Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
90/19.2T8LLE.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: ADMINISTRADOR DE CONDOMÍNIO
LEGITIMIDADE PASSIVA
CASO JULGADO FORMAL
CONDOMÍNIO
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
CAPACIDADE JUDICIÁRIA
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
PARTES COMUNS
EDIFICIO
DEMOLIÇÃO DE OBRAS
Data do Acordão: 05/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Se se mostra que o tribunal da 1.ª instância se limitou a afirmar de forma tabelar ou genérica a legitimidade do réu, não se formou qualquer caso julgado formal sobre essa legitimidade e daqui que não ficou precludida a possibilidade de a Relação incidir sobre a temática da legitimidade passiva.
II - O administrador pode ser demandado nas ações respeitantes às partes comuns do edifício, mas apenas na medida em que a demanda tenha a ver com as funções que lhe competem legalmente ou que lhe foram atribuídas pela assembleia de condóminos.
III - Fora desse estrito âmbito, a demanda terá que ser dirigida pelo conjunto (individualizado) dos condóminos ou contra o conjunto (individualizado) dos condóminos, cessando nesse caso a personalidade judiciária (ficcionada) do condomínio e a capacidade judiciária atribuída ao respetivo representante orgânico, o administrador.
IV - Os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns a que se refere a alínea f) do art. 1436.º do CC são as ações possessórias e a interrupção dos prazos de prescrição ou de usucapião.
V - As disposições legais e administrativas a que alude a alínea l) do mesmo artigo são as que estão estabelecidas para serem cumpridas (executadas) pelo administrador e que têm a ver com a organização e gestão do condomínio, não caindo nesse perímetro os atos alegadamente abusivos do próprio administrador nem os atos dos condóminos, ainda que ilegais e executados através do respetivo administrador.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 90/19.2T8LLE.E1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação ….

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

Imorolux - Sociedade Imobiliária, Lda. demandou, pelo Juízo Local Cível …. e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, a Administração do Condomínio do Edifício “….” (sito na Avenida …), representada por Letraconcreta, Lda.

Pediu que fosse “ordenada pelo Tribunal a demolição da rampa de acesso à fração “E” e a reposição da escada que no local da mesma existia”.

Alegou para o efeito, em síntese, que é dona, entre outras, da fração desse edifício designada pela letra “B”.

Duas das quatro janelas dessa fração estão tapadas (emparedadas) por uma rampa de acesso de uso exclusivo á fração “E” (onde funciona o estabelecimento denominado “Clínica Internacional …..”), rampa essa que foi levantada na fachada do prédio em substituição de escadas que ali existiam e que davam acesso a essa fração “E”.

Com tal obra inovatória, que afeta a iluminação e a ventilação da fração da Autora, foi alterada a fachada do edifício.

Tal situação já ocorria quando comprou a dita fração, o que até achou estranho, mas nunca conjeturou a hipótese dessas janelas terem sido tapadas por uma alteração da fachada do edifício, ao arrepio e com violação da lei e do título constitutivo da propriedade horizontal.

Porém, posteriormente veio a tomar conhecimento que a eliminação das escadas e a construção da rampa foram realizadas abusivamente pela Administração do Condomínio, em violação do projeto de arquitetura do edifício.

Razão pela qual se impõe o decretamento dos efeitos que reclama na presente ação.

Contestou a Ré, concluindo pela improcedência da ação.

Disse, em síntese, que a obra em causa era indispensável e urgente, tendo sido executada para eliminar uma situação de perigo iminente decorrente de uma fissura no último degrau da escada ali existente, bem como para adaptar o local às exigências legais relativas ao acesso à fração “E” de pessoas com mobilidade reduzida.

Mais invocou a caducidade do direito de ação e o exercício abusivo do direito por parte da Autora.

Aquando da audiência prévia (fls. 95 e 96) esclareceu a Autora que, tal como constava da petição inicial, a ação visava demandar a Administração do Condomínio …, representada por Letraconcreta, Lda.

Na sequência, e em sede de despacho saneador, foi proferido despacho onde se disse que resultava inequívoco que a Autora pretendia demandar o Condomínio do prédio, representado pela sua administradora Letraconcreta, Lda. Mais se disse que se entendia que estava em causa um mero erro de identificação do réu, determinando-se a sua correção e passando a figurar como réu o “Condomínio …, representado pelo Administrador”. Disse-se ainda que, em consequência, não se verificava uma situação de ilegitimidade passiva.

Seguindo o processo seus devidos termos, veio, a final, a ser proferida sentença que condenou o Réu nos efeitos peticionados.

Justcare - Clínica Internacional ….., Lda., condómina da dita fração “E”, interpôs recurso contra o assim decidido.

Defendeu, além do mais, que a entidade que foi demandada, a Administradora do Condomínio, era parte ilegítima, sendo que era contra os demais condóminos que a ação devia ter sido dirigida.

Na Relação …. foi decidido que a ação, atentos os efeitos que com ela se pretendiam obter, havia de ter sido dirigida contra os diversos condóminos, de sorte que ocorria uma situação de incapacidade judiciária da entidade demandada.

Em consequência foi a sentença revogada e o Réu absolvido da instância.

É agora a vez da Autora, insatisfeita com o decidido, pedir revista.

Da respetiva alegação extrai as seguintes conclusões:

A) O acórdão recorrido alterou a decisão do Tribunal de 1ª Instância, tendo absolvido o Réu da instância, razão, pela qual, é admissível recurso de revista para esse Alto Tribunal, atento o disposto no n.º 1 do artigo 671º do C. P. Civil.

B) A primeira questão que se levanta é a de saber se o Tribunal da Relação podia ou não conhecer em sede de recurso da suscitada “ilegitimidade” passiva.

C) O Tribunal da Relação entendeu que sim, porquanto «não fora arguida ao longo do processo nem conhecida oficiosamente pelo tribunal a quo», tendo sido suscitada pela primeira vez em sede de recurso, «Já que antes apenas foi invocada a divergência na identificação do R. entre o formulário citius e a p.i., tendo o tribunal recorrido decidido que tal situação se reconduz a mero erro de identificação do R. e não a uma situação de ilegitimidade passiva, ordenando a rectificação e proferido despacho saneador genérico ou tabelar», razão, pela qual, defende não ter sido a questão da ilegitimidade passiva decidida nos autos por decisão transitada em julgado, «uma vez que o despacho saneador tabelar ou genérico quanto à verificação dos pressupostos processuais não constitui caso julgado formal em relação às questões concretamente apreciadas (n.º 3 do art.º 595.º do CPC).

D) Concordamos com o acórdão recorrido quando refere que «o tribunal de recurso pode “conhecer de questões novas, ou seja, não levantadas no tribunal recorrido, desde que de conhecimento oficioso e ainda não decididas com trânsito em julgado” e que essas questões podem referir-se “à relação processual (vg. a quase totalidade das exceções dilatórias, nos termos do art.º 495.º (atualmente art.º 578.º)”».

E) No caso em apreço, salvo o devido respeito por opinião contrária, o Tribunal “a quo” apreciou, concretamente, a questão da legitimidade das partes, no despacho saneador.

F) Em tal despacho saneador é referido expressamente que em sede de «Contestação, veio o Réu arguir a desconformidade entre o teor do formulário e o teor da petição inicial o que, no seu entender, poderia configurar uma situação de ilegitimidade passiva. (…) determina-se a sua correção, passando a figurar como Réu “Condomínio …. representado pelo Administrador” (Ac. TRL, de 19.01.2011, proc. 234/ 09.2TTLRS, disponível em www.dgsi.pt). Pelo que não se verifica uma situação de ilegitimidade passiva.  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente patrocinadas. 4 Não existem quaisquer exceções dilatórias, nulidades ou outras questões prévias que cumpra neste momento conhecer, relegando-se para sede de sentença, após produção de prova, a apreciação da exceção de caducidade.»

G) Apesar da questão da ilegitimidade passiva ter sido suscitada, na sequência da “divergência na identificação do R. entre o formulário citius e a p.i.,” acabou por obrigar o Tribunal de 1ª Instância a apreciar a questão da legitimidade do Réu, razão, pela qual, o despacho saneador, quanto a tal questão, fez caso julgado formal, pelo que estava o Tribunal da Relação impedido de apreciar novamente a questão da legitimidade do Réu.

H) Mas ainda que assim não se entendesse, sempre se dirá que a Ré é parte legitima na Acão. Vejamos:

I) É à Autora, quem cabe, por natureza, delimitar o objeto da Acão e o seu âmbito subjetivo.

J) Na Acão em apreço, a Autora, ora Recorrente, formulou o pedido de demolição da rampa existente e a reposição das escadas que no lugar da mesma existiam, contra o condomínio “.....”, representado pela administração do condomínio, conforme resultou provado no n.º 5 dos factos dados como provados,

K) Se como a Autora referiu na petição inicial e foi provado pela sentença recorrida, que quem construiu a rampa foi a administração do condomínio e com tal obra prejudicou a linha arquitetónica do prédio, alterando a fachada do mesmo – vide facto n.º 5) dos Factos Provados na sentença -, será evidente que, a Ré tem legitimidade passiva para a Acão em referência, atento o disposto, conjugadamente, nos artigos 1436º, al. f) e l) e 1437º, n.º 2 do Código Civil.

L) Na verdade: trata-se unicamente de repor a fachada do prédio que, por atuação abusiva e unilateral da administração do condomínio, foi alterada com o consequente emparedamento de duas janelas da fração B de que a ora Respondente é proprietária, prejudicando, com tal ato, a linha arquitetónica do prédio.

M) Tal obra foi realizada pela Administração do Condomínio, razão, pela qual, em 8 de Agosto de 2018, foi remetido um ofício pela Divisão de Fiscalização da Câmara Municipal…. à Administração de Condomínio do Edifício ..... com vista à legalização da obra – vide factos n.ºs 10 a 20 dos Factos Provados.

N) Na verdade: (…) A fachada do prédio constitui uma parte comum do edifício e por isso é compropriedade dos condóminos, artigos 1420º, nº 1 e 1421º, nº 1, alínea a) do Código Civil, sendo este de carácter imperativo. O artigo 1425.º do referido Código, sobre a epígrafe Inovações, dispõe que “1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as obras que constituam inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio. (…) Nas partes comuns do edifício não são permitidas inovações capazes de prejudicar a utilização, por parte de algum dos condóminos, tanto das coisas próprias como das comuns.” (…) Mas, segundo o n.º 7 do mesmo artigo, não é permitida a introdução de inovações em coisas comuns já existentes suscetíveis de prejudicar a utilização, por parte de algum dos condóminos, tanto das coisas próprias como das comuns.

O) Ora, conforme se retira da factualidade provada, o condomínio, sob a égide da administração à data, construiu, no final do ano de 2010, uma rampa de acesso, em substituição de uma das duas escadas existentes na fachada do prédio. E, na esteira da doutrina acima citada bem como da própria letra da lei (cfr. art. 1425.º, n.º3, alínea a), é indiscutível que tal obra configura uma inovação. Assim, a obra em questão, que nem sequer foi licenciada pela Câmara Municipal de ....., não pode deixar de ser legalmente qualificada como inovação, que prejudica a linha arquitectónica do prédio, alterando a fachada do mesmo, pois onde antes existiam duas escadas, passou a existir uma escada e uma rampa.» - Vide sentença proferida pág. s 10 a 13.

P) O conceito de legitimidade encontra-se fixado no artigo 30º do C. P. Civil, no qual se determina que: “o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”; que o interesse directo em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer se exprime pelo prejuízo que da procedência possa advir e ainda que “na falta de indicação da lei em contrário, são titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor. ”

Q) Vem isto a propósito do seguinte, a Autora, ora Recorrente, identificou os autores e executores das obras ilegais – Administração do Condomínio do Edifício ..... – que prejudicaram a linha arquitetónica do prédio e provocaram uma alteração da fachada do prédio e das partes comuns do prédio.

R) Assim, partes legitimas para ação, em que se pede a demolição de obras levadas a cabo na fachada do prédio e nas partes comuns do mesmo, pela Administração do Condomínio de tal prédio, que afetam o direito de propriedade e a fração autónoma de um dos condóminos, são o proprietário da fração prejudicada e o próprio Condomínio.

S) Sendo que tal obra, que nem sequer foi licenciada pela Câmara Municipal ....., prejudica a linha arquitetónica do prédio, alterando a fachada do mesmo, pois onde antes existiam duas escadas, passou a existir uma escada e uma rampa, o que não pode deixar de ser legalmente qualificado como inovação.

T) Como bem julgou a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, nos termos do disposto no n.º 7 do artigo 1425º do Código Civil, não é permitida a introdução de inovações em coisas comuns já existentes suscetíveis de prejudicar a utilização, por parte de algum dos condóminos, tanto das coisas próprias como das comuns.

U) Estando em causa a realização de uma obra que alterou a fachada do prédio, a qual constitui bem comum – artigos 1420º, n.º 1 e 1421º, n.º 1, al. a) do Código Civil – o Condomínio, representado pelo administrador, é parte legitima para a ação.

V) É, aliás, o que decorre do disposto, conjugadamente, no artigo 1437º, n.º 2 e no artigo 1436º, al. f) e l) do Código Civil,

W) Razão, pela qual, salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal da Relação, ao julgar que, “não estamos perante um litigio respeitante à administração das partes comuns, já que a (construção) demolição/reposição das escadas, integradas na fachada do edifício, extravasam o âmbito das funções que a lei compete ao administrador, pelo que a legitimidade para contraditar a presente acção cabia tão só a todos e a cada um dos condóminos, em litisconsórcio necessário”.

X) A ação proposta versa inequivocamente sobre ato de administração, porque tendente a assegurar a reposição da achada do prédio, parte comum do mesmo, sendo o condomínio presuntivamente responsável pelos danos causados nas partes comuns do prédio, pois que, tem o dever de as administrar e de as vigiar,

Y) Razão, pela qual, o Tribunal da Relação …., ao declarar a ilegitimidade passiva e a falta de personalidade judiciária do Réu, violou, claramente, o disposto, conjugadamente, nos artigos 30º do C.P. Civil, 1420º, n.º 1, 1421º, n.º 1, al. a), 1436º, al. f) e l) e 1437º, n.º 2 do Código Civil,

Z) Norma que interpretou erradamente ao considerar que a demolição de uma rampa de acesso, construída na fachada do prédio, no lugar onde anteriormente existia uma escada, que afeta o direito de propriedade da Autora, ora Recorrente, uma vez que duas das janelas da fração “C” ficaram emparedadas, não diz respeito a atos referentes à administração de bens comuns e extravasa o âmbito das funções do administrador do condomínio, quando, ao invés, as deveria ter interpretado em sentido oposto e, em consequência, declarando o Réu como parte legitima na ação.

Termina dizendo que o Réu deve ser considerado parte legítima na ação.

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A condómina Justcare - Clínica Internacional ………, Lda. contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

São questões a conhecer:

- Impedimento do tribunal recorrido de conhecer da legitimidade do Réu;

- Legitimidade da Administradora do Condomínio.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes:

1) A Autora é proprietária das frações autónomas designadas pelas letras “A”, “B” e “C” do prédio urbano denominado Edifício ....., inscrito na matriz sob o artigo …, da freguesia …, concelho ....., descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial sob o número …..

2) A Autora adquiriu a fração designada pela letra “B” por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 13 de Junho de 2016, no âmbito de venda judicial feita no processo de execução n.º 1887/12……-Juiz …, ….. Secção de Execução sediada em …..

3) Aquando do referido em 2), duas das quatro janelas da referida fração já estavam tapadas por uma rampa de acesso à fração designada pela letra “E”.

4) A Autora comprou a referida fração sem qualquer reserva quanto a tal questão.

5) A rampa de acesso referida em 3), foi construída pelo Réu em substituição de uma das duas escadas existentes na fachada do prédio, sem que tenha havido lugar a deliberação da Assembleia de Condóminos.

6) Em virtude do referido em 5), duas janelas da fração da Autora encontram-se emparedadas.

7) A construção da rampa referida em 3), mandada realizar pelo Réu, ocorreu nos finais do ano de 2010 e ficou concluída no início de 2011, e destinava-se a permitir o acesso de pessoas com mobilidade reduzida.

8) O legal representante da Autora remeteu, em 25 de Julho de 2017, através de correio eletrónico, comunicação dirigida à Câmara Municipal .... com o seguinte teor:

“Assunto: Construção Ilegal – denúncia

Exmºs Snrs.,

Eu, AA, gerente da firma Imorolux – Sociedade Imobiliária, Lda. com o número único de pessoa colectiva e matrícula …., com sede na Avenida …, proprietária da fracção “B”, sita no Edifício ....., Avenida …, em …., venho por este meio denunciar a construção ilegal, efectuada pela Administração do Condomínio do Edifício ....., de uma rampa de acesso ao patamar da Clínica Internacional de …., que além de ocupar parte da via pública, tapou duas janelas da fracção da minha firma, conforme fotos em anexo.

Solicito assim que sejam tomadas todas as medidas necessárias à eliminação/remoção da referida rampa. (…).”.

9) O legal representante da Autora recebeu um ofício da Divisão de Fiscalização Municipal da Câmara Municipal ....., datada de 8 de Agosto de 2018, com o seguinte teor:

“Assunto: Rampa de acesso ao patamar da Clínica Internacional de … Na sequência de análise da situação reportada por V.Exa. e após deslocação ao local (Edifício ..... – …..), confirmou-se a existência de rampa de acesso ao patamar da Clínica Internacional de …... Compulsado o respectivo processo de obras, constatou-se que a construção em causa não se encontra ali contemplada.

Após análise e parecer do Departamento de Planeamento e Administração do Território/Divisão de Urbanização e Edificação (DPAT/DUE), venho por este meio, informar V. Exa. que foi o responsável notificado para proceder à instrução de procedimento administrativo, com vista à eventual legalização da operação urbanística ilegalmente executada, para que esta edilidade se possa pronunciar sobre a possibilidade de verificar a sua conformidade ou caso contrário, a sua desconformidade com as disposições legais e regulamentares em vigor.

Com os melhores cumprimentos.”.

10) Na mesma data referida em 9), foi remetido, pela Divisão de Fiscalização Municipal da Câmara Municipal  ....., comunicação à Administração do Condomínio do Edifício ..... com o seguinte teor:

“Assunto: Rampa de acesso ao patamar da Clínica Internacional de …

Na sequência de deslocação ao local (Edifício ….., …..), verificou-se a existência de uma rampa de acesso ao patamar da Clínica Internacional de ….. Compulsado o respectivo processo de obras constatou-se que a construção em causa não se encontra ali contemplada.

Assim, fica desta forma notificado para no prazo de 30 dias (trinta) dias contados a partir da receção do presente ofício proceder à instrução do procedimento administrativo com vista a uma eventual legalização da operação urbanística ilegalmente executada para que esta edilidade se possa pronunciar sobre a possibilidade de verificar a sua conformidade ou, em caso contrário, a desconformidade com as disposições legais e regulamentares em vigor e posterior tomada de medidas de tutela urbanística. (….)”.

11) A Administração do Edifício ....., em resposta ao mencionado em 10), remeteu carta, datada de 14 de Setembro de 2018, com o seguinte teor:

“Assunto: Rampa de acesso ao patamar da Clínica Internacional de ……

Exmºs Srs.

Na qualidade de administração do Condomínio do Edifício ....., vimos por este meio informar que estão a ser feitas todas as diligências a fim de conseguir solucionar a situação apresentada.

No entanto, a fim de ser possível levar a cabo todos os procedimentos necessários solicitamos a prorrogação do prazo por mais 30 dias úteis.

Desde já gratos pela atenção e compreensão dispensadas. (…).”

12) A Câmara Municipal  ....., Divisão de Fiscalização Municipal, deferiu a prorrogação do prazo requerida em 11), o que foi comunicado ao Réu por carta datada de 19 de Setembro de 2018.

13) A Administração do Condomínio remeteu à Câmara Municipal  ....., Divisão de Fiscalização Municipal, carta datada de 7 de Novembro de 2018, com o seguinte teor:

“(…) Na qualidade de administração do condomínio do Edifício ....., vimos por este meio informar que já se encontra um arquiteto a trabalhar no sentido de apresentar na Câmara Municipal  ..... o processo necessário à resolução da situação.

No entanto, a fim de ser possível terminar o processo e entregar o mesmo na Câmara Municipal ....., solicitamos que o prazo para apresentação do mesmo seja prorrogado. (…).”.

14) O pedido de prorrogação do prazo referido em 13) foi deferido pelo período de 30 dias, por despacho de 9 de Novembro de 2018.

15) No dia 15 de Dezembro de 2018, teve lugar Assembleia Extraordinária de Condóminos do Edifício ....., tendo sido lavrada a Acta com o número 40, na qual ficou a constar:

“(…) os condóminos presentes e representados totalizam 342 (…). Ponto 4 – Conforme notificações já enviadas a todos os condóminos, o condomínio foi notificado pela Câmara Municipal ....., que seria necessário proceder à legalização da rampa de acesso à fracção “E”.

Segundo informações recolhidas pela administração, as escadas existentes foram alteradas para rampa sem autorização da assembleia. Face a esta informação, e visto que a legalização da rampa envolver a execução de obras de alteração da mesma e execução de projeto para o efeito.

Deliberou a assembleia, por maioria dos condóminos presentes e representados, com abstenções das frações BJ, U e EH que seja apresentado na próxima assembleia um projeto de viabilidade de aprovação para fazer o enquadramento legal junto às entidades competentes e os orçamentos para realização dos trabalhos necessários à execução da obra. O representante da clínica apresentou uma declaração que se anexa à ata como anexo 5 com 1 página.(…)”.

16) No dia 28 de Dezembro de 2018, a Administração do Condomínio ..... requereu, junto da Divisão de Fiscalização Municipal, nova prorrogação do prazo por 90 dias, tendo sido deferido pelo período de 30 dias, por despacho de 2 de Janeiro de 2019.

17) No dia 1 de Junho de 2019, teve lugar Assembleia Ordinária de condóminos do Edifício ....., tendo sido lavrada a Acta com o número 41, na qual consta:

“(…) ordem de trabalhos: (…) Ponto Cinco – Análise e deliberação sobre os orçamentos para a elaboração de projeto para a nova rampa de acesso à fração “E” – Clínica …. Ponto seis - Análise e deliberação sobre os orçamentos para a construção de nova rampa de acesso à fracção “E” Clínica …. (…) O quórum total presente ascende a trezentos e trinta e nove de permilagem pelo que há quórum legal para a tomada de deliberações. (…). Ponto cinco – Antes de se passar a votação deste ponto o Advogado da I……, Lda. Dr. BB, pediu a palavra para esclarecer alguns pontos sobre algumas ações judiciais que correm no condomínio. Antes da votação deste ponto a Administração esclareceu que todos os orçamentos a aprovar obrigam a quotização extraordinária. Posto este ponto a discussão e votação foi decidido mandatar a Administração para a optar pela melhor escolha para o projeto de rampa até ao limite de 2.000,00€ (dois mil euros). Posto a votação o mesmo foi aprovado por maioria com os votos contra totalizando 148 de permilagem e com as abstenções totalizando 20 de permilagem. Ponto seis – Antes da votação deste ponto a Administração esclareceu que todos os orçamentos a aprovar obrigam a quotização extraordinária. Posto este ponto a discussão e votação foi decidido mandatar a Administração para a optar pela melhor escolha para a construção da rampa até ao limite de 4.000,00€ (quatro mil euros). Posto a votação o mesmo foi aprovado por maioria com os votos contra totalizando 148 de permilagem e com as abstenções totalizando 20 de permilagem.”

18) Da Acta mencionada em 17) fazem parte vários documentos anexos, um deles com o seguinte teor:

“Ponto Cinco – Análise e deliberação sobre os orçamentos para elaboração de projeto para nova rampa de acesso à fração “E” – Clínica …..

A necessidade deste ponto prende-se com o fato de que a rampa atual numa foi licenciada, não cumpre os parâmetros legais, além de que existe uma ação interposta pela Imorolux, Lda. para a demolição da referida rampa. Sendo portanto indispensável a elaboração de um projeto onde seja cumprida a lei para tais edificações. Em anexo seguem três orçamentos para este trabalho. (…).”

19) Consta ainda, anexo à Acta mencionada em 17), documento com o seguinte teor:

“Ponto seis – Análise e deliberação sobre os orçamentos para a construção de nova rampa de acesso à fração “E” – Clínica …...

Dando seguimento ao ponto anterior, anexamos três orçamentos para a construção de uma rampa de acesso para pessoas de mobilidade reduzida a essa zona do condomínio e à fração “E” em virtude da rampa atual não responder aos parâmetros legais. (…).”.

20) Num dos orçamentos mencionados em 19) consta:

“Conforme solicitado venho por este meio, apresentar a minha melhor proposta para a reconstrução de rampa de acesso para pessoas com mobilidade reduzida no edifício ..... – …

Trabalhos a executar

1.Remover parte da rampa (deixando as janelas desimpedidas)

2.Construção de parte da rampa (estrutura nova e refazer a calçada com as pendentes a 6% e pintura dos muros)

3.Limpeza final (…).”

B) Factos não provados

a) Aquando do referido em 2) a Autora desconhecia o projeto de arquitetura do Edifício ....... que foi aprovado pela Câmara Municipal.

b) As escadas não tinham qualquer ligação estrutural ao edifício, tendo apenas sido encostadas à muralha de ambas as caves.

c) Com o decurso dos anos, existiu um assentamento do terreno no local de construção da escada que teve como consequência que esta se deslocasse da muralha do edifício.

d) O referido em c) originou uma fissura no último degrau que colocava em perigo qualquer utilizador da mesma.

e) Devido ao referido em d) a escada teve de ser demolida.

f) A Administração à época, devido ao referido em d) e e) construiu a rampa no benefício de todos os condomínios, para eliminar a situação de perigo eminente e para adaptar o local às exigências legislativas relativas à acessibilidade de cidadãos de mobilidade reduzida.

g) Foi solicitado pelos condóminos à Administração do Condomínio, que tinha funções no ano de 2010, orçamento para demolição da escada em causa e construção da rampa.

h) A construção da rampa foi paga pelos condóminos em proporção do valor das suas frações, sem que nenhuma questão fosse levantada.

De direito

Quanto à questão do impedimento do tribunal recorrido de conhecer da legitimidade do Réu

Diz a Recorrente que o tribunal de 1ª instância se pronunciou concretamente sobre a questão da legitimidade passiva do Réu (condomínio), de sorte que, formado caso julgado formal, o acórdão recorrido não podia ter emitido pronúncia sobre essa mesma questão, suscitada de novo em sede do recurso de apelação.

Mas não é assim.

A ação foi dirigida (segundo o que consta da petição inicial) contra a administradora do condomínio do edifício em questão, representada por Letraconcreta, Lda.

Porém, no formulário da plataforma Citius a Autora fez inscrever como sendo ré a dita Letraconcreta, Lda.

Na sua contestação a administração do condomínio (representada pela mesma Letraconcreta, Lda.) exarou que se estava aqui perante “uma situação dúbia, relativamente à legitimidade passiva, pois, a Administração de Condomínio é que terá de ser a Ré e não a Letraconcreta, Lda. directamente. Pelo que, deverá esta questão ser esclarecida peremptoriamente, sob pena de proceder a excepção dilatória de ilegitimidade passiva.”

Aquando da audiência prévia a Autora esclareceu que, tal como constava da petição inicial, “na presente acção a Autora demanda a Administração do Condomínio ..... representado por Letraconcreta, Lda.”.

Sobre isto disse o Mmº juiz o seguinte (ata de fls. 96):

«(…) não obstante a divergência entre a informação que resulta do formulário e a que resulta da petição inicial, quanto à indicação do Réu, resulta inequívoco que a Autora pretende demandar o Condomínio (sendo o número de identificação fiscal do mesmo que indica – ……) representado pelo seu administrador, in casu, Letraconcreta, Lda.

Assim, entende-se que em causa está um mero erro de identificação do Réu, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 6.º do CPC, determina-se a sua correcção, passando a figurar como Réu “Condomínio ..... representado pelo Administrador” (…).

Pelo que não se verifica uma situação de ilegitimidade passiva.»

Como resulta do que acaba de ser relatado, do que se tratou foi simplesmente de um esclarecimento e de uma correção acerca da identidade da entidade demandada, e é neste estrito contexto que tem de ser compreendido o despacho supra transcrito.

Deste modo, a singela menção que o despacho faz à não verificação de uma situação de ilegitimidade passiva não representa objetivamente qualquer definição acerca da legitimidade passiva. O que representa, isso sim, é que, esclarecida que estava a alegada “situação dúbia”, não se verificava a ilegitimidade passiva que a contestante associara unicamente à existência dessa mesma “situação dúbia”.

Aliás, a prova mais óbvia de que é assim que devem ser vistas as coisas, reside na circunstância de logo a seguir o tribunal ter afirmado que “As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (…)”, afirmação esta que não se entenderia relativamente à legitimidade se acaso a questão da legitimidade tivesse já sido anteriormente sopesada.

Portanto, estamos perante uma afirmação puramente tabelar ou genérica (e não perante uma concreta apreciação) sobre a legitimidade, razão pela qual não se formou qualquer caso julgado formal sobre a legitimidade passiva nem ficou precludida a possibilidade de o acórdão recorrido incidir sobre a legitimidade do Réu (condomínio). É o que resulta, a contrario, do n.º 2 do art. 595.º do CPCivil.

De resto, e para sermos exatos, o acórdão recorrido não decidiu (pelo menos por via principal) que o réu era parte ilegítima.

O que decidiu foi bem outra coisa: que se registava uma situação de falta de personalidade judiciária do condomínio, e foi isto que determinou a absolvição da instância que foi decretada.

Improcedem assim, no que vai contra o que fica dito, as conclusões B) a G).

Quanto à questão da legitimidade passiva

Com a presente ação pretende a Autora a demolição da rampa (obra inovatória na fachada do edifício) de acesso à fração (fração “E”) da condómina Justcare - Clínica Internacional ……, Lda. e a reposição das escadas (coisa comum) que no local da rampa existiam inicialmente.

A ação foi dirigida formalmente contra a administração do condomínio, ainda que tudo leve a crer (pela menção que se fez do número de pessoa coletiva do condomínio) que o propósito terá sido demandar o condomínio, representado judiciariamente pela respetiva administração (que à data era a falada Letraconcreta, Lda.). Foi assim, de resto, que o tribunal de 1ª instância entendeu a demanda, como resulta do que acima se expôs.

O acórdão recorrido considerou que quem devia estar na ação como parte passiva eram os condóminos, “pois não estamos perante um litígio respeitante à administração das partes comuns, já que a (construção) demolição/reposição das escadas, integradas na fachada do edifício, extravasam o âmbito das funções que a lei comete ao administrador, pelo que a legitimidade para contraditar a presente ação cabia tão só a todos e a cada um dos condóminos, em litisconsórcio necessário”.

A Recorrente discorda desse entendimento, argumentando (maxime conclusão K)) que “Se como a Autora referiu na petição inicial e foi provado pela sentença recorrida, que quem construiu a rampa foi a administração do condomínio e com tal obra prejudicou a linha arquitectónica do prédio, alterando a fachada do mesmo – vide facto n.º 5) dos Factos Provados na sentença -, será evidente que, a Ré tem legitimidade passiva para a acção em referência, atento o disposto, conjugadamente, nos artigos 1436º, al. f) e l) e 1437º, n.º 2 do Código Civil.”

A razão jurídica está com o acórdão recorrido, e não com a Recorrente.

Justificando:

Como nos diz Sandra Passinhas (A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2ª ed., p. 338) “…fora do âmbito dos poderes do administrador, o condomínio não tem personalidade judiciária e, portanto, os condóminos agirão em juízo em nome próprio”.

É, aliás, o que resulta necessariamente (a contrario) da alínea e) do art. 12.º do CPCivil, que estabelece que o condomínio tem personalidade judiciária, “relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador”.

Em tudo aquilo que exorbite o âmbito dos poderes legais do administrador, a personalidade judiciária (suscetibilidade de ser parte) recai exclusivamente sobre os sujeitos dos interesses substantivos em jogo, e estes são os próprios condóminos individualmente considerados.

Diferentemente do que parece supor a Recorrente, o art. 1437.º do CCivil não regula sobre a legitimidade propriamente dita (a chamada legitimidade ad causam), mas sim sobre a legitimidade ad processum, isto é, a capacidade processual (capacidade judiciária, que se traduz na suscetibilidade de estar, por si, em juízo).

Tudo exatamente como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 4 de outubro de 2007 (processo n.º 07B1875, disponível em www.dgsi.pt), e passa-se a citar:

«Este normativo [artigo 1437.º] refere-se à capacidade processual e não à legitimidade adjectiva (ad causum) do condomínio, ao invés do defendido no acórdão recorrido. Ao conferir ao administrador a possibilidade de actuar em juízo, o art. 1437º mais não faz do que concretizar uma aplicação do disposto no art. 22º do CPC – que estatui sobre a representação das entidades que carecem de personalidade jurídica – eliminando possíveis dúvidas sobre se aquele poderia, no exercício das suas atribuições, recorrer à via judicial. Fica claro, com o preceito em apreço, que o administrador da propriedade horizontal, na execução das funções que lhe pertencem ou quando munido de autorização da assembleia de condóminos – relativamente a assuntos que, exorbitando da sua competência, cabem, todavia, na competência desta assembleia – pode accionar terceiros ou qualquer dos condóminos, ou por eles ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício. Como anota LUIS A. CARVALHO FERNANDES, “os poderes de representação do administrador não podem deixar de ser encarados e compreendidos à luz da falta de autonomia jurídica do condomínio. Correspondentemente, por referência à personalidade judiciária que lhe é reconhecida, do que no fundo se trata é atribuir, ao administrador, legitimação para agir em nome do conjunto dos condóminos.”

O aludido normativo não resolve, pois, o problema da legitimidade do administrador, que, aliás, não se coloca, visto que este age, em juízo, enquanto órgão executivo do condomínio, e, portanto, em representação deste. Parte no processo, relativamente às partes comuns do edifício – e é só destas que se cura – é o condomínio (que, como vimos já, tem personalidade judiciária, embora não tenha personalidade jurídica), sendo, pois, relativamente a este, e não no tocante ao administrador, que se poderá colocar a questão da legitimidade.»

Como tem sido apontado na doutrina (assim, por exemplo, Rosendo Dias José, A Propriedade Horizontal, p. 133; Rui Vieira Miller, A Propriedade Horizontal no Código Civil, pp. 321 e 322; Aragão Seia, Propriedade Horizontal, 2.ª ed., pp. 214 e 215), o art. 1437.º do CCivil satisfaz a necessidade prática de, no âmbito das funções de administração que lhe pertencem ou que lhe sejam permitidas mediante deliberação da assembleia de condóminos, fazer representar a propriedade horizontal (condomínio) em juízo sem chamar todos os condóminos à ação.

Deste modo, a representação judiciária do condomínio (conjunto dos condóminos) por parte do administrador só tem lugar quando a demanda se refere a poderes de administração que estão legalmente deferidos ao administrador (neste caso existe uma representação judiciária por direito próprio) ou a poderes que a assembleia lhe conferiu (neste caso o administrador assegura aos condóminos a inerente representação judiciária).

É nessa perspetiva que, portanto, deve ser lido o n.º 2 do art. 1437.º.

Ou seja, o administrador pode ser demandado (neste caso possui capacidade judiciária passiva, goza da suscetibilidade de estar, por si, em juízo) nas ações respeitantes às partes comuns do edifício, mas apenas na medida em que a demanda tenha a ver com os poderes funcionais que lhe competem legalmente ou que lhe foram atribuídos pela assembleia de condóminos (entenda-se: por deliberação da assembleia de condóminos, pois que a deliberação é modo pelo qual os condóminos exprimem a sua vontade).

Fora desse estrito âmbito, a demanda terá que ser dirigida pelo conjunto (individualizado) dos condóminos ou contra o conjunto (individualizado) dos condóminos, cessando nesse caso a personalidade judiciária (ficcionada) do condomínio (e a capacidade judiciária atribuída ao respetivo representante orgânico, o administrador).

Diferente disto tudo, é a questão da legitimidade ad causam.

Enquanto a capacidade processual é uma qualidade intrínseca (poder de agir em juízo) que a lei dispensa a quem tenha personalidade jurídica e a outros certos entes juridicamente despersonalizados, a legitimidade ad causam é a legitimidade para agir em determinado caso concreto, consistindo no interesse direto em demandar ou contradizer, interesse que se exprime, respetivamente, pela utilidade derivada da procedência da ação e pelo prejuízo que dessa procedência advenha (v. art. 30.º do CPCivil). Como refere Sandra Passinhas (ob. cit., p. 339), “Só o juiz, e não o legislador, pode decidir sobre a legitimidade ou não das partes”.

Deste modo, impõe-se concluir no caso vertente que a legitimidade passiva ad causam está deferida ao condomínio, pois que é na esfera jurídica dos condóminos (e não na da administradora) que se repercute o prejuízo que possa advir da procedência da ação.

E pese embora o condomínio não tenha sido formalmente demandado, não seria por aí (como não foi) que o condomínio (ou, se se quiser, a sua representante judiciária, a administradora do condomínio) havia de ser absolvida da instância. Foi demandado o representante, e isso já seria suficiente (em todo o caso, observe-se que o tribunal de 1ª instância declarou que a parte ré era o condomínio, representado pela respetiva administração).

Simplesmente, e como adequadamente se decidiu no acórdão recorrido, a questão não é de legitimidade ad causam, mas sim de legitimidade ad processum.

O que significa que a argumentação da Recorrente em torno da legitimidade passiva é pouco menos que inócua.

Aqui chegados, importa então perguntar se o objeto da presente demanda, tal como resulta da causa de pedir e do pedido, tem a ver com os poderes deferidos legalmente ao administrador. O que é dizer, importa saber se réu condomínio goza da necessária personalidade judiciária (suscetibilidade de ser parte) e se a respetiva representante (a administradora) detém capacidade judiciária.

E a resposta que logo se antolha como adequada é a negativa.

Os poderes (funções) do administrador são essencialmente (mas não exclusivamente) os que estão estabelecidos no art. 1436.º do CCivil.

A Recorrente sustenta que são aplicáveis ao caso as alíneas f) e l) desse artigo, do que emergiria que a ação podia ter sido dirigida contra quem a dirigiu (a administradora).

Mas não é assim.

A alínea f) estabelece que é função do administrador realizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns.

Diz-nos Mota Pinto (Teoria geral do Direito Civil, 3.ª ed, p. 409) que os atos de conservação dos bens administrados “são os destinados a fazer quaisquer reparações necessárias nesses bens tendentes a evitar a sua deterioração ou destruição”.

O mesmo afirma Sandra Passinhas (ob. cit., p. 320): “Actos conservatórios são os destinados a evitar a deterioração ou destruição dos bens, podendo ter natureza material ou judicial”.

E Aragão Seia (ob. cit., pp. 207 e 208) expende que “Os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns são, no dizer do Prof. Henrique Mesquita, as acções possessórias e a interrupção dos prazos de prescrição ou de usucapião. Trata-se de actos que nada resolvem em definitivo, que não compreendem o futuro e que apenas visam manter uma coisa ou um direito numa dada situação”.

Sendo assim, como é, não vemos como se possa dizer que a presente ação tem a ver com atos conservatórios a praticar pelo administrador.

Desde logo, é certo que não estamos perante situação como a que acaba de ser prefigurada, e daqui que nunca esteve em causa manter o bem comum em questão ou um direito a ele relativo numa dada situação. Estamos é bem perante o contrário disso tudo, pois que o que se pretende na ação é alterar a situação presente e repor uma outra situação (a passada).

E não foi alegado pela Autora na sua petição inicial qualquer facto que signifique que se impunha à administradora, isto com vista a evitar a destruição ou deterioração do bem comum, providenciar pela demolição da rampa de acesso à fração “E” e pela reposição das escadas que foram suprimidas no local.

Não apenas nada foi alegado nesse sentido, como até o que foi alegado significa à evidência que tudo se passava á margem da necessidade da prática de um ato conservatório que tal.

Isto é assim porque, nos termos alegados pela Autora, o que está em causa é apenas o interesse (iluminação e ventilação) da respetiva fração, sendo que quando a Autora adquiriu a fração “B” já a rampa ali existia (o que não foi sequer objeto de reserva da sua parte). Observe-se que não se está a dizer que não poderá haver lugar à demolição da rampa. O que se pretende significar é tão-somente que da forma como a Autora apresenta os factos nada estes têm a ver com poderes ou funções que se relacionem com a prática de atos conservatórios.

No que se refere à alínea l), estabelece-se aí que é função do administrador assegurar a execução do regulamento e das disposições legais e administrativas relativas ao condomínio.

A nosso ver, as disposições legais e administrativas a que alude esta norma só podem ser as que estão estabelecidas para serem cumpridas (executadas) pelo administrador (órgão executivo do condomínio) e que têm a ver com o modo como o condomínio deve funcionar (organização e gestão do condomínio). Será o caso, por exemplo, da disposição legal (art. 1429.º-A, n.º 2 do CCivil) que o obriga o administrador á feitura do regulamento do condomínio, ou da disposição legal (art. 3.º do Decreto-Lei n.º 268/94) que o obriga a dar publicidade sobre a identidade do administrador em exercício.

Não caem nesse perímetro os atos alegadamente abusivos do próprio administrador (sem prejuízo, naturalmente, para a sua responsabilidade pessoal perante o condomínio e perante os diversos condóminos), e muito menos os atos que, legais ou não, o condomínio entendeu levar a cabo (ainda que através do administrador) ou simplesmente tolerar. De outro modo, o administrador deixaria de ser um órgão executivo do condomínio para passar a ser uma espécie de guardião geral da legalidade no edifício e censor dos atos dos condóminos, o que se afigura não receber o devido apoio legal.

Ora, no caso vertente o que está em causa, repete-se, é uma obra (supressão das escadas e, em sua substituição, construção da rampa de acesso à fração “E”) que foi implementa no edifício.

De acordo com o que foi alegado na petição inicial, a obra teria sido feita abusivamente pela então administradora do condomínio, pois que sem que tivesse sido obtida a anuência e concordância de todos os condóminos. Todavia, do que se pode ler do facto provado n.º 7 é que a construção da rampa foi mandada realizar pelo réu (condomínio), embora sem que tenha havido lugar a deliberação da assembleia de condóminos.

Donde, tanto em face do que foi alegado como em face do que está provado, não se vê como se possa dizer que estamos perante uma situação enquadrável na citada alínea l).

Na realidade, embora a ação respeite a uma parte comum do edifício, o que aqui temos pela frente nada tem a ver com qualquer função do administrador tendente a assegurar a execução de disposições legais e administrativas relativas ao condomínio.

O que está em discussão, ao invés, é um pretenso comportamento abusivo do próprio administrador (isto segundo o alegado pela Autora) ou (como decorre do supra aludido facto provado) um ato (ainda que eventualmente ilegal) do condomínio. Em qualquer dos casos o assunto não tem a ver com os poderes (na realidade, poderes-deveres) do administrador inerentes ao asseguramento da execução de disposições legais e administrativas relativas ao condomínio.

Improcedem assim as conclusões H) a Z), aí onde se defende entendimento diverso.

Isto posto.

Como acima se apontou, o art. 1437.º do CCivil satisfaz a necessidade prática de, no âmbito das funções de administração que lhe pertencem ou que lhe sejam permitidas mediante deliberação da assembleia de condóminos, fazer representar a propriedade horizontal (o condomínio) em juízo sem chamar todos os condóminos à ação.

O administrador pode ser demandado nas ações respeitantes às partes comuns do edifício, mas apenas na medida em que a demanda tenha a ver com as funções que lhe competem legalmente ou que lhe foram atribuídas pela assembleia de condóminos.

Fora desse estrito âmbito, a demanda terá que ser dirigida pelo conjunto (individualizado) dos condóminos ou contra o conjunto (individualizado) dos condóminos, cessando nesse caso a personalidade judiciária (ficcionada) do condomínio e a capacidade judiciária atribuída ao respetivo representante orgânico, o administrador. São os condóminos, por defeito, os titulares dos interesses subjacentes à propriedade horizontal.

Ora, como se julga ter demonstrado, a presente ação não se insere nesse estrito contexto. Não se insere no âmbito dos poderes do administrador, mais propriamente no âmbito dos poderes funcionais previstos nas alíneas f) e l) do art. 1436.º do CCivil.

Sendo assim, como é, nem o condomínio tem personalidade judiciária (suscetibilidade de ser parte) no que se refere ao que nesta ação está a ser discutido, nem a administração do condomínio tem legitimidade ad processum (capacidade judiciária) para litigar (em representação judiciária do condomínio) na presente ação.

Exatamente como se significa no acórdão recorrido, não faz parte do âmbito funcional do administrador (a menos que tenha sido disso incumbido por deliberação da assembleia de condóminos, e não é o caso) proceder a obras inovatórias, a demolições dessas obras e a reposições nas partes comuns do edifício.

Daqui que não estamos perante um litígio que se insira no âmbito dos poderes do administrador, de sorte que o caso não está coberto pela personalidade judiciária estabelecida na alínea e) do art. 12.º do CPCivil.

Ao invés, e dado que o condomínio carece de personalidade jurídica e dado que está em causa uma parte comum do prédio, quem está habilitado legalmente para figurar como contraparte da Autora são os (demais) condóminos, sendo no confronto de todos e cada um (litisconsórcio legal necessário) que deve ser discutida a dissensão em presença: a demolição da rampa e a reposição das escadas. Á administração caberá tão somente executar o que, a partir daí, venha depois a ser eventualmente deliberado e cuja realização lhe seja cometida.

Pelo que fica dito resulta que improcede o recurso, não tendo o acórdão recorrido violado, mas sim respeitado, as normas legais que a Recorrente indica.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.

Regime de custas:

A Recorrente é condenada nas custas do presente recurso.

                                                           +

Lisboa, 10 de maio de 2021

José Rainho (Relator)

Graça Amaral (tem voto de conformidade, não assinando por dificuldades de ordem operacional. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

Henrique Araújo (tem voto de conformidade, não assinando por dificuldades de ordem operacional. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

                                                           ++

Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).