mostravam-se contabilisticamente liquidados – resposta aos pontos 58.º e 59.º da base instrutória.

47. Na contabilidade da sociedade a quantia de 18.898.852$00 mostra-se paga ao AA – resposta aos pontos 60.º e 61.º da base instrutória.

48. A conta n.º … sediada actualmente no NN SA (após integração do KK) foi aberta em 1993, em nome de AA, DD e CC – resposta ao ponto 63.º da base instrutória.

49. Na conta bancária n.º … foram depositados cheques emitidos pela sociedade a favor do autor AA – resposta ao ponto 65.º da base instrutória.

50. Da conta … foram feitas transferências para a conta da sociedade, e lançadas como suprimentos da CC e do DD – resposta ao ponto 66.º da base instrutória.

51. Para concretizar o aumento de capital referido em Q), este foi realizado através de incorporação de reservas legais, reservas livres e reservas de reavaliação, no valor de 399.377,73 € para a autora CC e 133.125,00 € para o réu DD, correspondente à proporção das quotas sociais de cada um e ainda com a entrada de 217.496,33 € em dinheiro – resposta aos pontos 70.º e 71.º da base instrutória.

52. Para o aludido aumento de capital, aos sócios CC e DD foram devolvidos 150.000,00 € de prestações suplementares de capital e ainda 50.000,00 € de suprimentos, valores que foram creditados na dita conta bancária do NN (por incorporação do KK), nº …, em 24 de Setembro de 2002 – resposta aos pontos 72º e 73º da base instrutória.

53. Na Assembleia Geral referida em O), os sócios CC e DD procederam à transformação dos suprimentos realizados, parte durante o ano de 2000 e parte em data anterior, em prestações suplementares de capital – resposta ao ponto 76.º da base instrutória.”

II. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

II.B.1. – Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à impugnação da decisão de facto, por haver estimado que os factos objecto de impugnação atinavam com um tema decidendum que havia sido objecto de alteração/supressão no pedido modificado formulado pelos demandantes na réplica - v. g. a simulação negocial.

Para os recorrentes, o tribunal claudicou na pronúncia – interpretação jurídica - da factualidade constante da matéria de facto adquirida sob os n.ºs “6, 7, 8, 9,1O, 11, 14, 15,16, 17, 35 e 36 da matéria de facto, que foram objecto de Recurso de Apelação, por entender que não estava já em causa a simulação e como tal a apreciação dos mesmos não se justificava.

Aqueles factos configuram a existência de um negócio indirecto, como no Recurso de Apelação se defendeu (conclusões 29 a 31 das alegações) e ao Tribunal cabia apreciar os factos alegados tendo em vista as várias soluções plausíveis para a decisão do aspecto jurídico da causa.

9) Ao deixar de apreciar os factos constantes da decisão da matéria de facto objecto do Recurso de Apelação, o douto Acórdão está ferido de nulidade - artº 615º nº 1 al. d) do CPC, que agora se invoca.”
Genericamente, os actos judiciais cumprem no processo uma função pré-estabelecida e estão pré-ordenados à consecução de um determinado resultado, a emissão de pronúncia por parte de um órgão jurisdicional de uma decisão que se possa impor na ordem jurídica com a força e autoridade a todos os que estejam envolvidos no dissídio de direito levado a tribunal para solução. Porém, a decisão que num procedimento judicial venha a ser proferida deve conter-se dentro dos limites do direito rogado e em congruência com os factos alegados e as provas aportadas pelas partes. [[1]]

A congruência de uma decisão – princípio adoptado de forma expressa no ordenamento jurídico processual espanhol (cfr. artigo 218.º da Lei de Enjuiciamento Civil) – enquanto princípio referente ao desenvolvimento do processo, expressa os limites do juízo jurisdicional, isto é, o âmbito que se deve alcançar e que a sentença não deve ultrapassar, fundamentalmente no aspecto do pronunciamento do veredicto, mas também no intelectual e lógico (fundamentos da decisão). O mencionado principio, que no ordenamento jurídico processual indígena colhe assento nos artigos 264.º e 661.º do Código Processo Civil, desdobra-se em três vertentes ou assume-se como polarizador de três proposições paradigmáticas, a saber: adequação da sentença às pretensões das partes, de maneira que aquela dê arrimada resposta a todas estas; correlação entre as petições de tutela e os pronunciamentos da decisão; harmonia entre o solicitado e o decidido.

A congruência de uma sentença atina com uma qualidade que se refere, não à relação entre si das distintas partes e elementos da sentença, mas sim à relação da sentença com a pretensão dos litigantes. Uma sentença é congruente na medida em que decide na coerência interna do processo e é incongruente, ainda que revelando coerência na sua argumentação lógico-racional, se se afasta da estrutura performativa que resulta ou decorre da composição de interesses postos em tela de juízo na causa.

Podem ocorrer incongruências quando na sentença deixam de se fazer declarações que as pretensões exigem ou omitem declarações ou decisões sobre pontos litigiosos. A doutrina alemã e austríaca falam, neste caso, no chamado “instituto do procedimento da integração”. Neste caso, se ocorre omissão de pronúncia não existe violação do princípio da congruência ou seja que a sentença não deve taxar-se de incongruente. Do que se trata é de uma sentença incompleta e o que haverá é que completá-la, mediante petição da parte. Segundo uma corrente chamar-se-ia a este vício “incongruência omissiva”, em violação do que se chama princípio da exaustividade.       

A regra ou princípio da incongruência ou incoerência, que, itera-se, deve cumprir-se entre as alegações de facto, não se aplica relativamente às alegações de direito da acção ou da contestação, já que pode ocorrer divergência e desconformidade entre estas alegações e a decisão, por o tribunal não estar sujeito e vinculado às alegações jurídicas ou indicações normativas que as partes forneçam. Na verdade o tribunal está vinculado ao fundamento, não pela fundamentação, e a fundamentação inclui não só a forma de apresentar os argumentos, mas também os concretos elementos jurídicos aduzidos: os preceitos legais e os princípios jurídicos citados e o entendimento que deles as partes fazem. Consubstancia-se neste procedimento a regra “iura novit curia” – o tribunal conhece do direito e isto porque o direito não tem que ser provado; o tribunal pode e deve aplicar o direito que conhece como estime mais acertado, desde que se atenha á causa de pedir, que dizer, ao genuíno fundamento – não à fundamentação – da pretensão. O pressuposto da correcta aplicação da regra “iura novit curia” é dupla: 1.º que o tribunal respeite, na sua essência a causa petendi da pretensão do litigante; 2.º que os demais litigantes tenham podido, do mesmo passo que o tribunal, conhecer e afrontar esse genuíno fundamento da pretensão, o que equivale à observância dos princípios da igualdade das partes e da audiência ou do contraditório.      
A lei delineia e modela a estrutura da sentença – cfr. artigo 659.º do Código Processo Civil - pontuando as partes em que se estrutura e as questões que deve apreciar e decidir. Delineada a estrutura deste acto jurisdicional (por excelência), o desvio ao figurino gizado pelo legislador ocasiona uma patologia na formação e estruturação da decisão susceptível de ervar o acto de nulidade.
Concretamente apela a recorrente para os vícios contidos na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código Processo Civil que, preceitua é nula a decisão: “d) quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…).”
Esta nulidade está directamente relacionada com o comando previsto no art. 660º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, e serve de cominação para o seu desrespeito [[2]]. O dever imposto no art. 660º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam, quanto à procedência ou improcedência do pedido formulado [[3]]. E para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes (sujeitos), e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir, e a questão resolvida pelo juiz, identificada por estes mesmos elementos. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito [[4]]. E é por isto mesmo, que já não o são os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos [[5]] – embora seja conveniente que o faça, para que a sentença vença e convença as partes [[6]] –, de que as partes se socorrem quando se apresentam a demandar ou a contradizer, para fazerem valer ou naufragar a causa posta à apreciação do tribunal. É de salientar ainda que, de entre a questões essenciais a resolver, não constitui nulidade o não conhecimento daquelas cuja apreciação esteja prejudicada pela decisão de outra.”

A nulidade com que os demandantes acoimam a decisão recorrida, resulta, no entendimento que ressuma da respectiva alegação, do facto de o tribunal não se ter adentrado na análise e hermenêutica (jurídica) dos factos supra referidos.

Como se aflorou na justificação definidora do conceito de nulidade de uma decisão judicial, por omissão de pronúncia, o tribunal só comete esta infracção quando deixa de emitir expressamente um juízo valorativo e apreciativo sobre uma questão que as partes lhe tenham trazido nos respectivos articulados. Esta ausência de pronúncia consubstancia-se ou expressa-se numa preclusão insolvente de um tema factual ou jurídico que as partes sujeitaram à apreciação do tribunal para um veredicto jurisdicional.

No caso concreto, o que foi sujeito á apreciação do tribunal, no recurso interposto e no concernente aos quesitos supra referidos, foi a reapreciação da respectiva valoração probatória vertida numa diversa resposta que os enunciados fácticos haviam obtido no tribunal de primeira (1.ª) instância. Os recorrentes pretendiam, através do recurso interposto que o tribunal da Relação procedesse à reapreciação dos elementos de prova (de índole testemunhal) que haviam sido produzidas no processo, de modo a obter uma decisão diversa.

Este pedido foi cabalmente satisfeito pelo tribunal – cfr. fls. 23 a 28 da decisão – tendo o tribunal na reapreciação a que procedeu mantidas inalteradas as respostas aos mencionados enunciados de facto.

O tribunal não tinha que proceder a uma reinterpretação desses factos em ordem a qualificar, conceptualmente, a situação jurídica que eles comportam, bem redefinir a compreensão e dimensão normativa que inicialmente os demandantes lhe haviam conferido. Tendo os demandantes alegado a factualidade congregada nos enunciados supra mencionados enfaixando-os numa determinada figura jurídica – a simulação – e tendo posteriormente abandonado essa caracterização, o tribunal mantendo, embora, a decisão da matéria de facto estimou que a factualidade não merecia uma análise (jurídica) mais detalhada dado que a função a que os demandantes a tinham alocado tinha deixado de ter interesse em face da posição que assumiram na réplica com a alteração da causa de pedir e do pedido. Esta não apreciação da factualidade a outra luz ou perspectiva – mais, exactamente, aquela que os demandantes agora reinventaram nas suas alegações de revista não constitui uma omissão de pronúncia. Esta só se verificaria se o tribunal tivesse deixado de reapreciar a impugnação factual que havia sido pedida, o que não foi o caso. A (re)interpretação jurídica que os demandantes reclamam e que eles próprios só nesta sede recursiva desenvolvem, não constitui uma omissão de pronúncia, dado que se trata de interpretação e subsunção dos factos ao direito a que o tribunal procede sem vinculação às alegações das partes.

A interpretação jurídica agora explanada não havia sido aflorada no processo e o tribunal entendeu, certamente, que não cabia na factualidade provada, pelo que não considerou pertinente para a solução do litígio. Agora que essa perspectiva ou interpretação jurídica – negócio jurídico indirecto - foi expressamente invocada, como possível interpretação e compreensão (jurídicas) a conferir à factologia aprovada, a omissão de menção/apreciação nesta sede constituiria omissão a ser coimada como nulidade.

A sua omissão na decisão recorrida não poderia desencadear a nulidade pretendida, pelo que a validade jusprocessual do acto não pode ser colocada em crise.     

II.B.2. – Caracterização de negócio indirecto e respectiva integração na factualidade adquirida (não ocorrendo a nulidade com que se acoima a decisão recorrida).

Pedro Pais Vasconcelos, define negócio jurídico, como sendo aquele em que “as partes elegem um tipo negocial legal para com ele alcançar um fim que não é próprio desse tipo, mas que, não obstante, ele permite alcançar. No negócio indirecto ocorre uma diferença entre o fim típico e o fim indirecto que é efectivamente prosseguido.” [[7]

Elementos essenciais definidores e distintivos dos negócios jurídicos indirectos serão, para este autor, “o tipo de referência e o fim indirecto”. [[8]]    

Orlando de Carvalho, aponta com critérios para determinar a ontologia de um negócio jurídico: “a existência de uma vontade séria dos efeitos típicos [[9]] designados em concreto no negócio-meio, para excluir a ideia de inominação; - fim indirecto, possuidor da capacidade funcional [[10]] em abstracto, mas no caso real remetido para o campo dos motivos e decorrendo como efeito normal do negócio adoptado.” [[11]]     

O negócio jurídico, qualquer que seja a forma típica que assuma, compra e venda, mútuo, depósito ou sociedade – para referirmos aquele que é indicado como sendo o contrato típico que “escondeu” uma liberalidade – “é endereçado a uma função económico-jurídica determinada”, daí que, como refere o citado autor “o problema do negócio adoptado (e, portanto, do conceito de negócio jurídico indirecto) é este: saber se, apesar da destinação a um fim que parece incongruente com a estrutura do negócio, que, por vezes, altera o meio negocial pondo em risco as suas notas essenciais, ainda podemos dizer que se tem essas notas, que corresponde ao tipo declarado pelos contraentes”. [[12]]       

O problema conceitual do negócio jurídico indirecto depende, por um lado da tipicidade do negócio adoptado, e por outro da verificação, ou destinação, de um fim indirecto em face do negócio adoptado, autónomo em face das respectivas consequências normais, mas a derivar imediatamente da própria actuação do negócio. [[13]

Na desinência do apartado sobre o valor prático do negócio jurídico indirecto, Orlando de Carvalho, adverte que “o negócio jurídico tem a natureza de verdadeiro meio jurídico, que se apresenta à selecção dos particulares no mesmo pé dos outros meios legais – de aproveitamentos directos de cada negócio – e preexiste com figura genérica aos propósitos momentâneos. As partes são conscientes de não usarem dele como de artifício de circunstância, mas de possibilidade estabelecida, de uma via já trilhada.”. [[14]]   

Divergindo de Orlando de Carvalho, Pedro Vasconcelos caracteriza o negócio jurídico indirecto como um negócio jurídico misto modificado, por “ser construído a partir de um tipo que é eleito como adequado a servir de base regulativa do negócio, mas que é modificado, que é adaptado, de modo a satisfazer o interesse das partes. [[15]
Na senda de distinção dos negócios jurídicos indirectos com figura afins, tendo Pedro Pais Vasconcelos com Orlando, convergem em aqueles não se podem confundir com a simulação. Nas palavras do Professor Pedro Pais Vasconcelos “O negócio indirecto não deve ser confundido com o negócio simulado com simulação relativa, em que as partes convencionam entre si celebrar certo negócio (negócio real ou dissimulado), mas declarar exteriormente que celebraram um outro diferente negócio (negócio aparente ou simulado).
O negócio simulado tem uma configuração complexa, tripla, em se conjugam formalmente, em princípio, três aspectos: o negócio aparente, que é simulado; e o pacto simulatório, que é mantido secreto e pelo qual as partes acordam só vale e tem verdadeira vigência, entre elas, o negócio verdadeiro e não o aparente, e que este apenas deve ser exigido perante terceiros.
Ao contrário, no negócio indirecto não existe pacto simulatório, não existe divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada, não existe a intenção de criar externamente uma falsa aparência negocial, não existe acordo para enganar terceiros.

No negócio indirecto as partes não têm a intenção de esconder o que quer que seja, nem de enganar quem quer que seja. Querem simplesmente utilizar o modelo regulativo de um tipo negocial para um fim que não corresponde à sua função típica, mas que esse tipo permite alcançar”. [[16]]
Recortado, assim, o negócio jurídico indirecto e operando os ensinamentos do Mestre coimbrão, na hermenêutica da caracterização da formação do negócio indirecto há-de atender-se prevalentemente à vontade das partes “uma vez que ela tem de dirigir-se aos principais efeitos deve ser o primeiro trabalho do intérprete ao analisar a formação negocial, para com base nele, estabelecer a disciplina imediata do negócio.” 

Para os recorrentes o negócio jurídico indirecto ocultaria uma liberalidade, consubstanciada na transferência do estabelecimento comercial de moagem de farinhas para a A. CC. Para o efeito, segundo as conclusões, extractadas terá sido constituída a “sociedade “AA & Filhos, Ld.ª”, “(…) para dar continuidade ao estabelecimento comercial e industrial de moagem de farinhas de AA” com o que, desta forma, os AA. AA e BB, procurariam inteirar o “(…)quinhão hereditário da filha CC com o negócio da família, o dito estabelecimento comercial e industrial, ainda em vida, evitando a partilha do estabelecimento com a outra filha.” [[17]]
Para os AA. o fim económico a atingir através do negócio jurídico indirecto – o escopo económico relevante que presidiu á celebração de um contrato de sociedade entre a A. CC e o Réu - era a reintegração do quinhão hereditário da A. CC, relativamente a uma  outra filha, que por ter estudado teria despendido recursos económicos que agora, os pais achavam justo compensar, com a evitação de integração na partilha do estabelecimento comercial e industrial de moagem de farinhas. Na formação negocial de um negócio tipificado e descrito no artigo 980.º do Código Civil, os AA. AA e BB, teriam pretendido, através da composição/integrando da quota de entrada para a formação do capital social da sociedade com o valor correspondente ao estabelecimento comercial e industrial de moagens, fazer uma liberalidade (doação) à A. CC.
Desbordando da caracterização supra efectuada do negócio jurídico indirecto, como negócio típico, na pretendida e defendida acepção de Orlando de Carvalho, ou de negócio jurídico misto modificado, na acepção defendida por Pais Vasconcelos, haverá que, na interpretação da matéria de facto provada, encontrar a chave ou o desígnio negocial que esteve na base da formação do contrato (típico) de sociedade entre A. CC e o R. DD. [[18]]
Adentrando-nos no conhecimento, em espécie, do recurso, os recorrentes pedem – cfr. conclusão n.º 23 – que o acórdão recorrido deve ser substituído por outro que, apreciando os factos alegados – talvez tivesse sido mais avisado pedir que o recurso fosse julgado de acordo com os “factos provados” – julgue provados os terceiro e quarto pedidos, nos termos formulados, na sequência do segundo pedido.

Recorde-se que no terceiro e quarto pedidos, os demandantes pediam: “3. O reconhecimento de que a participação social da autora CC na escritura de constituição da sociedade “AA & Filhos Ld.ª”, com uma quota de um milhão duzentos e cinquenta mil escudos, corresponde a 25 % do capital social, constitui liberalidade que fizeram seus pais e por isso é bem próprio seu; - 4. O reconhecimento de que a participação social do réu DD na escritura de constituição da sociedade “AA & Filhos Ld.ª” com uma quota de um milhão duzentos e cinquenta mil escudos, corresponde a 25 % do capital social, constitui liberalidade que lhe fizeram seus sogros em virtude do seu casamento com a filha deles e atendendo ao estado de casado.”

Rememorando, o decidido quanto a estes dois pedidos, frisou o acórdão recorrido que, quanto ao pedido formulado sob o n.º 3, “[Não] existindo qualquer documento que a titule, nem sequer está demonstrado que tenham sido os pais da referida Autora a entrar com o dinheiro correspondente à sua participação social. Importa notar que os Autores nem sequer alegam que tal tenha acontecido. Os Autores alegaram – e provaram – que, aquando da escritura de constituição da sociedade, o Autor, AA, realizou a parte do capital que correspondia à sua participação. O restante capital – correspondente às participações da A. CC e do Réu – não foi realizado nesse momento, tendo sido declarado na escritura que ele seria realizado em seis meses. Todavia, se é certo que, em termos contabilísticos, esse capital foi considerado realizado, não sabemos se o foi ou não, não sabemos de que forma e, portanto, não sabemos se foram os A. AA e mulher que o realizaram, com espírito de liberalidade relativamente à filha.”

Do mesmo passo, o tribunal considerou na apreciação do pedido sob o n.º 4 que valiam as considerações expendidas na apreciação feita do pedido antecedente.
Da compreensão dos pedidos cuja procedência é requestada, pelos recorrentes, ressuma a intenção de afastar o demandado, DD, da meação correspondente ao valor das quotas que integraram/compuseram o capital social da sociedade “AA & Filhos. Lda.”, por considerarem que o valor correspondente ao estabelecimento comercial de que os pais da demandante. CC, eram únicos detentores, significaram liberalidades, que foram feitas ao casal, com forma de formarem a sociedade querida e substanciada no contrato de sociedade firmado em 1989 e que viria a ser recomposta em 1991.
Em nosso juízo, e colimando a interpretação aos ensinamentos colhidos na lição dos mestres supra citados, a constituição da sociedade – negócio (indirecto) meio – não desvela outro fim que não fosse a intenção de constituir uma sociedade, em que cada um dos sócios procedeu á composição do capital social, de acordo com o paco social estabelecido. Não resulta da prova adquirida que os pais da sociedade tivessem, no acto de constituição da sociedade, querido integrar a quota da filha e do genro com o valor correspondente ao estabelecimento comercial de que eram detentores. 

Não resulta adquirido, pela prova carreada para o processo, e, ao invés, parece ser contraminado pela prova constante do ponto 11, da decisão de facto, que a liberalidade efectuada pelos pais à demandante se consubstanciou em “(…) por conta da quota disponível de seus bens, a quota de valor nominal de dois milhões e quinhentos mil escu­dos que o A. AA ainda detinha na sociedade AA & Filhos, Ld.ª - alínea K) dos factos assentes.”

Na escritura de 1991, os pais da demandante, doaram por conta da quota disponível a sua participação no capital social da sociedade, o que fez com que a demandante passasse a ser a sócia maioritária da sociedade. Posição proporcional que sempre manteria, quando de alterações posteriores do capital social, acompanhando, em percentagem, o número de acções que passou a deter aquando da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima.

Não resulta adquirido que a sociedade constituída tivesse por fim esconder, ocultar ou esquivar um outro fim, diverso ou “oculto”, que não fosse a contribuição em bens ou serviços, de duas ou mais pessoas, para o exercício em comum de uma actividade económica – no caso a exploração de moagem de farinhas – com o fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade.

Não se descortinam outros motivos ou intenções (jurídicas e/ou económicas) subjacentes ou com projecção no negócio jurídico formado entre os demandantes e o demandado, pelo que o pretendido negócio jurídico indirecto não procede.

No mais, a decisão não carece de reparos, na apreciação detalhada a que procedeu para cada um dos pedidos formulados pelos demandantes, o que importa a sua manutenção.         

III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Negar provimento ao recurso,

- Condenar os recorrentes nas custas.

  Lisboa, 1 de Março de 2014

                         

            Gabriel Catarino – (Relator)   

            Maria Clara Sottomayor

            Sebastião Póvoas

____________________
[1] Cfr. Para maiores desenvolvimentos, de la Oliva Santos, Andrés e Diez-Picazo Giménez, Ignacio, in “Derecho Procesal Civil - El proceso de declaración”, Editorial Universitária Ramón Areces, 3.ª edición. 2008, págs. 445-466
[2] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, págs. 142-143 nota 5 e 53 e segs.; J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 247 nota 5 e 228 nota 2.
[3] J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 228 nota 2.
[4] Vd. Ac. do STJ de 09-07-1982: B.M.J. 319 pág. 199.
[5] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, págs. 49 e segs.; J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 228 nota 2.; J. Lebre de Freitas e outros, Cód. Proc. Civil Anot, Vol. 2, Coimbra Editora – 2001, págs. 645-646 nota 2. No sentido de que os motivos, argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos não figuram entre as questões a apreciar no art.º 660º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, como jurisprudência unânime, pode ver-se, de entre muitos exemplos, p. ex., RT 61º-134, 68º-190, 77º-147, 78º-172, 89º-456, 90º-219 citados apud Abílio Neto Cód. Proc. Civil Anot. 8.ª Ed. (1987), págs. 514-515 nota 5, em anotação ao art.º 668º. Vd. ainda, v. g., Ac. do STJ de 01-06-1973: B.M.J. 228 pág. 136; Ac. do STJ de 06-01-1977: B.M.J. 263 pág. 187. 
[6] Vd.. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 228 nota 2.
[7] Cfr. Pais Vasconcelos, Pedro, “Teoria Geral do Direito Civil”, Almedina, 7.ª edição, 2012, págs. 544-545. Trata-se de “negócios mistos tipo em que a modificação relevante consiste na diferença do fim. No mais não há diferença entre o negócio indirecto e o negócio típico cujo tipo de referência foi utilizado.”
[8] “O tipo de referência deve ser um tipo negocial legal por referência ao qual as partes celebraram o negócio. O fim indirecto é atípico, no sentido de que não é característico do tipo de referência; mas pode ser típico, no sentido de que pode ser o fim correspondente à função característica de um outro tipo negocial.
No negócio indirecto há uma divergência entre a função típica e o fim concreto com que é celebrado (fim indirecto)”.
[9] O negócio terá que assumir uma das formas de um negócio legalmente tipificado, ou descrito na lei, por forma a “(…) afastar a formação negocial das incertezas que rodeiam os negócios jurídicos inominados (…)” – cfr. Orlando de Carvalho, in “Negócio Jurídico Indirecto” (Teoria Geral), Boletim da Faculdade de Direito, (Suplemento X), Coimbra Editora, pág. 14. Para este autor a tipicidade é necessária para o conceito lógico e útil de negócio jurídico indirecto na medida em que “as vantagens jurídicas inerentes à disciplina do tipo legal realmente pretendido (e deste modo se afasta toda a hipótese de simulação, cujo confronto com a figura examinada se virá a fazer detidamente), não poderão incidir sobre o suposto se este não contiver os “essentialia” respeitantes ao tipo.”  
[10] No sentido que este autor lhe atribui, “uma peculiar consistência que se traduz em ser ele idóneo, só por si, a constituir o objectivo do negócio jurídico diferente daquele que as partes, em concreto, quiseram actuar.” – cfr. Orlando de Carvalho, in “Negócio Jurídico Indirecto” (Teoria Geral), Boletim da Faculdade de Direito, (Suplemento X), Coimbra Editora, pág. 15.
[11] Cfr. Orlando de Carvalho, in “Negócio Jurídico Indirecto” (Teoria Geral), Boletim da Faculdade de Direito, (Suplemento X), Coimbra Editora, pág 42.    
[12] Cfr. Orlando de Carvalho, op. loc. cit. pág. 22.
[13] Cfr. Orlando de Carvalho, op. loc. cit. pág.36. “O negócio jurídico indirecto situa-se, em última análise, na divergência ou na contraposição polémica entre o «pensamento abstracto» ou «sistemático» e o «pensamento concreto» ou «existencial»”.
[14] Cfr. Orlando de Carvalho, op. loc. cit. pág. 62. “O sujeito da declaração tem de querer e prever, embora grosseiramente , os principais efeitos jurídicos do acto, tem de dirigir-se, não apenas ás consequência s de valor prático, mas a consequências de natureza jurídica. (…) A vontade das partes é, portanto, o elemento a atender em primeiro lugar (…). Uma vez que ela tem de dirigir-se aos principais efeitos deve ser o primeiro trabalho do intérprete ao analisar a formação negocial, para com base nele, estabelecer a disciplina imediata do negócio.” 
[15] Cfr. Pais Vasconcelos, Pedro, in op. loc. cit. pág. 545 e 546 (em nota de rodapé). Já Orlando de Carvalho defende que “ao contrato misto importa que as várias prestações sejam típicas em si mesmas e se conservem típicas no conjunto negocial; para haver negócio indirecto é preciso que o fim ulterior seja típico em si mesmo (ou, pelo menos, a função propicia a uma contrato inominado), mas não assuma, na formação concreta, mais do que a simples natureza de um motivo psicológico. No contrato misto tem de haver paridade das prestações e uma causa mista não designada na lei; no negócio indirecto tem de haver subalternidade do fim ulterior e uma unívoca e típica, que será a que é própria do negócio adoptado. No contrato misto, cada função económica é desempenhada directamente, por participação do próprio tipo originário; no negócio indirecto, o fim é conseguido de uma maneira singular, pois o seu tipo originário não só não chega a intervir, como é, realmente, preterido, em vista de necessidades concretas originalíssimas que não aconselham para aquela hipótese.” – cfr.  Orlando de Carvalho, op. loc. cit. pág. 91-92.         
[16] Cfr. Pais Vasconcelos, Pedro, in op. loc. cit. pág. 546-547.
Em Orlando de Carvalho, veja-se in op. loc. cit., págs. 111 a 118. “Ora neste querer e não querer da função normal e essencial d negócio declarado é que radica a diferença entre simulação relativa e o negócio indirecto. Na simulação relativa, a única que se quer de essencial são os efeitos próprios do acto simulado. No negócio indirecto, o que há juridicamente de preponderante, a única coisa a que se querem ligar efeitos de Direito, é o negócio típico que se põe em acção.” Ao contrário do que acontece com a simulação – em que um dos elementos definidores e constitutivos, é a intenção de prejudicar terceiros, no negócio indirecto “não é essencial ao emprego indirecto dos negócios típicos a intenção de prejudicar terceiros. (…) de resto, nem à fraude á lei aqui se verifica com carácter de necessidade , e por isso mesmo é que a intenção de ocultamento ou de «esquivamento» não acompanha, regra geral, esta figura, em principio lícita e válida.”        

[17] O meio encontrado, segundo a alegação dos AA., “(…)foi através da constituição da sociedade “AA & Filhos, Ld.ª” de que a filha CC e o genro DD, por estar casado com ela, passaram a ser sócios e posteriormente os únicos sócios.
 Acordaram constituir a Sociedade com esse propósito e com o mesmo fim transferiram para a Sociedade o dito estabelecimento.”
[18] O desprezo pela caracterização decorre do facto de para a interpretação/indagação da vontade negocial querida, ambos os autores coincidirem em que o determinante/relevante é o fim (atípico/diverso), juridicamente relevante, que se pretende atingir com a realização do negócio jurídico indirecto (típico ou misto modificado).