Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3410/20.3T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
FACTO ILÍCITO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
CRITÉRIOS
PODERES DE COGNIÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGAR A REVISTA
Sumário :
I - No âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, resultante da circulação de veículos automóveis, os critérios e valores para a reparação do dano constantes da Portaria n.º 377/2008, de 26-05, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25-06, para a reparação dos danos (vg. dos não patrimoniais) não vinculam os tribunais, pois, que têm exclusivamente em vista a elaboração de proposta pela empresa seguradora, visando a regularização extrajudicial de sinistros, e daí que, nesse domínio, os tribunais continuem adstritos à regras e princípios insertos no CC.

II - A quantificação da indemnização pelos danos não patrimoniais deverá ser feita através do recurso à equidade, considerando-se, nomeadamente, para o efeito ao grau de culpabilidade do responsável e do lesado, as respetivas situações económicas de cada um, a sua proporcionalidade em relação à gravidade do dano, tomando ainda em conta todas as regras da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida, e sem perder de vista a peculiaridade de que se reveste o caso concreto, por forma a que, a essa luz, sejam condignamente compensados.

III - No cálculo do valor indemnizatório desses danos, e em concreto, serão relevantes, além do mais, a natureza, a multiplicidade e a diversidade das lesões sofridas; as intervenções cirúrgicas, os tratamentos médicos e medicamentosos a que o lesado teve de se submeter; o período temporal de internamento, de doença e de tratamento para debelar as mesmas; a natureza e extensão das sequelas consolidadas; o quantum doloris e o dano estético, se o houver.

IV - Por princípio, em caso de julgamento feito segundo a equidade devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às situações em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as regras legais fixadas para esse julgamento, e mais concretamente para o cálculo da indemnização em causa ou quando os montantes finais encontrados colidam, de forma patente, com os critérios ou valores adotados/seguidos pelo STJ, numa perspetiva atualista.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório


1. A autora, AA, instaurou (27/05/2020) contra a ré, COMPANHIA DE SEGUROS AGEAS PORTUGAL, S.A., ambas com os demais sinais de identificação dos autos, a presente ação declarativa, com forma de processo comum, pedindo, no final, a condenação desta última a pagar-lhe a quantia total de € de € 34.142,99, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, e ainda a indemnização que por força dos factos alegados nos artigos 143.º a 151.º e 164.º e 165.º da petição inicial e, bem assim, e de todas as despesas que se vierem a revelar necessárias, vier a ser fixada em ampliação do pedido ou vier a ser liquidada posteriormente.

Quantia aquela correspondente às parcelas que assim discriminou:

- € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais;

- € 2.000,00, relativos à quantia que teve despender devido ao auxílio que lhe foi prestado por terceira pessoa;

- € 2.142,99, por perdas salariais.

Para o efeito, e em síntese, alegou:

Nas circunstâncias de tempo (22/06/2015), lugar e modo por si descritas no articulado da petição inicial, ocorreu um acidente de viação que envolveu o motociclo de matrícula ..-UZ-.., sua propriedade e por si conduzido, e o veículo automóvel veículo ..-..-RX, seguro na ré.

Acidente esse que ficou a dever-se exclusivamente ao comportamento culposo da condutor daquele veículo segurado na R. .

Em consequência desse acidente a A. sofreu danos natureza patrimonial e não patrimonial, que discrimina e que acima se mostram sintetizados, e pelos quais ainda não foi ressarcida e que a R. se vem recusando a fazer.

Acidente esse que é também de trabalho (acidente in itinire), tendo a sua entidade patronal então transferido a sua responsabilidade para a seguradora, MAPFRE – SEGUROS GERAIS, S.A., tendo a A. sido acompanhada pelos serviços clínicos desta.


2. Na sua contestação, a R. aceitou a total responsabilidade do condutor daqauele seu veículo segurado na produção do acidente, impugnando, todavia, aqueles danos que a A. alega ter sofrido, o que fez invocando o seu desconhecimento ou o exagero do montante indemnizatório por eles peticionado.

No final requereu ainda a intervenção daquela seguradora da entidade patronal da autora, a fim de vir aos autos deduzir pretensão indemnizatória relativamente àqueles montantes que tenha despendido por causa do referido acidente.


3. Intervenção essa que veio a ter lugar, com a apresentação por aquela seguradora-interveniente de articulado a formular a sua pretensão indemnizatória contra a ré relativamente às importâncias que despendeu por causa do dito acidente (tendo mais tarde ampliado o seu pedido indemnizatório).


4. Por sua vez, a A. veio também posteriormente, e por duas vezes a ampliar o seu pedido indemnizatório, liquidando/quantificando ainda (vg, requerimento de 16/09/2021), face às conclusões do relatório pericial do exame a que se submeteu, o dano patrimonial referente ao dano biológico decorrente da incapacidade permanente de que ficou afetada


5. Entretanto a R. e a seguradora-interveniente lavraram transação sobre o pedido formulado por esta última, que foi homologada por sentença.


6. Realizada a audiência de discussão e julgamento, seguiu-se a prolação de sentença com o seguinte dispositivo final:

« (…) julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência, decido:

a) Condenar a no pagamento da quantia de €11.626,29, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento;

b) Condenar a no pagamento da quantia de €8.570,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a presente data e até efetivo e integral pagamento;

c) Absolver, no mais, a do pedido.

Custas pela Autora e Ré, na proporção do decaímento e sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia a primeira. »


7. Inconformada com o segmento decisório que fixou o montante indemnizatório relativamente aos danos não patrimoniais por si sofridos, a A. apelou dessa parte da sentença.


8. Na apreciação desse recurso, o Tribunal da Relação de Porto (TRP), por acórdão de 12/09/2022, decidiu:

« (..) julgar a apelação procedente e, em consequência, revogando, parcialmente, a decisão recorrida, fixam, a compensação pelos danos não patrimoniais em 30.000,00 € (em vez dos 8.000,00€ fixados em 1ª instância). »


9. Foi agora a vez de a R., inconformada com tal acórdão, dele interpor recurso de revista, cujas respetivas alegações concluiu nos seguintes termos (respeitando-se a ortografia nelas adotada):

« 1) a modulação da reparação a título de demos não patrimoniais, prevista no artigo 496º do Código Civil, assenta na "gravidade do dano" sob a bitola da "equidade" na reparação, no respeito aos que o legislador transpôs para os n°s 1 e 4 desse normativo;

2) o sano exercício do poder-dever de bem administrar a justiça, na casuística do caso concreto e quando a decidir enquanto justa reparação por danos não patrimoniais, impõe-se a um qualquer julgador que opere sob critérios de normalidade e de razoabilidade e na ponderação duma decisão em "equidade";

3) no caso sub júdíce, após a decisão da "matéria-de-facto", o aí Mmo. decisor relevou os "factos provados" tidos por pertinentes para a valoração da reparação enquanto danos não patrimoniais e deu como razoável e justa a reparação à Recorrida, àquele segmento de danos morais, no valor de € 8.750,00 mas que o Tribunal "a quo", em 2a instancia e sob recurso da mesma Recorrida, elevou para € 30.000,00;

4) esse exercício jurisdicional, de subida reparação por danos não patrimoniais, é exagerado, porque manifestamente despropositado, além de que arredio dos parâmetros definidos peio legislador e desconforme com a medida jurisprudencial comum para casos similares;

5) Impondo-se, pois, a sua revogação por este "ad quem" Tribunal Superior, por patente violação da ratio contida naquele artigo 496º do Código Civil, sob o crivo do disposto nos artigos 152º, n° 1 e 607º, n° 3, in fine, estes do Código do Processo Civil;

6) por isso, debruçando-se sobre os relevantes "factos provados" acolhidos na decisão da "matéria de facto provada" emanada pela 1a instância, a justa e razoável reparação devida à Recorrida a título de danos não patrimoniais há-de assentar, enquanto reparação em equidade, num quantum substancialmente inferior ao aumentado pelo Tribunal "a quo", que se crê razoável em €10.000,00. »


10. Contra-alegou a A. pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado.


11. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação



A) De facto

Pelas instâncias foram dados como provados os seguintes factos (mantendo-se os termos da sua descrição, a ordem, a numeração, e a ortografia tal como constam da sentença e do acórdão recorrido):

1) No dia 22 de junho de 2019, cerca das 11,30 horas, na freguesia ..., concelho ..., mais concretamente no entroncamento da Rua ... com a Rua ..., ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo automóvel de matrícula ..-..-RX e de marca Seat, conduzido por BB, e o motociclo de matrícula ..-UZ-.., propriedade e conduzido pela Autora;

2) O motociclo conduzido pela Autora circulava pela Rua ..., no sentido de marcha ... – ..., pela metade direita da faixa de rodagem, atento o referido sentido de marcha;

3) A uma velocidade não superior a 50 Kms por hora e com o capacete colocado na cabeça;

4) Nas mesmas circunstâncias de tempo, o veículo ligeiro RX conduzido pelo BB circulava pela Rua ... que entronca na referida Rua ..., por onde circulava a Autora;

5) À saída da Rua ... e antes de entrar na Rua ..., existia à data do acidente, o sinal de STOP o qual se depara a todos os que, como o condutor do veículo automóvel de matrícula RX, saem da Rua ... e pretendem passar a circular pela Rua ...;

6) Ao chegar ao entroncamento com a Rua ..., por onde circulava o motociclo conduzido pela autora, o condutor do RX não parou à entrada do entroncamento, continuando a sua marcha;

7) Invadindo e obstruindo a metade direita da faixa de rodagem por onde circulava o motociclo conduzido pela Autora;

8) O condutor do veículo automóvel de matrícula RX não verificou se na referida Rua ... se processava trânsito;

9) Sendo certo que, quando o veículo automóvel de matrícula RX invadiu a Rua ..., o motociclo conduzido pelo Autora, e que se apresentava pela sua esquerda, já circulava pela metade direita da Rua ..., atento o seu sentido de trânsito;

10) No local do acidente e atento o sentido de marca do motociclo, a via configura um traçado reto com mais de 200 metros;

11) O condutor do veículo automóvel de matrícula RX podia ter avistado a mais de 100 metros, o motociclo conduzido pela Autora;

12) O veículo automóvel de matrícula RX embateu com a sua frente na parte lateral esquerda do motociclo;

13) Em consequência do embate, o motociclo e a Autora foram projetados para a via;

14) No momento da ocorrência do acidente e nos instantes que se seguiram, sofreu um enorme susto; 15) E, dada a sua incapacidade de lhe escapar e a violência do embate, receou pela própria vida;

16) A Autora nunca perdeu a consciência do mal que lhe estava a acontecer;

17) A Autora foi transportada de ambulância para o Centro Hospitalar ..., em plano duro

e com imobilização cervical;

18) Foi recebida no Serviço de Urgência ...;

19) O exame objetivo mostrou feridas no pé e tornozelo direitos, ao nível do maléolo lateral com cerca de 2cm e no bordo lateral do pé com cerca de 2cm que foram submetidas a lavagem abundante e suturadas;

20) O radiograma mostrou fraturas expostas GII do maléolo lateral, do 4º e 5º metatársicos e do processo posterior do talus, pelo que foi internada em ortopedia, onde foi decidido tratamento conservador e feita imobilização com tala gessada;

21) Em 25.06.2019, teve alta do Centro Hospitalar ... e foi transferida para o Centro Hospitalar de ... - Unidade de ...;

22) Em 25.06.2019 deu entrada no serviço de Emergência do Centro Hospitalar de ..., transferida do Hospital ... sem referenciação médica, com fratura exposta de metatarsianos com sutura, flictenas com tensão cutânea e hematoma local;

23) O radiograma mostrou fratura do 5º metatársico com desvio ligeiro e imobilização com tala gessada e antibioterapia;

24) Dado que mantinha edema exuberante e flictenas mediais e laterais, foi proposto internamento para repouso e controlo de edema e partes moles;

25) Em 26.06.2019 teve alta, contra parecer médico;

26) Regressou ao domicílio, onde permaneceu imobilizada;

27) Em 28.06.2019, foi admitida na Casa de Saúde ..., ficando internada no serviço de ortopedia;

28) Em 28.06.2019, realizou TAC do pé direito que mostrou fratura cominutiva da diáfise e base do 4º e 5º metatarsianos, originando múltiplos fragmentos ósseos separados entre si, que não atinge a superfície articular dos metatarsianos, não demonstrando traços de fraturas dos restantes ossos abrangidos; ausência de derrame articular tibiotársico e evidente densificação edematosa/sero-hemática dos planos subcutâneos do tornozelo e pé;

29) Em 03.07.2019 foi submetida a intervenção cirúrgica sob anestesia geral para enxerto de clivagem de pele total de 20cm quadrados;

30) Em 04.07.2019, a RM do joelho direito que realizou mostrou área de degeneração intrassubstância no corno e corpo posterior do menisco interno, sem critérios de rotura; menisco externo de normal morfologia; ligamentos cruzados com normal alinhamento e sem roturas; espessamento da porção distal do tendão quadricipital sem roturas; sem alterações valorizáveis do tendão rotuliano; ligamentos colaterais sem sinais de entorse recente; sem derrame articular; rótula bem posicionada, sem evidência de lesões dos retináculos femoropatelares; edema difuso do tecido celular abrangido, sobretudo no compartimento anterior sem coleções organizadas; sem alterações significativas da articulação tibioperonial proximal; não se observaram sinais de fraturas ou contusões medulares ósseas;

31) Em 10.07.2019 teve alta, com indicação para seguimento na consulta externa de ortopedia e enfermagem;

32) A Autora, em 16 e em 23 de julho de 2019, deslocou-se à consulta com o Dr. CC, tendo realizado penso nos locais cirúrgicos;

33) A Autora deambulava com muita dificuldade e com o auxilio de duas canadianas;

34) Em 31.07.2019, passou a deambular com bota Walker na perna direita, com indicação para fazer pouca pressão;

35) Em 14.08.2019 o radiograma mostrou fratura praticamente consolidada, pelo que teve indicação para iniciar e marcha e começar a reabilitação funcional;

36) A Autora realizou, na clínica L..., tratamentos de fisioterapia e reabilitação nos seguintes dias: 16, 19, 20, 21, 22, 23, 26, 27, 28 e 29 de agosto de 2019;

37) Recorreu à consulta na Casa de Saúde ..., em 30.08.2019, na qual lhe foi prescrita a continuação de tratamentos de fisioterapia e o uso de meia elástica até ao joelho;

38) A Autora realizou, na clínica L..., tratamentos de fisioterapia e reabilitação nos seguintes dias: 2, 3, 4, 5, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 25, 26, 27 e 30 de setembro de 2019;

39) Em 01.10.2019, em consulta na Casa de Saúde ... ainda manifestava muitas queixas, pelo que lhe foi prescrita a continuação de tratamentos de fisioterapia e uso de meia elástica até ao joelho;

40) A autora realizou, na clínica L..., tratamentos de fisioterapia e reabilitação nos seguintes dias: 2, 3, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 14, 15, 16, 17, 18, 21, 22, 23, 24, 25, 28 e 30 de outubro de 2019;

41) Na consulta de 5 de novembro, com o Dr. DD, face às queixas apresentadas pela Autora, foi prescrito a realização de uma RM do joelho direito, que veio a ser realizada no dia 11 de novembro;

42) Tal RM mostrou aspetos sobreponíveis à anterior, com ligeiro espessamento da porção distal do tendão quadricipital, tendo na sua camada mais superficial (correspondendo à continuação do músculo reto femoral) e aproximadamente a 2,2cm da sua inserção distal visualiza-se uma irregularidade com pequeno defeito de espessura parcial na sua vertente medial com atingimento parcial da sua largura, com diâmetro crânio-caudal máximo de 4mm, de provável natureza não recente, sem outras alterações valorizáveis das partes moles envolventes e sem evidência de lesões condrais; edema do tecido celular subcutâneo, superficialmente ao tendão rotuliano, sem coleções organizadas;

43) A Autora realizou, na clínica L..., tratamentos de fisioterapia e reabilitação nos seguintes dias: 7, 8, 12, 13, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 25, 26, 27, 28 e 29 de Novembro e 2, 3, 4, 5, 6 ,11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 26, 27 e 30 de dezembro de 2019;

44) Em 28.11.2019, o radiograma dos joelhos e rótulas mostrou ausência de alterações radiológicas significativas na articulação do joelho bilateralmente; incipiente báscula externa da rótula bilateralmente, um pouco mais exuberante à esquerda.

45) A ecografia do joelho direito realizada nessa mesma data revelou incipiente bursite rotuliana, sem rotura do tendão rotuliano, nem do tendão do quadricípite;

46) Em 30.12.2019 terminou a fisioterapia, mantendo a Incapacidade Temporária Absoluta até 31.12.2019, data em que retomou parcialmente a atividade profissional com Incapacidade Temporária Parcial de 20%, com limitações, até 29.01.2020, data em que apresentava queixas álgicas, ao nível do pé, sem alterações ao exame objetivo da tibiotársica ou do joelho, sem amiotrofia quadricipital, pelo que retomou a atividade profissional em 30.01.2020, após ter tido alta curada com desvalorização;

47) Como sentia dores e limitações, quer na vida pessoal quer na sua atividade profissional, a Autora recorreu à consulta com o seu médico de família que, face às queixas apresentadas pela autora, prescreveu a realização de radiografias;

48) Em 25.02.2020, realizou radiogramas: da bacia, que mostrou articulações coxofemorais congruentes e com interlinha conservada, incipiente osteofitose súpero-lateral, muito pouco expressiva, sem alterações valorizáveis das articulações sacroilíacas e da sínfise púbica; das articulações tibiotársicas e do pé direitos, que mostraram irregularidade da cortical externa na base do 5º metatársico, com aparente descontinuidade focal sugestiva de fratura e sugerindo-se correlação com TC; articulação tibiotalar congruente e com interlinha conservada;

49) Em 02.06.2020, foi a Autora observada pelo médico do trabalho na Medialcare, apresentando queixas álgicas no pé e no joelho, com mobilidades limitadas e edemas, que referia agravados para o fim do dia e consequente aumento da incapacidade de genuflexão, necessários para o exercício da atividade profissional, propondo-se eventual reavaliação pelos serviços clínicos da seguradora Mapfre;

50) Porque mantinha queixas álgicas, na consulta realizada no dia 2 de julho de 2020, o médico de família da Autora prescreveu-lhe tratamentos de fisioterapia;

51) Assim a Autora desde o dia 4 a 24 de agosto realizou sessões diárias, nos dias úteis, de fisioterapia, na Clínica ..., nos ...;

52) Após avaliação médica, foi prescrito à Autora que continuasse com os tratamentos de fisioterapia;

53) Assim, desde o dia 31 de agosto e até 18 de setembro de 2020, a Autora realizou sessões diárias, nos dias úteis, de fisioterapia;

54) Com os referidos tratamentos e consultas despendeu a Autora a quantia de 179,30; 55) A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 29.01.2020;

56) Como consequência direta e necessária do acidente, a Autora não se consegue ajoelhar, nem apoiar no chão o joelho direito e tem dificuldade em subir e descer escadas ou rampas;

57) Apresenta fenómenos dolorosos: no joelho e perna à direita, que só se manifestaram após o acidente em apreço; debaixo do pé, que surgem quando pousa o pé de manhã no chão, necessitando

às vezes de recorrer a analgesia com Naproxen 500mg e relaxante muscular Descontran;

58) A Autora apresenta sensação de cansaço, que surge ao fim de um dia de trabalho, ao nível da coxa direita e de perna à direita, e claudica à direita quando está mais cansada da perna;

59) Apresenta dificuldade em correr e saltar; em manter-se apoiada apenas na perna direita e de usar calçado com tacões;

60) Apresenta dificuldade em fazer corrida ou caminhadas mais longas, de que gostava e fazia habitualmente;

61) Ao nível do membro inferior direito acocora-se incompletamente, com dificuldade, mas em simetria com o membro contralateral; edema discreto do joelho, sem sinais de derrame; edema discreto do maléolo lateral;

62) Tem, no membro inferior direito, cicatrizes de feridas contusas: nacarada, de maior eixo horizontal, no quadrante lateral do joelho, ao nível do polo superior da rótula, com 2,5x0,5cm de maiores dimensões; complexo cicatricial irregular, no terço médio do bordo lateral do pé, nacarado e com áreas hipercrómicas, com área central deprimida, com 4x1,2cm de maiores dimensões; cicatrizes de tipo operatório: nacaradas, no terço médio da região ântero-medial da perna, com 3,2x1,1cm de maiores dimensões; no terço médio do bordo medial do pé, complexo cicatricial, irregular, nacarado e com áreas hipercrómicas, com 4x1,1cm, de maiores dimensões;

63) Ao nível do membro inferior esquerdo apresenta complexo cicatricial nacarado na parte medial do terço superior da perna com 1,5x1cm de maiores dimensões;

64) Ao nível dos membros inferiores apresenta a Autora, como sequela, joelho valgo;

65) Em consequência do sinistro e das lesões sofridas, a Autora teve um défice funcional temporário total por um período de 19 dias;

66) Em consequência do sinistro e das lesões sofridas, a Autora teve um défice funcional temporário parcial por um período 203 dias;

67) A Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total é fixável num período total de 193 dias;

68) A Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial é fixável num período total de 29 dias; 69) Em consequência do sinistro, das lesões e dos tratamentos a que foi sujeita a Autora sofreu dores, sendo o quantum doloris fixável no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente;

70) As lesões sofridas e as sequelas delas resultantes determinaram para a Autora um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, relativamente à capacidade integral do indivíduo (100 pontos), com repercussão nas atividades da vida diária mas não a afetando em termos de autonomia e independência;

71) As sequelas são compatíveis com o exercício da atividade profissional mas implicam esforços suplementares, nomeadamente nas tarefas que necessitem de subida/descida de escadas de mão ou escadotes, necessários para o exercício da atividade profissional de empregada de limpeza;

72) As lesões sofridas e as sequelas delas resultantes determinaram para a Autora um dano estético permanente de 3 pontos, numa escala de sete graus de gravidade crescente;

73) As lesões sofridas e as sequelas delas resultantes determinaram para a Autora uma repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 1, numa escala de sete graus de gravidade crescente;

74) Antes do acidente, a autora era uma pessoa sã, escorreita, saudável e nunca havia sofrido qualquer acidente ou enfermidade;

75) Era uma pessoa robusta e dinâmica, com grande alegria de viver e não tinha qualquer limitação física;

76) As lesões sofridas e suas sequelas causaram e causam à Autora tristeza e desgosto;

77) À data do sinistro, a Autora fazia toda a atividade doméstica de sua casa;

78) No que despendia tempo, não concretamente apurado;

79) Durante o período em que esteve imobilizada ou em tratamentos, a Autora foi auxiliada por familiares;

80) No momento do acidente a autora ia em deslocação, no âmbito do seu trabalho, por conta da sociedade “C..., S.A.”;

81) Onde tinha a categoria de empregada de limpeza, auferindo o vencimento mensal de €600,00, acrescido de um prémio de €90,00, pago mensalmente, e de subsídio de alimentação no montante de €40,70 mensais, o que perfazia a retribuição anual de €9.927,70;

82) Sendo que a sua entidade patronal havia transferido para a Interveniente Principal a responsabilidade por danos causados por acidente de trabalho;

83) Conforme contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...13;

84) Correu termos pelo Tribunal da Comarca ..., Juízo do Trabalho ..., Juiz ..., Processo n.º 1116/20.... a ação especial emergente de acidente de trabalho para reparação dos danos infortunístico laborais emergentes do acidente dos autos;

85) No dia 23.03.2021, foi proferida, nesse mesmo processo sentença que, na sequência da Junta Médica ali também realizada, considerou a sinistrada, aqui A., curada com uma desvalorização de 2% e condenou a Seguradora, ora Interveniente, a pagar-lhe o capital de remição da pensão anual obrigatoriamente remível de Euro 138,99, devida desde 30/01/2020, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% contados desde a referida data até efetivo e integral pagamento, e ainda no pagamento da quantia de Euro 30,00 a título de indemnização pelas deslocações obrigatórias a tribunal, e respetivos juros de mora;

86) Transitada em julgado tal decisão, foi elaborado o respetivo cálculo do capital de remição, demais despesas e respetivos juros, e por força da decisão proferida, em 16.04.2021 a Seguradora Interveniente procedeu ao pagamento à Autora da quantia global de Euro 2.138,56, e que compreendeu o capital de remição, juros e despesas de transporte;

87) Segundo tal cálculo, o capital de remição ascendeu ao montante de €2.011,19;

88) Desde a data do acidente e até 31.12.2019 a Companhia de Seguros “MAPFRE”, no âmbito do processo de acidente de trabalho, pagou, à Autora, ao abrigo do contrato de seguro de acidentes de trabalho, a quantia de €3.377,01;

89) A Autora nasceu em .../.../1974;

90) O proprietário do veículo de matrícula RX havia transferido para a Ré a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pela sua circulação, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...70.


***


B) De Direito

1. Do objeto do recurso e do seu conhecimento.

Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se afere, fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, 608º, nº. 2, ex vi 679º do CPC).

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do sobredito recurso da R. verifica-se que única questão aqui se nos impõe aqui apreciar e decidir tem a ver com a fixação do montante indemnizatório a atribuir à autora pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência do sobredito acidente de viação em que se viu envolvida.

Apreciando

Importa, antes de mais, começar por lembrar que nos encontramos no domínio da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, decorrente de um acidente de viação, do qual foi exclusivamente responsável a condutora do veículo automóvel segurado na R. (que esta, aliás, assumiu desde o início), e no qual se viu envolvido a A. (quando conduzia o seu veículo automóvel).

Responsabilidade essa que, como se sabe, se encontra disciplinada no artº. 483º e ss., do Código Civil (diploma a esse ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente o normativo sem a indicação da sua fonte).

Dispõe-se nesse normativo legal que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Extrai-se, assim, desde logo, desse preceito legal que são pressupostos legais dessa responsabilidade a existência de um facto voluntário do agente, que o mesmo seja ilícito, que haja um nexo de imputação desse facto ao agente (culpa), que desse facto resulte um dano e, por fim, que se verifique um o nexo de causalidade entre esse o facto e o dano. (cfr. por todos, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª. ed., revista e actualizada, pág. 444 e ss.”).

Pressupostos esses cujos ónus de alegação e prova impende ao lesado (artº. 342º, nº. 1), a não ser que beneficie de uma presunção legal (artº. 350º, nº. 1), o que a acontecer transfere para o lesante o ónus de ilidir essa presunção (artº. 350º, nº. 2). No que concerne à culpa, ou seja, no que diz respeito ao pressuposto do nexo de imputação do facto ao agente, esse ónus de prova imposto ao lesado é ainda especificamente reforçado pelo artº. 487º.

Como ressalta do que se deixou expresso, o que se discute nestes autos não é a verificação de tais pressupostos (cuja existência está assente) mas tão a quantificação do valor da indemnização a atribuir à autora pelos danos sofridos pela A. em consequência do referido acidente (sendo que aquela que lhe foi atribuída, na sentença da 1ª. instância, relativamente aos danos patrimoniais – quer a título de danos emergentes, quer a título de danos futuros, que no caso se consubstanciaram no chamado “dano biológico” na vertente patrimonial decorrente da incapacidade funcional de que ficou afetada –, já se encontra definitivamente fixada, por as partes com ela se terem conformado).

Como é sabido, para além dos danos patrimoniais, são também suscetíveis de indemnização os danos que se revistam de natureza não patrimonial, exigindo-se tão só quanto a eles que tenham gravidade suficiente de modo a merecer a tutela de direito (artº. 496º, nº. 1), sendo essa gravidade medida por um padrão objetivo e não à luz de fatores subjetivos e que caberá, desse modo, ao tribunal, em cada caso concreto, dizer se o dano (não patrimonial) é ou não merecedor de tutela jurídica.

Como vimos, e enfatizando, a ré não questiona (neste recurso, e nem no recurso de apelação tal foi feito) a existência desses danos, mas tão só, o montante pelo qual devem ser indemnizados/compensados (o que pressupõe, desde logo, o reconhecimento de que os mesmos se revestem de gravidade suficiente de modo a merecer a tutela de direito, sendo que alguns deles estão associados ao dano biológico já objeto de indemnização concedida, e como tal não será de considerar, sob pena duplicação de indemnização referente aos mesmos danos, a IPP de que ficou afetada a A.).

Mostrando-se impossível a reparação/restauração (natural) de tais danos (não patrimoniais), o seu ressarcimento só poderá ocorrer por via da indemnização/compensação em dinheiro (cfr. artº. 566º, nº. 1).

Na verdade, e como afirma o prof. Mota Pinto (in “Teoria Geral do Direito Civil, 3ª. Ed., pág. 15) «os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis: não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano e compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização. Não se trata, portanto, de atribuir ao lesado um “preço de dor” ou um “preço de sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal.»

Não fornecendo a lei critérios normativos concretos que fixem o seu montante indemnizatório e dada a consabida dificuldade em o fazer, o legislador fez, por isso, assentar a sua quantificação através do recurso à equidade (cfr. artºs. 496º, nº. 4, e 494º, 566º, nº. 3, e 4º), constituindo, porém, entendimento prevalecente, que se deverá atender para o efeito, nomeadamente, ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, devendo ser proporcional à gravidade do dano e tomando em conta na sua fixação todas as regras da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida, e sem perder de vista a peculiaridade de que se reveste o caso concreto (vide, por todos, os profs. Pires Lima e Antunes Varela, in “Ob. cit., págs. 473/474”, e Acs. do STJ de 17/12/2019, proc. 2224/17.2T8BRG.G1.S1, de 17/12/2019, proc. 480/1.TBMMV.C1.S2, de 02/12/2013, proc. 1110/07.9TVLSB.L1.S1, e de 02/06/2016, proc. 6244/13.8TBVNG.P1.S1, disponíveis in dgsi.pt).

Como escreve Maria Veloso (in “Danos não patrimoniais”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil, Vol. III, Direito Das Obrigações, pág. 542”), nesse cálculo a natureza e a intensidade das lesões devem servir como “factor-base da ponderação”.

No mesmo sentido apontou, embora com mais detalhe, o Ac. do STJ de 13/7/2017, proc. nº. 3214/11.4TBVIS.C1.S1, disponível em dgsi.pt) ao considerar que no cálculo da indemnização a atribuir por esse tipo de danos são relevantes, além do mais, a natureza, multiplicidade e diversidade das lesões sofridas; as intervenções cirúrgicas e tratamentos médicos e medicamentosos a que o lesado teve de se submeter; os dias de internamento e o período de doença; a natureza e extensão das sequelas consolidadas, o quantum doloris, o dano estético, se o houver.

Danos esses que, como se extrai do exposto, devem ser condignamente compensados, como, aliás, vem sendo a afirmado neste mais alto tribunal, e cujo entendimento vem, sobretudo nos últimos tempos, grassando, numa espiral crescente, nos nossos tribunais.

Diga-se ainda, a esse respeito - e como constitui jurisprudência consolidada nos nossos tribunais superiores, e particularmente neste Supremo Tribunal -, que no que concerne à reparação do dano na responsabilidade civil extracontratual resultante da circulação de veículos automóveis, como sucede in casu, os critérios e valores constantes da Portaria nº. 377/2008, de 26/05, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria nº. 679/2009, de 25/06, não vinculam os tribunais, pois, têm exclusivamente em vista a elaboração de proposta pela empresa seguradora, visando a regularização extrajudicial de sinistros, e daí que, nesse domínio, os tribunais continuem adstritos à regras e princípios insertos no Código Civil. (Cfr., a propósito, e por todos, Acs. do STJ de 21/06/2022, proc. nº. 1663/14.4T8GMR.G1. –– e de 19/09/2019, proc. nº. 2707/17.6T8BRG.G1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt).

Refira-se, por último, que, e conforme entendimento prevalecente neste Supremo Tribunal, em caso de julgamento feito segundo a equidade (como sucedeu na caso presente no julgamento feito pelo ora tribunal a quo), devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às situações em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as regras fixadas legais para esse julgamento, e mais concretamente para o cálculo da indemnização em causa ou quando os montantes finais encontrados colidam, de forma patente, com os critérios ou valores adotados/seguidos por esse mais alto tribunal, numa perspetiva mais atualista.

Aqui chegados, e tendo presente tudo aquilo que atrás se deixou expendido, é agora altura de responder, de forma decisiva, à questão acima colocada, no sentido de valorar/quantificar a indemnização a atribuir à A. pelos danos não patrimoniais que sofreu em consequência do sobredito acidente.

Relembremos que por tais danos a A. peticionou uma indemnização no montante de € 30.000,00, a 1ª. instância fixou-a no montante de € 8.750.00, a 2ª. instância, através do acórdão recorrido, fixou-a naquele valor de € 30.000,00 (o que merece o beneplácito da A.), e a R., neste seu recurso, defende que esse valor indemnizatório não deve ir além dos € 10.000,00.

Com vista a proporcionar tal resposta, importa, importa reter e ponderar aquilo que consta/ressalta da descrição da materialidade factual dada como provada, a esse respeito, e da qual se extrai, com relevo, o seguinte:

- Por virtude do embate causado com o veículo automóvel segurado na Ré, a Autora e o seu motociclo foram projetados para a via, tendo nesse momento, e nos instantes que se seguiram, a Autora sofrido um enorme susto e, dada a sua incapacidade de lhe escapar e a violência do embate, receou pela própria vida, nunca tendo perdido a consciência do mal que lhe estava a acontecer;

- A Autora foi transportada de ambulância para o Centro Hospitalar ..., em plano duro e com imobilização cervical, tendo sido recebida no Serviço de Urgência dessa Unidade Hospitalar, apresentando feridas no pé e tornozelo direitos, ao nível do maléolo lateral com cerca de 2cm e no bordo lateral do pé com cerca de 2cm que foram submetidas a lavagem abundante e suturadas;

- O radiograma mostrou fraturas expostas GII do maléolo lateral, do 4º e 5º metatársicos e do processo posterior do talus, pelo que foi internada em ortopedia, onde foi decidido tratamento conservador e feita imobilização com tala gessada;

- Em 25.06.2019, teve alta do Centro Hospitalar ... e foi transferida para o Centro Hospitalar de ... - Unidade de ..., tendo dado entrada no serviço de Emergência com fratura exposta de metatarsianos com sutura, flictenas com tensão cutânea e hematoma local;

- O radiograma mostrou fratura do 5º metatársico com desvio ligeiro e imobilização com tala gessada e antibioterapia;

- Dado que mantinha edema exuberante e flictenas mediais e laterais, foi proposto internamento para repouso e controlo de edema e partes moles;

- Em 26.06.2019 teve alta, contra parecer médico, e regressou ao domicílio, onde permaneceu imobilizada;

 - Em 28.06.2019, foi admitida na Casa de Saúde ..., ficando internada no serviço de ortopedia;

- Em 28.06.2019, realizou TAC do pé direito que mostrou fratura cominutiva da diáfise e base do 4º e 5º metatarsianos, originando múltiplos fragmentos ósseos separados entre si, que não atinge a superfície articular dos metatarsianos, não demonstrando traços de fraturas dos restantes ossos abrangidos; ausência de derrame articular tibiotársico e evidente densificação edematosa/sero-hemática dos planos subcutâneos do tornozelo e pé;

- Em 03.07.2019 foi submetida a intervenção cirúrgica sob anestesia geral para enxerto de clivagem de pele total de 20cm quadrados;

- Em 04.07.2019, a RM do joelho direito que realizou mostrou área de degeneração intrassubstância no corno e corpo posterior do menisco interno, sem critérios de rotura; menisco externo de normal morfologia; ligamentos cruzados com normal alinhamento e sem roturas; espessamento da porção distal do tendão quadricipital sem roturas; sem alterações valorizáveis do tendão rotuliano; ligamentos colaterais sem sinais de entorse recente; sem derrame articular; rótula bem posicionada, sem evidência de lesões dos retináculos femoropatelares; edema difuso do tecido celular abrangido, sobretudo no compartimento anterior sem coleções organizadas; sem alterações significativas da articulação tibioperonial proximal; não se observaram sinais de fraturas ou contusões medulares ósseas;

- Em 10.07.2019 teve alta, com indicação para seguimento na consulta externa de ortopedia e enfermagem;

- A Autora, em 16 e em 23 de julho de 2019, deslocou-se à consulta com o Dr. CC, tendo realizado penso nos locais cirúrgicos;

- A Autora deambulava com muita dificuldade e com o auxílio de duas canadianas;

- Em 31.07.2019, passou a deambular com bota Walker na perna direita, com indicação para fazer pouca pressão;

- Em 14.08.2019 o radiograma mostrou fratura praticamente consolidada, pelo que teve indicação para iniciar e marcha e começar a reabilitação funcional;

- A Autora realizou, na clínica L..., tratamentos de fisioterapia e reabilitação nos seguintes dias: 16, 19, 20, 21, 22, 23, 26, 27, 28 e 29 de agosto de 2019;

- Recorreu à consulta na Casa de Saúde ..., em 30.08.2019, na qual lhe foi prescrita a continuação de tratamentos de fisioterapia e o uso de meia elástica até ao joelho;

- A Autora realizou, na clínica L..., tratamentos de fisioterapia e reabilitação nos seguintes dias: 2, 3, 4, 5, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 25, 26, 27 e 30 de setembro de 2019;

- Em 01.10.2019, em consulta na Casa de Saúde ... ainda manifestava muitas queixas, pelo que lhe foi prescrita a continuação de tratamentos de fisioterapia e uso de meia elástica até ao joelho;

- A autora realizou, na clínica L..., tratamentos de fisioterapia e reabilitação nos seguintes dias: 2, 3, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 14, 15, 16, 17, 18, 21, 22, 23, 24, 25, 28 e 30 de outubro de 2019;

- Na consulta de 5 de novembro, com o Dr. DD, face às queixas apresentadas pela Autora, foi prescrito a realização de uma RM do joelho direito, que veio a ser realizada no dia 11 de novembro;

- Tal RM mostrou aspetos sobreponíveis à anterior, com ligeiro espessamento da porção distal do tendão quadricipital, tendo na sua camada mais superficial (correspondendo à continuação do músculo reto femoral) e aproximadamente a 2,2cm da sua inserção distal visualiza-se uma irregularidade com pequeno defeito de espessura parcial na sua vertente medial com atingimento parcial da sua largura, com diâmetro crânio-caudal máximo de 4mm, de provável natureza não recente, sem outras alterações valorizáveis das partes moles envolventes e sem evidência de lesões condrais; edema do tecido celular subcutâneo, superficialmente ao tendão rotuliano, sem coleções organizadas;

- A Autora realizou, na clínica L..., tratamentos de fisioterapia e reabilitação nos seguintes dias: 7, 8, 12, 13, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 25, 26, 27, 28 e 29 de Novembro e 2, 3, 4, 5, 6 ,11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 26, 27 e 30 de dezembro de 2019;

- Em 28.11.2019, o radiograma dos joelhos e rótulas mostrou ausência de alterações radiológicas significativas na articulação do joelho bilateralmente; incipiente báscula externa da rótula bilateralmente, um pouco mais exuberante à esquerda.

- A ecografia do joelho direito realizada nessa mesma data revelou incipiente bursite rotuliana, sem rotura do tendão rotuliano, nem do tendão do quadricípite;

- Em 30.12.2019 terminou a fisioterapia, mantendo a Incapacidade Temporária Absoluta até 31.12.2019, data em que retomou parcialmente a atividade profissional com Incapacidade Temporária Parcial de 20%, com limitações, até 29.01.2020, data em que apresentava queixas álgicas, ao nível do pé, sem alterações ao exame objetivo da tibiotársica ou do joelho, sem amiotrofia quadricipital, pelo que retomou a atividade profissional em 30.01.2020, após ter tido alta curada com desvalorização;

- Como sentia dores e limitações, quer na vida pessoal quer na sua atividade profissional, a Autora recorreu à consulta com o seu médico de família que, face às queixas apresentadas pela autora, prescreveu a realização de radiografias;

- Em 25.02.2020, realizou radiogramas: da bacia, que mostrou articulações coxofemorais congruentes e com interlinha conservada, incipiente osteofitose súpero-lateral, muito pouco expressiva, sem alterações valorizáveis das articulações sacroilíacas e da sínfise púbica; das articulações tibiotársicas e do pé direitos, que mostraram irregularidade da cortical externa na base do 5º metatársico, com aparente descontinuidade focal sugestiva de fratura e sugerindo-se correlação com TC; articulação tibiotalar congruente e com interlinha conservada;

- Em 02.06.2020, foi a Autora observada pelo médico do trabalho na Medialcare, apresentando queixas álgicas no pé e no joelho, com mobilidades limitadas e edemas, que referia agravados para o fim do dia e consequente aumento da incapacidade de genuflexão;

- Porque mantinha queixas álgicas, na consulta realizada no dia 2 de julho de 2020, o médico de família da Autora prescreveu-lhe tratamentos de fisioterapia;

- Desde o dia 4 a 24 de agosto realizou sessões diárias, nos dias úteis, de fisioterapia, na Clínica ..., nos ...;

- Após avaliação médica, foi prescrito à Autora que continuasse com os tratamentos de fisioterapia;

- Desde o dia 31 de agosto e até 18 de setembro de 2020, a Autora realizou sessões diárias, nos dias úteis, de fisioterapia;

- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 29.01.2020;

- Como consequência direta e necessária do acidente, a Autora não se consegue ajoelhar, nem apoiar no chão o joelho direito e tem dificuldade em subir e descer escadas ou rampas;

- Apresenta fenómenos dolorosos: no joelho e perna à direita, que só se manifestaram após o acidente em apreço; debaixo do pé, que surgem quando pousa o pé de manhã no chão, necessitando às vezes de recorrer a analgesia com Naproxen 500mg e relaxante muscular Descontran;

- A Autora apresenta sensação de cansaço, que surge ao fim de um dia de trabalho, ao nível da coxa direita e de perna à direita, e claudica à direita quando está mais cansada da perna;

- Apresenta dificuldade em correr e saltar; em manter-se apoiada apenas na perna direita e de usar calçado com tacões;

- Apresenta dificuldade em fazer corrida ou caminhadas mais longas, de que gostava e fazia habitualmente;

- Ao nível do membro inferior direito acocora-se incompletamente, com dificuldade, mas em simetria com o membro contralateral; edema discreto do joelho, sem sinais de derrame; edema discreto do maléolo lateral;

- Tem, no membro inferior direito, cicatrizes de feridas contusas: nacarada, de maior eixo horizontal, no quadrante lateral do joelho, ao nível do polo superior da rótula, com 2,5x0,5cm de maiores dimensões; complexo cicatricial irregular, no terço médio do bordo lateral do pé, nacarado e com áreas hipercrómicas, com área central deprimida, com 4x1,2cm de maiores dimensões; cicatrizes de tipo operatório: nacaradas, no terço médio da região ântero-medial da perna, com 3,2x1,1cm de maiores dimensões; no terço médio do bordo medial do pé, complexo cicatricial, irregular, nacarado e com áreas hipercrómicas, com 4x1,1cm, de maiores dimensões;

- Ao nível do membro inferior esquerdo apresenta complexo cicatricial nacarado na parte medial do terço superior da perna com 1,5x1cm de maiores dimensões;

- Ao nível dos membros inferiores apresenta a Autora, como sequela, joelho valgo;

- Em consequência do sinistro e das lesões sofridas, a Autora teve um défice funcional temporário total por um período de 19 dias;

- Em consequência do sinistro e das lesões sofridas, a Autora teve um défice funcional temporário parcial por um período 203 dias;

- A Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total é fixável num período total de 193 dias;

- A Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial é fixável num período total de 29 dias;

- Em consequência do sinistro, das lesões e dos tratamentos a que foi sujeita a Autora sofreu dores, sendo o quantum doloris fixável no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente;

- As lesões sofridas e as sequelas delas resultantes determinaram para a Autora um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, relativamente à capacidade integral do indivíduo (100 pontos), com repercussão nas atividades da vida diária mas não a afetando em termos de autonomia e independência;

- As sequelas são compatíveis com o exercício da atividade profissional mas implicam esforços suplementares, nomeadamente nas tarefas que necessitem de subida/descida de escadas de mão ou escadotes, necessários para o exercício da atividade profissional de empregada de limpeza;

- As lesões sofridas e as sequelas delas resultantes determinaram para a Autora um dano estético permanente de 3 pontos, numa escala de sete graus de gravidade crescente;

- As lesões sofridas e as sequelas delas resultantes determinaram para a Autora uma repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 1, numa escala de sete graus de gravidade crescente;

- Antes do acidente, a autora era uma pessoa sã, escorreita, saudável e nunca havia sofrido qualquer acidente ou enfermidade. Era uma pessoa robusta e dinâmica, com grande alegria de viver e não tinha qualquer limitação física;

- As lesões sofridas e suas sequelas causaram e causam à Autora tristeza e desgosto;

- Durante o período em que esteve imobilizada ou em tratamentos, a Autora foi auxiliada por familiares;

- A Autora nasceu em .../.../1974.

- A autora em nada contribuiu para o acidente, o qual se deveu exclusivamente à conduta culposa do condutor do veículo segurado na ré.

Assim, numa ponderação global de tais circunstâncias factuais - e dando especial enfase à fratura exposta sofrida pela A. do maléolo lateral, do 4º e 5º metatársicos; à intervenção cirúrgica, como anestesia geral, a que teve de se submeter para debelar essa lesão, e bem como aos tratamentos, vg. ao nível da fisioterapia de reabilitação, a que teve de, com baixa médica, se sujeitar para esse efeito, e que se prolongaram por um período (em permanente convalescença) superior a 6 (seis) meses; ao grau de intensidade da dor que sofreu “quantum doloris” (5 numa escala de 7); às sequelas com que ficou, designadamente no que reporta ao dano estético permanente, com três pontos numa escala de 7 (não sendo aqui de considerar, pelas razões que supra se deixaram expressas, aquelas que resultaram numa défice de incapacidade funcional perante, pois que as mesmas já foram consideradas/atendidas no cálculo da indemnização pelo dano biológico na seu vertente patrimonial); às dificuldades que passou a ter em fazer corrida ou caminhadas mais longas (como gostava e fazia habitualmente), à experiência traumática e perturbadora que sofreu; à idade que então tinha (45 anos) e, por fim, que não teve qualquer responsabilidade na produção do acidente -, em conjugação com as considerações de cariz teórico-técnico que supra se deixaram expendidas, e num juízo de equidade, afigura-se-nos mostrar-se ajustado o montante (de € 30.000,00) encontrado pelo ora tribunal a quo, no acórdão de que se recorre, para indemnizar tais danos, e daí que não nos mereça censura.

E nesses termos, nega-se provimento ao recurso (de revista), confirmando-se o acórdão recorrido.


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III- Decisão



Assim, em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela R./ recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).


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Sumário

I- No âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, resultante da circulação de veículos automóveis, os critérios e valores para a reparação do dano constantes da Portaria nº. 377/2008, de 26/05, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria nº. 679/2009, de 25/06, para a reparação dos danos (vg. dos não patrimoniais) não vinculam os tribunais, pois, que têm exclusivamente em vista a elaboração de proposta pela empresa seguradora, visando a regularização extrajudicial de sinistros, e daí que, nesse domínio, os tribunais continuem adstritos à regras e princípios insertos no Código Civil.

II- A quantificação da indemnização pelos danos não patrimoniais deverá ser feita através do recurso à equidade, considerando-se, nomeadamente, para o efeito ao grau de culpabilidade do responsável e do lesado, as respetivas situações económicas de cada um, a sua proporcionalidade em relação à gravidade do dano, tomando ainda em conta todas as regras da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida, e sem perder de vista a peculiaridade de que se reveste o caso concreto, por forma a que, a essa luz, sejam condignamente compensados.

III- No cálculo do valor indemnizatório desses danos, e em concreto, serão relevantes, além do mais, a natureza, a multiplicidade e a diversidade das lesões sofridas; as intervenções cirúrgicas, os tratamentos médicos e medicamentosos a que o lesado teve de se submeter; o período temporal de internamento, de doença e de tratamento para debelar as mesmas; a natureza e extensão das sequelas consolidadas; o quantum doloris e o dano estético, se o houver.

IV- Por princípio, em caso de julgamento feito segundo a equidade devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às situações em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as regras legais fixadas para esse julgamento, e mais concretamente para o cálculo da indemnização em causa ou quando os montantes finais encontrados colidam, de forma patente, com os critérios ou valores adotados/seguidos pelo STJ, numa perspetiva atualista.


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Lisboa, 2023/03/28


Relator: cons. Isaías Pádua

Adjuntos:

Cons. Manuel Aguiar Pereira

Cons. Jorge Leal