Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | PAULO FERREIRA DA CUNHA | ||
Descritores: | RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DUPLA CONFORME IRRECORRIBILIDADE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS VIOLAÇÃO PENA ÚNICA MEDIDA DA PENA ATENUAÇÃO ESPECIAL PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 10/19/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | I. O art. 400.º, n.º 1, do Código de Processo Penal veda a recorribilidade para o STJ de decisões de dupla conformidade condenatória em que a pena aplicada não é superior a 8 anos de prisão, conforme refere a alínea f), preceituando a inadmissibilidade de recurso. Todas as penas parcelares em que o recorrente foi condenado são inferiores à aludida fasquia dos 8 anos de prisão. Pelo que não pode haver recurso de nenhuma delas. Cf. Acórdão STJ, de 11.03.2020; Acórdão deste STJ, de 16-03-2021; Acórdão deste STJ, de 11-03-2021; Acórdão STJ, de 14.03.2018, proferido no Proc.º n.º 22/08.3JALRA.E1.S1. II. Estando, por razões de competência, o Supremo Tribunal de Justiça impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, encontra-se do mesmo modo impossibilitado de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão. Não cabe (nem é legalmente possível), neste contexto, curar de quaisquer questões subjacentes ou emergentes, sejam elas substantivas, processuais, ou mesmo de constitucionalidade, desde que, como é o caso, afirmem com o cerne da questão decidida (que é, na verdade, já res judicata) uma conexão tão profunda que como que se acolham à sombra da decisão já tomada, confirmativa da decisão proferida em 1.ª Instância. Cf. Acórdão do STJ de 26.06.2014, Acórdão do STJ de 27.05.2015, Proc.º n.º 352/13.2 PBOER.L1.S1; Acórdão deste STJ, de 24-02-2021, proferido no Proc.º n.º 7447/08.2TDLSB.L1.S1. Há, pois, uma difusibilidade ou irradiação consequencial à rejeição do recurso das penas parcelares, como que “contaminando” de impossibilidade a apreciação de elementos com tal matéria conexos. III. É certo que pode (e deverá) o STJ apreciar os vícios do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal quando tal se revele indispensável para proferir a decisão de direito (cf. o acórdão de fixação de jurisprudência 7/95, publicado no DR, I série A, n.º 298, de 28.12.1995). Ou seja, o direito que se quer justamente apurar clama pela justa apreciação do facto, não se podendo conformar com deficiências ou lacunas graves no seu apuramento. Mas só quando realmente haja de, por esse motivo superior, abdicar da regra geral da especialidade da função do STJ, que é de conhecimento de direito. IV. Compulsado o acórdão recorrido, não se evidencia (nem sequer vislumbra) qualquer vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nem erro notório na apreciação da prova, suscetíveis de afetar a decisão de direito, e que por essa razão devesse este Tribunal conhecer. V. A dupla conforme inclui todas as questões atinentes às penas parcelares aplicadas e confirmadas incluindo a da respetiva atenuação especial. É jurisprudência uniforme deste STJ e entendimento da doutrina. Cf., por todos, cf. Acórdão STJ de 11.12.2008, proferido no Proc.º n.º 08P3632. VI. Não é, de modo algum, descomunal ou mesmo exagerada, nem de, qualquer modo, errada, a forma como foi calculada a pena única. De acordo com o art. 77, n.º 2, a moldura penal, no caso, teria um mínimo de 5 anos e um máximo de 25 anos de prisão. A pena conjunta de 10 anos de prisão, fixada na 1.ª Instância e mantida pelo Tribunal da Relação de Évora, revela-se significativamente abaixo da pena média, podendo dizer-se que não se afasta muito de uma tradução em medida de grandeza de uma sanção que teve em consideração benévola designadamente aqueles aspetos da personalidade (e vivência) do agente suscetíveis que serem levados em conta como atenuações. Não se ignorou, evidentemente (mas tudo tem de ser encarado no seu devido lugar e com o devido sentido e dimensão), que a favor do recorrente, relevando para a análise da respetiva prevenção especial, concorrem, é certo, alguns elementos, contudo não enormemente significativos. Tendo que a tudo se considerar numa perspetiva holística (cf., v.g., Acórdão deste STJ de 06.02.2019, Proc.º n.º 71/15.5JDLSB.S1). VII. Dos Autos se extrai que a gravidade dos factos (agora, em cúmulo, considerando o “facto global” e a respetiva “culpa global”) e a personalidade do arguido necessitam, em prevenção especial, de uma censura não laxista, que o desmotive de voltar a delinquir no futuro, e de molde ainda a que a comunidade se não sinta ameaçada e descrente nas capacidades reconstitutivas da paz social do sistema jurídico (agora em prevenção geral). VIII. Em suma, a culpa do arguido é muito elevada, pelo desvalor das ações que quis empreender e concretizou e do desvalor dos resultados que procurou e conseguiu efetivar. A personalidade do arguido (pesem todas as invocações e alguns elementos de facto já apontados) não é de molde a tranquilizar a comunidade quanto ao seu comportamento futuro (que, contudo, se deseja venha a ser normativo, aproveitando da possibilidade de repensar a sua vida), reclamando-se, quer em prevenção especial quer em prevenção geral, e não ultrapassando a sua culpa, uma pena não abaixo do razoável para manter as expetativas sociais de defesa da legalidade. IX. Ponderando o exposto e a moldura penal em concreto, a pena aplicada não se revela desproporcional nem contrária às regras da experiência, nem às exigências de prevenção e não excede a culpa do arguido. Assim, não podendo afirmar-se existir desproporcionalidade no quantum da pena do cúmulo jurídico operado, é a mesma de manter, confirmando-se o Acórdão recorrido. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I Relatório 1. O tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de Santarém (Juiz ...) condenou AA, mais detidamente identificado nos autos: - Pela prática de dez crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.os 1 e 2 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pessoa de BB, em dez penas parcelares de 55 meses de prisão; - Pela prática de seis crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.os 1 e 2 e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pessoa de CC, em seis penas parcelares de 50 meses de prisão; - Pela prática de cento e vinte crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 6, do Código Penal, na pessoa de BB, em cento e vinte penas parcelares de 60 meses de prisão; - Pela prática de um crime de maus-tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pessoa de BB, na pena de 22 meses de prisão; - Em cúmulo jurídico, condenou-o na pena única de 10 anos de prisão; - Na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 anos; - Na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 anos; - No pagamento à vítima BB de uma indemnização de 5000 euros, acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos desde a presente data e até efetivo e integral pagamento, nos termos dos arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04.09, 67.º-A e 82.º-A, do Código de Processo Penal; - No pagamento à vítima CC de uma indemnização de 2500 euros, acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos desde a presente data e até efetivo e integral pagamento, nos termos dos arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04.09, e 67.º-A e 82.º-A, do Código de Processo Penal. 2. O ora recorrente interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação ..., que viria a confirmar, na sua integralidade, a decisão da 1.ª Instância. 3. Interpõe, na sequência, recurso para este Supremo Tribunal de Justiça. 4. São as seguintes as extensíssimas Conclusões da sua motivação de recurso, em boa medida reproduzindo o já anteriormente alegado: “1.ª O Arguido AA recorre da decisão do douto Tribunal da Relação ... que manteve a decisão do douto Tribunal de Santarém, por sua vez, havia dado como provada a prática, em autoria material, consumada e em concurso real, dos seguintes crimes: v. 10 (dez) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1, 2 e 177.º/1, al. a), do Código Penal, na pessoa de BB, cada um deles na pena de prisão parcelar de 55 (cinquenta e cinco) meses; vi. 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1, 2 e 177.º/1, al. b), do Código Penal, na pessoa de CC, cada um deles na pena de prisão parcelar de 50 (cinquenta) meses; vii. 120 (cento e vinte) crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.º 6, do Código Penal, na pessoa de BB, cada um deles na pena de prisão parcelar de 60 (sessenta) meses; viii. 1 (um) crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A/1, al. a) do Código Penal, na pessoa de BB, na pena de prisão parcelar de 22 (vinte e dois) meses; e o havia condenado: e. em cúmulo jurídico, na pena única de prisão efetiva de 10 (dez) anos, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos; f. na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos; g. no pagamento à vítima BB de uma indemnização arbitrada no valor de € 5.000,00 (mil euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos – arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09, 67.º-A e 82.º-A, do CPP; h. no pagamento à vítima CC de uma indemnização arbitrada no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos – arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09, 67.º-A e 82.º-A, do CPP. Recorre de matéria de facto e de direito. 2.ª Sumariamente, entende o recorrente, que, não tendo praticado quaisquer crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.º 6, do Código Penal e que a prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento foi mal apreciada nessa matéria pelo que a condenação por esses crimes que não praticou é injusta. Conforme expressou no seu recurso apreciado pela douta Relação ..., o recorrente entende que foi feita má aplicação do Direito no respeitante à qualificação dos factos como crimes plúrimos que, à luz da redação do artigo 32º. Do Código Penal vigente à data da alegada ocorrência dos factos, deveria ter qualificado as alegadas condutas do recorrente num único crime continuado. Entende ainda que face à factualidade dada como provada em juízo e ao Direito aplicável, a pena aplicada revela-se desproporcionada, antes se devendo aplicar uma pena próxima dos limites mínimos e, face às necessidades de prevenção, tanto geral como especial, e ao Princípio da Proporcionalidade que deve nortear as decisões punitivas, a pena a aplicar deve ser suspensa na sua execução. Sobre os Pontos da Matéria de Facto Impugnados No recurso apresentado perante o douto Tribunal da Relação, o recorrente alegou Tribunal de primeira instância errou ao dar como provado que que o Recorrente praticou os seguintes factos: Facto provado nº33: “Em 2007, quando sua a filha contava 8 anos de idade, pela primeira vez, o arguido introduziu o pénis na sua vagina.” Facto provado nº 34: “Estas relações sexuais de cópula repetiram-se durante cerca 5 anos, com uma periodicidade de pelo menos duas vezes por mês, em casa do arguido, sendo que, quando ocorriam, o denunciado manipulava e apalpava a zona genital e as mamas de sua filha.” Facto provado nº 35: “Para tanto, como BB se debatia para impedir que o pai concretizasse os seus intentos, dizendo que não queria, ele usava a sua força física, designadamente, prendendo, com as suas mãos, os braços da filha e as suas pernas, impedindo-a de movimentar, e, dessa forma, introduzia o pénis na vagina da menor.” Facto provado nº 36: “Sendo que, caso BB não cedesse, o arguido lhe batia.” Facto provado nº 37: “As situações de cópula ocorreram desde que BB tinha 8 anos de idade e até aos seus 13 anos de idade, num número de vezes concretamente não apurado, mas certamente por duas vezes por mês ao longo de cinco anos, ou seja, em número não inferior a cento e vinte vezes.” Facto provado nº 51: “Por outro lado, AA, nos termos descritos em «36.» e «40.», atuou com intenção de molestar física e psiquicamente a sua filha BB.” Facto provado nº 52: “Com efeito, ao anunciar que batia na BB se esta não acedesse a satisfazer os mencionados instintos libidinosos e ao esmurrá-la, esbofeteá-la e pontapeá-la quando tentou denunciá-lo, bem sabia o arguido que essas condutas eram idóneas a constrangê-la a praticar os factos em crise e magoá-la, como sucedeu.” A formação da convicção do Tribunal de primeira instância assentou na apreciação conjunta realizada aos diferentes meios de prova produzidos em Audiência de Discussão e de Julgamento, analisados em si, entre si e de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, na factualidade que contestou, o Tribunal de primeira instância deu relevo às pelas declarações para memória futura prestadas na fase de inquérito pela vítima BB (transcritas para os autos), nos termos em que o Tribunal deu como provados. Unicamente com base nessas declarações, respeitante à matéria ora em crise, a referida factualidade, contextualizada no espaço e no tempo, nos termos em que se deram como provados. Considerou, sem valorar adequadamente as declarações do recorrente que “qualquer elemento de prova foi trazido aos autos que pudesse infirmar o aí declarado pela BB”. É certo que o Tribunal de primeira instância considerou as declarações do recorrente, mas apenas na parte em que lhe era prejudicial. O que, como é bom de ver, revela falta de imparcialidade. Aproveitou das declarações do recorrente a parte que este admitiu parte em que apalpava a filha sobre o peito, bem como o sexo oral que com ela praticava, introduzindo o seu pénis da boca dela, por sua iniciativa e sob o seu comando, quando, a partir dos seus 6/7 anos de idade, ela se deslocava a sua casa aos fins-de-semana e a mãe ausentava-se para trabalhar. Considerou que o recorrente revelou arrependimento e interiorização do mal que provocara na filha. Considerou também a parte em que o recorrente admitiu que, no dia em que o seu irmão DD o confrontou com os abusos sexuais relatados pela BB, lhe desferiu duas bofetadas e chamou-a de mentirosa, refutando, contudo, que a tivesse agredido fisicamente de outra forma mais gravosa, bem assim os demais maus tratos imputados, ignorando que o recorrente negou veemente que tenha tido relações de cópula com a menor BB ou que esta tenha manifestado oposição aos seus atos de índole sexual. Não considerou no entanto, o tribunal de primeira instância, a parte das declarações em que o recorrente afirmou perentoriamente não ter usado da força, nem de qualquer forma de violência, aquando da prática dos atos que confessou. O tribunal de primeira instância não considerou essa parte das declarações nem explicou porque não o fez dado que em todas as declarações, tanto em sede de primeiro interrogatório judicial como em sede de audiência final de discussão e julgamento, o arguido sempre manteve um discurso coerente, sincero e honesto. De referir que, conforme é entendimento uniforme na Jurisprudência e na Doutrina, nas situações de abuso sexual de crianças e similares, por força das circunstâncias, a prova é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, sendo regra geral apenas terem conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima e do alegado agressor. O tribunal de primeira instância considerou, porém, que em matéria de crimes sexuais as declarações da vítima têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante; pelo que, não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta, como são os crimes sexuais. Assim, com base nas declarações da vítima BB e ainda com os depoimentos prestados pelas testemunhas DD, EE e pela assistente FF, indicados na acusação pública, o Tribunal de primeira instância formou a sua convicção quanto à referida factualidade, ignorando a versão do recorrente na parte em que esta o favorecia. Os factos descritos nos pontos «51. e 52.» dos factos provados foram extraídos pelo tribunal a quo dos factos objetivos provados, os quais, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural. Sendo que para a prova destes factos, o tribunal de primeira instância afirma ter valorado as declarações que o recorrente prestou em sede de primeiro interrogatório de arguido e em audiência de julgamento, reconhecendo parte dos factos imputados e revelando ter consciência da ilicitude e punibilidade da sua conduta. Verifica-se assim que a matéria constante dos factos objeto do recurso foi considerada provada tendo por base apenas as declarações do recorrente e da sua filha BB. Ora, essas declarações são, no tocante à matéria em apreço, bastante contraditórias entre si. A testemunha BB afirma que o recorrente praticou relações de cópula consigo, afirmando que o mesmo lhe batia, prendia as mãos e usava a sua supermacia física para a forçar. Já o recorrente, pese mbora ter assumido muitos outros factos, alguns dos quais nem sequer constavam da denúncia, nega terminantemente a versão da testemunha BB. Ora, as declarações do recorrente, feitas de modo espontâneo e, assistido por Advogado, assumindo a prática de factos que sabia serem puníveis com penas pesadas, dos quais, dadas as circunstâncias de tempo, modo e lugar, não havia prova consistente contra si, mesmo assim, por um imperativo de consciência, e da culpa que o perturbava, o recorrente assumiu plenamente os factos. Fê-lo, relatando factos dos quais não foi sequer acusado ou questionado, o que demonstra a ausência de qualquer calculismo ou intenção de se furtar à aplicação de uma pena pesada diminuindo a gravidade dos factos. Merecem por isso credibilidade as suas declarações. O modo emocionado e espontâneo é um sinal impossível de ignorar da autenticidade das suas palavras. Já testemunha BB apresentando-se serena e verbosa, mostrou-se uma boa contadora de histórias, talvez demasiado serena para quem relatava factos tão gravosos e do mais elevado grau intimidade. Além disso, foram várias as testemunhas que expuseram a faceta fantasista e contadora de histórias que a testemunha BB apresenta com grande facilidade no quotidiano. Nesse sentido, foi relevante o testemunho da sua tia EE, que a criou desde os seis anos até à maioridade, e que ao tribunal a quo, nas suas declarações na audiência de discussão e julgamento, afirmou que a BB aos 9 anos já dizia que tinha ido ao Brasil de comboio, ilustrando assim o caráter fantasioso que a testemunha BB desde cedo patenteou. Estes elementos, per si, têm de ser considerados suficientes, à luz das regras de experiência comum, para que os julgadores questionassem a autenticidade das declarações e averiguassem da sua veracidade e face à diferença de versões entre os depoimentos e tentando aferir qual era mais próximo da verdade. Perante uma circunstância em que as declarações de duas pessoas, das duas únicas pessoas que podem testemunhar sobre os alegados factos, serem insanavelmente contraditórias, pode ser decisivo ao julgador recorrer a elementos objetivos, externos mas relacionados com a essência dos factos a fim de concluir qual dos declarantes fala a verdade. E além da personalidade dos declarantes e do modo como prestaram as suas declarações, outros elementos conexos com os factos narrados podem corroborar ou infirmar as versões narradas. Ora, a testemunha BB descreve um cenário de violência praticada pelo recorrente contra si. Violência física e sexual, praticada por um homem adulto contra uma criança de 6 a 8 anos. Alegados atos esses ademais praticados sob a influência do álcool, como também resulta das declarações de ambos e é reconhecido no Acordão do Tribunal de primeira instância. Ora, caso esse cenário de violência tivesse sucedido tal como a testemunha BB relata, seguramente a sua tia EE, bem como outros adultos próximos da BB, teriam notado sinais exteriores desses actos. Ora sucede que a tia da testemunha BB, a sra. EE, que assumiu a sua guarda após 6 anos e portanto cuidava dela à data dos alegados factos, relatou que a BB não apresentou sinais de mazelas físicas, com exceção de uma vez que o recorrente assumiu e pela qual se penitenciou e que esteve relacionada com conversas com os irmãos do recorrente, cf. ponto nº40 dos factos provados. Sobre as situações descritas nos factos provados nºs. 33 a 37, nenhuma testemunha relata se ter apercebido que a testemunha BB tivesse apresentado quaisquer sinais de ter sido vítima de violência física. Destacam-se as declarações da tia da BB, a sra. EE, que mostrando-se muito atenta aos comportamentos da sobrinha, tendo relatado que dava banho à criança com frequência, não vislumbrou quaisquer sinais de violência quando esta vinha do fim de semana com os pais. Assim, não se podem dar como provados esses factos, pois resulta impossível segundo as regras da experiência comum, que os factos relatados pela vítima BB, tivessem sucedido tal como ela relata e o tribunal de primeira instância deu como provado. 3.ª Sem prescindir, Ainda que tal não se entendesse, teria sempre de se considerar, no mínimo, a existência de uma dúvida inultrapassável. Pois, é indubitável que perante a prova produzida, segundo as regras da experiência comum, não poderia deixar de subsistir no espírito do julgador uma dúvida forte sobre qual dos dois está a falar verdade, o recorrente ou a testemunha BB, na matéria discordante contida nos pontos números 33 a 37, 51 e 52 dos Factos Provados. No tocante ao princípio da livre apreciação da prova, o mesmo não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente essa discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» –, de sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo – cf. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 202-203. “A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” . E sobre o Princípio In Dubio Pro Reo estatui a doutrina que “Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.” Ora, verifica-se no caso concreto que, perante a prova produzida, é forçoso conclui que, segundo regras da experiência comum, não poderia deixar de subsistir no espírito do julgador uma forte dúvida sobre a verdade pelo factos narrados pela testemunha BB, na parte em que é contraditória com as declarações do recorrente, que também viveu os referidos factos. Assim, a decisão recorrida desfavoreceu o recorrente quando deveria ter decidido em seu favor, violando o Princípio In Dúbio Pro Reo, consagrado art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP. 4.ª O douto Tribunal da Relação, no Acordão ora recorrido, declarando a improcedência do recurso neste segmento, entendeu serem de pouca utilidade as razões que o Arguido AA enuncia para se insurgir contra a valoração da prova que conduziu à fixação dos factos no acórdão recorrido. Pese embora ter assumido ser verdade que o arguido tem mantido a mesma versão dos acontecimentos ao longo do processo, entendeu que este processo não o terá apanhado o recorrente de surpresa e que este teve tempo bastante – mais de 7 (sete) anos – para estruturar a sua versão dos acontecimentos e a forma adequada a apresentá-la a terceiros. Entendeu ainda o Acórdão ora recorrido que, por outro lado, a versão única dos acontecimentos apresentada pelo Arguido não garante que seja o verdadeiro relato dos acontecimentos, argumento que (i) os factos que o Arguido assume ter praticado o arredam de postura decente e de atitude confiável. É certo que o julgamento moral que se faça, e que o Acordão ora recorrido parece fazer nesse trecho, tem de ser severo para o arguido, no entanto o facto de uma pessoa ter cometido atos censuráveis não o torna automaticamente pouco confiável noutras dimensões. Acontece assim que o arguido era uma pessoa muito confiável na área laboral, tendo relações de trabalho de longo prazo como o relatório social o atesta. Tampouco há sinais que seja pessoa pouco honesta ou mentirosa. Pelo contrário, os factos indiciam que perante ao serem-lhe apontados os factos pelas autoridades judiciais, logo no primeiro interrogatório judicial, o arguido “quebrou” emocionalmente e se expôs sem reservas, confirmando quase todos factos e narrando outros que nem sequer lhe estavam a ser imputados. Entendeu ainda o Acordão ora recorrido que o Arguido, à data da prática dos factos em causa neste processo, consumia bebidas alcoólicas, regularmente e em excesso. E esta circunstância não garante ajustada perceção da realidade. Também aqui o Acordão ora recorrido avaliou incorretamente, pois estamos perante acusação da prática de centenas de crimes e ainda que a influência do álcool possa ter afetado a memória ou perceção do arguido de alguns deles, seguramente não teria afetado a capacidade de perceção de tantos eventos. Mais entendeu que a forma como o arguido descreve a postura processual de sua filha BB, vítima dos seus atos, esquece a idade da mesma quando foi ouvida no processo e tempo decorrido desde que a usou para as suas práticas sexuais – a BB contava já 21 (vinte e um) anos de idade quando prestou declarações para memória futura e os factos que relatou haviam ocorrido há mais de 7 (sete) anos. E não é reconduzível à imaginação da criança de 9 (nove) anos – que diz que já foi de comboio ao Brasil… – a descrição de práticas sexuais que não experienciou. Haverá aqui que ter presente que o relato dos acontecimentos em questão não é prestado pela criança de 9 (nove) anos, mas pela jovem adulta de 21 (vinte e um) anos. Mais uma vez o Acordão ora recorrido não avalia corretamente a situação forçando um argumento que é pouco plausível à luz das regras da experiência pois é sabido que as tendências de personalidade são permanentes e mesmo que surgindo mais acentuadas nalgumas idades, tendem a acompanhar o individuo ao longo da sua vida. Resulta ainda das regras da experiência que as características da personalidade detetadas na infância tendem até a refinar-se e evoluir para formas mais sofisticadas na idade adulta, o que não se pode desconsiderar. Por fim, entendeu o Acordão ora recorrido que o cenário de violência descrito pela BB, quando o seu pai lhe impunha práticas sexuais, era de constrangimento físico de um adulto sobre uma criança, não necessariamente causador de mazelas visíveis. Neste ponto o Acordão ora recorrido é contrário ao afirmado no Acordão da primeira instância que afirma perentoriamente que A testemunha BB afirma que o recorrente praticou relações de cópula consigo, afirmando que o mesmo lhe batia, prendia as mãos e usava a sua supermacia física para a forçar. Ora, como é bom de ver por resultar das declarações de memória futura da testemunha BB, o cenário que esta descreve é de violência física de um adulto sobre uma criança de 7 a 9 anos que lhe resistia. É inverosímil, por ser contrário à lógica e às leis da física que daquele confronto físico, tal como a testemunha BB o descreve, não resultassem mazelas detetáveis pelo adulto que tinha a guarda da criança e se mostrou cuidadosa e atenta aos problemas e necessidades da menina. Conclui ainda, o Acordão ora recorrido, que as práticas heterossexuais visam a cópula, entendida como a relação sexual que supõe, especificamente, a introdução do pénis por via vaginal. E não vislumbra, o Acordão ora recorrido, razão para o Arguido se ter afastado de tal propósito. Também esta asserção do Acordão ora recorrido se apresenta desconforme à regras da lógica pois, como é bem conhecido da ciência e patente em abundante literatura, a obtenção de satisfação sexual nas relações heterossexuais acontece de formas diversas, não implicando necessariamente a consumação da cópula. Pelo que também esta conclusão do Acordão ora recorrido se afigura desprovida de substrato racional, cientifico ou empírico que a sustente. . Verifica-se assim, que não assiste razão ao Acordão ora recorrido e que as provas existentes, designadamente os testemunhos da vítima BB e do arguido, impõem decisão diversa da que foi proferida, por a mesma padecer de erro notório na apreciação da prova, cf. art. 410, nº 2, al. c) do CPP. 5.ª O Acordão ora recorrido entende não resulta que o Tribunal de 1.ª Instância tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objetiva e motivável – em relação ao comportamento do Arguido AA e que, a partir desse estado, tenha procedido à fixação de factos, como provados, que lhe são desfavoráveis. No entanto, como vimos, dada a prova dos factos em crise radicar somente nas declarações de duas pessoas, alegados vítima e agressor, e face às contradições patenteadas, bem como às falhas na lógica das declarações da alegada vítima, um julgador, seguindo as regras da experiência comum e socorrendo-se dos elementos externos às declarações, sendo imparcial, teria de ficar necessariamente com dúvidas sérias sobre se os factos terão ocorrido exatamente como a alegada vítima os descreve. Pelo que se manifesta violado o princípio in dubio pro reo. 6.ª Sem prescindir, O recorrente entende que tribunal de primeira instância aplicou de modo errado o artigo 18º, nº2 da CRP, ao determinar uma pena superior ao mínimo legal, o que resulta numa aplicação errada do artigo 18º, nº2 da CRP, devendo fazê-lo, corretamente, no sentido de determinar a medida da pena, in casu, ao mínimo legal previsto. Isto porque o recorrente foi condenado em cúmulo jurídico a 10 anos de prisão. Ora, como o tribunal de primeira instância reconheceu, o recorrente contribuiu decisivamente para a descoberta da verdade, prestou declarações que o incriminaram, confirmando os indícios que lhe apontavam e até acrescentando mais factos que não lhe imputavam, como os relativos à sua sobrinha CC. Fê-lo consciente das consequências, sempre acompanhado do Advogado, desde a primeira vez em que foi confrontado com os factos. As suas declarações foram importantes para consolidar a prova numa situação em que, devido à distância temporal dos factos, muito ocorridos há mais de 10 anos, a sua demonstração seria sempre difícil. Como é do conhecimento assente, neste tipo de crimes a prova é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, sendo regra geral apenas terem conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Pois, são factos praticados em ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante. Pelo que, as declarações do recorrente, em sede de primeiro interrogatório judicial e audiência de julgamento, foram determinantes para descoberta da verdade. Mais: o recorrente em nenhum momento apresentou uma atitude calculista ou desculpadora. A sua conduta expressa o arrependimento, a mágoa e desilusão consigo próprio. Manifestou ainda a vontade de compensar as vítimas. Verifica-se ainda que o recorrente há mais de 6 anos que havia abandonado o ambiente pernicioso em que os factos ocorreram, tendo abandonado os hábitos de consumos etílicos e refeito a sua vida. Com efeito, o recorrente desde 2017 que encetou uma vida em comunhão com a sua companheira, GG, que o continua a apoiar. A conduta processual aliada ao modo responsável como tem conduzido a sua vida nos anos mais recentes, tendo conseguido ultrapassar os problemas relacionados com o consumo de álcool e estruturado a sua vida de modo positivo, mostram como o recorrente é um homem arrependido e que erigiu sob as suas falhas a construção de um homem novo, socialmente responsável. Tendo inclusive apoiado a filha em todas as suas decisões. Os elementos exteriorizados pelos seus comportamentos permitem ao julgador aferir que o recorrente fez efetivamente uma censura interna aos seus comportamentos. Assim, deveria o tribunal ter procedido à atenuação especial da pena, prevista no nº1 do artigo 72º do código penal, por se verificar circunstâncias que diminuem acentuadamente a necessidade de pena, designadamente por ter ocorrido arrependimento sincero do recorrente e por se verificar ter decorrido muito tempo após a ocorrência dos factos, tendo o recorrente mantido uma conduta socialmente responsável, sem ter praticado quaisquer crimes. Ao não reconhecer que existem as circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime acima elencadas, que diminuem por forma acentuada a necessidade da pena, como fez, o tribunal a quo violou o 72º, nº1, do Código Penal. Pois, como acima exposto, o tribunal a quo deveria ter aplicado ao recorrente a atenuação especial da pena ínsita nesse normativo, que deveria ter sido aplicado no sentido de reconhecer que as circunstâncias pessoais e a conduta do recorrente posteriores ao crime diminuem de forma acentuada a necessidade da pena. O recorrente foi condenado na pena única de prisão efetiva de 10 (dez) anos pela prática de factos alegadamente ocorridos entre 2007 e 2014. Período em que o recorrente habitava em ambiente marcado pela violência doméstica exercida pelo seu progenitor e pela ingestão continuada de bebidas alcoólicas. Desde há vários anos que o recorrente alterou a sua vida, abandonando o ambiente pernicioso em que tudo ocorria, deixou de consumir bebidas alcoólicas, divorciou-se e passou a coabitar com outra pessoa, a senhora GG, que, entretanto, conheceu. Ademais, neste período prestou todo apoio à filha BB. Demonstrou arrependimento sincero tendo confessado prontamente. Tem uma relação laboral estável, sustentando-se e apoiando a filha, entretanto maior. O arguido é pessoa cumpridora, pacifica e socialmente bem integrado. É primário. Estes factos permitem concluir que se está perante baixissimas exigências de prevenção, quer especial quer geral. E não se invoque o perigo do alarme social pois os factos ocorreram à quase uma década, tendo o recorrente apresentado uma conduta exemplar desde esse período. Facto esse que a comunidade sabe valorar, o que diminui as necessidas de prevenção geral. Assim, ao aplicar ao recorrente uma pena superior ao mínimo legal, o tribunal violou o estatuído no artigo nº 71º, nºs 1 e 2, alíneas d) e). Uma interpretação correta do referido normativo impunha a determinação ao caso de uma pena no mínimo que a lei impõe. Acresce que a aplicação de medidas punitivas deve obedecer Princípio da Proporcionalidade, consagrado no nº2 da CRP. “Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição Anotada, pág. 392 e ss.) sob o prisma do princípio da proporcionalidade importa distinguir os requisitos da idoneidade, necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Estas três exigências são requisitos intrínsecos de toda a medida processual restritiva de direitos fundamentais e exigíveis, tanto no momento da sua previsão pelo legislador, como na sua aplicação prática. O respeito pelo princípio da idoneidade exige que as limitações dos direitos fundamentais antecipadas pela lei estejam adaptadas aos fins legítimos a que se dirigem e que as mesmas sejam adequadas à prossecução das finalidades em função da sua adequação quantitativa e qualitativa e de seu espaço de aplicação subjectivo. Significa o exposto que o juízo sobre a idoneidade não se esgota na comprovação da aptidão abstracta de uma medida determinada para conseguir determinado objectivo, nem na adequação objectiva da mesma, tendo em consideração as circunstâncias concretas, mas também requer o respeito pelo princípio da idoneidade a forma concreta e ajustada como é aplicada a medida para que não se persiga uma finalidade diferente da antecipada pela lei” . “Pela aplicação do princípio da necessidade a entidade vocacionada para aplicar a medida conformada pelo mesmo princípio deve eleger, entre aquelas medidas que são igualmente aptas para o objectivo pretendido que aquela é menos prejudicial para os direitos dos cidadãos” . No caso em concreto, dadas as circunstâncias de vida do recorrente, que já abandonou o ambiente em que os factos ocorreram, que mostrou ter-se libertado dos hábitos alcoólicos, que é primário, reorganizou a sua vida e mostra-se um cidadão cumpridor, a aplicação do princípio da proporcionalidade, na vertente da necessidade, impõe a aplicação de uma pena de prisão pelo mínimo legal. Pelo que o tribunal ao determinar uma pena superior ao mínimo legal, aplicou de modo errado o artigo 18º, nº2 da CRP, devendo fazê-lo, corretamente, no sentido de determinar a medida da pena, in casu, ao mínimo legal previsto. Por se ter reconhecido que decorreu mais de 7 anos após a ocorrência dos factos, o arguido/recorrente contribuiu decisivamente para a descoberta da verdade, manifesta expresso arrependimento, mágoa e desilusão consigo próprio, abandonou o consumo de álcool, tem companheira que o apoia, é socialmente responsável e tem situação profissional estável, apoia a filha em todas as suas decisões, e é delinquente primário, ter ocorrido a atenuação especial da pena, em conformidade com o disposto no artigo 72.º do Código Penal. No entanto, o Acordão ora recorrido julga improcedente o recurso neste ponto, entendendo, entre outras razões que o arguido “não denota uma adequada inserção familiar, sendo evidentes as fragilidades existentes a este nível.” Ora, s.m.o., o Acordão ora recorrido realiza um erro de julgamento nesta matéria pois, no respeitante ao recorrente, este mantém uma relação conjugal estável, tendo refeito a sua vida familiar e integrado um novo agregado familiar após o divórcio, tal como de resto sucede com muitas pessoas atualmente. O Acordão ora recorrido invoca, sem demonstrar, fragilidades que não concretiza, pelo que a decisão tem de ser anulada neste trecho. 7.ª Assim, na fixação da pena única, considerando a existência de várias penas aplicadas, entende o Acordão ora recorrido que “a aceitar-se a pretensão do Arguido – de lhe ser imposta, em cúmulo jurídico de penas, a pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão – ficaria impune a prática de 22 (vinte e dois) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, de 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, 119 (cento e dezanove) crimes de violação, agravada e de 1 (um) crime de maus-tratos. E que isso seria absolutamente intolerável! “ Ora esta leitura da lei não é correta e não pode ser aceite. Pois, como é bom de ver, a punição pelo mínimo legal não equivale a uma não punição ou “ficar impune”, nas palavras vertidas no Acordão ora recorrido. O que o recorrente pede apenas é que a Lei seja aplicada e que a pena seja fixada nos termos da Lei, de acordo com os critérios aí fixados. Designadamente, aplicando a atenuação especial da pena conforme manda o artigo nº72 do Código Penal, visto ter decorrido bastante tempo desde a prática dos factos, circunstância nominada na alínea d) do nº2 desse artigo. E que não se faça uma leitura da lei contra o Arguido, procurando por todas a vias atacá-lo, chegando ao ponto de se afirmar “alteração da vida do Arguido resumiu-se à mudança de companheira” quando essa mudança, que não se consegue negar, implicou uma alteração geográfica do local e da envolvência social em que os factos sucederam. Tampouco se pode apontar ao arguido qualquer má conduta desde a ocorrência dos factos objeto dos presentes autos. Ao não reconhecer que existem as circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime acima elencadas, designadamente o decurso de muito tempo após os factos, mantendo o arguido boa conduta, que diminuem por forma acentuada a necessidade da pena, como fez, o Acordão ora recorrido violou artigo o 72º, nº1, do Código Penal. Uma interpretação correta do referido normativo impunha a determinação ao caso de uma pena no mínimo que a lei impõe. Acresce que a aplicação de medidas punitivas deve obedecer Princípio da Proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, nº2 da CRP. As circunstâncias do caso, designadamente o decurso de um longo período após dos factos em que o arguido apresenta boa conduta, a sua inserção social bastante positiva, são de molde a determinar que a aplicação de uma pena no mínimo que a lei impõe por se afigurar suficiente para assegurar as finalidades da pena, pelo que também o Acórdão ora recorrido violou o Principio da Proporcionalidade, consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa. 8.ª A pena aplicar, devendo sê-lo pelo mínimo legal conforme supra pugnado, não excederá os 5 anos de prisão. Considerando que recorrente mostrou arrependimento sincero, patenteado na confissão espontânea dos factos, as suas condições de vida, que mostram um homem que tendo vivido uma infância e adolescências difíceis, refez a sua vida, trabalhador estável, socialmente responsável, bem como todas as condições pessoais do recorrente supra expostas e que o douto Acórdão recorrido reconheceu, deverá o Tribunal concluir que se verificam os pressupostos para a suspensão da aplicação da pena de prisão, previstos no artigo 50º. do Código Penal. Nestes termos e nos demais que V. Exas. Senhores Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça doutamente ditarem, deverá o Acordão recorrido ser alterado nos termos indicados por ser essa a a única decisão que fará JUSTIÇA!” 5. A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal a quo respondeu, defendendo a improcedência do recurso, assim concluindo: “1. O Supremo Tribunal de Justiça conhece Direito, salvo as exceções legais; 2. As questões de conhecimento oficioso sobre a matéria de fato já foram antes objeto do recurso interposto do acórdão condenatório para o Tribunal da Relação que confirmou o acórdão de primeira instância. 3. O presente recurso do acórdão da relação para o STJ só é possível atenta a pena aplicada ser superior a 8 anos, estando por isso o conhecimento do presente recurso restrito às questões de direito. 4. Não há crime continuado, mas uma pluralidade de crimes. 5. A pena aplicada em cúmulo jurídico é proporcional e adequada quer à culpa, quer às exigências de prevenção geral e especial que são enormes. 6. A aplicação de pena de prisão menor e ainda mais a sua suspensão na execução seriam intoleráveis socialmente e à revelia do respeito pela pessoa da vítima.” 6. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto manifestou-se, num ponderado e documentado Parecer, considerando nomeadamente que, “não se detectando no texto do acórdão do TR... que tivessem sido dados como provados factos que notoriamente estão errados e são totalmente inverosímeis e contrários às regras comuns da lógica, da razão e da experiência, id est, que o aresto enferme do vício do erro notório na apreciação da prova invocado pelo recorrente, entendemos que o recurso deve ficar circunscrito à questão da medida da pena única (conclusões 6.ª a 8.ª).”. E quanto a esta última, entendeu, a terminar as suas doutas considerações, que “Na ponderação de tudo quanto vem de ser exposto, e tendo presente que a moldura abstracta do cúmulo apresenta como limites mínimo e máximo 5 anos e 25 anos de prisão, entendemos que a pena conjunta de 10 anos de prisão fixada na 1.ª instância e mantida pelo TR..., situada no primeiro quarto da referida moldura penal, revela-se equilibrada e ajustada aos critérios estabelecidos nos arts. 71.º, n.os 1 e 2, e 77.º, n.º 1, do Código Penal e aos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação que devem presidir à determinação da pena (cf. o ponto 3 do preâmbulo do Dec.-Lei. 48/95, de 15.03).”. Pelo que emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. 7. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não se tendo o recorrente manifestado. Efetuado o exame preliminar, remeteu-se o processo a vistos legais e de seguida à Conferência, de acordo com o disposto no art. 419 do CPP.
II Fundamentação: Do Acórdão recorrido Particularmente relevante se afigura a factualidade provada (o Acórdão da Relação ... apenas alterou o ponto 79 dos factos dados como provados pela 1.ª Instância, ponto aqui não incluído por não dizer respeito ao recorrente nesta lide, mas a outro arguido), sem prejuízo, como é óbvio, da atenção que merece a integralidade do mesmo:
«DA ACUSAÇÃO 1. BB nasceu em .../.../1999, é filha de AA e de FF, residindo, em .../.../2021, na Travessa ..., ..., ..., ..., em casa dos tios DD e de HH, juntamente com as primas CC e II, filhas destes. (…)
DO ARGUIDO AA 25. Desde o seu nascimento que os pais de BB não lhe prestavam os cuidados necessários, nomeadamente em termos de higiene, saúde e alimentação. 26. Constatando tal realidade, EE, tia paterna da menor, disponibilizou-se para cuidar dela. 27. Assim, entre os 6 anos e os 18 anos, BB residiu com sua tia EE. 28. Apesar disso, BB passava os fins-de-semana com os pais, ao cuidado destes. 29. Em 2005, quando BB contava 6 anos de idade, o arguido AA, seu pai, começou a dirigir-lhe comportamentos de cariz sexual. 30. Para o efeito, o arguido aproveitou-se da proximidade a BB, quer afetiva, decorrente da relação familiar, quer física, adveniente de coabitarem aos fins-de-semana, e da inexperiência daquela. 31. Assim, sempre que BB ia passar o fim-de-semana com os pais, cerca de duas vezes por mês, em ..., ..., e quando se encontravam sozinhos, no interior da habitação, o arguido acariciava-a por todo o corpo. 32. O arguido manipulava e apalpava ainda a zona genital e as mamas de BB, quer por cima, quer por dentro da roupa, tocando-lhe nos mamilos. 33. Em 2007, quando sua a filha contava 8 anos de idade, pela primeira vez, o arguido introduziu o pénis na sua vagina. 34. Estas relações sexuais de cópula repetiram-se durante cerca 5 anos, com uma periodicidade de pelo menos duas vezes por mês, em casa do arguido, sendo que, quando ocorriam, o denunciado manipulava e apalpava a zona genital e as mamas de sua filha. 35. Para tanto, como BB se debatia para impedir que o pai concretizasse os seus intentos, dizendo que não queria, ele usava a sua força física, designadamente, prendendo, com as suas mãos, os braços da filha e as suas pernas, impedindo-a de movimentar, e, dessa forma, introduzia o pénis na vagina da menor. 36. Sendo que, caso BB não cedesse, o arguido lhe batia. 37. As situações de cópula ocorreram desde que BB tinha 8 anos de idade e até aos seus 13 anos de idade, num número de vezes concretamente não apurado, mas certamente por duas vezes por mês ao longo de cinco anos, ou seja, em número não inferior a cento e vinte vezes. 38. No mesmo contexto, no período compreendido entre os anos de 2006 e 2007, quando BB tinha cerca 7 e 8 anos de idade, pelo menos por dez vezes, o arguido, por sua iniciativa e instrução, praticou coito oral com a sua filha, introduzindo o seu pénis na boca dela, não chegando a ejacular. 39. Em determinada ocasião, quando tinha 14 anos de idade, BB queixou-se a DD, seu padrinho, que era vítima de abusos sexuais por parte do avô, do pai e do tio JJ. 40. DD confrontou os arguidos com essa denúncia e, ao tomar dela conhecimento, o arguido AA desferiu na sua filha murros, pontapés e chapadas por todo o corpo e apodou-a de “mentirosa”. 41. Os referidos comportamentos tidos pelo arguido sobre a sua filha causaram-lhe tristeza, mágoa, remorsos, tendo carecido de acompanhamento psicológico e medicamentoso. 42. Em 2013 ou 2014, quando CC contava 8 ou 9 anos de idade, o arguido AA, seu tio, dirigiu-lhe comportamentos de cariz sexual. 43. Para tanto, o arguido aproveitou-se da proximidade de CC, quer afetiva, decorrente da relação familiar, quer física, adveniente da proximidade das habitações, e da inexperiência daquela. 44. Em data não concretamente apurada, mas situada no mencionado intervalo temporal, CC deslocou-se à habitação do arguido. 45. Quando entrou em casa, o tio estava na sala a ver um filme na televisão e chamou-a para se sentar junto dele, ao que CC acedeu. 46. Depois, o arguido despiu-se da cintura para baixo e colocou o seu pénis na boca de CC. 47. O arguido assumiu igual comportamento, no mesmo período temporal, pelo menos por mais cinco vezes, quando CC se deslocava a sua casa e enquanto visualizavam filmes pornográficos. 48. Ao atuar pela forma descrita, livre, voluntária e conscientemente, o arguido AA quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, sabendo que CC era sua sobrinha, que, quando a abordou, contava apenas 8/9 anos de idade e que a ofendia na sua liberdade e desenvolvimento sexuais, deixando-a confusa e nervosa. 49. Por seu turno, ao agir pela forma descrita relativamente a BB, o arguido quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, sabendo que a mesma era sua filha, que contava apenas 6, 7 e 8 anos e que dada a sua ascendência sobre ela lograria constrangê-la a com ele praticar tais atos sexuais. 50. AA agiu com o propósito concretizado de, pela atuação acima descrita em «35.» e «36.», forçar sua filha BB, como efetivamente forçou, a sofrer introdução vaginal do seu pénis contra a vontade daquela e pondo em crise a sua liberdade sexual, o que representou. 51. Por outro lado, AA, nos termos descritos em «36.» e «40.», atuou com intenção de molestar física e psiquicamente a sua filha BB. 52. Com efeito, ao anunciar que batia na BB se esta não acedesse a satisfazer os mencionados instintos libidinosos e ao esmurrá-la, esbofeteá-la e pontapeá-la quando tentou denunciá-lo, bem sabia o arguido que essas condutas eram idóneas a constrangê-la a praticar os factos em crise e magoá-la, como sucedeu. 53. Por outro lado, ao apodá-la de mentirosa, atuou ainda o arguido com intenção de diminuir e achincalhar sua filha e bem sabendo que tal epíteto era apto a transtorná-la psiquicamente e a atingi-la na sua honra e na sua consideração, o que igualmente sucedeu. 54. Em todo o circunstancialismo narrado, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e sendo capaz de as orientar de harmonia com esse conhecimento. * DO PERCURSO, CONDIÇÕES DE VIDA E ANTECEDENTES CRIMINAIS DO ARGUIDO 55. O processo de desenvolvimento e de socialização do arguido, decorreu em ... no seio de um agregado familiar numeroso e de humilde condição socioeconómica, com uma dinâmica intrafamiliar disfuncional, sendo assinalados maus-tratos físicos e psicológicos infligidos à mãe e aos filhos pelo progenitor, o arguido AA. 56. AA iniciou a escolaridade em idade normal, tendo concluído nessa fase o ensino básico. Mais tarde, através do Instituto de Emprego e Formação Profissional, concluiu um curso de ... que lhe deu a equivalência ao 9.º ano de escolaridade. 57. No plano profissional, o arguido desenvolveu atividade laboral de forma regular, sendo o seu percurso marcado pelo exercício de funções como ..., atividade que desempenhava, à data da sua detenção, na empresa de ..., “...”. 58. AA vivenciou um consumo de bebidas alcoólicas em excesso, para o qual não fez nenhum tratamento, e que se repercutiu negativamente na dinâmica relacional da primeira união de conjugalidade que estabeleceu. A vivência em comum decorreu num anexo junto à habitação dos familiares de origem e apesar de ter durado cerca de 17 anos, foi marcada por conflitos e violência contra a companheira. Dessa relação nasceu BB, vítima nos presentes autos e única filha do arguido. 59. Há cerca de sete anos, o arguido saiu de casa, permanecendo a filha ao cuidado, simultaneamente da mãe e da tia, EE. Regressou, então, ao agregado habitacional da família de origem durante algum tempo, permanecendo num anexo, período em que terá intensificado o consumo de álcool, embora tentasse manter a sua atividade profissional. 60. O arguido conheceu, entretanto, a atual companheira, GG, com quem iniciou um relacionamento afetivo, tendo-se autonomizado do agregado familiar de origem. 61. À data da prisão, o arguido residia com a atual companheira e os enteados, há 4 anos, em ..., em ..., numa dinâmica familiar descrita como afetiva e sexualmente gratificante. Mantinha uma atividade profissional regular e possuía um quadro económico equilibrado. 62. O arguido não tem antecedentes criminais.” IV Fundamentação: O Direito A Questões Processuais Prévias 1. Do conhecimento, em geral Não se vislumbram quaisquer motivos que impeçam o conhecimento do recurso por este Supremo Tribunal de Justiça.
2. Do objeto, em geral É consensual que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos). B Do Direito: Thema 1. Do pedido do recorrente ao thema decidendum 1.1. Sintetizando, o recorrente considera o seguinte, nas suas Conclusões, em larga medida reeditando a argumentação já apresentada e recusada pelo Tribunal da Relação ...: a) Os diversos crimes devem ser reconduzidos à figura do crime continuado (conclusão 2.ª) – todavia, sem que nas conclusões justifique essa alegação; b) Contesta a decisão em matéria de facto, discordando da valoração probatória das instâncias: c) O acórdão recorrido padece de erro notório na apreciação da prova (conclusão 4.ª); d) Entende que a pena de 10 anos de prisão é excessiva (conclusões 6.ª a 8.ª). 1.2. Porém, atentos os limites legais do recurso para o STJ, o objeto do presente acórdão apenas pode incidir sobre a alínea d) do ponto precedente, ou seja, a medida da pena única. De tal se curará já de seguida, em sede de poderes de cognição deste Tribunal. 2. Dos poderes de cognição do STJ, em geral É sabido que, segundo o art. 432.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, se pode recorrer para o STJ (inter alia, naturalmente, centrando-nos no que agora importa): “b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”. Ninguém ignora, na comunidade jurídica, que o art. 400.º, n.º 1, do Código de Processo Penal veda a recorribilidade para o STJ decisões de dupla conformidade condenatória em que a pena aplicada não é superior a 8 anos de prisão, conforme refere a alínea f), preceituando a inadmissibilidade de recurso: “f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;”. Ora todas as penas parcelares em que o recorrente foi condenado são inferiores à aludida fasquia dos 8 anos de prisão. Pelo que não pode haver recurso de nenhuma delas. Têm sido várias vezes citadas na jurisprudência deste Tribunal algumas sínteses jurisprudenciais (com dimensão doutrinal), com importância para a concreta interpretação dos poderes de cognição. Diz-se, com efeito, no Acórdão deste STJ, de 11.03.2020 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves): “só é admissível recurso de decisão confirmatória da Relação quando a pena aplicada for superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico. Irrecorribilidade que é extensiva a todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a fixação da matéria de facto, nulidades, os vícios lógicos da decisão, o princípio in dúbio pro reo, a escolha das penas e a respetiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais, referentes à matéria de facto ou à aplicação do direito, confirmadas pelo acórdão da Relação, conquanto a pena aplicada, parcelar ou conjunta, não seja superior a 8 anos de prisão. Trata-se de jurisprudência uniforme destes Supremo Tribunal, adotada e seguida no recente Ac. de 19/06/2019, desta mesma secção, onde se decidiu: “As questões subjacentes a essa irrecorribilidade, sejam elas de constitucionalidade, processuais e substantivas, enfim das questões referentes às razões de facto e direito assumidas, não poderá o Supremo conhecer, por não se situarem no círculo jurídico-penal legal do conhecimento processualmente admissível, delimitado pelos poderes de cognição do Supremo Tribunal”. E ainda se aduz no Acórdão deste STJ, de 16-03-2021 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves): “I - A norma dos artigos 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. f) do CPP, consagra a irrecorribilidade de acórdãos da Relação que confirmem a decisão condenatória da 1.ª instância, contanto não tenha sido aplicada pena superior a 8 anos de prisão. II - Salvo disposição legal expressa, as mesmas questões já duplamente apreciadas e uniformemente decididas por tribunais de duas instâncias, não podem legitimar mais uma reapreciação em 2.º grau recurso, pelo STJ. III - Irrecorribilidade extensiva a todas as questões relativas à actividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a matéria de facto, nulidades, vícios lógicos da decisão, o princípio in dubio pro reo, a qualificação jurídica, a escolha das penas e a respectiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais.”. Atente-se ainda no Acórdão deste STJ, de 11-03-2021, Relatora Conselheira Helena Moniz: “II - Tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, onde se impede a possibilidade de recurso das decisões do Tribunal da Relação que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, e o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, segundo a jurisprudência deste STJ, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, quando seja aplicada pena não superior a 5 anos de prisão; e das condenações em pena de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão, quando haja conformidade com o decidido na 1.ª instância.”. E finalmente analise-se o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 14.03.2018, proferido no Proc.º n.º 22/08.3JALRA.E1.S1 (Relator: Conselheiro Lopes da Mota), de que retomamos a seguinte passagem: “1. Só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, limitado ao reexame de matéria de direito, de acórdãos das Relações proferidos em recurso que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou que apliquem penas superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos de prisão em caso de não confirmação da decisão da 1.ª instância. Esta regra é aplicável quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso de prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso. 2. O regime de recursos para o STJ definido pelas normas dos artigos 400.º, n.º 1, al. e) e f), e 432.º, al. b), do CPP, efectiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais (artigos 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais). O artigo 32.º, n.º 1, da Constituição não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição, isto é, de um duplo grau de recurso, em relação a quaisquer decisões condenatórias. 3. Garantido o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e em matéria de direito, têm os sujeitos processuais à sua disposição duas vias possíveis de exercer o direito ao recurso: querendo impugnar a decisão em matéria de facto (incluindo a arguição dos vícios da decisão a que se refere o artigo 410.º do CPP) e em matéria de direito, devem usar a via de recurso para o tribunal da Relação (artigos 427.º e 428.º do CPP), qualquer que seja a pena aplicada; limitando o recurso a matéria de direito, a lei impõe caminhos distintos, consoante a pena aplicada, que define o critério de competência dos tribunais superiores: se a pena não exceder 5 anos de prisão, o conhecimento do recurso é da competência do tribunal da Relação (artigo 427.º do CPP); se for superior a 5 anos, tal competência pertence ao STJ (artigos 432.º e 434.º do CPP), o qual, em caso de concurso de crimes, deve conhecer de todas as questões, de direito, relativas às penas aplicadas a cada um deles e à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017). 4. O conhecimento do recurso implica que o tribunal ad quem aprecie e decida, oficiosamente ou a pedido do recorrente, todas as questões de direito relacionadas com o objecto e âmbito do recurso da sua competência, incluindo das nulidades relativas à decisão recorrida que constitui o objecto do recurso, as quais, sendo admissível recurso, nele devem ser arguidas (artigo 379.º, n.º 2, do CPP). 5. Como tem sido afirmado na jurisprudência do STJ, estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspectos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões relativas à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como de questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito. (…)” 3. Da irradiação da impossibilidade de conhecimento Estando, por razões de competência, o Supremo Tribunal de Justiça impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, encontra-se do mesmo modo impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão. Estão também excluídos da apreciação vícios da decisão indicados no artigo 410 do CPP nulidades e aspetos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aí se incluindo apreciação da prova, qualificação jurídica dos factos e determinação da pena, inter alia. Sintetizando: não cabe (nem é legalmente possível), neste contexto, curar de quaisquer questões subjacentes ou emergentes, sejam elas substantivas, processuais, ou mesmo de constitucionalidade, desde que, como é o caso, afirmem com o cerne da questão decidida (que é, na verdade, já res judicata) uma conexão tão profunda que como que se acolham à sombra da decisão já tomada, confirmativa da decisão proferida em 1.ª Instância. Dito noutra clave, na formulação do Acórdão do STJ de 26.06.2014, apud Acórdão do STJ de 27.05.2015, Proc.º n.º 352/13.2 PBOER.L1.S1. (Relator: Conselheiro Raul Borges): «[t]oda a decisão referente a crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, incluindo questões conexas como a violação do princípio in dubio pro reo, invalidade das provas, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, violação do n.º 2 do art. 30.º do CP, qualificação jurídica dos factos, consumpção entre os crimes em concurso, violação do princípio da proibição da dupla valoração, reincidência e medida das penas parcelares, já conhecidas pela Relação, não são susceptíveis de recurso para o STJ, por força dos arts. 400.º, n.º 1, als. c) e f), e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP». Atente-se ainda, mais recentemente, no seguinte ponto (III) o Sumário do Acórdão deste STJ, de 24-02-2021, proferido no Proc.º n.º 7447/08.2TDLSB.L1.S1 (Relator: Conselheiro Sénio Alves). “Esta irrecorribilidade abrange, em geral, todas as questões processuais ou de substância que tenham sido objecto da decisão, nomeadamente, as questões relacionadas com a apreciação da prova, com a qualificação jurídica dos factos, concurso efectivo de crimes/crime continuado e com a determinação das penas parcelares. A não apreciação dessas questões elencadas pelo reclamante é, portanto, consequência directa da rejeição do recurso, quanto às penas parcelares.” Há, pois, uma difusibilidade ou irradiação consequencial à rejeição do recurso das penas parcelares, como que “contaminando” de impossibilidade a apreciação de elementos com tal matéria conexos. 4. Possibilidade abstrata de conhecimento excecional de facto e impossibilidade concreta de tal conhecimento É também sobejamente sabido que a regra fundamental (dir-se-ia trave-mestra) do nosso sistema de recurso para o STJ é a do recurso da matéria de direito. Recorde-se o texto do artigo 434.º do Código de Processo Penal: “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”. Portanto, não está vedado a este Tribunal o conhecimento, em situações específicas, de matéria de facto. Com efeito, o conhecimento do recurso (em matéria penal) na parte em que é admissível acarreta que, no âmbito da sua competência, o STJ analise e delibere o pedido do recorrente, ou, oficiosamente, todas as questões de direito relacionadas com o objeto e âmbito do recurso, nessa parte, com vista à boa decisão destes. A delimitação fundamental do recurso ao reexame da matéria de direito não obsta a que o STJ, oficiosamente, conheça de eventuais vícios da decisão recorrida (n.º 2 do artigo 410.º do CPP), os quais devem emergir do texto da decisão recorrida, por si só ou em combinação com as regras da experiência, se a sua sanação se revelar necessária, no conhecimento do mérito do recurso. Trata-se de vícios da decisão, da elocução decisória em matéria de facto que se revelam no texto da decisão e se patenteiam a partir dele, por si só ou conjuntamente com as regras da experiência, não de erros de julgamento da matéria de facto, cujo conhecimento, da competência do tribunal da Relação (artigos 427.º e 428.º do CPP), se encontra subtraída ao STJ (cfr. acórdão deste STJ, de 02.10.2019, Proc. n.º 3622/17.7JAPRT-P1.S1, citando o acórdão de 15.12.2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1 (Relator: Conselheiro Raul Borges), e profusa jurisprudência neste referida, in www.dgsi.pt). Em suma: pode (e deverá) o STJ apreciar os vícios do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal quando tal se revele indispensável para proferir a decisão de direito (cf. o acórdão de fixação de jurisprudência 7/95, publicado no DR, I série A, n.º 298, de 28.12.1995). Ou seja, o direito que se quer justamente apurar clama pela justa apreciação do facto, não se podendo conformar com deficiências ou lacunas graves no seu apuramento. Mas só quando realmente haja de, por esse motivo superior, abdicar da regra geral da especialidade da função do STJ, que é de conhecimento de direito. Ora, compulsado o acórdão recorrido, não se evidencia (nem sequer vislumbra) qualquer vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nem erro notório na apreciação da prova, suscetíveis de afetar a decisão de direito, e que por essa razão devesse este Tribunal conhecer. Retomando a síntese da douta argumentação do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste STJ: Como reiteradamente tem sido defendido pelo STJ, «não é admissível um recurso interposto de um acórdão proferido pelo Tribunal da Relação para este tribunal, na parte em que convoca a reapreciação da decisão proferida sobre matéria de facto, quer em termos amplos, por erro de julgamento (erro na apreciação da prova), quer no quadro dos vícios do artigo 410.º do CPP (erro-vício)» (4). (nota 4: Acórdão do STJ de 14.10.2020, processo 74/17.5JACBR.C1.S1, MANUEL AUGUSTO DE MATOS (relator)). À vista do que vem de ser exposto, não se detectando no texto do acórdão do TR... que tivessem sido dados como provados factos que notoriamente estão errados e são totalmente inverosímeis e contrários às regras comuns da lógica, da razão e da experiência, id est, que o aresto enferme do vício do erro notório na apreciação da prova invocado pelo recorrente, entendemos que o recurso deve ficar circunscrito à questão da medida da pena única (conclusões 6.ª a 8.ª). 5. Dos quatro núcleos de questões levantadas pelo recorrente, os primeiros três ficam prejudicados: a) Os diversos crimes devem ser reconduzidos à figura do crime continuado (conclusão 2.ª); b) O tribunal violou os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo ao dar como provados os factos 33 a 37 e 51 e 52 (conclusões 2.ª, 3.ª e 5.ª); c) O acórdão recorrido padece de erro notório na apreciação da prova (conclusão 4.ª). Apenas releva, para a decisão, a última questão, que remete para a medida da pena única: perguntando-se, pois: A medida da pena será excessiva? É do que se tratará imediatamente a seguir. Diga-se apenas ainda, apesar de não se poder curar ex professo da questão do crime continuado, que não há qualquer crime continuado. Sem mais delongas, porque são requisitos do crime (cf. nºs 2 e 3 do artigo 30º, do Código Penal): a) A realização plúrima de violação típicas do mesmo bem jurídico, desde que este não proteja bens eminentemente pessoais (itálico nosso). b) Execução essencialmente homogénea das referidas violações. c) No quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que lhe diminua consideravelmente a culpa. d) Um elemento subjetivo que se há de estender a toda a relação de continuação, abrangendo as hipóteses de um dolo conjunto (planeamento prévio pelo agente das diversas resoluções típicas) ou de um dolo continuado (o plano do agente de que repetiria a realização típica sempre que a ocasião se proporcionasse). O caráter eminentemente pessoal dos bens em causa desde logo afasta a hipótese de crime continuado. De entre vasta jurisprudência, cf., desde logo, este trecho do Sumário do Ac. de 13-05-2020, proferido no Proc.º n.º 396/18.8PBLRS.L1.S1 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves): “II. O crime continuado reconduz-se à punição como um só, de vários crimes que preenchem o mesmo ou idêntico tipo de ilícito, cometidos pelo agente em circunstâncias tais que diminuem de forma acentuada a culpa –art.º 30 n.º 2 do Cód Penal. III. A Lei 40/2010 de 2/09, suprimiu o trecho final do até aí vigente n.º 3 do artigo 30º citado, pelo que, a repetida ofensa de bens eminentemente pessoais criminalmente protegidos, ainda que a vítima seja a mesma, independentemente das circunstâncias, consubstancia concurso efetivo de crimes. IV. Nos crimes sexuais, em cada um dos repetidos e temporalmente separados atos sexuais de relevo praticados pelo agente na mesma vítima, consuma-se uma decisão, uma opção de vontade, perfeitamente delimitada na sua autonomia em relação a todas as outras, a sustentar uma renovação da formulação de igual juízo de culpa. V. Consequentemente, nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual de crianças e adolescentes não têm cabimento legal unificar através da categoria normativa do crime continuado as várias condutas que, cada uma, em si mesma, isoladamente preenche todos os elementos constitutivos do tipo de ilícito.” 3. Da medida da pena única 3.1. Parâmetros gerais Como é sabido, e aceite na communis opinio, a intervenção do STJ na concretização da medida da pena, ou melhor, no controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cf. Acs. de 09-11-2000, Proc. n.º 2693/00 - 5.ª; de 23-11-2000, Proc. n.º 2766/00 - 5.ª; de 30-11-2000, Proc. n.º 2808/00 - 5.ª; de 28-06-2001, Procs. n.ºs 1674/01 - 5.ª, 1169/01 - 5.ª e 1552/01 - 5.ª; de 30-08-2001, Proc. n.º 2806/01 - 5.ª; de 15-11-2001, Proc. n.º 2622/01 - 5.ª; de 06-12-2001, Proc. n.º 3340/01 - 5.ª; de 17-01-2002, Proc. n.º 2132/01 - 5.ª; de 09-05-2002, Proc. n.º 628/02 - 5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, Proc. n.º 585/02 - 5.ª; de 23-05-2002, Proc. n.º 1205/02 - 5.ª; de 26-09-2002, Proc. n.º 2360/02 - 5.ª; de 14-11-2002, Proc. n.º 3316/02 - 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, Proc. n.º 3399/03 - 5.ª; de 04-03-2004, Proc. n.º 456/04 - 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 220; de 11-11-2004, Proc. n.º 3182/04 - 5.ª; de 23-06-2005, Proc. n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, Proc. n.º 2521/05 - 5.ª; de 03-11-2005, Proc. n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, Proc. n.º 2555/06 - 3.ª; de 14-02-2007, Proc. n.º 249/07 - 3.ª; de 08-03-2007, Proc. n.º 4590/06 - 5.ª; de 12-04-2007, Proc. n.º 1228/07 - 5.ª; de 19-04-2007, Proc. n.º 445/07 - 5.ª; de 10-05-2007, Proc. n.º 1500/07 - 5.ª; de 14-06-2007, Proc. n.º 1580/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, Proc. n.º 1775/07 - 3.ª; de 05-07-2007, Proc. n.º 1766/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, Proc. n.º 3321/07 - 3.ª; de 10-01-2008, Proc. n.º 907/07 - 5.ª; de 16-01-2008, Proc. n.º 4571/07 - 3.ª; de 20-02-2008, Procs. n.ºs 4639/07 - 3.ª e 4832/07 - 3.ª; de 05-03-2008, Proc. n.º 437/08 - 3.ª; de 02-04-2008, Proc. n.º 4730/07 - 3.ª; de 03-04-2008, Proc. n.º 3228/07 - 5.ª; de 09-04-2008, Proc. n.º 1491/07 - 5.ª e Proc. n.º 999/08 - 3.ª; de 17-04-2008, Procs. n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, Proc. n.º 4723/07 - 3.ª; de 21-05-2008, Procs. n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, Proc. n.º 1001/08 - 5.ª; de 03-09-2008, no Proc. n.º 3982/07 - 3.ª; de 10-09-2008, Proc. n.º 2506/08 - 3.ª; de 08-10-2008, nos Procs. n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, Proc. n.º 1964/08 - 3.ª; de 29-10-2008, Proc. n.º 1309/08 - 3.ª; de 21-01-2009, Proc. n.º 2387/08 - 3.ª; de 27-05-2009, Proc. n.º 484/09 - 3.ª; de 18-06-2009, Proc. n.º 8523/06.1TDLSB - 3.ª; de 01-10-2009, Proc. n.º 185/06.2SULSB.L1.S1 - 3.ª; de 25-11-2009, Proc. n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1 - 3.ª; de 03-12-2009, Proc. n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1 - 3.ª; e de 28-04-2010, Proc. n.º 126/07.0PCPRT.S1” (cf. Acórdão deste STJ de 2010-09-23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1). Assim, como é sabido, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem reiteradamente enfatizado que, na concretização da medida da pena, deve partir-se de uma moldura de prevenção geral, definindo-a, depois, em função das exigências de prevenção especial, sem ultrapassar a culpa do arguido. Como assinala o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, “(2) a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite, máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (Direito Penal, vol. I, p. 84 e Direito Penal, vol. II, pp. 227-228 (sendo importante o diálogo que com estas ideias encetam os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, 7.ª ed., Lx., Rei dos Livros, p. 192). Atente-se ainda neste passo do Acórdão de 2010-09-2, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1: “Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”. Cf. ainda os acórdãos deste STJ de 08-10-97, Proc. n.º 976/97, e de 17-12-97, Proc. n.º 1186/97, (in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132, e n.º s 15/16, novembro/dezembro 1997, pág. 214). Importará ainda salientar que a jurisprudência deste Supremo Tribunal sublinha que a sua intervenção no controle da proporcionalidade com que há que pesar os crimes e as penas não é ilimitada e que o quantum da pena se deve manter quando se revele, em geral, o acerto dos vários enfoques analíticos e judicatórios em questão (v.g. Ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019). 3.2. Da Pena única, do geral ao concreto. - Como é bem sabido, a pena única deve determinar-se pela ponderação de fatores do critério que consta do art. 77.º, n.º 1, in fine, do Código Penal: “1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.” Considerando, assim, as evidentes necessidades de prevenção no caso em concreto, o respetivo grau de culpa e de ilicitude, que são muito elevados, entende-se que a pena única de modo algum excede um quadro de razoabilidade e proporcionalidade e é adequada e necessária para se cumprirem as finalidades preventivas, enquadrando-se nos padrões admissíveis de justiça e, até, se revelando, face à factualidade provada, como revelando alguma indulgência. 3.3. Impossibilidade de atenuação especial da pena - Pretende o recorrente que seja efetuada uma atenuação especial da pena, alegando que se verificam circunstâncias que diminuem acentuadamente a necessidade da pena. Porém, a atenuação especial da pena só seria possível para cada pena singular (se o fosse). Não se aplica à pena única. A questão quanto às penas parcelares está resolvida, porque abrangida pela dupla conforme. Ou seja, no caso: a dupla conforme inclui todas as questões atinentes às penas parcelares aplicadas e confirmadas incluindo a da restiva atenuação especial. É jurisprudência uniforme deste STJ e entendimento da doutrinal, nomeadamente em Figueiredo Dias). Cf., por todos, a síntese deste passo do Acórdão deste STJ de 11.12.2008, proferido no Proc.º n.º 08P3632 (Relator: Conselheiro Simas Santos): “A moldura penal abstracta do cúmulo é assim bem diversa da moldura de cada crime, pelo que não cabe em relação a ela uma atenuação especial da pena, por não proceder aqui a mesma justificação. A ser diferentemente, aliás, valorizar-se-ia duplamente (isto é, na pena parcelar e na pena única) o mesmo circunstancialismo atenuativo». 3.4. Proporcionalidade, et alia 3.4.1. Da Proporcionalidade e da Proporcionalidade penal em geral Atentem-se, antes de mais, nos parâmetros essenciais convocados no Acórdão deste STJ de 19-01-2022, proferido no Proc.º n.º 327/17.2T9OBR.S1 (Relator: Nuno Gonçalves). “Sustenta-se no Acórdão de 30/11/2016, deste Supremo Tribunal,[17- Proc. 804/08.6PCCSC.L1.S1, www.dgsi.pt/Jstj.] que: “a medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria. Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes. Por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, final, de síntese (…)”. A proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação da gravidade dos crimes do concurso (enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente neles revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a dimensão da medida das penas parcelares e da pena conjunta no ordenamento punitivo. “A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção – dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes”. Assim, “se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta”. “É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, face à grande criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras”. Se a aplicação de qualquer pena deve ser orientada pelo princípio da proporcionalidade (à gravidade do crime, ao grau e intensidade da culpa e às necessidades de reintegração do agente), essa orientação deve ser especialmente ponderada quando se determina o quantum da pena conjunta. Tanto porque a moldura penal resultante da soma das penas aplicadas a cada um dos crimes do concurso pode assumir amplitude enorme e/ou atingir molduras com limiar superior muito elevado, não raro, iguais ao máximo de pena consentida, quanto porque os crimes englobados no concurso podem incluir-se apenas na pequena criminalidade, “uma das manifestações típicas das sociedades modernas”, tratando-se de uma realidade distinta da criminalidade grave, quanto à sua explicação criminológica, ao grau de danosidade social e ao alarme coletivo que provoca. Por isso, não poderá deixar de ser diferente, numa e na outra, não só a espécie como também a medida concreta da reação formal. O legislador deixou claramente expressa a vontade de conferir tratamento distinto àquelas fenomenologias criminais.” Têm estas considerações plena aplicação no caso, em tela de fundo. Podendo também convocar-se, no mesmo registo, a explicitação constitucional sobre as várias dimensões ou modalidades de que se reveste a proporcionalidade (designadamente nos Acórdãos nº 632/2008, n.º 187/2001 e Acórdão n.º 634/93 do Tribunal Constitucional). A lição de síntese do referido Acórdão deste STJ de 19-01-2022, proferido no Proc.º n.º 327/17.2T9OBR.S1 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves), pela sua clareza, merecerá ser recordada, pelo menos início do Sumário, o que, como se verá, será linha seguida neste aresto: “I - No vigente regime penal, a função primordial do direito penal é a de tutelar os bens jurídicos tipificados, de modo a assegurar a paz jurídica dos cidadãos. II - A culpa na execução do facto, estabelece o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando à «paz» comunitária a dignidade humana do agente. III - Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de individualização da pena judicial completa-se com a finalidade de prevenção especial de socialização. IV - O abuso sexual de crianças e de menores dependentes, violando a autodeterminação sexual e do harmonioso desenvolvimento da personalidade global das crianças na esfera sexual, demandam assertiva reafirmação da validade do bem jurídico e da vigência da proteção penal. V - O concurso de crimes, por opção de política criminal, é punido com uma pena única, obtida através da ponderação dos factos cometidos e da personalidade do agente.”. Convoque-se ainda nesta sede geral, brevitatis causa (para maiores desenvolvimentos, P. Ferreira da Cunha, Em torno do princípio da proporcionalidade, “Revista do Ministério Público”, n.º 168, outubro-dezembro de 202, pp. 95-120) Jürgen Schwabe (coletânea original) / Leonardo Martins (organização e introdução da ed. em português) — 50 Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, Montevideo, Fundação Konrad Adenauer, 2005, p. 89: “A aplicação do critério da proporcionalidade como limite dos limites não se confunde com uma ponderação de bens, interesses ou valores jurídicos, mas representa a busca ‘do’ meio necessário de intervenção, assim entendido ((como)) o meio adequado de intervenção (adequado ao propósito da intervenção) que seja, em face da liberdade atingida, o menos gravoso. Aplicar o critério da proporcionalidade significa, portanto, interpretar e analisar o propósito perseguido pelo Estado e o meio de intervenção em si, no que tange às suas admissibilidades e à relação entre os dois. Esta deve poder ser caracterizada como uma relação de adequação e necessidade, nos seus sentidos técnico-jurídicos.”. É, pois, num sentido técnico-jurídico rigoroso, já seguido pela jurisprudência e acolhido pela doutrina, que se encara a proporcionalidade, e jamais como uma vaga imagem da régua de Lesbos (não a original, referida por Aristóteles nas Éticas a Nicómaco), quiçá entre a equidade e alguma modalidade de pensamento tópico-problemático, em que, no limite, podem entrar considerações de pura subjetividade. 3.4.2. Elementos ponderadores em concreto - Não é, de modo algum, descomunal ou mesmo exagerada, nem de, qualquer modo, errada, a forma como foi calculada a pena única, sendo até que, como assinala o Acórdão recorrido, a “pretensão do Recorrente de penas de prisão próximas do mínimo da respetiva moldura penal abstrata encontrou já satisfação nas penas que lhe foram impostas.”. As Conclusões do recorrente dizem que a pena se revela “desproporcionada” (2.ª conclusão), mas não é de modo algum o caso. Assim, de acordo com o art. 77, n.º 2, a moldura penal, no caso, teria um mínimo de 5 anos e um máximo de 25 anos de prisão. A pena conjunta de 10 anos de prisão, fixada na 1.ª Instância e mantida pelo Tribunal da Relação ..., revela-se significativamente abaixo da pena média, podendo dizer-se que não se afasta muito de uma tradução em medida de grandeza de uma sanção que teve em consideração benévola designadamente aqueles aspetos da personalidade (e vivência) do agente suscetíveis que serem levados em conta como atenuações. Note-se o peso significativo da argumentação (com argumento, dir-se-ia, ab absurdo!), da Veneranda Relação ..., ao confrontar o leitor / observador com as conclusões da pretensão de diminuição da pena do recorrente: “(…) a aceitar-se a pretensão do Arguido – de lhe ser imposta, em cúmulo jurídico de penas, a pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão – ficaria impune a prática de 22 (vinte e dois) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, de 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, 119 (cento e dezanove) crimes de violação, agravada e de 1 (um) crime de maus-tratos. Ou seja, punia-se, apenas a prática de um crime de violação, agravada. O que seria absolutamente intolerável!” Não se ignora, evidentemente (mas tudo tem de ser encarado no seu devido lugar e com o devido sentido e dimensão), que a favor do recorrente, relevando para a análise da respetiva prevenção especial, concorrem, é certo, alguns elementos: - inexistência de antecedentes criminais registados, não haver notícia de ocorrência entretanto de novas infrações, - quanto ao arrependimento, cite-se o que o tribunal motivou: “Dos factos provados não decorre que o Arguido manifeste arrependimento pelo comportamento que se apurou, nestes autos, ter levado a cabo. Nem que esteja magoado e desiludido consigo próprio. Dos factos provados não decorre, também, que o Arguido tenha vontade ou propósito de compensar as vítimas. Nem que seja um homem diferente. Não está provado que tenha abandonado o consumo de bebidas alcoólicas e que apoia a filha em todas as suas decisões.” – diz-se a p. 71 do Acórdão recorrido; cf., porém, Parecer do Ex.mo Procurador-Geral adjunto neste STJ. - ter parcialmente confessado os crimes (“assumiu aprática de 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de crianças, agravado e de um crime de maus-tratos, mas negou ter praticado 120 (cento e vinte) crimes de violação agravada. Acresce que esta postura processual do Arguido não tem o alcance que o mesmo lhe atribui. Porque não está demonstrado que tenha contribuído de maneira determinante para a descoberta dos factos que se consideram como provados. Bastará atentar que o Arguido não admitiu ter praticado os crimes de violação agravada e que os factos que os sustentam foram considerados como provados.” – refere o acórdão recorrido, p. 71). - exercer atividade profissional regular - de ter iniciado, há cerca de 4 anos, uma nova relação marital e de beneficiar presentemente de um ambiente familiar equilibrado, o que contribuiria certamente para a sua estabilidade ou estabilização. Todos esses elementos foram levados em conta e resultam na pena única aplicada, que é moderada, atenta a barbaridade dos atos cometidos. A lei, ao mandar atentar nos factos e na personalidade do agente remete para uma consideração global, em que uns e outros dialogam no seu diferente sentido e peso relativo. O Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias (e vária jurisprudência com ele é concorde), aponta também para um critério holístico na escolha da medida da pena única. Assim, “(…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. (…) De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, p. 291). Ainda na perspetiva holística, note-se o Acórdão deste STJ de 06.02.2019, proferido no Proc.º n.º 71/15.5JDLSB.S1: “(…) impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente. Essa apreciação deverá indagar se a pluralidade de factos delituosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de carácter fortuito ou acidental, não imputável a essa personalidade, para tanto devendo considerar múltiplos factores, entre os quais a amplitude temporal da actividade criminosa, a diversidade dos tipos legais praticados, a gravidade dos ilícitos cometidos, a intensidade da actuação criminosa, o número de vítimas, o grau de adesão ao crime como modo de vida, as motivações do agente, as expectativas quanto ao futuro comportamento do mesmo». A questão de se saber se se trata da expressão de uma tendência criminosa (uma parafilia), ou uma simples pluriocorrência (ou pluriocasionalidade) de factos criminosos é deveras relevante. Deve ponderar-se que o número elevadíssimo de crimes e o largo tempo em que foram praticados não pode deixar de ser fator a considerar. O Acórdão recorrido, sempre invocando, doutas e pertinentes referências doutrinais e jurisprudenciais, não meramente adjacentes ou eruditas, mas com interesse prático e objetivo para a decisão da causa, explicitou as razões da manutenção da pena única, com clareza e evidenciando equilíbrio e prudência. A sentença proferida é, nesse contexto, justa, adequada, proporcional e necessária. Os factos são plúrimos, como referido, arguido atuou com dolo direto e intenso, a ilicitude e culpa elevadas. Utilizando as vítimas como meros objetos de satisfação dos seus intuitos libidinosos e de supremacia ou afirmação de poder. E com exercício concreto de violência física e não apenas de ameaça: “ele usava a sua força física, designadamente, prendendo, com as suas mãos, os braços da filha e as suas pernas, impedindo-a de movimentar” (ponto 35 dos factos). Nas palavras do Ministério Público neste STJ: “Em todas as ocorrências o arguido actuou com dolo directo para satisfazer a sua luxúria sexual e magoar fisicamente e achincalhar a sua filha.”. Esta ideia de reificação ou coisificação (redução a objeto, a meio) neste tipo de crimes, sem dúvida ecoará, em pano de fundo, o contraste com o imperativo ético kantiano (Kant, Schriften zur Ethik und Religionsphilosophie: “Age de tal maneira que uses a tua humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”). Na verdade, pode certamente afirma-se que tais condutas implicam despersonalização da vítima, feita objeto, “meio” e não fim da ação. Confiscam-lhe a qualidade de plena pessoa, pois a vítima é desapossada violentamente da mesma pelo agressor. Vários têm desenvolvido esta ideia de transformação da vítima destes crimes em mero objeto. Concretamente de “objeto de prazer sexual alheio” fala Francisco Muñoz Conde, Derecho Penal. Parte Especial, 9.ª ed., Valência, Tirant lo Blanch, 1993, p. 416. Estão em causa, e consubstanciam o ilícito global a ter em consideração na determinação da pena única, nada menos que dezasseis crimes de abuso sexual de crianças agravado, cento e vinte crimes de violação agravada e um crime de maus-tratos, ou seja, crimes que tutelam os bens jurídicos da liberdade sexual (violação), da liberdade de autodeterminação sexual (abuso sexual de crianças), e da integridade física e psíquica (maus-tratos) das vítimas. Acrescendo que os crimes de abuso sexual de crianças agravado e de violação agravada são crimes especialmente violentos (cf. o art. 1.º, al. l), do Código de Processo Penal). Além disso, as vítimas dos crimes foram a própria a filha do arguido, ora requerente (BB, nascida em 1999) e uma sua sobrinha (CC, nascida em 2006). Os crimes foram perpetrados ao longo de um alargado período de, pelo menos, 8 anos (entre 2005 e 2013 (em relação à filha do requerente), e em 2013 ou 2014 (em relação à sobrinha). Há, como se disse, um grau muito elevado de culpa. Na reiteração criminosa não encontrará “meia desculpa” – mas, pelo contrário, houve muitas ocasiões de refletir e de perseverar (perseverare diabolicum, como diria a formulação de Bernardo de Claraval) na grave atitude criminosa. Todos os elementos (também não encontrando álibi no excesso de consumo de álcool) revelam uma personalidade transtornada num sentido parafílico, egoísta e insensível. Dos Autos se extrai que a gravidade dos factos (agora, em cúmulo, considerando o “facto global” e a respetiva “culpa global”) e a personalidade do arguido necessitam, em prevenção especial, de uma censura não laxista, que o desmotive de voltar a delinquir no futuro, e de molde ainda a que a comunidade se não sinta ameaçada e descrente nas capacidades reconstitutivas da paz social do sistema jurídico (agora em prevenção geral). Evidentemente que se entrelaçam as duas prevenções e apontam ambas para uma punição que não trivialize estas condutas. Crimes de abuso sexual e de violação de crianças não só causam repulsa e do alarme sociais profundos na comunidade circundante, como, sendo mediaticamente noticiados, criam no conjunto da sociedade (que é também o destinatário se não mesmo partícipe da ordem jurídica) sentimentos de anomia. Além disso, não se trata apenas de um sentimentos subjetivo ou de comoção de massas de algum modo superficial, mas, pelo contrário, estão em causa bens jurídicos valiosos, que constituem insofismavelmente pilares da ordem social e da consciência jurídica geral, tendo, assim, uma componente ético-social. São alguns dos mínimos do ordenamento jurídico de que fala o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias (que também nos recorda a importância da culpa, outro relevante elemento ético-penal), num passo aliás habitualmente citado: “(2) a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite, máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (Direito Penal, vol. I, p. 84 e Direito Penal, vol. II, pp. 227-228” . O alarme social é, pois, notório com o tipo de atos como os do arguido. Mas importa matizar as questões. Como tem assinalado Claus Roxin, entre outros, o que não deixa de ser recordado, entre nós por Figueiredo Dias, há também uma compreensão social de situações de diminuição da culpa, e a aceitabilidade comunitária de que possa existir uma menor exigibilidade, em certos casos, da tutela de bens jurídicos (Idem, Direito Penal, I, p. 83 e Direito Penal, vol. II, p. 230, e ainda Simas Santos e Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, cit., p. 188). Mas nunca poderá estar em causa cogitar-se a aplicação de uma pena única que pudesse vir a ser tão baixa que colocasse em risco os limites mínimos de prevenção. Como seria o caso de uma pena que consentisse a suspensão da sua execução, como pretendido pelo recorrente (v.g. “a pena a aplicar deve ser suspensa na sua execução”, ponto 2.º das Conclusões; “se verificam os pressupostos para a suspensão da aplicação da pena de prisão, previstos no artigo 50º. do Código Penal”, ponto 8.º das Conclusões). Aliás, quanto a esta se insurge em termos enfáticos, e em absoluto ponderosos, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação ...: “7º Querer ver aplicada uma pena de prisão que lhe permita usufruir do instituto da suspensão da execução da pena, seria gritante e intolerável em termos das exigências da prevenção geral! 8º A culpa deve ser a medida da pena que é muito grande no caso e as exigências da prevenção geral são também enormes (veja-se o número crescente de vítimas que denunciam de abusos sexuais, bem como o agravamento das penas efetuado pelo Legislador) mas também, no caso presente e ainda mais atento o tempo prolongado do abuso, parece-nos que as exigências de prevenção especial também são enormes. 9º Só a pena de prisão efetiva poderá ser aplicada! 10º E acrescente-se que quanto a estes crimes não é de grande relevo se ao arguido nada é apontado ou se tem nova companheira… - o abusador é na maioria dos casos, pessoa próxima, como no presente em que é o próprio pai.” E sublinhe-se uma passagem deste significativo trecho: o número crescente de vítimas que denunciam abusos sexuais. É uma dimensão que deve ser considerada também em sede de um entendimento social alargado e compreensivo da prevenção geral. Porquanto esse número crescente de vítimas que finalmente ganham força para ter voz, e a quem se dá voz, revelam uma base do icebergue de que não tínhamos autoconsciência ainda há não muito. E que vai revelando uma autognose social a reclamar uma bateria integrada e multidimensional de intervenções, de que o direito é vetor essencial, mas não exclusivo, e, pela própria natura rerum, mais terapêutico que profilático. Não é assim de espantar que se tenha concluído que num país como na América do Norte, onde os trabalhos sociológicos se encontram mais desenvolvidos, a maioria dos adultos (e isso independentemente do género, idade, “raça” ou etnicidade, ou classe social, “provavelmente experimentaram um qualquer nível de maus-tratos enquanto crianças”, o que, naturalmente, “pode ter implicado significativos impactos na futura auto compreensão pessoal, conduta, e sintomatologia psicológica”. Ora, apesar disso, tem havido trivialização das conexões entre estes maus-tratos e a emergência de disfuncionalidades e patologias ulteriores, o que parece suceder devido a padrões de aceitação social de “violência física, agressão verbal e exploração no treino e controlo das crianças” (cf. John N. Briere, Child Abuse Trauma. Theory and Treatment of the Lasting Effects, Newbury Park, Londres, Nova Delhi, 1992, p. XVII). Abusos não discriminados podem produzir tão graves sequelas, que dizer, a fortiori, de abusos sexuais, para mais infligidos em crianças pequenas, e pelo progenitor ou parente próximo? A proliferação deste tipo de situações (rectius: o seu conhecimento e vinda à Justiça) reclama uma resposta não rotineira e não um olhar complacente e resignado. Nesse sentido, a prevenção geral ganha uma outra dimensão. 3.5. Vetores de apreciação factual Mandando a lei atender aos factos e à personalidade do agente, há que ter em conta, na consideração dos factos, várias vertentes ou vetores, avultando a condição pessoal e económica do arguido: O arguido não tem antecedentes criminais. Nasceu o arguido em agregado familiar numeroso e de humilde condição socioeconómica, com uma dinâmica intrafamiliar disfuncional, tendo ocorrido maus-tratos físicos e psicológicos infligidos à mãe e aos filhos pelo seu progenitor, o arguido AA. Um caso, pois, de reprodução de um padrão de origem familiar: o agressor que fora já agredido, ignorando-se pormenores sobre este ponto. Escolaridade sem história em especial, possuindo um curso de ... com equivalência ao 9.º ano de escolaridade. Plano profissional igualmente regular, sendo ..., à data da sua detenção. De notar, porém, o consumo de bebidas alcoólicas em excesso, com uma primeira relação marcada por conflitos e violência contra a companheira. Dessa relação nasceu apenas BB, uma das vítimas nos presentes autos. Há cerca de sete anos, o arguido saiu de casa, período em que terá intensificado o consumo de álcool, embora tentasse manter a sua atividade profissional. O arguido conheceu, entretanto, nova companheira, com a qual (e com os enteados) vivia numa relação satisfatória à data da prisão, mantendo atividade profissional regular e possuindo um quadro económico equilibrado. 3.6. Considerações finais Ponderem-se, com efeito, as importantes aportações do Acórdão deste STJ de 22-01-2020, proferido no Proc.º n.º 430/16.6GABRR.S1 (Relatora: Conselheira Teresa Féria):_ “A especial vulnerabilidade da criança associada à gravidade dos danos causados ao desenvolvimento da sua personalidade fundamenta a necessidade da sua especial proteção no tocante a quaisquer condutas de natureza sexual que, com elas ou nelas, sejam levadas a cabo. Estas condutas de sexualização forçada das crianças, designada como violência sexual pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, são por este caraterizadas como uma das formas de obstaculização do gozo e exercício dos seus mais elementares direitos. Daí que a Convenção dos Direitos da Criança, vigente na ordem interna desde 21 de outubro de 1990, estabeleça, nos seus artigos 19º e 34º, que as crianças têm o direito a estar protegidas de todas as formas de violência sexual. Não obstante, é um facto público e notório que os abusos sexuais a crianças são uma conduta criminosa com elevada incidência. No estudo realizado pela UNICEF ([23])em 2014 afirma-se mesmo que se estima que cerca de 120 milhões de raparigas, com idade inferior a 20 anos, já tenha sido sujeita a relações sexuais forçadas ou à prática de qualquer ato sexual sem o seu consentimento. Esse mesmo estudo indica serem de diferente natureza as consequências de se haver sofrido um abuso sexual. Para além das eventuais consequências físicas diretas, como a exposição ao HIV ou a gravidez precoce, também se verificam comportamentos de autoagressão, desenvolvimento de distúrbios alimentares, como bulimia e anorexia. Igualmente é afetada a saúde mental, sendo frequente, na adolescência a ocorrência de “depressão, isolamento, comportamento suicida, autoagressão, queixas somáticas, actos ilegais, fugas, consumo de substâncias e comportamento sexual inadequado”. ([24]) Notas: [23] “Hidden in Plain Sight” http://files.unicef.org/publications/files/Hidden_in_plain_sight_statistical_analysis_EN_3_Sept_2014.pdf. [24] “Características dos Abusadores Sexuais” – Ana Garrido Nascimento – Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto – pag. 36. No que toca às exigências de prevenção especial, se é certo que os elementos positivos, favoráveis ao arguido já referidos (conquanto por vezes matizados), algo atenuariam o alarme perante a possibilidade de reincidência, a verdade é que os hábitos já antigos de alcoolismo (que não foi em tempo tratado) poderão ser um fator potenciador de novos ilícitos. Por outro lado, avulta na personalidade do arguido que exala dos factos. Ao ponto de o Acórdão recorrido, de forma cortante, acabar por considerar que, nos 9 anos decorridos desde a prática dos crimes até à prolação da sentença em 1.ª Instância “A alteração da vida do Arguido resumiu-se à mudança de companheira.”. Insistindo: “O trato sexual que manteve com sua filha e com uma das suas sobrinhas continua a ser um comportamento abjeto e em relação ao qual se acentuou a repulsa social.” Em suma, a culpa do arguido é muito elevada, pelo desvalor das ações que quis empreender e concretizou e do desvalor dos resultados que procurou e conseguiu efetivar. A sua personalidade do arguido (pesem todas as invocações e alguns elementos de facto já apontados) não é de molde a tranquilizar a comunidade quanto ao seu comportamento futuro (que, contudo, se deseja venha a ser normativo, aproveitando da possibilidade de repensar a sua vida), reclamando-se quer em prevenção especial quer em prevenção geral, e não ultrapassando a sua culpa, uma pena não abaixo do razoável para manter as expetativas sociais de defesa da legalidade. Ponderando o exposto e a moldura penal em concreto, a pena aplicada não se revela desproporcional nem contrária às regras da experiência, nem às exigências de prevenção e não excede a culpa do arguido. Assim, não podendo afirmar-se existir desproporcionalidade no quantum da pena do cúmulo jurídico operado, é a mesma de manter, confirmando-se o Acórdão recorrido. IV Dispositivo Termos em que, decidindo em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente o Acórdão recorrido. Custas pelo arguido – art.º 513.º n.º 1 do CPP -, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs - art.º 8.º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais. Taxa de Justiça: 6 UCs Supremo Tribunal de Justiça, 19 de outubro de 2022 Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator) Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta) Dr. Sénio Alves (Juiz Conselheiro Adjunto) |