Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
342/15.0T8VPA.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
PODERES DA RELAÇÃO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
INCAPACIDADE ACIDENTAL
Data do Acordão: 12/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGOCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL FALTA E VÍCIOS DE VONTADE / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / PROVA DOCUMENTAL / DOCUMENTOS AUTÊNTICOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, p. 509;
- Carvalho Fernandes, Teoria geral do Direito Civil, I, 3.ª Edição, p. 363;
- Evaristo Mendes, Fernando Sá, Comentário ao Código Civil. Parte Geral, p. 580;
- Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Volume I, p. 113;
- Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, p. 552;
- Lebre de Freitas, A Falsidade do Direito Probatório, p. 40 e 56;
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, p. 126;
- Menezes Cordeiro, Tratado de direito Civil Português, I, Tomo I, p. 507e 508
- José Alberto Vieira, Negócio Jurídico, p. 58;
- P. Mota Pinto, A Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, p. 239, 302, 306, 310 e 311;
- Pinto Monteiro, C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição, p. 490, 491 e 499;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, p. 157, 232 e 239.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC):- ARTIGOS 257.º, N.º 1 E 371.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º 5, 662.º, N.º 1, 663.º, N.º 2, 674.º, N.º 3, E 682.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 04-10-2001, IN CJSTJ IX, TOMO III, P. 61;
- DE 09-12-2004, IN CJSTJ XII, TOMO III, P. 131.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 19-11-2009, IN REVISTA DOS TRIBUNAIS, ANO 88, P. 94, WWW.DGSI.PT.



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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 11-07-2000, IN CJ XXV, TOMO IV, P. 6.

Sumário :
I - A força probatória material dos documentos autênticos restringe-se, nos termos do art. 371.º, n.º 1, do CC, aos factos, praticados ou percepcionados pela autoridade ou oficial público, que emanam dos documentos, já não abarcando, porém, a veracidade e eficácia jurídica das declarações que deles constam.

II - O juízo probatório resultante da apreciação crítica da prova feita pela Relação à luz do critério da livre convicção nos termos do art. 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável por via do art. 663.º, n.º 2, desse Código e dentro do poder de cognição que lhe é conferido pelo art. 662.º, n.º 1, do mesmo diploma, não é sindicável pelo STJ em sede de revista (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC).

III - Resulta do art. 257.º, n.º 1, do CC, que o acto será anulável com fundamento em incapacidade acidental se a incapacidade for notória, no sentido de manifesta a uma pessoa de normal inteligência, ou conhecida da outra parte. São, assim, anuláveis as declarações que constam de documento autêntico quando o declarante delira, referindo factos desconexos com a realidade, exteriorizando sinais de tal estado.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA aberta por óbito de AA, BB, CC e DD, intentaram esta acção declarativa, com processo comum, contra EE.

Pediram que:

a) Se reconheça os autores como únicos e universais herdeiros legitimários de AA;

b) A declaração prestada por AA seja declarada falsa, por não corresponder verdade, e, em consequência, seja declarado nulo o certificado outorgado em 28/01/2013, com os demais efeitos legais;

c) Seja anulado o cancelamento da inscrição hipotecária que se encontrava a favor de AA, pela apresentação 5113, de 09/04/2010, sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob número …/...;

d) A ré seja condenada a pagar aos autores a quantia que se mostrar estar em falta, em sede de liquidação de sentença, que se calcula, no mínimo, em 33.312,00€, relativa ao empréstimo de quarenta e cinco mil euros de 30/09/2009, acrescido dos juros à taxa de oito por cento ao ano, contados dia-a-dia sobre o capital em dívida, e dos juros de mora calculados até efectivo e integral pagamento;

e) A ré seja condenada a pagar aos autores a quantia de 1.500,00€, a título de danos morais, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento

Como fundamento, os autores alegaram que são filhos de AA, falecido em 1/2/2013, e seus únicos herdeiros.

O pai dos Autores celebrou, em 30/12/2009, por escritura pública, um contrato de mútuo, pelo qual emprestou à Ré a quantia de 45.000,00 €, tendo, em 09/04/2010, a Ré outorgado escritura, através da qual constituiu uma hipoteca sobre o prédio urbano descrito na CRP de ... sob número 1960/..., a favor de AA, para garantia do referido empréstimo.

Em 28/01/2013, quatro dias antes do seu falecimento, pelo pai dos Autores foi outorgado um certificado no qual foi declarado que o aludido empréstimo, concedido à ora Ré, já se encontrava inteiramente pago, conferindo a respectiva quitação e autorizando o cancelamento da inscrição hipotecária registada a seu favor.

Tal declaração não corresponde à verdade, sendo que a Ré não liquidou a totalidade do empréstimo em causa, tendo o seu pai proferido uma declaração falsa, além de que já não estava em condições físicas e psicológicas para actuar com consciência da sua declaração, atento o grave estado de saúde em que se encontrava, devendo tal declaração ser declarada falsa e por isso nula e de nenhum efeito.

Invocam, subsidiariamente, o enriquecimento sem causa da Ré e a verificação de danos não patrimoniais sofridos pelos Autores.

 

A ré contestou, alegando que pagou o empréstimo ao seu irmão, AA, sendo, ainda, falso que este não estivesse em condições físicas e psicológicas para actuar com a consciência da sua declaração.

Concluiu pela improcedência da acção.

Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença em que se decidiu:

A) Reconhecer os Autores BB, CC e DD como únicos e universais herdeiros legitimários de AA;

B) Absolver a Ré EE do demais peticionado.

Discordando desta decisão, dela interpuseram os autores recurso de apelação, tendo a Relação decidido:

Julgar parcialmente procedente a apelação, julgando a acção parcialmente procedente, por provada, e, para além do já decidido em A) do dispositivo da sentença:

B) - declara-se a nulidade do certificado outorgado em 28/01/2013, com todos os efeitos legais;

C) - anulando-se o cancelamento da inscrição hipotecária que se encontrava a favor de AA, pela apresentação 5113, de 09/04/2010, sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob número 1960/...;

D) – condenando-se a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 22.800,00, devendo tal quantia ser acrescida dos juros moratórios devidos desde a data da citação e até integral pagamento

e, em tudo o mais se absolvendo a Ré do pedido.

Inconformada, vem agora a ré pedir revista, tendo apresentado as seguintes conclusões:

A – Da nulidade do acórdão da Relação por falta de fundamentação:

1. A Relação para descartar o depoimento da Notária diz o seguinte: "O seu depoimento tem de ser considerado necessariamente como comprometido... ".

2. Não poderá uma pessoa estar momentaneamente lucida e capaz? Nenhum fundamento se descortina no Acórdão.

3. A declaração é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratório, nenhum fundamento a Relação trás à colação para anular a declaração.

4. Nenhum dos fundamentos alegado pela 1ª instância foram rebatidos, ficando sem se saber se a testemunha não foi credível, se desconhecia o declarante, se se percebeu da alegada incapacidade do mesmo, se foi ou não objectiva, se foi ou não consistente, a nada se pronuncia a Relação.

5. Não existe nenhuma regra de prova ou presunção legal de que os notários não podem testemunhar pois o seu depoimento não será valorado in limine, pois seria retirar direito civis aos notários ou criar uma regra de incapacidade testemunhal.

6. O Acórdão recorrido não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, violando a al. b) do n° 1 do artigo 615° do CPC, aqui aplicável por remissão do artigo 662° do CPC.

7. O acórdão recorrido não está devidamente fundamentado, pelo que deverá, assim, ser anulado por falta de fundamentação, nos termos dos artigos 662° e 615 n° 1, b) do CPC.

8. A exigência de fundamentação tem natureza imperativa e constitui um princípio geral que a própria Constituição consagra no seu art. 205°, nº 1 e que tem de ser observado nas decisões judiciais; este princípio está consagrado para o processo civil no art. 615°, nº 1, b) do CPC, assim também violado.

9. As normas jurídicas violadas no douto acórdão recorrido são: o art. 662º do Cód. Proc. Civil e os arts. 205°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 615º, nº 1, b), do Cód. Proc. Civil, na medida que impõem a fundamentação das decisões judiciais.

B - Da nulidade do acórdão da Relação por erro sobre os fundamentos e pronúncia sobre a questão não em análise:

10. Os autores peticionaram a declaração de nulidade da declaração em causa nos autos, por incapacidade do declarante, tal foi a causa de pedir, sendo que a norma jurídica violada foi no entender dos apelantes o 257° do Código Civil.

11. Ora o acórdão recorrido pronuncia-se sobre o valor probatório de uma declaração de quitação, já quanto à incapacidade do declarante, causa de pedir e pedido dos Autores, nada refere, ficando sem se saber se a declaração é nula ou se não faz prova do pagamento.

12. Ao que parece o Tribunal da Relação anula a declaração por não se ter feito prova de pagamento, sendo que o sumário da decisão e os acórdãos citados não se debruçam sobre questão idêntica.

13. O tribunal da Relação altera a resposta ao ponto 8, dizendo que o AA apresentava sinais de delírio e para fundamentar tal decisão refere que os documentos de quitação não fazem prova plena.

14. Não existe relação entre a prova plena ou não dos documentos de quitação e a prova ou não do estado de incapacidade do declarante.

15. O acórdão recorrido invoca fundamentos em oposição, da mesma forma que cita acórdão e decisões que tornam a decisão ambígua, e conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, e condenou em objecto diverso do pedido, pelo que deverá, assim, ser anulado, nos termos do artigo 662° e 615 n° 1, c), d) e e) do CPC.

16. As normas jurídicas violadas no douto acórdão recorrido são: o art. 662° do Cód. Proc. Civil e os arts. 205°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 615°, n.º 1, c), d) e e) do Cód. Proc. Civil.

C - Da violação da lei substantiva e erro na apreciação das provas - ónus da prova e força probatória das provas

C1 - Do erro na apreciação das provas – ónus da prova e força probatória das provas

17. Na Relação pelo art. 662°, do Cód. Proc. Civil o julgamento que aí deve ser feito é tão amplo e abrangente quanto o da primeira instância.

18. O Tribunal da Relação dá como provado que: No dia 28 de Janeiro de 2013, na Unidade de Cuidados Continuados de ..., AA apresentava-se em estado de delírio, não compreendendo o sentido das palavras que proferiu.

19. Quem estaria então presente nesse dia 28 de Janeiro de 2013, na Unidade de Cuidados Continuados de ..., para dar como provado tal facto?

20. O Tribunal da Relação não analisa criticamente os documentos juntos aos autos, nomeadamente o de fls. 98.

21. As testemunhas foram claras, contextualizaram o entorno subjacente ao certificado de fls. 17-verso a 18.

22. As testemunhas, nomeadamente a Senhora Notária, descreveu as plúrimas visitas realizadas ao falecido AA e o grau de lucidez emanado pelo mesmo, o que corroborou com o juízo de desnecessidade de uma perícia ad hoc.

23. As regras da experiência levariam a concluir, que os notários dão fé publica aos documentos que exaram, os notários estão funcionalmente obrigados a aperceberem-se do estado mental dos declarantes, os notários não têm interesse pessoal nos documentos que exaram, os notários não se corrompem por cerca de 100,00€ que possa custar o certificado da declaração, os Notários não se presumem falsificadores de declarações,

24. Todas estas regras da experiência podem ser infirmadas, mas, no que ao presente processo interessa, foi feita essa prova? Parece-nos que não.

25. O Tribunal da Relação violou assim, salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal cometeu erro na indagação dos factos, pelo que violou, além das supra referidas normas, o disposto nos artigos 5°, 574°, 596°, 413º e 609° do Código de Processo Civil e seus basilares princípios.

26. O art. 662º do CPC consagra que a Relação só pode alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, o que não foi o caso.

27. Deve o Supremo nos termos nos termos dos arts. 674°, nº 3 e 682°, nº 3, do CPC, alterar o juízo da Relação sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como são os depoimentos testemunhais e documentos sem força probatória plena ou o uso de presunções judiciais.

28. A Relação fez uso de presunções judiciais que ofendem normas legais, e a decisão da relação padece de ilogicidade e parte de factos não provados.

C2 - Da violação da lei substantiva

29. O Tribunal a Relação decide em dois parágrafos, na página 24 do acórdão, pelo que deverá, assim, ser anulado por falta de fundamentação, nos termos do artigo 721, nº 2 e 668º, nº 1, b) do CPC.

30. Fundamentou a decisão na alegada falta de prova plena dos documentos notariais, citando o acórdão do STJ de 16/10/2008 e o acórdão do STJ de 2/3/2011

31. Sumaria a relevância da prova plena das declarações de quitação, para depois decidir invocando o artigo 246° do código Civil.

32. Devia o Tribunal da Relação ter aplicado o Artigo 257.° (Incapacidade acidentaI).

33. A falta de consciência da declaração negocial, que previne o artigo 246° do Código Civil, é aquela que supõe um declarante discernido, capaz de entender o sentido dela mas que, todavia, se não apercebe (não tem a consciência) de que a está a emitir;

34. Diferente dessa é a hipótese de incapacidade acidental, em que exactamente o declarante se acha, por qualquer causa, privado daquele discernimento, da aptidão para compreender o sentido da declaração (artigos 257°, n° 1);

35. Nos presentes autos, não restaram dúvidas que no momento da prática do acto o falecido AA entendeu a declaração negocial, e realizou-a no livre exercício da vontade.

36. Estando provados todos os requisitos para se considerar verificada a validade da declaração, como exposto, mal andou o Tribunal da relação ao decidir-se por julgar procedente a acção.

37. Para a anulabilidade destes actos não basta a prova da incapacidade natural, exige-se igualmente, para tutela da boa fé do declaratário e da segurança jurídica, a prova da cognoscibilidade da incapacidade.

38. Só serão inválidos se, acidentalmente, na altura em que são praticados, o declarante está incapacitado, nos termos do artigo 257° do Código Civil.

39. Temos, pois, que, nestes casos, a capacidade é a regra e a incapacidade é a excepção, pelo que quem invocar esta tem o ónus de a provar, ou seja, compete a quem invoca uma incapacidade fundada no artigo 257º do Código Civil alegar e provar que o declarante se encontrava, na altura da prática do acto, incapacitado nos termos e para o feito do disposto neste artigo.

40. Não é o estado de saúde do pretenso incapacitado acidentalmente que está em causa, mas o seu estado de não entendimento do sentido das suas declarações.

41. Com a decisão proferida, o Tribunal da Relação cometeu erro na apreciação da matéria de facto dada como provada, pelo que violou o disposto nos artigos 257° e 342° do Código Civil.

42. Com a decisão proferida, o douto Acórdão do Tribunal da Relação, cometeu erro na indagação dos factos e erro na apreciação da matéria de facto dada como provada, pelo que violou o disposto nos artigos 5.°, 574.°, 596.°, 413º e 609.° do Código de Processo Civil e seus basilares princípios.

43. Além disso, houve erro na interpretação dos factos dados por provados e contradição entre estes e a decisão final, em violação do disposto no artigo 607° do CPC.

44. Portanto, o douto acórdão recorrido tem de ser substituído por outro que declare em relação à Recorrente a acção improcedente, dado que há nítida contradição entre a decisão proferida sobre a matéria de facto e a decisão final que julgou procedente a acção, pelo que o acórdão que alterou a decisão de 1ª instância, violou o disposto nos artigos 5° e 615° do Código de Processo Civil.

Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, por outro que julgue a acção improcedente, por não provada, tudo com as legais consequências.

Os autores contra-alegaram, concluindo pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Nulidade do acórdão recorrido:

- Por falta de fundamentação;

- Por ambiguidade dos fundamentos, excesso de pronúncia e condenação em objecto diverso do pedido;

- Erro na apreciação das provas;

- Aplicação do regime da incapacidade acidental.

III.

Vem provada a seguinte factualidade:

1. Por escritura pública de “Mútuo” lavrada em 30 de Dezembro de 2009 a fls. do Livro de notas n.º 42 do Cartório Notarial de ..., subscrita por EE, como primeira outorgante, e AA, como segundo outorgante, consignou-se, designadamente, que:

“Pelo segundo outorgante foi dito:

Um – pela presente escritura, concede à primeira outorgante um empréstimo da quantia de quarenta e cinco mil euros, importância de que esta se confessa desde já devedora.

(…)

Três – O empréstimo vence juros à taxa de oito por cento ao ano, contados dia-a-dia sobre o capital em dívida, sendo pagos em prestações mensais através de transferência para a conta bancária do mutuante (…)

Quatro – O empréstimo é efectuado pelo prazo de sete anos.

Quinto – 1. A amortização do capital e juros, conforme as duas cláusulas anteriores, são pagos ao mutuante mediante a prestação mensal de seiscentos euros, com início no mês de Janeiro de dois mil e dez (…)

Oitava – Para garantia do cumprimento pela mutuária de qualquer das obrigações aqui assumidas (…) a mesma obriga-se a constituir hipoteca sobre o prédio urbano composto de casa de habitação (…) sita na Quinta …, em ..., freguesia de ..., (…) descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número mil novecentos e sessenta (…)”

2. Por escritura pública de “Hipoteca” lavrada em 9 de Abril de 2010, a outorgante EE declarou “Que pela presente escritura constitui hipoteca sobre o prédio urbano sito na Quinta ..., em ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número mil novecentos e sessenta (…) hipoteca essa constituída a favor de AA (…) para garantia do empréstimo de quarenta e cinco mil euros por este concedido em 30 de Dezembro de dois mil e nove (…)”.

3. Por “Certificado” lavrado em 28 de Janeiro de 2013, na Unidade de Cuidados Continuados de ... perante a Notária do referido concelho, AA declarou “que o empréstimo da quantia de quarenta e cinco mil euros concedido em 30 de Dezembro de 2009 a EE (…) por escritura de mútuo lavrada a folhas sessenta e nove do Livro de notas número quarenta e dois do Cartório Notarial de ... se encontra inteiramente pago, bem como as demais obrigações dele decorrentes, pelo que confere a respectiva quitação, pelo que autoriza assim o cancelamento da inscrição hipotecária que se encontra registada a seu favor pela apresentação cinco mil cento e treze sobre o prédio urbano sito na Quinta ..., em ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número mil novecentos e sessenta”.

4. O referenciado AA esteve internado na Unidade de Cuidados Paliativos entre os dias 18 de Janeiro e 1 de Fevereiro de 2013, sendo que o motivo do internamento foi “adenocarcinoma de pulmão”.

5. O citado AA faleceu no dia … de Fevereiro de ….

6. Os Autores BB, CC e DD são filhos de AA.

7. A Ré EE apenas pagou a quantia global de 22.200,00€ (vinte e dois mil e duzentos euros) por conta do empréstimo indicado em 1).

Na Relação, na reapreciação matéria de facto impugnada, foi acrescentado este facto como provado:

8. No circunstancialismo referenciado em 3), AA apresentava-se em estado de delírio, não compreendendo o sentido das palavras que proferiu perante a Notária do concelho de ....

Facto considerado não provado:

- O referenciado em 3) e 7) provocou nos Autores transtorno de ansiedade e de desassossego.

IV.

Cumpre apreciar as questões acima enunciadas.

1. A recorrente sustenta que o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação, invocando o disposto no art. 615º, nº 1, al. b), do CPC, que entende ser aplicável, por remissão do art. 662º do mesmo diploma legal.

Da alegação da recorrente decorre, porém, que não está aqui em causa propriamente a falta de fundamentação, como vício formal da decisão, dos taxativamente enumerados no citado art. 615º, nº 1. A referência ao art. 662º parece reveladora.

De todo o modo, esse vício formal não se verifica neste caso, uma vez que o acórdão recorrido se apresenta fundamentado, quer de facto quer de direito e de modo intrinsecamente coerente, conforme o entendimento e soluções aí preconizadas.

Não existe, pois, como seria de exigir, falta absoluta de fundamentação.

O que parece estar realmente em causa, segundo a alegação do recurso, é o modo como foi valorado o depoimento prestado pela Sra. Notária, o que tem a ver com a questão do erro na apreciação das provas adiante analisada.

2. Alega a recorrente que "o acórdão recorrido invoca fundamentos em oposição, cita acórdão e decisão que tornam a decisão ambígua, conhece de questão de que não podia tomar conhecimento e condena em objecto diverso do pedido, enquadrando estes "vícios" nos arts. 662º e 615º, nº 1, als. c), d) e e), do CPC.

Esta questão tem, mais uma vez, a ver com a reapreciação da decisão de facto efectuada pela Relação.

Argumenta a recorrente, dizendo que os autores nunca invocaram a não veracidade do texto da declaração prestada pelo falecido AA no "certificado" de fls. 17vº, o que não é verdade, uma vez que um dos pedidos formulados na acção era, precisamente, o de que essa declaração fosse "declarada falsa", por não corresponder à realidade.

A recorrente refere depois que, perante o acórdão recorrido, se vê confrontada com outra causa de pedir e decisão: "a do valor probatório da declaração", acrescentando que "não percebe a relação entre a prova plena ou não do documento de quitação e a prova ou não do estado de incapacidade do declarante".

Aqui, no que respeita ao primeiro ponto, a recorrente não tem qualquer razão: estando em causa a declaração de AA, contante de documento autêntico, uma das questões essenciais a resolver seria, justamente, a do valor (probatório) e eficácia dessa declaração.

Quanto ao segundo ponto, compreende-se a dificuldade da recorrente em perceber o raciocínio exposto no acórdão recorrido, parecendo-nos que a questão do valor e eficácia da declaração de AA, aí exposta no âmbito da reapreciação do facto relativo à incapacidade deste (8º), está deslocada e, embora sem reflexos práticos, não estará inteiramente correcta.

Antes de avançarmos, convém precisar este ponto.

O "certificado" que conta de fls. 17vº constitui um documento autêntico – arts. 35º, nº 2 (cfr. arts 161º e segs) do C. Notariado e 363º, nºs 1 e 2, do CC.

Tendo esta natureza, esse documento faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora – art. 371º, nº 1, do CC.

No caso, portanto, não tendo sido invocada a falsidade do aludido certificado, este faz prova plena das declarações prestadas por AA perante a Notária. Esta prova plena, porém, não se estende à veracidade e eficácia jurídica de tais declarações.

Neste âmbito, importa distinguir a declaração de que "o empréstimo se encontra inteiramente pago" da declaração que "confere a respectiva quitação" e que "autoriza o cancelamento da inscrição hipotecária…".

No primeiro caso, a declaração é de ciência, confessória (por ser contrária aos interesses do declarante), e não tem força probatória plena, uma vez que não foi feita à parte contrária, sendo livremente apreciada pelo tribunal (arts. 352º e 358º, nºs 2 e 4, do CC).

No segundo caso, trata-se de uma declaração de vontade ou declaração negocial que produz os efeitos que lhe são próprios e que a lei lhe atribui (cfr. arts. 217º nº 1 e 224º do CC), a não ser que se demonstre a existência de vício que afecte a formação ou manifestação dessa vontade. Ou seja: "a vontade através dela expressa será presumida até que se prove a divergência relevante entre a vontade e a declaração ou um vício relevante da vontade"[2].

Fica assim patente a relação – que a recorrente diz não compreender – entre "prova plena ou não do documento" e "a prova ou não do estado de incapacidade do declarante": a eficácia da declaração de vontade de AA só podia ser contrariada pela demonstração da (no caso) existência de um vício relevante da vontade do declarante.

Do exposto decorre que não se verifica qualquer dos aludidos vícios formais invocados pela recorrente.

3. Sustenta ainda a recorrente que o Supremo deve, nos termos nos termos dos arts. 674°, nº 3 e 682°, nº 3, do CPC, alterar o juízo da Relação sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como são os depoimentos testemunhais e documentos sem força probatória plena ou o uso de presunções judiciais.

Em causa está o facto nº 8, que a Relação, na reapreciação da matéria de facto impugnada, alterou, considerando-o provado.

É deste teor:

No circunstancialismo referenciado em 3), AA apresentava-se em estado de delírio, não compreendendo o sentido das palavras que proferiu perante a Notária do concelho de ....

Censura a recorrente, especialmente, o modo como foi valorado o depoimento da Sra. Notária que elaborou o "certificado" de fls. 17vº, por a Relação não ter reconhecido relevo probatório a esse depoimento.

No acórdão recorrido, o referido facto foi considerado provado com base nos depoimentos de duas testemunhas, que visitaram (uma delas várias vezes) o aludido AA durante o internamento hospitalar deste.

Teve-se também em conta o documento de fls. 98 – relativo ao processo clínico – do qual consta:

Doente entrou vigil, não colaborante. (…). Iniciou em 19/01 quadro de agitação e delírio com necessidade de fazer medicação. Durante o internamento manteve-se confuso e desorientado, com períodos de agitação.

Considerou-se ainda o facto de a declaração de AA, de que lhe foi pago integralmente o empréstimo, não ser verdadeira (como decorre do facto 7º - pagamento apenas parcial – que não foi impugnado).

Afirmou-se, por outro lado, que o depoimento da Sra Notária "não era susceptível de contrariar tais elementos probatórios", acrescentando-se depois que se teria de considerar esse depoimento "necessariamente, como comprometido, com interesse directo no desfecho da decisão".

Estes termos, assim utilizados, são, com o devido respeito, desajustados e devem ser devidamente interpretados.

Com efeito, esse depoimento é, como os restantes meios de prova acima referidos, de livre apreciação. Compreende-se, por isso, tendo de aceitar-se, que, no contexto da reapreciação dos meios de prova produzidos, na ponderação do seu concreto relevo probatório, o depoimento da Sra. Notária não se sobrepusesse aos demais (mas não por não poder sobrepor-se aos demais), considerando a preponderância reconhecida a estes depoimentos e à prova documental, em detrimento do valor daquele depoimento, tendo-se também em conta o circunstancialismo que rodeou a intervenção da Sra Notária e, não há que escamoteá-lo, o interesse desta na decisão do facto, pelas implicações dessa sua intervenção.

Não existe, por isso, razão para censurar a ponderação efectuada pela Relação, no âmbito dos poderes de que dispõe na reapreciação da matéria de facto, que levou a cabo sem violação de qualquer norma legal a que estivesse vinculada (cfr. art. 662º do CPC), nem ocorre a "falta de fundamentação" do acórdão recorrido que, inicialmente, vimos ser imputada pela recorrente.

No que respeita à alteração do aludido facto, pretendida pela recorrente, importa reafirmar que, como esta reconhece, a reapreciação efectuada pela Relação se sustentou apenas em meios de prova sujeitos a livre apreciação (cfr. art. 607º, nº 5, do CPC).

Ora, neste domínio, é sabido que a intervenção do STJ é muito limitada, uma vez que, por regra, apenas decide de direito, não podendo alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto – art. 682º, nºs 1 e 2, do CPC: o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não podem ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova – art. 674º, nº 3, do CPC.

Assim, não se enquadrando a situação aqui analisada em qualquer das referidas ressalvas, a questão colocada pela recorrente não pode ser sindicada pelo Supremo.

4. Defende por fim a recorrente que, no acórdão recorrido, se decidiu mal quanto ao mérito, ao invocar-se como fundamento o disposto no art. 246º do CC. Devia a Relação, acrescenta, ter aplicado o regime do art. 257º do CC (incapacidade acidental).

A este respeito, consta da fundamentação do acórdão:

III. E, relativamente a tal decisão de mérito afasta-se este Tribunal de recurso, por um lado, e desde logo, e como bem referem os apelantes, por não decorrer dos factos provados a verificação de qualquer contrato ou acordo entre as partes com vista a remissão de dívida nos termos do artº 863º-nº1 do Código Civil, tendo, aliás, a Ré negado frontalmente na contestação a existência de qualquer montante em dívida, não se mostrando verificada a previsibilidade do artº 863º do citado código, não se demonstrando a verificação da figura jurídica de “Remissão”.

Por outro lado, atento o pedido e os factos provados nº 3 a 8 se concluindo pela aplicabilidade ao caso sub judice da previsibilidade do artº 246º do Código Civil, por via do mesmo sendo nula e de nenhum efeito a declaração do falecido AA constante do “Certificado” de 28/1/2013, a que se alude no facto provado nº 3, tendo resultado provado que “No circunstancialismo referenciado em 3), AA apresentava-se em estado de delírio, não compreendendo o sentido das palavras que proferiu perante a Notária do concelho de ...”, e, “A Ré EE apenas pagou a quantia global de 22.200,00€ (vinte e dois mil e duzentos euros) por conta do empréstimo indicado em 1).” (cfr. factos provados nº 8 e 7, supra, concluindo-se não ter o declarante consciência de fazer uma declaração negocial á data do acto, consequentemente, procedendo os pedidos formulados em b), e c), e, relativamente á al.d) o pedido de condenação da Ré no valor remanescente em divida, sendo este no montante de € 22.800,00, devendo tal quantia ser acrescida dos juros moratórios devidos desde a data da citação e até integral pagamento, nos termos dos artº 804º- nº 2 e 805º-nº1 do Código Civil ( cfr. pedido deduzido).

A qualificação jurídica acolhida no acórdão recorrido não parece realmente a mais correcta.

Dispõe o art. 246º do CC que a declaração não produz qualquer efeito, se o declarante não tiver consciência de fazer uma declaração negocial ou for coagido pela força física a emiti-la; mas, se a falta de consciência da declaração foi devida a culpa, fica o declarante obrigado a indemnizar o declaratário.

Tem sido reconhecido que a falta de consciência da declaração negocial engloba quer a falta de vontade de acção – isto é, a consciência e vontade de um comportamento declarativo –, quer a falta de vontade da declaração – ou seja, a vontade de emitir a declaração como declaração negocial[3].

A falta de consciência da declaração abrange, assim, "a falta de vontade de acção ou a falta de vontade ou, pelo menos, a consciência da declaração" e tem por consequência que o negócio não produz qualquer efeito, "mesmo que a falta de consciência da declaração não seja conhecida ou cognoscível do declaratário"[4].

Trata-se de um dos casos mais graves de divergência (não intencional) entre a vontade e a declaração, em que, podendo existir vontade de acção, "falta a vontade de acção como declaração, a consciência de se assumir um comportamento declarativo ou a aparência de uma declaração"[5],[6].

Nos termos do art. 257º do CC:

1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrar acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.

2. O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar.

A anulação da declaração negocial por incapacidade acidental depende da verificação e prova destes requisitos:

a) Que o autor da declaração, no momento em que a faz, se encontrava, ou por anomalia psíquica, ou por qualquer outra causa (embriaguez, estado hipnótico, droga, etc.), em condições psíquicas tais que não lhe permitiam o entendimento do acto que praticou ou o livre exercício da sua vontade;

b) Que esse estado psíquico era notório ou conhecido do declaratário[7].

Na medida em que estas situações afectam a formação correcta da vontade do declarante, traduzindo-se também numa falta de vontade da declaração, coloca-se o problema de compatibilização do regime da incapacidade acidental com o de outras faltas ou vícios da vontade, como a falta de consciência da declaração, prevista no citado art. 246º.

Menezes Cordeiro refere que "ele (art. 257º) parece sobrepor-se ao artigo 246º e às figuras nele contempladas da coacção física e da falta de consciência da declaração: em qualquer destas duas hipóteses, o declaratário ou está acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração ou não tem o livre exercício da sua vontade. De seguida, ele usa uma linguagem centrada na pessoa do declarante e não na sua declaração. E, por fim, ele fixa um regime dissonante: a (mera) anulabilidade, contra a nulidade – há doutrina que fala mesmo em inexistência – originada pela coacção ou pela falta de consciência da declaração"[8].

Por seu turno, C. Mota Pinto sublinha que a incapacidade acidental não é regulada na secção das incapacidades por não traduzir uma condição permanente do sujeito, tendo sido incluída entre os casos de falta ou vícios da vontade. Acrescenta que o problema de saber se se trata rigorosamente de uma falta (como no caso do art. 246º) ou de um vício não tem interesse prático, uma vez que o tratamento é sempre o do art. 257º[9],[10].

O art. 257º abrange as chamadas incapacidades naturais, que não reflectem uma situação permanente do declarante, existindo apenas nos momentos em que se verificam as suas causas.

Constitui um tipo particular de falta de vontade da declaração, pois prevê especificamente os casos em que o declarante se encontra privado da capacidade necessária para entender o sentido da sua declaração.

Daí que já se tenha entendido que "o art. 246º é preceito aplicável (apenas) a pessoas capazes, no sentido de não incapacitadas, isto é, dotadas de discernimento ou capacidade necessária para entender o sentido da declaração", assim se distinguindo o âmbito de aplicação dos dois regimes[11].

Repare-se, por outro lado, que, ao regular o regime jurídico aplicável aos negócios celebrados pelo incapaz, antes de anunciada a acção de interdição, o art. 150º do CC remete expressamente para o disposto acerca da incapacidade acidental.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, "a interdição não atinge, de per si, os actos praticados antes de anunciada a acção. Esses actos estão sujeitos ao regime dos actos realizados por quem está acidentalmente incapacitado de entender o sentido exacto da declaração negocial ou não tem o livre exercício da sua vontade, isto é, ao regime estabelecido no artigo 257º"[12].

Atenta a afinidade de situações, parece-nos muito significativo que seja o regime previsto neste artigo, por expressa remissão legal, a regular os negócios celebrados por pessoas que, por anomalia psíquica (sem estar reconhecido o carácter duradouro ou habitual desta afectação), estejam impedidos de entender o acto que praticaram ou do livre exercício da sua vontade.

No caso, ficou provado que AA apresentava uma situação de delírio, não compreendendo o sentido das palavras que proferiu perante a Sra. Notária.

Assim, por essa razão, estava, nesse momento, temporariamente privado de discernimento ou da capacidade de entender o sentido da declaração que emitiu.

A questão que aqui se coloca deve, pois, ser resolvida no âmbito da incapacidade acidental (art. 257º) e não no da falta de consciência da declaração negocial (art. 246º).

A consequência prevista para os negócios celebrados com incapacidade acidental é o da anulabilidade, exigindo-se, porém, um requisito suplementar destinado à tutela da confiança do declaratário e da segurança do comércio jurídico: a notoriedade ou o conhecimento da perturbação psíquica pelo declaratário.

A notoriedade significa a cognoscibilidade por uma pessoa de normal diligência, colocada na posição concreta do declaratário.

"Não se atende agora ao declaratário real, mas a um declaratário ideal, o bonus pater familias. É indiferente, pois, para haver notoriedade, o facto de o declaratário real desconhecer a situação de incapacidade do declarante ou dela não se ter apercebido, desde que um declaratário ideal dela se pudesse ter apercebido"[13].

Observa P. Mota Pinto que, "para efeitos do art. 257º, notório não é, portanto, um facto patente, indubitavelmente provado, mas antes aquele que só por culpa do declaratário não foi conhecido. Tal requisito não tem a ver com a prova segura e clara da incapacidade, mas com a sua transparência para fins de tutela do declaratário e do comércio jurídico"[14].

Adverte, porém, este Autor que, sendo este o sentido do requisito da notoriedade, isso não significa que este deva ter o mesmo sentido para todo o tipo de casos. Assim, podendo o regime do art. 257º ser aplicado aos negócios unilaterais e mesmo aos não receptícios ("pelo menos se forem negócios patrimoniais e que produzam efeitos inter vivos, não limitados à esfera jurídica do declarante"), "requerer-se-á nestes que a incapacidade seja notória, isto é, geralmente conhecida, para surgir uma anulabilidade, podendo, além disso, considerar-se também, para efeito de má fé, o conhecimento que o destinatário dos efeitos tenha da incapacidade"[15].

No presente caso, nada foi alegado, e nada se provou, sobre o conhecimento pelo "declaratário" – a ré, destinatária dos efeitos da declaração, que é não receptícia[16] – do estado de incapacidade do declarante para entender o sentido da sua declaração.

Mas poder-se-á considerar que esse estado da incapacidade era notório, isto é, perceptível por pessoa com normal diligência?

Importa aqui referir que esta questão de saber se, perante determinada realidade de facto, é ou não de considerar "notória" a incapacidade de que padece o declarante, constitui uma questão de direito que o Supremo pode e deve conhecer[17].

Ora, no caso, há que reconhecer que a factualidade provada, decorrente do modo menos rigoroso como a acção foi configurada, não é abundante, apenas se sabendo que o falecido AA fez as declarações perante a Sra. Notária (que se limitou a reproduzi-las no "certificado", sem fazer qualquer menção às condições físico-psíquicas em que se encontrava o declarante e sem certificar que procedeu à leitura e explicação do conteúdo do instrumento lavrado – cfr. arts. 46º, nº 1, al. l) e 50º do C. Notariado) e que, nesse momento, estava em estava de delírio, não compreendendo o sentido das palavras que proferiu.

Provou-se também, em contrário do que foi declarado, que o empréstimo ainda não tinha sido integralmente pago.

Tendo em atenção também o que foi referido na fundamentação da decisão de facto, delírio tem aqui o sentido, que é o corrente, de confusão, alucinação, crença em factos irreais, traduzindo afectação que impedia que o declarante compreendesse o sentido do que declarava.

Parece-nos, por outro lado, que esse estado de incapacidade do declarante poderia perfeitamente ser notado por pessoa de normal diligência e atenção, que não necessariamente pela ré por, como se disse, esta ser mera destinatária dos efeitos da declaração (não se provou, aliás, que estivesse presente no acto "certificado").

Com efeito, se o declarante delirava, referindo factos completamente desconexos com a realidade, exteriorizando assim sinais desse estado, não se concebe que uma pessoa medianamente atenta não se tivesse podido aperceber dessa situação.

Entende-se, por conseguinte, que se verificam os requisitos previstos no art. 257º do CC, sendo anuláveis as declarações feitas por AA, constantes do "certificado" de fls. 17vº, assim se corrigindo a qualificação jurídica operada no acórdão recorrido.

V.

Em face do exposto, nega-se a revista, alterando-se, porém, o decidido no acórdão recorrido sob a al. B), anulando-se as declarações feitas por AA que constam do certificado de fls. 17vº.

Mantém-se o mais decidido.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 11 de dezembro de 2018

Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

_________________
[1] Proc. nº 342/15.0T8VPA.G1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 274)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Lebre de Freitas, A Falsidade do Direito Probatório, 40 e 56; no mesmo sentido, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 509.
[3] Cfr. Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, 552; Evaristo Mendes/Fernando Sá, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, 580. Cfr., também, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 126.
[4] C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. (Pinto Monteiro/P. Mota Pinto), 490 e 491.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., 232.
[6] Menezes Cordeiro (Tratado de direito Civil Português, I, Tomo I, 507) e José alberto vieira (Negócio Jurídico, 58) defendem uma interpretação restritiva do art. 246º.
Afirma este Autor:
No regime do Código Civil, não há nenhum papel para a vontade, a não ser a vontade de actuação. Se o declarante não divisa um sentido declarativo para o seu comportamento quando actua, tendo querido actuar, então o Direito oferece o recurso ao regime do erro (…). Para o art. 246º ficarão os casos extremos e muito raros em que, por força do desconhecimento da língua, do meio social, dos hábitos de comportamento ou alguma situação do género, alguém não esteja em condições de prever o valor declarativo do seu comportamento e o adopte sem a finalidade de desencadear a produção de efeitos jurídicos.
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. Cit., 239.
[8] Ob. Cit., 508.
[9] Ob. Cit., 499 (n. 671)
[10] P. Mota Pinto inclina-se, embora com dúvidas, para a posição contrária, isto é, "de tratamento do art. 257º como subsidiaria ou cumulativamente aplicável (não como regime especial) - A Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 302. Neste sentido, também Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Vol. I, 113 (n. 409).
[11] Acórdão do STJ de 04.10.2001, CJ STJ IX, 3, 61. Cfr., também, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 11.07.2000, CJ XXV, 4, 6 e da Relação de Lisboa de 19.11.2009, em www.dgsi.pt.. No mesmo sentido, Revista dos Tribunais, Ano 88-94.
[12] Ob. Cit., 157.
[13] Carvalho Fernandes, Teoria geral do Direito Civil, I, 3ª ed., 363.
[14] Ob. Cit., 306, n. 372.
[15] Ob. Cit., 310 e 311, n. 282.
[16] Como refere C. Mota Pinto, Ob. Cit., 239, declaratário será a "contraparte nos contratos, o destinatário da declaração nos negócios unilaterais receptícios ou o destinatário dos efeitos da declaração nos negócios unilaterais não receptícios".
[17] Neste sentido, a título de exemplo, o Acórdão do STJ de 09.12.2004, CJ STJ XII, 3, 131.