Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
314/11.4TCFUN.L2.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
VONTADE REAL DOS DECLARANTES
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TERCEIRO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO.
Doutrina:
- Rui Pinto Duarte, A Interpretação dos Contratos, Almedina, p. 14 e ss..
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 09-02-1988, PROCESSO N.º 075623;
- DE 22-11-2001, PROCESSO N.º 02A1442;
- DE 05-01-2016, PROCESSO N.º 146/13.5TCFUN-A.L1.S1;
- DE 16-05-2018, PROCESSO N.º 2183/15.6T80AZ-A.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – A interpretação do negócio jurídico com recurso aos critérios legalmente fixados nos arts. 236º e segs. do CC, quando as instâncias não apuraram a vontade real dos contraentes, é matéria de direito, estando, por isso, sujeita ao controle do STJ.

II – Subjazendo a um contrato promessa de compra e venda de um terreno a convicção, comum a ambas as partes, de que nenhum terceiro teria sobre o mesmo direito de ocupação, a previsão contratual de que, a ser apresentada alguma pretensão por terceiro, as duas partes reagiriam, de comum acordo, contra ela e de que, em qualquer caso, a promitente vendedora se responsabilizaria pelo pagamento do que eventualmente fosse o direito do terceiro ou daquilo que lhe fosse pago como forma de composição ou prevenção de diferendos, deve ser entendida como contendo:

- a exigência de uma reação/oposição conjunta das duas partes contra uma eventual pretensão dessa natureza que viesse a ser apresentada;

- e, independentemente do resultado dessa atuação conjunta – “em qualquer caso” –, a obrigação de a promitente vendedora suportar a indemnização devida ou a pagar, por acordo, ao terceiro.

III – No seguimento do princípio de reação conjunta em que as partes assentavam, estes acordos com os terceiros teriam de resultar também de posições conjuntas das partes, não sendo de entender que a promitente vendedora tivesse aceitado pagar quantias apuradas unilateralmente pela promitente compradora, sem que conhecesse e tivesse como bons os cálculos e os critérios a elas conducentes e sem que tivesse podido opor-se relevantemente aos mesmos.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




  I - AA - Sociedade de Turismo da ..., S.A., propôs contra BB - Empreendimentos Urbanísticos, S.A., – que entretanto passou a denominar-se CC - Hoteis ..., S.A.., - a presente ação declarativa com processo ordinário, pedindo que esta fosse:

a) declarada incumpridora das obrigações que perante si assumiu, nomeadamente as contidas no n.º 1 da cláusula 3ª do contrato promessa de compra e venda outorgado em 26.10.1998 e no n.º 2 da alínea b) do aditamento a esse contrato, subscrito em 18.5.2000;

E, consequentemente, fosse:

b) condenada a pagar-lhe a quantia de € 577.746,00 que até à data da propositura se viu obrigada a despender em virtude desse incumprimento;

c) condenada a pagar-lhe os juros já vencidos, à taxa legal, sobre o sobredito montante, contados desde a data de emissão de cada um dos respetivos cheques, que o preenchem, que alcançam, na mesma data, o montante de € 23.259,41;

d) e ainda os juros que se vençam, à mesma taxa legal, até efetivo e integral pagamento;

e) condenada a pagar-lhe todas as quantias que venha a despender, com a indemnização aos herdeiros do titular do direito de colonia existente sobre o prédio que lhe vendeu, pagamento esse que deve efetuar num prazo de oito dias a contar de notificação que, em tal sentido, lhe venha a ser efetuada, e que terá lugar quando e se os restantes herdeiros se apresentarem a reclamar a sua quota parte, tudo até ao montante máximo de € 492.856,92;

f) condenada a pagar-lhe todas as quantias que nessas circunstâncias sejam despendidas caso não cumpra com essa sua obrigação, apesar de validamente notificada para tal, obrigando a Autora a, novamente, ter que pagar aos ditos herdeiros;

g) condenada a pagar-lhe os juros que, nessas circunstâncias, se vençam, à taxa legal, desde a data da notificação, até efetivo e integral pagamento.


Alegou, em síntese nossa, que:

- em contrato escrito celebrado em 1998, objeto de aditamento em 2000, prometeu comprar à ré, e esta prometeu vender-lhe, um prédio nas condições aí descritas, tendo sido acordado pelas partes, nomeadamente, o regime a observar no caso de terceiros virem a invocar direitos sobre esse prédio e, bem assim, a responsabilidade da ré pelo pagamento das quantias eventualmente pagas a esses terceiros;

- após a efetivação da compra e venda prometida, apresentaram-se à autora terceiros invocando direitos sobre o imóvel, com os quais a autora entabuou negociações – em que a ré não participou por se ter mostrado indisponível para tal – para evitar a paragem das obras que já decorriam para a construção de um hotel;

- nessas negociações foi alcançado um acordo, que passou pela indemnização daqueles terceiros, mas que a ré não aceita.


Houve contestação e réplica; e, realizado o julgamento, veio a ser proferida sentença onde, julgando-se a ação parcialmente procedente, se decidiu:

- declarar a ré incumpridora nas obrigações que assumiu perante a autora, nomeadamente as contidas no n.º 1 da cláusula 3ª do contrato-promessa de compra e venda, outorgado em 26.10.1998 e no n.º 2 da alínea b) do aditamento a esse contrato, subscrito em 18.5.2000;

- condenar a ré a pagar à autora a quantia de € 577.746, acrescida de juros de mora, contados desde a citação até integral pagamento;

- condenar a ré a pagar à autora o valor da indemnização referente a DD e EE, que vier a ser liquidado, e após interpelação para o efeito por parte da Autora.

Quanto ao mais, foi a ré absolvida do pedido.


Em apelação interposta pela ré, veio a ser proferida na Relação de Lisboa decisão singular do Exmo. Desembargador Relator que revogou a parte condenatória da decisão apelada.

Tendo a autora reclamado para a conferência, foi proferido acórdão que confirmou a decisão reclamada.


Inconformada, a autora trouxe a este STJ a presente revista, tendo apresentado alegações onde, pedindo a revogação do acórdão impugnado e a repristinação da condenação emitida em 1ª instância, formula as conclusões que passamos a transcrever:

A. É sindicável pelo STJ a interpretação que o acórdão recorrido fez da cláusula b) do aditamento de 18.5.2000 ao contrato-promessa de compra e venda de 26.10.98, de acordo com o sentido que lhe atribuiria um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, visto não ter havido recurso, nessa interpretação, a elementos extratextuais sujeitos à livre apreciação do julgador.

B. No contrato-promessa de 26.10.98 as partes estabeleceram, em plena conformidade com o regime legal supletivo dos arts. 905, 907, 911 e 913 do Código Civil, que, sendo o lote prometido, destinado à construção dum hotel pela promitente compradora, vendido livre de ónus, encargos ou direitos de terceiros, à promitente vendedora cabia proceder à sua desocupação até à data da escritura, suportando todos os encargos e indemnizações a colonos e inquilinos.

C. Decorrido o prazo inicial estipulado para a escritura, as partes, não obstante ter sido reivindicado e não satisfeito o direito de remição dum antigo colono e o contrato-promessa prever a prorrogação daquele prazo, acordaram num diverso modus faciendi do cumprimento daquela obrigação da promitente compradora, que permitisse a celebração da escritura e a ocorrência a posteriori desse cumprimento, dado que a implantação do hotel não podia esperar (e as partes tinham expressamente previsto que, finda aquela eventual prorrogação, o contrato seria considerado incumprido).

D. Foi basicamente correta a interpretação da cláusula b) do aditamento de 18.5.2000 feita pela lª. instância, que corresponde ao sentido que da declaração negocial retira um declaratário normal e um intérprete razoável: a reação de comum acordo contra a pretensão de terceiro significa que a recorrida deveria ser envolvida pela recorrente no processo de defesa da propriedade plena do lote contra eventuais reivindicantes, tendo assim oportunidade de se pronunciar sobre a existência e o conteúdo do direito invocado e procurando chegar a uma posição comum de ambas perante o terceiro; mas, "em qualquer caso", isto é, houvesse ou não este acordo, a recorrida permaneceria responsável pelo pagamento das indemnizações, quer o direito do reivindicante se mostrasse judicialmente definido, quer a sua verificação fosse feita extrajudicialmente.

E. Deste modo, perante a urgência da venda, à recorrente foi facultado um meio expedito de libertar o prédio, por conta da recorrida, sem ficar dependente da manifestação de vontade desta - cujo interesse económico (mas não juridicamente protegido) seria sempre no sentido de não pagar, mas à qual seria desproporcionado conceder o direito de vetar a conclusão da negociação com o terceiro reivindicante, mediante a recusa do seu acordo a uma reação comum.

F. A interpretação da 1ª. instância abrange implicitamente as duas situações, que as partes não distinguem, de o terceiro demonstrar, judicial ou extrajudicialmente, que tinha o direito (real ou pessoal) de fruir uma parcela do lote ou apenas a existência de uma situação jurídica, como a posse ou a detenção, que permite presumir a existência desse direito de fundo (como resulta do texto da cláusula em apreço, quer pela referência a "quaisquer direitos de fruição, ocupação ou posse", quer pela menção a que "os reivindicantes tenham direito ou lhe sejam pagas como forma de compensação ou prevenção de diferendos").

G. É, ao invés, inadequada a interpretação da mesma cláusula feita pela ora recorrida nas suas alegações de apelação, por conceder à recorrida, já inteiramente paga do preço da compra e venda, o direito de impedir a conclusão de qualquer acordo com o reivindicante que por ela não fosse aceite; por seu turno, tal entendimento significaria que, não havendo acordo, a recorrida só teria de reembolsar a recorrente depois de um tribunal reconhecer o direito do reivindicante, o que equivale a anular completamente o sentido precetivo da expressão "em qualquer caso", que as partes incluíram no aditamento ao contrato, assim iludindo o direito da compradora a adquirir o lote livre de qualquer direito, ónus ou limitação.

H. Por seu turno, a interpretação da Relação, ao adotar o entendimento da BB quanto ao sentido da expressão "reação de comum acordo", mas dando à expressão "em qualquer caso" um terceiro sentido, que abrangeria as situações de sucesso (aceitação) e de insucesso (rejeição) da proposta comum das partes, é absurda: bastaria à recorrente concordar com a posição da recorrida sobre a inexistência do direito reivindicado para que, satisfeito o primeiro requisito, a recorrente pudesse pagar, num segundo momento, ao reivindicante tudo aquilo que ele lhe pedisse e depois exercer, com toda a tranquilidade, o direito de regresso contra a recorrida.

I. A estipulação das partes não pode deixar de exprimir o equilíbrio entre o interesse da recorrida em estudar com a recorrente a proposta a fazer e o interesse da recorrente em ter um meio expedito para concluir a negociação, quer no caso de não ter havido proposta comum, quer no de a proposta comum não ser aceite, tido em conta que a obrigada a libertar o prédio de direitos, ónus e limitações era só a recorrida.

J. Assim sendo, a interpretação da Relação conduz a um enorme desequilíbrio das prestações, uma vez que colocaria o credor "nas mãos" do devedor, manietando-o até que fosse proferida uma demorada decisão judicial (poderiam passar muitos anos até ser obtida), com uma obra parada, a qual forçosamente geraria avultadíssimos custos de imobilização (ou com um significativo e arriscado empate de capital, que à recorrente não cabia empatar), quando é incontroverso que a responsabilidade pelo pagamento da indemnização aos colonos (ou possuidores reivindicantes) sempre caberia à BB. Pelo contrário, a interpretação efetuada pela lª. instância revela-se equilibrada naquilo a que vincula os contraentes, levando-os a procurarem uma solução conjunta e, se ela não fosse obtida, permitindo ao comprador transigir sobre o pagamento da indemnização para prevenir um diferendo (sempre, contudo, com base em presunções credíveis, no quadro duma probabilidade consistente da existência dos direitos dos reivindicantes e da razoabilidade da composição alcançada, como veio a acontecer).

L. De resto, mesmo que se admita a dúvida, nos negócios onerosos deve prevalecer o sentido da declaração que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (cfr. art. 237.° CC), resultado que a interpretação da lª. instância permite e que, salvo melhor opinião, a tese da Relação desconsidera.

M. Pelo exposto, a interpretação adotada pelo acórdão recorrido da cláusula contratual em apreço, designadamente das duas expressões controversas - reação "de comum acordo" e responsabilização da BB "em qualquer caso" -, é inconsistente, consubstanciando uma errónea aplicação ao caso concreto dos princípios estabelecidos pelos arts. 236.° e 237.° do CC.

N. Neste quadro, e considerando a matéria fáctica apurada, a alternativa da negociação e da celebração de uma transação era adequada e plenamente razoável. Pelo contrário, a irredutível posição da recorrida não se mostrava justificada, tendo designadamente em conta as posições já assumidas em relação aos direitos invocados (no limite, a conduta da BB até consubstanciava uma situação de venire contra factum proprium).

O. A composição alcançada é igualmente razoável, pois teve por referência, como não podia deixar de ser, o regime estabelecido pelo art. 19.° do Dec. Reg. 13/77/M, de 18/10, como mais uma vez a sentença do Funchal acertadamente demonstrou em termos em que a recorrente se louva.

P. A razoabilidade da composição alcançada decorre ainda dos termos em que foi celebrado o acordo de fls. 98 a 121 e da avaliação efetuada por dois peritos, plasmada no documento técnico de fls. 124 a 130 dos autos, os quais se revelam sérios, consistentes e credíveis para o fim em vista.

Q. À luz de tudo isto, ressalta que a recorrida BB agiu basicamente inspirada pela sua vontade de não cumprir a obrigação a que contratualmente está vinculada e decorre também do regime legal supletivo dos arts. 905.°, 907.°, 911.° e 913.° do CC, o qual estabelece o dever do vendedor de expurgar a coisa vendida dos ónus ou outras limitações existentes.


A ré contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.


Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questão sujeita à nossa apreciação a da interpretação do clausulado pelas partes no aditamento que fizeram ao contrato promessa antes celebrado.


II – Vem descrita pelas instâncias como factualidade provada a seguinte:

1. Em 26.10.1998 Autora e Ré subscreveram um contrato promessa de compra e venda, esta na qualidade de promitente vendedora, e aquela na de promitente adquirente, tendo como objeto parte de um prédio misto, sito na Estrada …, freguesia de …, concelho do …, que era o então descrito na Conservatória do Registo Predial do … pelo n.º 18…3/95…27, sendo nomeadamente a parte desse prédio que se situava a Sul da referenciada Estrada …, que a promitente vendedora se obrigou a individualizar através de operação de loteamento, como efetivamente o veio a fazer, ficando, no dito contrato, absolutamente individualizada e identificada a parte do prédio prometido vender, através de demarcação em documento anexo a tal contrato - cfr. doc. a fls. 27 e 33 dos autos - al. A) dos factos assentes.

2. O preço para a prometida transação foi no montante global, então, de Esc.: 620.000.000$00, a que hoje correspondem € 3.092.550,00 euros que foi totalmente pago pela Autora à Ré - cfr. doc. a fls. 27 e 33 dos autos - al. B) dos factos assentes.

3. Ficou estabelecido, no dito contrato promessa, que a venda era livre, no ato da escritura, de quaisquer ónus, encargos ou direitos de terceiros, pelo que a BB, ora Ré, assumia a responsabilidade da desocupação do lote prometido vender até à data da celebração da escritura de compra e venda, suportando, nomeadamente, todos os encargos e indemnizações aos colonos e inquilinos - cfr. doc. a fls. 27 a 33 dos autos - al. C) dos factos assentes.

4. Em 18.5.2000 as mesmas partes outorgantes, aqui Autora e Ré, celebraram um aditamento ao atrás mencionado contrato promessa, onde, além do mais, acordaram que, se antes ou depois da celebração da escritura de compra e venda, o referido EE ou qualquer outra pessoa reivindicassem quaisquer direitos de fruição, ocupação ou posse sobre alguma ou várias parcelas do mencionado lote, as duas partes reagiriam, de comum acordo, contra tal pretensão, sendo que, em qualquer caso, a BB, aqui Ré, se responsabilizaria pelo pagamento de todas e quaisquer quantias a que eventualmente o(s) reivindicante(s) tivesse(m) direito ou que lhe(s) fossem pagas como forma de composição ou prevenção de diferendos - cfr. doc. a fls. 34 e 35 dos autos - al. D) dos factos assentes.

5. Em 29.12.2000, no então 1º Cartório Notarial …, a promitente vendedora, aqui Ré, e a promitente adquirente, aqui Autora, titularam definitivamente a prometida transação, por escritura de compra e venda, na data e Cartório referenciados, onde se encontram exaradas a fls. 19 a 20-V, do Livro para escrituras diversas n.º 381-D (al. E) dos factos assentes).

6. O prédio transacionado passou a ser, a partir da sua individualização, por operação de loteamento, o descrito na Conservatória do Registo Predial …, pelo n.º 30…3/20…12, da referida freguesia de …, se encontra inscrito, a favor da ora Autora, pela apresentação 1 de 2001/01/26 (al. f) dos factos assentes).

7. No decurso do ano de 2007, a Autora deu início à obra de construção de uma unidade hoteleira, que hoje, depois de devidamente concluída e licenciada, funciona e é explorada pela Autora, com a denominação de Hotel FF (al. G) dos factos assentes).

8. No decurso das obras de tal edificação, após ter quase toda a sua estrutura no ar, apresentaram-se os herdeiros de GG e consorte HH, entre os quais EE, arrogando-se detentores de direitos sobre o dito prédio, reivindicando compensação pelos mesmos (resposta ao artigo 1º da base instrutória).

9. (…) com base num direito de colonia, que atempadamente fora objeto de ação especial de remição, requerida, ao Secretário Regional da Economia, do Governo Regional …, aos 15 de Abril de 2007, departamento governamental onde, ao dito processo, veio a ser atribuído o n.º 12…8-02-… (resposta ao artigo 2º da base instrutória).

10. E que veio a, posteriormente, transitar para o Tribunal Administrativo e Fiscal …, onde foi distribuído como processo n.º 142/07.1B… (resposta ao artigo 3º da base instrutória).

11. Contudo tal processo, por razões a que os titulares foram totalmente alheios, não teve a devida sequência e, assim, não tinha ainda alcançado o seu terminus (resposta ao artigo 4º da base instrutória).

12. As benfeitorias reivindicadas eram rústicas, com a área de 3.730 m2, correspondentes ao artigo matricial 29º/2, da secção A, da referenciada freguesia de …, e urbanas, incluindo dois prédios urbanos, destinados a habitação, sobre o mesmo prédio edificados, a que correspondem os artigos 1106º e 2741º, também da mesma freguesia de … (resposta ao artigo 5º da base instrutória).

13. (…) estando, esses prédios urbanos, inclusivamente arrendados a terceiros, sendo as respetivas rendas recebidas pelos herdeiros do colono (resposta ao artigo 6º da base instrutória).

14. Quando os herdeiros dos colonos se apresentaram a reclamar o seu direito, da estrutura do hotel faltava apenas a sua parte mais a Norte, onde se havia de situar a entrada do futuro hotel, a sua receção, e a estrada ou via de acesso automóvel, estas a situar, exatamente, onde se implantavam os dois prédios urbanos, integrantes do direito de colonia e, por isso, propriedade dos herdeiros dos colonos (resposta ao artigo 7º da base instrutória).

15. (…) prédios que urgia demolir, sob pena de paralisar a obra do hotel e comprometer o cumprimento do seu prazo de construção (resposta ao artigo 8º da base instrutória).

16. A falta de cumprimento de prazo acarretaria a impossibilidade de abertura do hotel no tempo previsto e, assim, a impossibilidade de cumprimento de contratos de reserva entretanto existentes (resposta ao artigo 9º da base instrutória).

17. Aceitando a Autora a existência de direitos de terceiros e sob a pressão de cumprimento de prazos e na iminência de ação cautelar, aquela aceitou negociar com as pessoas referidas em 8. (resposta ao artigo 10º da base instrutória).

18. A Autora informou a Ré da existência das reclamações de eventuais colonos, com pretensão a compensação (al. H) dos factos assentes).

19. A Autora informou a Ré da realização da reunião ocorrida a 22.4.2008, sobre o pedido de indemnização referido em 8., na qual aquela participou (resposta ao artigo 11º da base instrutória).

20. A Ré enviou para a Autora o documento constante de fls. 230 a 238 dos autos, datado de 9.5.2008 (documento junto aos autos pela Ré).

21. Após várias e sucessivas reuniões, Autora veio efetivamente a alcançar um acordo com as pessoas referidas em 8., o que ocorreu pelo menos a 25.7.2008, cuja indemnização foi calculada segundo o processo de remição de colonia, tendo a indemnização sido fixada em € 1.043.103,00 (resposta ao artigo 14º da base instrutória).

22. Na sequência da reunião havida entre a autora e mandatários da Empresa II, S.A., em representação da ré, em 22.4.2008 e referida em 19., e da informação que aqueles recolheram, foi enviada à autora uma exposição dos factos apurados e do direito que lhes devia ser aplicado (resposta ao ponto 14º-B) do aditamento à base instrutória).

23. Tal exposição é a referida em 20. (resposta ao ponto 14º-C) do aditamento á base instrutória).

24. A autora notificou a ré do acordo alcançado (resposta ao ponto 14º-A) do aditamento à base instrutória).

25. Para além do referido em 22. e 23., um mandatário da II, em representação da ré, enviou à autora o documento de fls. 239 a 245, cujo teor aqui se dá por reproduzido, datado 26.12.2008 (resposta ao ponto 14º-D do aditamento à base instrutória).

26. Os herdeiros de GG correspondem, e correspondiam, na data da assinatura do acordo, aos seus oito filhos e, no caso dos que haviam igualmente falecido, aos herdeiros destes (resposta ao artigo 15º da base instrutória).

27. Estando, alguns desses herdeiros, cotitulares do direito a indemnizar, ausentes e incontactáveis, o dito acordo foi subscrito por todos os presentes, o GG, o Padre JJ, também conhecido por JJ, o KK, a LL, os herdeiros de outro dos seus filhos, entretanto falecido, o MM, a viúva, NN, e os seus seis filhos, OO, PP, QQ, RR, SS e TT, a DD, a que acrescem, por ser viúva, os seus filhos UU, VV, XX e EE, ZZ, AAA e BBB (resposta ao artigo 16º da base instrutória).

28. Estes herdeiros, os presentes, subscreveram o acordo, não só em nome próprio, mas também em representação, na qualidade de gestores de negócios dos outros três filhos e herdeiros, que se encontram incontactáveis, e ausentes em parte incerta, no estrangeiro, CCC, ausente em parte incerta do …, DDD, ausente em parte incerta dos …, e EEE, a viúva, e herdeira, do filho, também já falecido, FFF (resposta ao artigo 17º da base instrutória).

29. Ficou estabelecido, no acordo alcançado, que o montante final seria devido e pago na proporção de 1/8 para cada uma das quotas de 1/8 (resposta ao artigo 18º da base instrutória).

30. No que concerne ao pagamento das quotas correspondentes aos representados a título de gestão de negócios, ficando dependente da respetiva retificação (resposta ao artigo 19º da base instrutória).

31. Segundo a metodologia acordada, a cada uma das oitavas partes da herança, ficou a caber uma quantia indemnizatória de € 130.387,88 (resposta ao artigo 20º da base instrutória).

32. Contactada a R. para que assumisse a sua obrigação de pagamento de tal montante indemnizatório, esta recusou-se a fazê-lo (resposta ao artigo 21º da base instrutória).

33. A Autora conseguiu negociar com os ditos herdeiros um pagamento faseado, em três prestações (resposta ao artigo 22º da base instrutória).

34. E efetuado em diversas datas, e com os cheques nos valores e ordem de quem lhe foi solicitado, pelo entre ilustre mandatário dos herdeiros (resposta ao artigo 23º da base instrutória).

35. Assim, e em 21.12.2009, a Autora pagou, em cinco cheques, aos herdeiros do colono, a quantia global de € 203.341,52 euros (resposta ao artigo 24º da base instrutória).

36. Tendo pago, em 13.7.2010, a esses mesmos herdeiros, a quantia de € 173.452,28 euros (resposta ao artigo 25º da base instrutória).

37. E tendo finalmente pago a esses mesmos herdeiros, em 12.1.2011, a mesma quantia de € 173.452,28 euros, sendo composto por três cheques, no valor de € 43.363,07 euros cada, emitidos à ordem de JJ (resposta ao artigo 26º da base instrutória).

38. Três outros cheques, em iguais valores de € 43.363,07 cada, emitidos à ordem de KK (resposta ao artigo 27º da base instrutória).

39. Três outros, nos mesmos valores de € 43.363,07 euros cada, emitidos à ordem de LL (resposta ao artigo 28º da base instrutória).

40. Outros três, de iguais valores de € 43.363,07 euros cada, emitidos à ordem de NN (resposta ao artigo 29º da base instrutória).

41. E um outro, no valor de € 29.889,24 euros, emitido à ordem do ilustre mandatário dos herdeiros, por instruções destes (resposta ao artigo 30º da base instrutória).

42. Os restantes herdeiros outorgantes do acordo de arbitragem, por não se terem entendido quanto forma de partilha, ainda não receberam a sua quota-parte (resposta ao artigo 31º da base instrutória).

43. E não tendo também sido pagos ainda os herdeiros que, no dito acordo, foram pelos restantes representados em gestão de negócios, por não se terem ainda, eles também, apresentado perante a Autora a reclamar o seu oitavo (resposta ao artigo 22º da base instrutória).


III – Da interpretação do clausulado pelas partes:

Importa começar por referir que a interpretação do negócio jurídico com recurso aos critérios legalmente fixados nos arts. 236º e segs. do CC, quando, como no presente caso, as instâncias não apuraram a vontade real dos contraentes, é matéria de direito, estando, por isso, sujeita ao controle do STJ, como reiteradamente se vem entendendo neste tribunal[1].


A questão fulcral no presente recurso consiste, como acima adiantámos já, na interpretação do clausulado constante do aditamento ao contrato promessa que está vertido no facto provado nº 4, acima transcrito e cujo conteúdo aqui se relembra e consta do documento junto com a petição inicial, sob o nº 2, a fls.34-35:

“Se antes ou depois da celebração da escritura de compra e venda o referido EE ou qualquer outra pessoa reivindicarem quaisquer direitos de fruição, ocupação ou posse sobre alguma ou várias parcelas do mencionado lote, as duas partes reagirão, de comum acordo, contra tal pretensão, sendo que, em qualquer caso, a BB se responsabiliza pelo pagamento de todas e quaisquer quantias a que eventualmente o(s) reivindicante(s) tenha(m) direito ou que lhe(s) sejam pagas como forma de composição ou prevenção de diferendos.”

Para melhor compreensão deste texto, importa salientar que o mesmo é precedido da referência, feita pelas partes no segundo considerando com que se inicia este aditamento, de que até à data ninguém reivindicara qualquer direito de ocupação sobre o lote que era objeto do contrato promessa, com exceção de um direito a uma “(…) colonia que terá sido explorada por familiares de um tal EE.”

   Aquela cláusula, constante da al. b) do aditamento, mereceu interpretação radicalmente oposta na sentença e no acórdão que a revogou, isto apesar de ambas as decisões terem invocado em seu apoio as regras dos arts. 236º e segs. do CC[2].

   Esta divergência é claramente patenteada pela comparação do que numa e noutra se expôs a propósito.

     Na sentença escreveu-se:

“(…) a aqui Ré assumiu, no essencial, duas obrigações perante a Autora, a saber:

i) actuação em conjunto com esta perante a reivindicação de qualquer terceiro;

ii) em qualquer caso, pagar as quantias que o reivindicante tivesse direito ou lhe fosse paga como forma de composição ou prevenção de diferendos.

Impõe-se, neste momento, proceder à interpretação destas cláusulas, o que terá de ser feito de acordo com a doutrina da impressão do destinatário, plasmada no disposto no artigo 236.º, n.º 1 do Cód. Civil, segundo a qual a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real destinatário, lhe atribuiria; considera-se o real destinatário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável. (…) Determinada a matriz orientadora da interpretação das referidas cláusulas e tendo em conta que estas foram inseridas num contrato preliminar a uma transferência de propriedade, numa situação em que as partes tinham consciência de que poderia ser reivindicados direitos sobre o objecto dessa transacção (…) e que o prédio se destinava à construção de um hotel (o que ficou expressamente consagrado no contrato), com inerente enorme investimento financeiro e mesmo de imagem perante os operadores turísticos, somos de parecer que: 

(i) a primeira cláusula, quer dizer que a Ré também terá de se envolver no processo de defesa da propriedade plena da Autora (algo que aquela garante ao comprometer-se a vender o imóvel livre de ónus e encargos), o que teria de ser feito juntamente com esta Autora e de comum acordo ou em uníssono com esta. Desta forma, a Autora obtinha a garantia por parte da Autora [incorreu-se aqui num manifesto lapso de escrita, pois só poderia querer dizer-se “Ré”] que não ficaria sozinha na «luta» contra os reivindicantes, situação que incute ao negócio uma maior segurança para quem compra e para quem tem de investir o seu dinheiro. Contudo, importará referir que, em caso algum, as partes definem o que é «reacção conjunta», pelo que não poderemos concluir que tal reacção deva passar necessariamente por um processo judicial (completamente contrário aos interesses da Autora que se propunha realizar um forte investimento), o que, diga-se também, não era o espírito das partes, pois acordou-se que a Ré também reembolsaria a Autora pelos valores despendidos com os reivindicantes no caso de «prevenção de diferendos», o que pressupõe uma resolução prévia e extrajudicial da causa. Esta reacção conjunta poderá assim ser preenchida por meras conversas conjuntas para discussão de pontos de vista ou com propostas conjuntas para composição extrajudical do litígio. Por fim, importa referir que em momento algum esta cláusula poderá significar que as partes tenham de se opor necessariamente aos reivindicantes, mesmo que assista razão a estes, porque nesse caso tal cláusula teria de ser considerada nula, porque contrária à lei ou à ordem pública (artigo 280º do Cód. Civil).

(ii) a segunda cláusula, quer dizer que a Ré, quer haja ou não acordo nessa reacção conjunta, daí a expressão «em qualquer caso», pagará as indemnizações devidas aos reivindicantes, quer estas indemnizações sejam calculadas previamente a esse pagamento por parte da Ré, daí a referência a «que eventualmente os reivindicantes tivessem direito», ou reembolsará a Autora do valor que esta pague àqueles reivindicantes como forma de composição ou prevenção de diferendos, daí a expressão «ou que lhes fossem pagas como forma de composição ou prevenção de diferendos», sendo certo ainda que neste último caso não é necessário qualquer litígio judicial, podendo a composição das partes se fazer em estádio prévio. Importa referir que a expressão «em qualquer caso» tem de se reportar à existência ou não de acordo das partes na reacção contra terceiros, pois não faz sentido que se reporte à situação da reivindicação ocorrer antes ou depois da venda, pois quer numa situação quer noutra, a Ré sempre teria de pagar a expurgação desses ónus ou encargos, nem faz sentido que se reporte à existência ou não de direitos dos reivindicantes, pois se estes não existirem ninguém pagará o que quer que seja. Para além disso, importa referir que a esta cláusula encerra em si um desvio ao regime regra da compra e venda, permitido pelo princípio da liberdade contratual plasmado no artigo 405º do Cód. Civil, pois autoriza que o comprador (no caso a Autora) pague o valor devido pela expurgação dos ónus e encargos e depois o exija do vendedor (no caso a Ré), ao contrário do que resulta do artigo 907º do Cód. Civil, onde a expurgação é imposta como uma obrigação do vendedor, não sendo permitido ao comprador substituir-se ao obrigado para realizar a expurgação à custa dele (…)

Esta última faculdade, para além de conferir ainda maior segurança no negócio, impedia que a Autora, a compradora, ficasse «refém» da solvabilidade da Ré ou da posição que esta pudesse tomar em relação aos direitos reivindicados, inviabilizando assim o seu investimento.”


 Já o acórdão recorrido, ao confirmar o despacho singular do Exmo. Desembargador Relator, aderiu a entendimento diverso quanto à interpretação a dar ao conteúdo do mesmo clausulado, nos seguintes termos:

“A expressão «reagirão de comum acordo» só pode significar reacção comum e não apenas reacção de cada um dos contraentes e a fortiori a recção de só um deles. Não satisfazem o contratado meros contactos e informações trocados entre as partes e/ou actuações unilaterais de qualquer delas. O referido segmento impõem a criação de uma «frente comum» (o primeiro grau fala de «luta») contra reivindicações de terceiros, em ordem a afastar perturbações na conclusão das obras de construção do Hotel GGG. Então das duas uma: ou essa reacção era bem sucedida ou não era; «em qualquer caso» a recorrente responsabilizava-se pelo pagamento de todas e quaisquer quantias a que eventualmente o(s) reivindicante(s) tivesse(m) direito ou que lhe(s) fossem pagas como forma de composição ou prevenção de diferendos. Não me custa acompanhar a interpretação feita pela recorrente quando afirma que «no contrato, a reação conjunta das partes exigida pela dita cláusula constitui um pressuposto do direito de crédito da Autora (na qualidade de adquirente) a exigir que a Ré suporte indemnizações que sejam devidas ou venham a ser pagas aos terceiros; para que a Ré tivesse a obrigação de pagar as ditas indemnizações e para que a Autora tenha o correspondente direito de crédito tinha de estar satisfeita a condição ou requisito contratual de uma reação conjunta das partes; a falta de uma reacção conjunta das partes contratuais consubstancia a falta de preenchimento do pressuposto de constituição ou exercício do direito de crédito da Autora sobre a Ré, sendo certo que norma alguma dispensa o preenchimento de tal pressuposto; a exigência de uma reação de comum acordo não pode ser interpretada como bastando-se com a mera tentativa de obtenção de um acordo, com quaisquer conversações ou iniciativas idênticas de uma das partes; a reacção de comum acordo supõe sempre um real acordo entre as partes e não autoriza que uma delas imponha unilateralmente à outra a solução que tenha por correta ou conveniente; não há nada na Cláusula que permita a uma das partes, na falta de acordo quanto à solução a atribuir ao caso concreto, tomar uma decisão unilateralmente contra a posição expressa da outra parte ou mesmo à sua revelia».


       Vejamos.

   No facto provado nº 4 foi acolhida a existência de um aditamento, acordado entre autora e ré, ao contrato promessa que ambas tinham celebrado, aditamento esse junto aos autos a fls. 34-35, mas do qual apenas foi extratado parte do texto que do documento consta.

    Porém, este extrato carece, para uma segura interpretação, de ser confrontado com o restante teor do referido aditamento, que importa conhecer na sua totalidade; tem, pois, o seguinte teor:

“Considerando que:

1 – A área do lote prometido vender pela BB à AA se encontra desde há mais de um ano totalmente desocupada de pessoas e bens;

2 – Até à presente data não foi reivindicado por quem quer que seja qualquer direito legítimo de ocupação dessa área seja a título de colonia, benfeitoria, arrendamento ou qualquer outro, com excepção de um pretenso direito de uma antiga colonia que terá sido explorada por familiares de um tal EE;

3 – O indivíduo atrás referido não apresentou porém qualquer título que comprove a posse da colonia, sendo certo que o terreno não é cultivado, ocupado nem colonizado desde há mais de 20 anos, ou seja, desde data anterior à sua aquisição pela BB.

Face ao exposto nos números antecedentes as partes acordam em que:

a) Para os efeitos previstos no contrato-promessa de 26/10/98, considera-se que o lote prometido vender está desocupado e livre de quaisquer ónus, encargos ou direitos de terceiros;

b) Se antes ou depois da celebração da escritura de compra e venda o referido EE ou qualquer outra pessoa reivindicarem quaisquer direitos de fruição, ocupação ou posse sobre alguma ou várias parcelas do mencionado lote, as duas partes reagirão, de comum acordo, contra tal pretensão, sendo que, em qualquer caso, a BB, aqui Ré, se responsabiliza pelo pagamento de todas e quaisquer quantias a que eventualmente o(s) reivindicante(s) tenha(m) direito ou que lhe(s) sejam pagas como forma de composição ou prevenção de diferendos.”


A propósito do regime a que se submete a interpretação negocial o acórdão recorrido, inspirando-se no entendimento de Rui Pinto Duarte[3], expôs o seguinte resumo, que transcrevemos e ao qual aderimos:

“i) As regras legais sobre interpretação dos contratos são normas jurídicas (normas sobre normas);

ii) o juiz é o principal (mas não exclusivo) destinatário de tais normas;

iii) dos artigos 236.º a 239.º do CC (deixando de parte a regra do artigo 239, que não trata de interpretação) pode-se retirar , no essencial, o seguinte:

- Em geral, se se conhecer a vontade real dos declarantes, a declaração vale de acordo com a mesma (artigo 236.º, n.º 2);

- No tocante a negócios formais, o sentido a atribuir à declaração tem de ter um mínimo de correspondência no texto (artigo 238.º, n.º 1), não se aplicando tal exigência se for conhecida a vontade real dos declarantes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuser a tal validade (artigo 238.º, n.º 2).

- Não se conhecendo a vontade real dos declarantes, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, na posição do real declaratário, atribua à declaração (artigo 236.º, n.º 1);

- Em caso de dúvida, se se tratar de negócio oneroso, prevalece o sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações e se se tratar de negócio gratuito o sentido que for menos gravoso para o disponente (artigo 237.º).

iv) outros tópicos dirigidos para os contratos:

- sendo o contrato um «acordo de vontades» (artigo 232.º), há que buscar a «vontade comum», não apenas as «vontades» de cada um dos intervenientes;

- deve-se procurar a chamada vontade real dos contraentes (o que alguns designam «interpretação subjectiva») e só se nada se apurar quanto à mesma é que se aplicam as restantes regras (o que alguns designam «interpretação objectiva»);

- não restringindo a lei os elementos relevantes para a chamada «interpretação subjectiva» é licíto , na realização da mesma, recorrer a elementos de todo o tipo, quer documentais (projectos de acordo, actas de reuniões, correspondência, etc), quer testemunhais (nomeadamente de depoimentos de quem participou nas negociações).

- nos contratos formais a procura da chamada vontade real dos contraentes está limitada pela regra de que o sentido a atribuir-lhe tem de ter um mínimo de correspondência no texto (artigo 238.º, n.º 1), só não se aplicando tal exigência se as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a tal validade (artigo 238.º, n.º 2);

- a regra sobre a prevalência do sentido que conduzir a um maior equilíbrio das prestações no caso de dúvidas sobre o sentido de um contrato oneroso é isso mesmo: uma regra sobre superação de dúvidas – e não uma regra que permita ao tribunal equilibrar contratos que tenham por desequilibrados.

v) Outros ainda resultantes do trabalho jurisprudencial

- na interpretação de um contrato deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo;

- em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, é dada prioridade , em tese geral , ao ponto de vista do declaratário, mas a lei não se basta apenas com o sentido por este apreendido e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia (artigo 236.º);

- no domínio da interpretação de um contrato há que recorrer, para a fixação do sentido das declarações, nomeadamente à letra do negócio, às circunstâncias que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e costumes por ela recebidos, os termos do negócio, os termos que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento ) e a finalidade prosseguida.”


    Usando estes princípios, como entender o aditamento ao contrato que nos vem ocupando?

        

    Uma vez que o conteúdo deste aditamento se não subdivide em declarações e contra declarações, apresentando-se antes como uma declaração conjunta de ambas as partes, interessa definir como, no contexto desse documento, qualquer delas, encarada como um declaratário normal, o compreenderia.

    Resultando dos considerandos iniciais, acabados de transcrever, que ambas as partes estavam na convicção de que não poderia ser-lhes oposto, por terceiros, nenhum direito de ocupação, é de entender que ambas previram (e consideraram) que a reação conjunta referida na al. b), viria a ser, mesmo, uma reação/oposição das duas contra uma eventual pretensão dessa natureza que viesse a ser apresentada.

E, por isso, a locução “em qualquer caso” usada logo a seguir na mesma cláusula serve como introdução para o que seria de observar se essa posição conjunta negatória, apesar de formulada, não resultasse, ou seja, se algo viesse a ser apurado como devido a qualquer terceiro por não ter fundamento a rejeição integral da pretensão em causa; ao contrário do que defende a recorrente, tal locução não rege, pois, para o caso de as partes não lograrem alcançar uma posição conjunta.

    E, aqui, três hipóteses foram admitidas pelas partes:

- haver quantias a que os terceiros tivessem direito;

- haver quantias pagas como composição de diferendos;

- haver quantias pagas como prevenção de diferendos.

     Estas três hipóteses corresponderiam, a primeira a quantias que judicialmente fossem reconhecidas como sendo devidas – ou ambas as partes viessem a considerar como efetivamente devidas -, a segunda a acordos celebrados para pôr termo a processos judiciais, a terceira a acordos celebrados para evitar a propositura de processos judiciais.

     Na primeira espécie a BB procederia ao seu pagamento; nas segunda e terceira hipóteses a BB reembolsaria a AA do que houvesse pago a esses títulos.

     Importa ainda dizer que, no seguimento do princípio de reação conjunta em que as partes assentavam, estes acordos com os terceiros teriam de resultar também de posições conjuntas da BB e da AA.

Na verdade, o texto do aditamento não permite entender que a BB tenha aceitado pagar quantias apuradas unilateralmente pela AA, sem que aquela conhecesse e tivesse como bons os cálculos e os critérios a elas conducentes e sem que tivesse podido opor-se relevantemente aos mesmos.

     Tal vinculação, às cegas, da recorrida, por ser suscetível de, em concreto, esvaziar, sem possibilidade do seu controle, a vantagem económica para si emergente do contrato, não pode ser acolhida como razoavelmente expetável por parte de um declaratário normal.

      Daí que o acórdão impugnado não mereça censura.


 IV – Pelo exposto, negando-se a revista, confirma-se o acórdão impugnado.

Custas a cargo da recorrente.


Lisboa, 7.11.2019


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

Catarina Serra

Bernardo Domingos

__________

[1] Cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste STJ de 9.02.1988, Proc. 075623, relator Cons. Meneres Pimentel, com sumário acessível em www.dgsi.pt; de 22.11.2001, Proc. 02A1442, relator Cons. Garcia Marques; de 5.01.2016, Proc. 146/13.5TCFUN-A.L1.S1, relator Cons. Nuno Cameira e de 16.05.2018, Proc. 2183/15.6T80AZ-A.P1.S1, relator Cons. Alexandre Reis, todos acessíveis em www.dgsi.pt
[2] Diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.
[3] “A Interpretação dos Contratos”, Almedina, fls. 14 e segs.