Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8/12.3JALRA.C1. S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
IN DUBIO PRO REO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CÚMULO JURÍDICO
MEDIDA DA PENA
PENA ÚNICA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
Data do Acordão: 01/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO / FORMAS DO CRIME / CONCURSO DE CRIMES - PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - PROVA - JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / PRODUÇÃO DE PROVA / SENTENÇA - RECURSOS / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Binding, citado por Karl Natscheradetz, Direito Penal Sexual, conteúdo e limites, Ed. Almedina, 1985, 124, 151.
- Carmona da Mota, intervenção no Supremo tribunal de Justiça, de 3.6.2009, no Colóquio sobre Direito Penal e Processual.
- Castanheira Neves, Metodologia, 108.
- Costa Andrade, in C.C.C.P., 542.
- Cristina Líbano Monteiro, «Crime Continuado e Bens Pessoalíssimos», Estudos em Homenagem ao Prof. Figueiredo Dias, 732.
- Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, 38.
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 291.
- Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, 217.
- Iescheck, Derecho Penal, Parte Geral, 216; in R.P.C.C., Ano XVI, 155.
- Inês Ferreira Leite, A Tutela da Liberdade Sexual, 11.
- Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 471.
- Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil”, Anotado, III, 158.
- Lobo Moutinho, Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, 2005, Universidade Católica Portuguesa, 617, 619 e ss..
- Miguez Garcia e Castela Rio, “Código Penal “ Anotado, 2014, 384.
- Oliveira Mendes, “Código de Processo Penal” Anotado, Ed. Almedina, 2014, 224, em comentário ao art.º 63.º.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do “Código de Processo Penal”, 47, 199, 347, 896, 1036, 1186; Comentário do “Código Penal”, 162.
- Teresa Beleza, in R.M.P., 1999, 15-59 (56), 1999, citada pelo Prof. Figueiredo Dias, in C.C.C.P., I, 51.
- Abrantes Geraldes, As Recentes Reformas na Acção Executiva e Recursos, 2009, 16.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 371.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 61.º, N.º 1, AL. B), 64.º N.º 1, AL. C), 63.º, N.ºS 1 E 2, 97.º, N.ºS 1, ALS. A) E B), E 5, 113.º, N.º 10, 124.º, 125.º, 127.º, 311.º, N.º 2, AL. A), E 3, 344.º, 358.º, 359.º, 363.º, 364.º, 374.º, N.º 2, 400.º, N.º 1, 410.º, N.º 2, 427.º, 428.º, 432.º N.º 1, ALÍNEAS B), C) E D), 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.º, 71.º, N.º1, 77.º, N.º1, 171.º, N.ºS 1 E 2, 172.º, N.º 1, E 177.°, N.º 1, ALS. A) E B).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 32.º, N.ºS 1 E 5, 205.º
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGO 6.º.
PROTOCOLO À CONVENÇÃO PARA A PROTECÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS: - ARTIGO 2.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 03.04.2003, P.º N.º 3174/06.
-DE 02.05.96, CJ, STJ, IV, II, 177, 04.01.98, CJ, STJ, VI, III, 201, 03.04.2013, P.º N.º 3174/06, 05.01.2014, P.º N.º 3766 /03, 12.03.2009, P.º 07P/ 76 E DE 7.01.2004, P.º N.º 3213/03 E 29.04.92, P.º N.º 42535.
DE 16.01.2013, PROC. Nº 219/11.9JELSB.S1 -3.ª SEC.
-DE 02.05.2012, IN P.º N.º 68/09.4.JELSB.L1.S1 E DE 16.12.2010, P.º N.º 152/06 6GAPNC.C2. S1, 29.04.2009, P.º N.º 329/05.1PTLRS.S1, DE 27.04.2011, P.º N.º 3/07.4GBCBR.C1.S1, DE 29.04.2011, P.º N.º 17/09.OPECTB.C1.S1, E DE 16.01.2013.
-DE 14.05.2015, P.º N.º 8/13.6GAPSR.EL.S1, 25.02.2015, P.º N.º 74/12.1JASR.CL.S1, E OS ACS. DE 08.01.2014, P.º N.º 7/10.OTEL.SB.L1.S1, 08.03.2014, 19.02.2014, P.º N.º 151/11.LPAVFL.L1. S1,0 6.02.2014, P.º N.º 417/11 /13.2.2014, P.º N.º 176/10.9GDFAR.E1. S1, DE 23.04.2014, P.º N.º 169/12.1TEOVE.L1.S1, 27.02.2014, 20.03.2014, P.º N.º 433/10.7.JAPRT.PJ.S1, 13.03.2014, P.º N.º 6271/03.3TDLSB.L1.S1, P.º N.º 798/12.3GC.NV.L1.S1, 7.05.2009, CJ, STJ, ANO VII, TII, 193, 12.11.2009, P.º N.º 200/06.0JAPTM, DE 16.12.2006, P.º N.º 893/05.5.GASXL, DE 19.10.2011, P.º 421/07.8PCAMD, 04.05.2011, P.º N.º 628/08.4GAILH, DE 11.02.2012, P.º N.º 158/08.OSVLSB, DE 21.03.2012, P.º N.º 303/09.9JDLSB, IN WWW.DGSI.PT , DE 26.10.2011, CJ, STJ, ANO XIX, III, 198.
-DE 17.09.2014, P.º N.º 595/12. GTAS LV.G1.S1, DE 29.11.2012, P.º N.º 862/11.6.TA PFR. S1. E 12.06.2013, P.º N.º 1291/10.4DL.SB.S1, E AINDA O RECENTE AC. DE 13.01.2016, PROC. N.º 414/12.
-DE 05.11.2008, P.º N.º 2812 /08 -3.ª SEC., DE 12.06.2013 (CFR. AC. DE 29.11. 2012).
-DE 25.11.2015, PRO. N.º 27/14.5.JAPTM.S1.
-DE 12.07.2012, PROC. N.º 1718/02.9.JOLSB.
-DE 17.9.2014, PROC. N.º 595/12.6TASLV.E1.S1.
-DE 13.07.2011, PROC. N.º 451/05.4JABRG.G1.S1-3.ª SECÇÃO; DE 02.09.2012, PROC. N.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1- 3.ª SECÇÃO; DE 22.01.2013, PROC. N.º 182/10.3TAVPV.L1.S1-3.ª SECÇÃO; DE 17.09.2014, PROC. N.º 595/12.6TASLV.E1.S1-3.ª SECÇÃO; DE 17.09.2014, PROC. N.º 67/12.9JAPDL.L1.S1-3.ª SECÇÃO; E DE 22.04.2015, PROC. N.º 45/13.0JASTB.L1.S1-3.ª SECÇÃO.
-DE 06.10.2010, PROFERIDO NO P.º N.º 107/08.6GTBRG.S1, DISPONÍVEL IN WWW.DGSI.PT
-DE 02.10.96, IN CJ, STJ, III, 174 E DE 21.11.2002, IN WWW.DGSI.PT.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-DE 04.04.2013, DE 21.12.2001 E 13.01.2011, DISPONÍVEIS EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT
Sumário :

I - Quer a alteração substancial quer a não substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia se resumem a uma intercorrência, a um incidente ocorrido na marcha processual, na fase da audiência de discussão e julgamento, não impondo nem os arts. 358.º e 359.º, do CPP e nem o art. 113.º, n.º 10, do CPP (enumerando taxativamente os casos de imperativa notificação pessoal do arguido), aquela comunicação pessoal, cuja regularidade se basta com a comunicação ao arguido, defensor nomeado ou patrono constituído.
II - Advém dos arts. 358.º e 359.º, do CPP, apenas um dever de comunicação da hipotética alteração dos termos iniciais da acusação ou pronúncia, com acolhimento definitivo ou não na sentença; aquele normativismo basta-se com a declaração durante a audiência dessa realidade, comunicada pessoalmente ao arguido, sua defensora, em forma legal, estando absolutamente fora de questão a indicação pelo julgador das provas em que o tribunal se funda para enxertar o incidente porque se não trata de nova acusação ou pronúncia.
III - Equiparando-se a revista à apelação, reserva-se ao STJ, o conhecimento, em exclusivo, no art. 434.º, do CPP, da matéria de direito, sem embargo da excepcional apreciação dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
IV - O STJ pode e deve sindicar a matéria de facto assente se ela estiver inquinada de vícios que comprometam a justa decisão da causa, caso da ocorrência das anomalias previstas no art. 410.º, n.º 2, do CPP, por ser inaceitável que se consentisse na manutenção de uma decisão de direito repousando sobe uma premissa factual deficiente, contraditória nos seus termos ou sempre que, critérios de normalidade, as regras da experiência, aquilo que é de corrente verificação, autorizam a conclusão, a uma análise sem esforço, de que o tribunal incorreu em evidente erro, impondo a fixação de novos factos, ou sempre que pelo recurso aos meios de prova produzidos se imponha acolhimento de diverso acervo factual, mas quando este STJ assim procede, oficiosamente, de resto, não deixa de se manter na reserva de conhecimento, ligada à matéria de direito, por a remoção das anomalias constatadas ser imprescindível a uma boa decisão de direito ancorada numa boa decisão de facto, como deve, capaz de convencer os seus destinatários e a sociedade em geral, funcionando como instrumento legitimador dos tribunais, garantindo que a decisão não procede do arbítrio do julgador, mas de um acto fundamentado, lógico e racional.
V - O erro notório na apreciação da prova não deve confundir-se com a insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto, que cabe no âmbito da livre apreciação da prova.
VI - As declarações da ofendida, constantes de outro processo de inquérito, arquivado pelo MP, cuja certidão se encontra a instruir os presentes autos, onde esta declarou que nunca tinha sido vítima de quaisquer abusos sexual por parte do arguido, é um documento autêntico, porque elaborado pela autoridade policial a quem cabe o exercício da investigação criminal e, nos temos do art. 371.º, do CC, a sua probatória cinge-se á sua autoria material, ou seja prova que emana daquela entidade e que, perante ela, foram produzidas tais declarações da ofendida, mas não já a sua veracidade, pelo que não sendo prova vinculada, tarifária, com uma extensão probatória além da apontada, autoriza a sua livre valoração, a que se procedeu na decisão recorrida, não merecendo, consignando -se na motivação decisória, especial relevância para a situação em apreço tendo em conta a demais prova.
VII - Não se verifica uma violação do princípio “in dubio pro reo” se o tribunal não teve dúvidas e decidiu segundo a convicção formada perante as provas produzidas, havendo que afastar, liminarmente, a aplicação do referido princípio, que não foi infringido.
VIII - O art. 400.º, n.º 1, do CPP, na redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, consagra a irrecorribilidade de acórdãos condenatórios da Relação que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão inferior a 8 anos, pelo que, no caso concreto não cabe recurso da condenação pela Relação quanto às penas parcelares de 4 anos e 6 meses e 7 anos de prisão, impostas, restringindo-se o recurso à pena de concurso cominada, de prisão que excede o limite de 8 anos.
IX - O tipo penal do crime de abuso sexual de crianças não é compaginável com a figura jurídica do crime de trato sucessivo, uma vez que, a configuração do crime de abuso sexual de crianças exige, pressupõe, a afirmação de uma pluralidade de resoluções criminosas na produção do resultado que desencadeiam e que, portanto, se autonomizam como tal.
X - Estando o arguido condenado nas penas parcelares de 4 anos e meio e de sete anos, de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p.e p. pelos arts. 172.º, n.º 1, e 177°, n.º 1, al. a), do CP, na pessoa de M, e na pena de 7 anos de prisão pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177°, n° 1, alínea b) do Código Penal, na pessoa de C, tem-se por inteiramente justa a pena única aplicada em cúmulo jurídico de 8 anos e 6 meses de prisão, considerando: a elevada gravidade dos crimes de abuso sexual cometidos na pessoa da filha M e na da C, filha da sua companheira, ambas conviventes com o arguido (aproveitando-se o arguido do facto de estar a sós com as vítimas, da noite ou da saída do banho, ou da autoridade relação de dependência e autoridade, dispersando-se pelo contacto corporal em diversas zonas erógenas do corpo, como a vulva, a vagina, o peito, as pernas, nádegas, beijando-lhe os lábios e massajando-lhe o peito ao espalhar creme no corpo, estando a filha M nua, isto ao longo de 3 anos - 2003 e 2006 -, quer, ainda, pela manutenção de cópula, pelo menos por 20 vezes, com a C, entre 2007 e 2011); a negação do crimes por parte do arguido que não demonstrou qualquer arrependimento, adequando-se a uma personalidade defeituosa, mal sã, que denota eminente necessidade de excitação e contactos; o dolo reiterado com que o arguido actuou, repetido no tempo, aproveitando-se das relações em curso, olvidando sentimentos de respeito, afeição, carinho e protecção devidos, exigências bem maiores até quanto à filha, orfã de mãe na data dos factos, sobrepondo os de puro egoísmo; as elevadas razões de prevenção geral e especial que se fazem sentir.


Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

Em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, sob o n.º 8/12.3JALRA.C1, da Comarca de ..., J2, Instância Central, Secção Criminal, AA foi submetido a  julgamento e, a final,  condenado nas penas de 4 anos e 6 meses de prisão pela prática, em autoria material,  de um crime de abuso sexual de crianças agravado, de trato sucessivo,  p.e p.  pelos  art.ºs  172º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pessoa de BB,  e na pena de 7 anos de prisão pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, de trato sucessivo, p. e p. pelos  art.ºs. 171º, nºs 1 e 2, e 177º, nº 1, alínea b) do Código Penal,  na pessoa de CC; em cúmulo jurídico foi-lhe aplicada a pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.

Foi, também, condenado a pagar à demandante, assistente, sua filha,  BB,  a quantia de € 3.000,00 a título de indemnização por danos morais causados.

I. Inconformado,  o arguido interpôs recurso para a Relação, que confirmou o   acórdão proferido em 1.ª instância, de novo interpondo recurso para este STJ, extraindo-se da motivação as seguintes conclusões:

1. O Tribunal fez um Julgamento incorreto da matéria de facto, cujo erro notório se alcança do acórdão recorrido, que impõe alteração aos factos provados e decisão diversa da recorrida em matéria penal, erro de julgamento em matéria de direito por inobservância de dispositivos do Código Penal e de Processo Penal, e inobservância de princípios basilares do Processo Penal, designadamente do principio da Presunção de inocência do arguido e do Principio “in dúbio pro reo”.

2. Sendo certo que o Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432º, nº 1 alínea c) do CPP, visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, nos termos do artigo 434º do CPP em conjugação com o artigo 410º nº 2 e 3 CPP, o presente recurso visa a apreciação do erro notório na apreciação da prova, o que desde já se invoca nos termos do artigo 410º, nº 2 alínea c) do CPP.

3. O Acórdão recorrido padece de nulidade insanável por violação do direitos consagrados no artigo 61º, nº 1 alínea c), 358º e 359º todos do CPP, e artigo 32º, nº1 e 5 da CRP/76, violador dos direitos de defesa e do principio do contraditório.

4. A avaliação da matéria provada que é feita pelo Tribunal Recorrido, no que respeita ao arguido/recorrente, merece, salvo melhor entendimento, ampla censura, desde logo porque interpreta incorretamente a prova produzida que, em circunstância alguma, suporta a matéria assente e, consequentemente, sustentar a condenação do recorrente.

5. Baseando-se fundamentalmente no relatório pericial efetuado ao arguido, que quanto aos factos nada esclarece.

6. No entender do recorrente, o acórdão recorrido revela um profundo desrespeito pelas regras e princípios fundamentais que informam a Lei Penal e processual e a própria Constituição da Republica, que conduziu à decisão injusta e, a nosso ver, insustentável da condenação do Arguido na pesada pena de prisão efetiva que lhe foi imposta,

7. Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo nos termos e para os efeitos do disposto no artº 358º, nºs 1 e 3 e 359º, ambos do Código de Processo Penal, em 6/1/2015 na diligencia de leitura de acórdão, foi comunicada ao arguido a possibilidade de alteração não substancial e substancial de factos relativamente à actuação do arguido e em 20/1/2015, reaberta novamente a audiência de julgamento para leitura de acórdão, foi novamente o arguido surpreendido agora com uma alteração não substancial dos factos.

8. O recorrente insurge-se contra a ocorrida alteração substancial e não substancial dos factos de 6/1/2015 e 20/1/2015, e mantida pelo acórdão recorrido porquanto a mesma não foi pessoalmente consentida pelo arguido, sendo que a sua defensora, enquanto defensora oficiosa, não tem poderes especiais para o efeito,

9. O arguido não manifestou o seu acordo expresso, em sede de audiência de julgamento, o que se poderia alcançar caso a sessões de audiência de julgamento ocorrida no dia 6/1/2015 e mesmo a de 20/1/2015, tivessem sido gravadas conforme agora é imposto pela Lei processual penal, o que não foi o caso.

10. Das actas de audiência de julgamento não se alcança sequer que ao arguido pessoalmente tivesse sido colocada a questão de aceitação ou não das alterações substanciais e não substanciais dos factos.

11. Alguma doutrina e jurisprudência tem entendido que o acordo deve ser dado pessoalmente ou pelo seu defensor munido de poderes especiais para o efeito, e que o silencio do arguido não vale como acordo para continuação do julgamento quando o tribunal comunica estar-se perante uma alteração substancial ou não substancial dos factos-Cfr. Ac. Da Relação de Lisboa  de 26-2-2003, Coletânea de Jurisprudência ano XXVII, tomo 1, página 146.

12. O arguido não manifestou o seu acordo expresso, em sede de audiência de julgamento, o que se poderia alcançar caso as sessões de audiência de julgamento ocorridas no dia 6/1/2015 e mesmo a de 20/1/2015, tivessem sido gravadas conforme agora é imposto pela Lei processual penal, o que não foi o caso, não existindo documentação de declarações orais prestadas, em sistema de audio disponível na sala de audiências, conforme impõe o artigo 364º do CPP,

13. Verificando-se a nulidade prevista no artigo 363º do CPP e que se invoca.

14. Quer a alteração substancial ou a não substancial dos factos, são nulas atenta a falta de fundamentação,

15. Quer a comunicação da alteração não substancial dos factos, quer a comunicação da alteração substancial dos factos, deve ser fundamentada, concretizando os novos factos indiciados e respetivos meios de prova de onde resulte essa indiciação, única forma e meio de salvaguardar ao arguido os seus direitos de defesa.

16. Em momento algum se faz referência quanto aos meios probatórios concretos que permitiram ao Tribunal concluir pela existência desses indícios.

17. Esta referencia radica num dever de fundamentação desse despacho e esta completa ausência de fundamentação demonstra uma clara e notória postergação dos direitos do arguido que assim vê claramente esbatidas as suas hipóteses de defesa em clara violação do artigo 61º, nº1 e 99ºº do CPP e ainda do artigo 205º da Constituição da Republica Portuguesa.

18. A decisão não deu cumprimento fiel ao exigido, pois não concretiza ou sequer alude quais os meios de prova de onde resulta a indiciação dos novos factos com relevo para a decisão..

19. A comunicação da alteração substancial ou não substancial não integra um ato decisório ou um ato de mero expediente, conforme realça o acórdão agora posto em crise, mas as proceder-se a uma alteração substancial ou não substancial dos factos, haveria no modesto entender do recorrente que tal alteração decorre das declarações prestadas por tal pessoa, ou analise de tal documento….enfim como se de uma nova acusação se tratasse, onde são indicadas as provas recolhidas que indiciam a pratica deste ou daquele crime,

20. A comunicação efetuada apenas transmitiu os factos, sem explicitar quais os meios de prova atendidos para os indícios do crime…

21. Esta comunicação é a única forma e meio de salvaguardar ao arguido os direitos consignados no artigo 61º, nº1 alínea c), 358º, nº1 do CPP e 32º, nº1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, e a omissão de todo dos meios de prova indiciários é violador, pois, dos direitos de defesa e do principio do contraditório que assiste ao arguido.

22. O principio do acusatório é um dos princípios estruturantes da nossa constituição processual penal, que exige que a decisão final há-se incidir apenas sobre a acusação, havendo o Tribunal de ajuizar dos fundamentos dela, pronunciando ou não o arguido, condenando-o ou absolvendo-o pelos factos acusados, e só esses, de modo a permitir-se que alguém só pode ser julgado por qualquer crime precedendo acusação por parte de orgão distinto do julgador, sendo tal acusação condição e limite do julgamento.

23. Ora o caso dos autos em apreciação, está ferido de nulidade, pois importa uma clara violação do direito de defesa e do princípio do acusatório, e como tal insanável, e invocável a todo o tempo.

24. Nesta medida, pode afirmar-se e concluir-se que a condenação do recorrente-ínsita na sentença- pelos factos que não integravam a acusação, constitui a nulidade do artigo 379º, nº1, alínea b) do CPP, pois esta condenação ocorreu fora do acaso e condições do artigo 358º e 359º do mesmo diploma legal.

25. Atento ao exposto, deverão ser de anular todos os actos subsequentes à comunicação da alteração substancial e não substancial dos factos do dia 6/1/2015

26. No presente processo, o Tribunal, no modesto entender do recorrente, exorbita a prova que lhe foi apresentada e perante si produzida, para chegar a uma decisão sobre matéria de facto, que largamente ultrapassa o que lhe seria permitido concluir.

27. A apreciação da matéria de facto realizada pelo Tribunal recorrido afigura-se ilegitimo, decorrendo da prova produzida em Audiência de Julgamento elementos insuficientes para que se tomassem determinados factos como provados.

28. O julgamento incorreto da matéria de facto impõe alteração aos factos provados e decisão diversa da recorrida, o que se constata do teor do acórdão recorrido, como erro notório.

29. Percorrendo a fundamentação da sentença recorrida, constata-se que a imputação dos crimes de que o arguido vem acusado, não têm sustentação, primando apenas por conclusões infundadas e uma incorreta interpretação da prova, que nunca poderiam ter culminado na condenação do recorrente como efetivamente sucedeu.

30. O Acórdão não tomou em linha de conta a certidão junta à contestação como doc nº 1, e extraída do processo 95/10.9 TAPMS, onde a ofendida CC declarou junto do Ministério Publico de Porto de Mós que nunca tinha sido abordada pelo arguido no sentido de praticar consigo atos de cariz sexual.

31. O Acórdão não considerou as declarações da CC e constantes no processo nº 1203/08.5pblra, cuja certidão se encontra a instruir os presentes autos, onde declarou em 22/10/2008, que nunca tinha sido vitima de qualquer abuso sexual por parte do arguido, AA.

32. O Acórdão recorrido não se pronunciou quanto à certidão junta à contestação como doc 1, e extraída do processo 95/10.9TAPMS, onde uma vez mais a ofendida CC declarou que nunca tinha sido abordada pelo arguido no sentido de consigo praticar atos de cariz sexual.

33. Ora, no modesto entender do recorrente, se as declarações prestadas pelas testemunhas no inquérito não podem ser valoradas em julgamento fora do quadro em que a sua leitura é permitida, nada impede que, enquanto prova documental, as declarações prestadas nos processo 95/10.9TAPMS e 1203/08.5PBLRA, sejam valoradas no ambito dos presentes autos, em que é imputado ao arguido o mesmo tipo de crime,

34. Quanto ao processo 1203/08.5PBLRA, o Sr inspetor da Policia Judiciária, ..., que prestou declarações nos presentes autos, cujo depoimento foi gravado pelas 12h47m e o seu termo a 13h05m, conforme consta de acta de 2/12/2014, e que apesar de ter dito não se recordar de pormenores sempre fez constar do auto o que as testemunhas declararam  e que não as tomaria caso achasse que elas estavam a ser coagidas, e que foram consideradas serias e sem reservas,

35. No modesto entender do recorrente é insuficiente a simples alegação como fundamentação, que o testemunho das ofendidas  “mostram-se coerentes e conformes a outros elementos probatórios existentes nos autos, nomeadamente com os relatórios periciais e as demais circunstancias de contexto”.

36. Salvo o devido respeito quanto a parte dos factos constantes dos presentes autos, verifica-se já a existencia de 3 processos, dois de inquérito e um comum, já identificados, sendo que os primeiros foram sendo arquivados por declarações das testemunhas que agora dão o dito por não dito,

37. Tais factos já haviam sido apreciados pelo Ministério Público, e decidido arquivar, factos que já tinham sido objecto de investigação por tal Magistratura, tendo sido concluido “ não se logrou identificar a existencia de quaçlquer situação de perigo”, conforme consta de certidão extraida do processo 95/10.9TAPMS.

38. As declarações prestadas pela ofendida CC, tal como foram agora avaliadas, como “coerentes e conformes a outros elementos probatórios existentes nos autos”, já no ambito dos identificados processo o haviam sido e não tendo merecido qualquer censura foram aceites como boas e verdadeiras,

39. Pelo que, qual a razão das prestadas nos presentes autos serem verdadeiras e as outras não……ambas foram avaliadas pelas Magistraturas do  Sistema Judicial Português.

40. O recorrente, talvez por deficiencia sua, não descortina a razão, não sendo certamente o relatório percial efetuado ao arguido que determina o que é o arguido fez ou não.

41. O facto do relatorio pericial ter determinado que o arguido revelou “eminente necessidade de excitação e contactos, uma grande vulnerabilidade na escolha das companheiras, vivencia sexual impessoal….denegações, minimizações, racionalizações, atribuições externas e distorçoes cognitivas são outras das caracteristicas de funcionamento da sua personalidade, utilizadas para se autoproteger; a descontração, ausencia de preocupação com aquilo que o rodeia e satisfação consigo mesmo, caracterizam-no e permitem-lhe fazer face a situações de tensão, sem se deixar ficar transtornado e emocionalmente instavel; não tende a experimentar tristeza, medo, emabarço, raiva, repulsa e /ou culpabilidade”, não determina que tenha praticado os afctos de que vem acusado, aliás, no trecho transcrito pelo acórdão agora posto em crise, nem sequer se faz menção da aptencia do arguido para atos sexuais com menores………….

42. O recorrente tem dificuldade em aceitar que o facto da ofendida  CC não conhecer o local onde tais factos aconteceram desde, segunda ela, 2008 a 2011, foi tido como normal,

43. É que a ofendida, que disse ter sido abusada sexualmente pelo arguido vivia na zona da .... e da ... há vários anos, que segundo a mesma tinha sido abusada até ter saído de casa, não conhecia o local onde os factos alegadamente ocorreram…….

44. Os factos relatados pela ofendida CC, foram pormenorizados, e se correspondessem à verdade, certamente marcantes,

45. A habitualidade das ocorrencias relatadas impunha que a testemunha soubesse contextualizar o local

46. E nem se diga, conforme consta do douto acórdão que “é compreensivel que uma qualquer pessoa -ainda para mais uma criança e jovem-, não conhecem a 100% o território da localidade onde residem.”

47. É evidente que não seria exigido o nome da localidade, ou zona onde os factos alegadamente se passaram, mas apenas qual o caminho tomado para tal local, que zona percorriam…….perto de quê?,

48. Mas a ofendida nada soube explicar onde aconteciam os factos alegadamente praticados, o que é manifestamente estranho,

49. O que aliado ao facto das suas declarações prestadas em sede de inquérito e constantes das certidões juntas aos autos referentes ao processo nº 95/10.9TAPMS e 1203/05.8PBLRA, demonstra a inverdade dos factos por si relatados.

50. Atendendo às divergencias agora apontadas o Tribunal de Primeira Instância e o Tribunal da Relação bastou-se com simples justificações, de ser normal não conhecer o local nem saber esclarecer onde era, e declarações divergentes em processos de inquérito diversos sobre os mesmos factos…..sendo tudo normal.

51. Mas o recorrente entende que ao Tribunal incumbia um maior aprofundamento dos factos e confronto das testemunhas com os demais elementos dos autos, para determinar a verdade, o que não fez.

52. E tal insificiencia prova resulta do ocordão recorrido

53. Nos presentes autos não existe a inversão do ónus da prova……..não sendo os relatórios periciais o fundamento de todos os factos que demonstrando traços gerais da personalidade dos arguidos e das testemunhas, quanto aos factos nada demonstram…..

54. O Tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto, porquanto da prova produzida em audiência de julgamento- e também dos próprios autos-não resultaram elementos de prova suficientes para que tomassem como provados os FACTOS 3, 4, 5, 6, 9, 10,11,12,13,14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 28.

55. Perante as versões antagónicas preconizadas em Julgamento por ofendidas e o arguido, entendeu o Tribunal recorrido valorar as declarações das primeiras, em detrimento das prestadas pelo arguido, por considerar que o arguido se limitou a  afirmar que se trata de perseguição, dizendo que se trata de “manobra dilatória” pois a DD tem sido pressionada para não deixar que chegue à filha mais nova agora com sete anos de idade, mas sem convencer, e ainda pelos relatórios periciais.

56. Basta confrontar os depoimentos prestados pelas ofendidas- nunca corroborados por quem quer que fosse- como se demonstrou- com os elementos dos autos, para concluirmos que o Tribunal recorrido não tinha elementos suficientes para dar como provados os factos supra descritos.

57. Quanto ao ponto 3 e 4 dos factos provados, basta confrontar o depoimento da ofendida BB em sede de audiência de julgamento, onde declarou que em ...e, na sala da casa colocava-lhe o dinheiro no elástico das calças, à frente, preso no elástico, e depois massajava-lhe a vulva, por fora das calças, não meteu a mão por dentro, aconteceu uma ou duas vezes em ..., conforme consta de transcrição de prova junta, já em sede de inquérito declarou que o pai a apalpava na zona das mamas e na zona genital, por dentro da roupa, e

58. O seu depoimento, no relatório pericial psicológico à ofendida elaborado em 2013, a ofendida declarou a fls... dos autos “quando cheguei ao pé lembro-me de ele estar com a nota na mão e o braço esticado para cima (…) e lembro-me de eu me aproximar dele para conseguir chegar à nota(…) ele continuava com o braço esticado (…)então ele punha-me a mão dentro das calças e só depois me dava a nota (…) para me dar o dinheiro tinha de me tocar primeiro” (sic)

59. Ora a diferença de relatos demonstra a volatilidade do discurso da ofendida.

60. A prática dos crimes de que o arguido vem acusado, são crimes que quando são praticados, o não são perante outras pessoas.

61. Razão pela qual se atribui uma forte valoração das declarações, neste caso das ofendidas.

62. Não basta manterem que os factos consistiram, no caso da ofendida BB e quanto aos factos alegadamente ocorridos em ... que, o arguido esfregava a vulva, necessário era e impunha-se que os demais elementos circunstanciais fossem coincidentes, o que não acontece……

63. Na verdade, se numa primeira análise o arguido introduzia a mão dentro da roupa da BB e agarrava o dinheiro com uma mão e o braço levantado, por fim e já em sede de julgamento o arguido esfregava a vulva da BB por fora da roupa e após ter colocado o dinheiro no elástico das calças da BB………

64. Verifica-se pois que o único elemento constante foi o facto do arguido ter, alegadamente esfregado a vulva da BB, tendo variado os demais elementos, conforme a oportunidade das declarações.

65. No entanto sem quaisquer outras testemunhas, o seu depoimento não poderá ser valorado, atentas as divergências invocadas.

66. Já quanto aos factos alegadamente ocorridos em ... ainda quanto à BB, mais propriamente quanto aos factos constantes do nº 5, 5,a), b) dos factos provados, pos mesmos não poderão ser tidos em conta pelo Tribunal atenta a nulidade de que padece a comunicação dos mesmos, sem qualquer fundamentação.

67. E acresce ainda que o arguido declarou que a filha, BB, nunca tinha frequentado a casa da ..., conforme consta de declarações prestadas a 25/11/2014, no fim das declarações prestadas pela assistente BB, nos termos do artigo 352º, nº2 e 332º, nº7 do CPP. (Arguido: Pois a questão aqui prende-se com um facto só, é que a BB nunca foi passar nenhum fim-de- semana connosco à ....)

68. A própria testemunha FF, no seu depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com início pelas 12 horas e 03 minutos e o seu termo pelas 12 horas e 17 minutos, declarou que “ no período em que a DD não esteve na casa da ..., ela e a sua irmã não frequentavam a casa da cruz da areia aos fins de semana.

69. Nem mesmo a irmã da BB confirma a frequência desta ultima na casa da ....

70. E mesmo a testemunha DD que prestou declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com seu início ocorreu pelas 12 horas e 18 minutos e o seu termo pelas 12 horas e 39 minutos, da acta de 2/12/2014, confirma que a Marisa não frequentava a casa do pai em Cruz d’Areia, conforme se alcança da transcrição.

71. A ausência da BB da casa da ..., é a final confirmada pela Testemunha DD.

72. Repete-se a BB não ia a casa do pai em ... de 15 em 15 dias.

73. Razões pelas quais os factos relatados pela BB não poderão ser valorados e deverão ser considerados como não provados.

74. Ninguém confirma a frequência da BB na casa da ....

75. É a própria irmã, FF, que confirma que a BB nem sequer usava cremes antes de viver com a DD, conforme se alcança das suas declarações

76. Pelo que sempre o arguido deverá ser absolvido do crime de que vem acusado em relação à filha BB.

77. Devendo em consequência ser considerado como não provado os factos 3, 4, 5, 6 dos factos provados.

78. No que concerne aos factos relativos à ofendida CC, o recorrente insurge-se quanto aos factos nº9, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 17, 18, 19, 20, que deverão ser considerados como não provados.

79. Quanto aos factos relatados e alegadamente praticados na casa da Barosa na pessoa da CC, o arguido negou tais factos,

80. Ora, assim como na casa de ..., onde a ofendida CC declarou que nunca nada tinha acontecido porque a mãe estava sempre em casa,  também na casa da ..., se encontravam as mesmas pessoas, e a mãe também estava em casa, aliás tinha sido mãe da menor GG, há muito pouco tempo.

81.  Pelo que os factos relatados e alegadamente ocorridos na casa da ..., não poderiam ter acontecido, pela mesma razão, declarações essas prestadas, e cujo depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, com início pelas 11 horas e 38 minutos e o seu termo pelas 12 horas e 19 minutos, conforme ata de 25/11/2014.

82. É que já em Leiria, viviam a CC, a DD, a HH, o arguido, a BB e a BB, a FF e finalmente a GG.

83. Em ..., viviam exatamente as mesmas pessoas, conforme declarado pela ofendida,

84. O Tribunal a quo dá como provado o ponto 11 dos factos provados, mais  propriamente que o arguido teria tido relações sexuais com a CC, contra a vontade desta, em dia não concretamente apurada antes do Natal,

85. No entanto é a propria CC que a instancias do Sr procurador declara que  que contraria a acusação, mas o Tribunal a quo dá como provado, e transcreve-se:

Sr. Procurador: Calvaria desculpe. Queria-lhe fazer outra questão, se a senhora se recorda ou não, de alguma, eu peço desculpe pela pergunta, pode ser incómoda, mas tenho de a fazer, se a senhora se recorda de alguma situação em particular que tenha chamado á atenção, ou não?

Ofendida CC: Como assim?

Sr. Dr. Procurador: Se coincidiria por exemplo com uma festa, com o aniversário de alguém?

Ofendida CC: Não! Não tinha nada a ver com isso.

Sr. Dr. Procurador: Com uma passagem de ano?

Ofendida CC: Não, normalmente não coincidia tanto porque nessas alturas havia sempre muito mais gente em casa, muito mais próxima!

Sr. Dr. Procurador: E no Natal ou antes do Natal? Se alguma situação poderia coincidir com algumas datas festivas com uma festa da aldeia…

Ofendida CC: Penso que não

Sr. Dr. Procurador: Muito obrigado Sr. Dr. é só.

86. Portanto  a ofendida não contextualizou temporalmente o alegado facto.

87. Não declara se foi antes do natal

88- É notório que o acórdão recorrido extravasa a prova produzida ao considerar como provado que os factos aconteceram, noutro dia não concretamente apurado, antes do Natal de 2007…… e tal resulta do próprio acórdão.

89- Quanto aos factos alegadamente ocorridos em Santo Antão e Calvaria, que se passariam dentro do carro, num local ermo, também os mesmos não poderão ter ocorrido,

90- Para além do facto da ofendida não conhecer o local onde tais factos aconteceram desde, segunda ela, 2008 a 2011,pelo menos até 2010 os mesmos, segunda a própria, não aconteceram, conforme decorre das certidões judiciais juntas aos autos.

91- A ofendida CC declarou ainda que a pratica sexual com o arguido acontecia também quando a levava para a escola e para a catequese,

92- O arguido uma vez mais negou tais factos,

93- Ora, segundo a ofendida, por vezes acontecia quando a ia levar à catequese, e chegava, mas contrariamente ao declarado pela mãe, que foi informada que a CC faltava às aulas da catequese, toda a aula e não apenas chegava atrasada.

94- Ora, são estes pequenos pormenores que formulam a duvida e uma duvida razoavel, quanto à veracidade dos factos relatados pelas ofendidas,

95- Mais, e quanto aos sms que a ofendida CC declarou que recebia do arguido, também tais factos não devem de merecer qualquer credibilidade,

96- Então se de acordo com a mesma, não aconteciam actos sexuais em casa, entre a CC e o arguido, em ..., porque a mãe estava em casa, como é que poderiam acontecer em ..., onde estavam exatamente as mesmas pessoas, e mais, junto à cozinha, porque era mais perto dos quartos, conforme a mesma declara, é obvio que, não poderão tais declarações corresponderem à verdade,

97- Pelo que por mais esta razão sempre se encontraria instalada a duvida razoável quanto à veracidade dos factos alegados pela ofendida.

98- Pelo que sempre o arguido deverá ser absolvido do crime de que vem acusado em relação à ofendida CC.

99- As declarações, quer da ofendida BB, quer da ofendida CC, demonstram à saciedade que os mesmas não poderão corresponder à verdade, ou pelo menos sempre são susceptíveis de criar uma razoável duvida quanto ao acontecimento dos mesmos

100- Este processo, é um dos quais onde se fez sentir, de forma evidente, a necessidade de adoção de um especial senso critico na depuração dos contributos prestados em sede de audiência de julgamento, máxime para efeitos de determinação da factualidade imputada ao arguido,

101- Senso critico esse que, no modesto entender do recorrente não foi observado pelo Tribunal a quo, não tendo sido tomadas em linha de conta as imprecisões, contradições e inconsistências das declarações das alegadas vitimas, nem mesmo a prova documental junta aos autos.

102- De resto, não assiste qualquer lógica aceitar que um arguido, que alegadamente praticava os actos constantes da acusação longe da “vista” de outras pessoas, os praticasse, quando facilmente poderia ser visto a praticar tais actos, isto é, quando alegadamente se deitava junto da filha BB, a filha FF estava no mesmo quarto;

103- Quando enviava os sms à ofendida CC, era durante a noite, quando estava a casa com as demais 6 pessoas, e o acto sexual teria sido praticado junto dos quartos onde dormiam os demais habitantes da casa,

104- Quando alegadamente tinha atos sexuais com a CC, podendo ter de dar explicações das razões do seu atraso….

105- Enfim….. tudo por demais obvio, que se tratou de um ardil contra o arguido, que não obstante nunca se ter envolvido sexualmente com as ofendidas, lamentavelmente acabou por ser condenado pelo Tribunal em pena efetiva por dois crimes de abuso sexual de menores, em autoria material e trato sucessivo, e bem assim no pedido de indemnização, mesmo que a prova a isso não tenha conduzido.

106- Nesse conspecto, perante a ausência e ou insuficiência de prova quanto aos factos imputados ao aqui recorrente, o Tribunal estava impedido de dar como provada a matéria vertida nos factos nº 3, 4, 5, 6, 9, 10,11,12,13,14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 28, considerados como provados e pelos dois crimes de abuso sexual de menor agravado.

107- Verificando-se erros notórios na apreciação da prova e constantes do acórdão recorrido.

108- E mesmo que assim se não entendesse-o que só por mera hipótese académica se admite, perante as manifestas contradições que se verificaram entre as declarações das ofendidas, das testemunhas e com o teor dos documentos juntos aos autos, sempre estaríamos perante uma duvida inultrapassável que obrigaria o julgador a lançar mão do principio in dúbio pro reo, com vista a tomar uma decisão justa e legal, o que in casu não sucedeu.

109- Errou portanto o Tribunal a quo, erro esse mantido pelo acórdão agora recorrido no julgamento da matéria de facto ao dar como provada a matéria constantes dos factos 3, 4, 5, 6, 9, 10,11,12,13,14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 28, porquanto interpretou incorretamente a prova produzida em sede de julgamento, retirando dos depoimentos das testemunhas de que se socorre para sustentar a condenação do aqui recorrente por factos que não correspondem à verdade como supra se expôs.

110- Perante o supra exposto não vislumbramos por que forma veio o Tribunal recorrido  a decidir no sentido em que o fez, pois que não se provou que o recorrente tenha abusado das menores, sequer as duvidas que surgiram nos autos e na discussão da causa, supra elencadas e discriminadas, permitiam o JUIZO DE CERTEZA, com que o Tribunal veio a decidir.

111- Face à factualidade resultante da discussão da causa nunca o Douto Tribunal poderia concluir pela intervenção do ora recorrente na produção dos factos.

112- É pois manifesto o erro de julgamento do Douto Tribunal a quo, devendo a factualidade ser alterada nos termos supra expostos.

113- É claro e inequívoco que mal andou o Tribunal recorrido ao ter mantido a condenação do arguido pelos crimes p.p. 172º, nº1 e 177ºº, nº1, alínea a) ambos do Código Penal na pena de quatro anos e seis meses de prisão, sobre a menor BB e de um crime de abuso sexual de crianças  agravado, p.p. pelo artigo 171º, nº1 e 2, e 177º, nº1 alínea b) do Código penal, na pessoa da ofendida CC, uma vez que da prova produzida em sede de audiência de julgamento, não ficou demonstrado/provado que o arguido tenha praticado tais actos (as únicas que referiram os actos de abuso sexual foram as alegadas vitimas que entraram diversas vezes em contradição).

114- Nos termos do princípio Constitucional do in dúbio pro reo, persistindo dúvidas sérias acerca da prova produzida em sede de julgamento, as mesmas devem ser valoradas a favor do arguido, o que no caso dos presentes autos, só poderia conduzir- é apodíctico!- a que não se julgassem provados os factos supra referidos, absolvendo-se assim o Arguido dos crimes de que vem acusado.

115- E, nem se argumente, que o Tribunal tem a possibilidade de poder lançar mão da faculdade que lhe é conferida pelo artigo 127º do CPP, que prevê o seguinte: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiencia e a livre convicção da entidade competente.”

116- No nosso sistema processual penal, em matéria de apreciação de prova, rege o artigo 127º do CPP, que estabelece conforme já se disse, o principio da livre apreciação da prova, também designado por sistema de intima convicção ou de prova moral, que se contrapõe ao sistema da prova legal, que implica a pré-fixação pelo legislador da valoração dos meios de prova.

117- Nessa esteira, mesmo que o Tribunal recorrido se refugiasse no princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artigo 127º do CPP, para ter decidido no sentido da condenação, nunca o poderia feito do modo como o fez, pois salvo o devido respeito, não foi feita prova suficiente e conclusiva que lhe permitisse, com base em critérios objetivos, amputara com certeza a verdade material dos factos.

118- Tanto mais que a basicamente fundamentou a decisão com os relatórios periciais constantes dos autos, que nada demonstram quanto à ocorrência dos factos.

119- No presente processo, e sem prejuízo do supra se disse em sede de recurso de matéria de facto, a prova apresentada ao tribunal para valoração e formação de uma convicção imperativamente fundada e objetiva por respeito àquele principio (limitativo da forma como se decide e do arbítrio do julgador) encontra-se inquinada desde o primeiro momento já que da conjugação dos vários depoimentos prestados em audiência de julgamento, das declarações prestadas em sede de inquérito e nos relatórios periciais e da prova documental junta, não é possível determinar, sem margem para duvidas, que o arguido cometeu os crimes de que acusado.

120- A vasta prova produzida em julgamento através dos depoimentos das várias testemunhas que o acórdão recorrido transcreveu, e bem assim os documentos constantes dos autos, nada mais permitem ao julgador que efetuar um malabarismo com percentagens probabilisticas e se já se disse que “Deus não joga aos dados” menos o deve fazer a Justiça dos Homens, pela natural falibilidade do seu pensamento, raciocínio e alcance na projeção abstrata de comportamentos humanos pretéritos.

121- Pela ausência de meios probatórios inequívocos, designadamente dos vários depoimentos prestados em julgamento e os diversos elementos documentais constantes dos autos, nunca o Tribunal poderia ter considerado como assente os factos 3, 4, 5, 5ª), b), 6, 9, 10,11,12,13,14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 28, pelo forte de incerteza que em relação a eles existe, devendo esse Venerando Tribunal lançar mão da aplicação do princípio supra referido, absolvendo, sem mais, o recorrente dos crimes de que vem acusado.

122- A decisão recorrida teve por provados factos que se extraem de meras conclusões, imprecisões, incertezas, e até incorrectas leituras de depoimentos, que se imporia fossem avaliados à luz do principio in dúbio pro reo. Revelou com convicção indubitável, na qual sustenta a condenação do recorrente, indicios e razões infundadas e por isso insustentáveis em processo penal.

123- Considerou sanadas dúvidas insanáveis, que justificariam a aplicação do aludido principio.

124- O Principio “in dubio pro reo” complementa o principio da presunção da inocência e estabelece que na decisão dos factos incertos a duvida favorece o arguido. Impõe, por conseguinte, ao julgador, que valore sempre em favor do arguido um non liquet, ainda que em processo penal não seja admitida a inversão do ónus da prova em seu detrimento.

125- Nestes termos, o Tribunal violou o disposto no artigo 32º da Constituição da Republica Portuguesa ao, perante a incerteza gerada pelos meios probatórios produzidos perante si, ter ultrapassado as inconsistências da prova para, ao arrepio do supra citado postulado de direito adjetivo penal, ter contornado a inconsistência inultrapassável- porque outra conclusão não é passível de ser extraída da prova- da Acusação, terminando com uma condenação que facilmente se demonstra arbitrária. Tal princípio, aplicado em favor do recorrente como se impunha, conduziria à sua absolvição do recorrente dos crimes de que vem acusado.

126- A inobservância do aludido princípio fez o Tribunal incorrer em Erro de Julgamento em matéria de Direito por violação do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, ainda do dispositivo do artigo 127º do CP (no âmbito dos limites endógenos e exógenos que condicionam a livre apreciação da prova pelo julgador), devendo o acórdão ser revogado, produzindo-se acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, que absolva o recorrente, o que se peticiona.

127- Termos em que, também pelo ora invocado, se impunha e impõe a absolvição do recorrente quanto aos crimes de que vem acusado.

128- Quanto à determinação da medida da pena, e sempre sem conceder, os factos já amplamente expostos e (a entender-se que deve prevalecer a condenação do recorrente pelos crimes de que vem acusado- o que por mera hipótese académica se admite) conduzem à inevitável consideração de que a pena concretamente aplicada ao recorrente- em cumulo jurídico, de 8 anos e 6meses de prisão efetiva, é desajustada, desproporcionada e Injusta.

129- Desde logo o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais por crimes da mesma natureza dos presentes autos.

130- Os factos considerados como provados e relativos à filha BB remontam a 2003/2006, isto é, cerca 9 anos.

131- Por outro lado, nunca deverá ser atendida a alteração substancial e não substancial dos factos pretendida pelo Tribunal a quo quanto aos factos relatados pela BB.

132- Ficando-se apenas o Tribunal com uma atuação que remonta a 2003, sem qualquer pratica de coito.

133- Pelo que a pena de 4 anos e 6 meses de prisão é manifestamente exagerada,

134- O mesmo acontecendo com a pena de 7 anos de prisão pela prática do crime de abuso sexual de menor agravado relativo à ofendida CC, onde não deverão ser atendidos os factos constantes da alteração substancial e não substancial.

135- Revelando-se a pena aplicada em cúmulo jurídico manifestamente excessiva, conforme tem sido pratica desse Venerando Tribunal (cfr Acórdão Tribunal Relação de Coimbra 2/11.1GDCNT. C1, in www.dgsi.pt., onde por factos mais gravosos de idêntica natureza, condenação de arguido em 104 crimes de violação agravada p.p 164, nº1 a) e 177º, nº6 do CP; 12 crimes de violação agravada p.p. 164º nº1-a) e 177º, nº5 ambos do CP,, e um crime de sequestro p.p. art.º 158, nº1 do CP, se aplicou em cumulo jurídico, pena semelhante, de 9 anos de prisão.

136- Entendendo sempre o recorrente que ao presente recurso deverá ser dado o devido provimento e o arguido absolvido dos crimes de que vem acusado, ou se assim se não entender a pena ser reduzida por a aplicada ser manifestamente excessiva, conforme exposto.

137- Em obediência ao estatuído no artigo 412º do CPP considerando que os pontos de facto incorretamente julgados, os que deveriam ser dados como não provados, e os meios probatórios que impunham decisão diversa foram objecto de extensa especificação nas conclusões, supra, cumpre ainda indicar:

As normas jurídicas violadas:- Art.ºs  13, nº 1, 18, nº2 e 32º, 205º da Constituição da República; 71º, nº2 alínea d) do  CP, 172º, nº1 e 177ºº, nº1, alínea a), 171º, nº1 e 2, e 177º, nº1 alínea b), todos do CP,  127º do CPP,  358 e 359º do CPP,   363º  e 364º do CPP,  61º nº1 e 97º do CPP

Os princípios jurídicos violados:

Princípio da legalidade, Princípio do Estado de Direito Democrático e Social, Princípio da Proporcionalidade e da Adequação da Medida da Pena, Princípio da Livre Apreciação da Prova, Princípio de Presunção da Inocência, Princípio in dúbio pro reo, Princípio do Direito de Defesa e Princípio do acusatório.

II. Factos provados: 

1- BB nasceu no dia ..., é filha do arguido AA e de ..., falecida em 24.06.2006.

2- BB morava com a mãe na Rua ....

3- Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2003, o arguido Adelino Lamas decidiu começar a ter contactos sexuais com a sua filha BB sempre que tal se proporcionasse, aproveitando ocasiões em que ficavam sozinhos.

4- Em execução dessa decisão, em dias não concretamente apurados de 2003 a Junho de 2006, no interior da residência, sita na Rua..., o arguido AA, pelo menos por duas vezes, quando a mãe da BB lhe pedia dinheiro, aquele, fora da vista da mãe, prendia o dinheiro no elástico das calças da filha BB e depois, quando aí colocava as notas, esfregava, pelo lado de fora das calças, a zona da vulva desta.

5- Na execução daquele seu desígnio, no mesmo período, quando BB ia passar fins-de-semana com o arguido à casa da ..:

a)- pelo menos por quatro vezes, em datas não concretamente apuradas, quando a filha BB terminava o banho, o arguido insistia em ser ele a lhe espalhar creme no corpo todo, estando esta nua e a sair do banho, ele tocava-lhe no peito, nas pernas, na vagina, na vulva, nas nádegas, e nessas ocasiões também lhe beijava os lábios;

b)- noutras alturas, em datas não concretamente apuradas, pelo menos por três vezes, durante a noite, o arguido abordou a filha BB estando a mesma na cama, esta acordou com o arguido a seu lado a massajar-lhe o peito e a vagina sem, no entanto, introduzir os dedos na vagina.

6- Em todas essas situações, o arguido actuou contra a vontade da filha e com o fito de obter para si satisfação sexual e libidinosa.

7- CC nasceu no dia ..., é filha de DD e viveu com os avós paternos em ... até à época em que frequentava o 5º ano de escolaridade.

8- Então, a CC foi morar com a mãe numa casa em ..., ... onde também vivia o arguido AA que era companheiro da DD.

9- Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2007, o arguido AA decidiu começar a ter contactos sexuais com a CC sempre que tal se proporcionasse, aproveitando ocasiões em que ficavam sozinhos.

10- Em execução dessa decisão, em dia, mês e hora não apurados do ano de 2007, na sala da residência sita em ..., o arguido AA mostrou o seu corpo sem roupa à CC, sentou-se ao seu lado no sofá e tentou agarrar o corpo daquela, só não o tendo conseguido porque CC fugiu pelo que apenas lhe deu beijos.

11- Noutro dia não concretamente apurado, antes do Natal de 2007, na sala dessa residência, o arguido AA, que já se encontrava nu, despiu CC, contra a vontade desta, levou-a para o sofá, pôs-se em cima dela e disse: “é hoje que eu tenho aquilo que quero”, tendo, de seguida, introduzido, com força, o seu pénis, na vagina daquela e fazendo movimentos ascendentes e descendentes próprios da cópula, sendo que, em simultâneo, a CC dizia ao arguido que parasse.

12- Após, o arguido disse a CC para não contar o sucedido a ninguém, pois se o fizesse lhe tirava o telemóvel e o computador e colocava a irmã numa instituição.

13- Entretanto, no Verão do ano de 2008, o arguido, a sua companheira DD e a CC foram residir para ... e também nesse período o arguido levou a CC a ter relações sexuais consigo quando a transportava para a escola e para a catequese, igualmente a beijando na boca e apalpando diversas zonas do corpo desta.

14- Nessas alturas, quando o arguido ia levar a CC à catequese, desviava-se do caminho, parava o automóvel em local não apurado, mas ermo e, no banco da frente do automóvel, o arguido, contra a vontade de Carina, introduzia o seu pénis na vagina daquela, fazendo movimentos ascendentes e descendentes próprios da cópula.

15- Em mês não apurado do ano de 2010, o arguido, a sua companheira e a CC foram viver para a residência, sita em ....

16- Em dias, meses e horas não apurados do ano de 2010 e 2011, quando o arguido ia levar a CC à catequese igualmente se desviava do caminho, parava o automóvel em local não apurado, mas ermo e, no banco da frente do automóvel, contra a vontade de CC, o arguido introduziu o seu pénis na vagina daquela, fazendo movimentos ascendentes e descendentes próprios da cópula.

17- Noutras ocasiões, à noite, quando a CC já estava deitada, o arguido mandava-lhe sms dizendo-lhe para ir ter à cozinha e aí introduzia-lhe o pénis na vagina.

18- A última vez que tal ocorreu foi num dia não concretamente apurado de meados de Setembro de 2011, também quando o arguido foi buscar a CC à escola, e, mais uma vez, o arguido desviou o percurso e parou o automóvel numa zona arborizada, contra a vontade da CC, o arguido introduzido o seu pénis na vagina daquela, fazendo os movimentos próprios da cópula.

19- Entre os anos de 2007 e 2011, o arguido AA, pelo menos por vinte vezes, introduziu o pénis na vagina de CC contra a vontade desta.

20- O arguido AA, em execução daquele seu desígnio inicial, agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de satisfazer os seus impulsos sexuais e instintos libidinosos.

21- O arguido sabia que, com as referidas condutas, estava a prejudicar a liberdade e autodeterminação sexual das menores BB e CC, que sabia não terem a capacidade e o discernimento para compreender os actos sexuais a que as sujeitou, estando ciente que ao agir da forma como agiu estava a prejudicar o desenvolvimento da personalidade daquelas.

22- O arguido sabia as idades daquelas menores e que BB era sua filha e que CC era filha da sua companheira com quem vivia, todavia, e, não obstante tal conhecimento, quis e agiu da forma supra descrita.

23- O arguido sabia, ainda, que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.

24- O arguido, com o seu comportamento, causou à BB um estado psicológico de grande vulnerabilidade, com sentimento de vergonha e de intranquilidade, passando a sentir-se insegura, nervosa e instável e com ataques de pânico.

25- A BB sentiu-se ofendida na sua dignidade e esfera sexual e foi prejudicada no seu desenvolvimento global.

26- O arguido AA foi julgado nos seguintes processos:

26.1- Processo sumário nº 107/2001, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., onde foi condenado, por sentença de 23.11.2001, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, por factos ocorridos em 31.10.2001, na pena de 100 dias de multa; efectuou o pagamento da multa em 17.09.2002;

26.2- Processo comum singular nº 931/05.1TALRA, do ... Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de ..., onde foi condenado, por sentença de 15.02.2006, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, por factos ocorridos em 23.12.2004, na pena de 120 dias de multa; a pena foi declarada extinta pelo pagamento efectuado em 27.01.2007;

26.3- Processo comum singular nº 953/07.8TALRA, do ... Juízo Criminal de ..., onde foi condenado, por sentença de 25.11.2009, pela prática de um crime de falsificação de documento, por factos ocorridos no ano de 2006, na pena de 140 dias de multa;

26.4- Processo comum singular nº 478/09.7GAPMS, do Tribunal Judicial da Comarca de  ...s, onde foi condenado, por sentença de 02.02.2012, pela prática de um crime de desobediência qualificada, por factos ocorridos em 28.08.2009, na pena de 150 dias de multa;

26.5- Processo comum singular nº 81/11.1GCPMS, do Tribunal Judicial da Comarca de  ..., onde foi condenado, por sentença de 15.07.2011, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, por factos ocorridos em 15.07.2011, na pena de 4 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano e na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses; em 30.09.3013 a pena de prisão foi declarada extinta por referência a 08.05.2013 e em 18.09.2013 foi declarada extinta a proibição de conduzir por referência a 30.08.2012.

27- O arguido AA, nascido a ..., é o terceiro de oito filhos de um casal; o pai trabalhava como encarregado numa fábrica de têxteis e a mãe era doméstica; o contexto familiar era equilibrado e coeso.

27.1- Iniciou a escola aos sete anos de idade e abandonou aos quinze anos quando frequentava o 8º ano de escolaridade; nessa altura, começou a trabalhar numa fábrica de tecidos desejando obter autonomia económica; passados dois anos mudou-se para a fábrica onde trabalhava o pai para conseguir melhoria de condições de trabalho e salariais; três anos depois foi trabalhar como armador de ferro e cumpriu o serviço militar entre 1978 e 1980.

27.2- Em 1982 começou a trabalhar por conta própria como armador de ferro situação que se manteve até 2003 quando tinha quatro trabalhadores na sua dependência; cessou a actividade por falta de trabalho; depois trabalhou como comissionista, alternando períodos de estabilidade económica com outros de desemprego e de dificuldade; nas alturas de crise contou com o apoio da segurança social; desempregado desde Dezembro de 2013 passou a receber subsídio de desemprego.

27.3- O arguido AA iniciou o relacionamento sexual aos dezassete anos com uma namorada; aos vinte e um anos iniciou a primeira de três vivências em união de facto; no conjunto foi pai de sete filhos: quatro da primeira relação (dois já falecidos, um por doença e outro por abandono e duas raparigas entregues para adopção), duas filhas do segundo relacionamento (a queixosa BB com quem não fala e BB que integra o actual agregado familiar) e uma filha do terceiro relacionamento com DD (que vive actualmente com a mãe); este último relacionamento foi marcado por desentendimentos e queixas de violência doméstica tendo a saída de DD sido facilitada pela intervenção de “Mulheres Século XXI”.

27.4- Actualmente, o arguido Adelino vive num apartamento arrendado, com ... de 24 anos de idade (filha da ex-companheira DD), empregada de balcão, e a sua filha FF de 22 anos de idade, desempregada; dispõem de um rendimento mensal de médio de € 1.150,00 euros, sendo apoiados pela cantina social.

28- O arguido não manifesta arrependimento.

III. A assistente defende o acerto da decisão recorrida.

E neste STJ, o Exm.º Sr. Procurador Geral-Adjunto emite, no seu parecer, idêntico ponto de vista.

Foi cumprido o prescrito no art.º 417.º n.º 2, do CPP.

IV. Colhidos os legais vistos, cumpre decidir:  


Em 1.º instância em 6/1/2015, antes da leitura de acórdão, foi comunicada ao arguido a possibilidade de alteração não substancial e substancial de factos imputados  e em 20/1/2015, reaberta  a audiência foi-lhe  comunicada  uma nova possibilidade  de  alteração não substancial dos factos,  nos termos e para os efeitos do disposto no artº 358º, nºs 1 e 3 e 359.º,  do CPP,  alterações  que, segundo a sua defensora,  não foram  consentidas pessoalmente  pelo arguido,  não dispondo a suaaquela de  poderes  especiais para a sua aceitação,   além de que quer  comunicação da alteração não substancial dos factos, quer a comunicação da alteração substancial dos factos, deve ser fundamentada, concretizando os novos factos indiciados e respectivos meios de prova de onde resulte essa indiciação, única forma e meio de salvaguardar  os  respectivos  direitos de defesa.   

O Acórdão recorrido padece, assim, diz o arguido de nulidade insanável por violação do direitos consagrados no artigo 61º, nº 1 alínea c), 358º e 359º,  todos do CPP, e artigo 32º, nº1 e 5 da CRP/76, violando  os direitos de defesa e do principio do contraditório.

Apreciando:
Quer a alteração substancial quer a não substancial  dos factos descritos na acusação ou pronúncia  se resumem a uma intercorrência, a um incidente ocorrido na  marcha processual, na fase da  audiência de discussão e julgamento, não impondo nem aqueles preceitos e nem o art.º 113.º no seu n.º 10, do CPP, enumerando taxativamente os casos de imperativa   notificação pessoal   do arguido, aquela comunicação pessoal,  cuja regularidade se basta com a comunicação ao  arguido,  defensor nomeado ou patrono  constituido.
A notificação pessoal dos actos aí indicados  é imposta por critérios de racionalidade e de lógica por respeitarem aos actos mais relevantes processualmente com  repercussão directa e   imediata  no estatuto pessoal  do visado.
 No início da sessão  de julgamento, de 6.1.2015, o M.º Juiz proferiu o  despacho do teor seguinte:  «Nos termos e para os efeitos do disposto no arts.º 358.º e 359.º, ambos do Código de Processo Penal, comunica-se ao arguido a possibilidade de serem consideradas as seguintes alteração substancial e alteração não-substancial dos factos “, que enuncia,  certificando   que  o arguido estava presente naquela sessão de julgamento e mais que  dada a palavra à defensora do arguido por esta foi dito «aceitar e nada ter a opor às alterações agora comunicadas e prescindir do prazo previsto no referido art.º 359º, do Código de Processo Penal»;
E  na sessão de julgamento de 20-1-2015 o Mm.º  Juiz Presidente proferiu  despacho do seguinte teor «Verifica-se a possibilidade de ocorrer alteração não substancial dos factos relativamente aos seguintes pontos, pelo que, para os efeitos do disposto no artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal, se comunica ao arguido, para querendo, requer prazo para preparação de defesa, constando que  o arguido estava presente nesta sessão de julgamento e mais que  dada a palavra à defensora do arguido por esta foi dito «nada ter a requerer e prescindir do prazo para preparação da defesa».
Em ambas as sessões se ordenou a notificação pessoal do despacho ao arguido, aí acompanhado da sua defensora oficiosa, como das actas figura, que nada requereu em defesa do seu constituinte tão pouco se opôs à continuação do julgamento.
    
 Ora o  defensor, obrigatório em audiência,   assegura a realização dos  direitos defesa do arguido; ele pratica todos os actos previstos com esse objectivo, com excepção dos que  a lei reserve  pessoalmente ao arguido, podendo nessa hipótese  este retirar eficácia ao acto realizado pelo defensor, desde que o faça anteriormente à sua prática, por declaração expressa, por força do que se preceitua nos art.ºs 61.º n.º 1 b), 64.º n.º 1 c)  e 63.º n.º 1 e 2, do CPP.

A  lei reserva ao arguido a prática ou presença em actos que só ele pode praticar “   …  respeitantes à própria individualidade, sendo inseparáveis  da pessoa e por isso exclusivamente pessoais, insusceptíveis de representação judiciária “, previstos, por ex.º nos art.ºs 140.º, 141.º, 146.º, 150.º, 160.º, 332.º, e 344, segundo o Exm.º Cons.º Oliveira Mendes, CPP, anotado, com outros, Ed. Almedina, 2014, pág. 224, em comentário ao art.º 63.º, do CPP.
 
Sempre que a lei reserve, excepcionalmente, a prática ou a presença do arguido em certo acto, só um defensor munido de  procuração com  poderes especiais  para o efeito exerce os poderes que àquele cabem. Delimitando o âmbito de exercício dos poderes pelo defensor, entende o Prof. Germano Marques da Silva, que os actos do domínio técnico não podem ser rejeitados pelo arguido, com o fundamento de que é incompreensível  que o arguido possa sobrepor-se num domínio que lhe é estranho,  “ paralisando “, entorpecendo  o conhecimento específico da titularidade do defensor, solução que o TC rejeitou  no Ac. n.º 245/97, incluindo o direito das partes em, por si, discutirem questões de facto e direito, no chamado “  núcleo essencial  do “  jus postulandi “ respectivo  –cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 199.
O recorrente apoia-se no Ac. da Rel. Lisboa, de 26.2.2003, in CJ, XXVII, I, 146, mas sem apoio na letra da lei ou com a função do defensor, a quem só é vedada a prática de actos estritamente pessoais, indissociáveis da sua pessoa e intransmissíveis.      
O incidente está regulamentado simplificadamente,  de forma a não prejudicar o  andamento e o desfecho do processo, mas sem deixar de assegurar os princípios gerais de direito processual penal, de defesa do arguido, do contraditório e do acusatório,  este com o significado e alcance de que o processo penal assegura todos  os direitos de  defesa do arguido,  em vista de um processo justo e equitativo nos termos do art.º 32.º n.º 1, da CRP, a quem é conferido o direito a ser ouvido em tudo o que lhe respeite e afecte a sua posição processual, podendo endereçar ao processo exposições, requerimentos ou memorandos, incumbindo o julgamento a uma entidade imparcial a quem é vedado definir o objecto do processo, exercendo uma função separada de quem acusa; o princípio da acusatoriedade com o alcance agora exposto é,  nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, op. it., pá g. 47, “ uma concretização constitucional do princípio da imparcialidade do tribunal “, com tradução nos art.ºs 32.º n.º 5, da CRP, 40.º e 311.º,  n.ºs 2 a) e 3,  do CPP.
O princípo sofre, contudo, atenuação mitigada, ao confiar-se ao Tribunal  o poder dever de concorrer, oficiosamente, para a descoberta da verdade material, nos temos do art.º 344.º, do CPP, em nome da defesa “ pro societate “, que lhe cabe.
Em caso de alteração não substancial dos factos,   a que se equipara a alteração da qualificação jurídica –n.º 3, do art.º 358.º, do CPP, o juiz, oficiosamente ou a requerimento do arguido, comunica –lhe  a alteração e concede-lhe, se o requerer, um prazo para preparação da sua defesa; em caso de alteração substancial –art.º 359.º  e 1.º f), do CPP- o Juiz também concede um prazo para o exercício do direito de defesa, no caso de o M.º P.º, o arguido e o assistente, estarem de acordo  na continuação do julgamento por factos novos, adiando a audiência,  se os factos forem autonomizáveis, ou seja se  integrarem  uma “ variação dos que constituem o objecto do processo “, mas, ainda, dentro do “  facto histórico unitário “, no dizer de Teresa Beleza  e Moreira dos Santos, citados por Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., pág. 896,; caso contrário comunica ao M.º P.º a alteração que vale como denúncia; se não forem autonomizáveis  o tribunal só os pode considerar se os sujeitos processuais estiverem de acordo, pois em caso contrário não os pode considerar na condenação.
A preterição destas linhas programáticas  importa a nulidade da sentença nos termos do art.º 374.º n.º 2, do CPP.   

Tudo orientado no sentido de garantir que o arguido não vem a ser condenado por factos distintos dos que figuram na acusação ou pronúncia, com os quais não pode contar e dos quais não  lhe foi permitido defender-se oportunamente, em respeito  pelo princípio da vinculação temática substanciado na acusação, que define de forma única, irrepetível e definitiva o objecto da sua condenação, em observância do referido princípio do acusatório, com consagração no nosso direito, já o dissemos, sem embargo de sofrer ligeira atenuação, um  desvio,  no caso da alteração substancial ou não dos factos descritos na acusação ou pronúncia, se a houver  em resultado da  instrução.
Quando o Juiz assim procede não está a adiantar a solução  última a concretizar na sentença,  a  inelutável comprovação no imediato,  da hipotética alteração surgida ao longo do julgamento,  um dado assente a incluir no elenco futuro dos factos provados, já em forma de antecipação decisória,  mas a enunciar a  mera  possibilidade  de assim suceder,  seguindo-se  que o arguido, em manifestação do seu direito de defesa, do direito de contraditório,  pode reformular a sua estratégia de defesa, desde logo avançando novas  provas, frisando certos aspectos e, até, substituindo  o  patrono ou opor-se à continuação do julgamento segundo a nova porém ainda não definitiva versão.   

Advém dos art.ºs 358.º e 359.º, do CPP, apenas um dever de comunicação da hipotética alteração dos termos iniciais da acusação ou pronúncia, com acolhimento definitivo ou não na sentença; aquele normativismo basta-se com a declaração durante a audiência dessa realidade, comunicada pessoalmente ao arguido, sua defensora, em forma legal, estando absolutamente fora de questão a indicação pelo julgador das provas em que o tribunal se funda para enxertar o incidente porque se não trata de nova acusação ou pronúncia. 
De outro modo introduzir-se-ia uma fase processual, virtualmente complexa, adensando, acrescidamente, o ritualismo processual, frustrando a celeridade desejável, finalidade que atravessa, sem a conseguir,   transversalmente, no plano teórico, o nosso sistema processual penal.       
É, como se escreve no Ac. recorrido,   “ um projecto de alteração que se sedimenta, ou não, mais tarde, aquando prolação da sentença. E é depois, com a sua notificação, que a alteração, quando acolhida, é comunicada».
A exigência de poderes especiais para resposta por parte do defensor, além de não resultar da lei, é manifestamente redutora das funções do defensor; é sistemicamente  contraditória nos seus termos quando comparada com a prática de certos actos processuais, processualmente importantes, cruciais ao arguido, como, por ex.º a contestação ou a interposição de recurso, que não exigem poderes especiais, não podendo passar em claro  que a  defensora do arguido, em lide digna de reparo, que antes  aceitou expressamente nada opondo,  às alterações, prescindindo de prazos de defesa e acordando na continuação do julgamento,  aquando `da   comunicação da projectada alteração, venha agora, pela segunda vez, ante a 2.ª Instância e o STJ, sustentar a indisponibilidade de poderes para o efeito.

Mas a questão não passa de uma falsa questão, pois o próprio arguido estava presente nas suas sessões, foi-lhe notificada a susceptibilidade de reponderação de novos factos, sem jamais  questionar, por si, essa ponderação adicional, ou reclamar a ineficácia da aceitação e continuação do julgamento,, pois que a comunicação em causa não está sujeita a qualquer formalismo e a sua aceitação inscreve-se no âmbito dos simples de representação pelo defensor.   
             
V. Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo indicar-se expressamente   as razões de facto e de direito da decisão e integram-se no direito  a um processo justo, comportando dignidade constitucional,  no art.º 205.º, da CRP, representando  mesmo uma das maiores conquistas do Estado de Direito, tal exigência quanto aos actos da Administração em geral ( basta recordar a antiga garantia administrativa ), frenando  o tendencial  arbítrio da máquina administrativa e  do próprio Estado; os actos decisórios tomam a forma de despachos e sentenças –n.ºs 1 e a) e b)  e 5, do art.º 97.º,  CPP.

Os despachos  conhecem de  qualquer questões interlocutórias ou põem termo ao processo, nos termos da al. b) do n.º 1, do  citado art.º 97.º; os despachos de mero expediente, limitando-se a ordenar a marcha do processo, sem interferirem no cerne de direitos processuais,   não carecem de fundamentação.

O juiz ao desencadear e accionar  o mecanismo em alusão  cinge-se à constatação de uma realidade e declara-a, mas não enuncia a solução de facto e  de  direito   consequente, pendente    da verificação a final dos factos surgidos no horizonte decisório,  não se estando, assim,  em presença de uma verdadeira  decisão nos moldes em que o legislador  descreve; a fundamentação acaba por ser, ao fim e ao cabo, a exposição  dos termos em que aquela realidade se contém, um “ tertium genus “.

E essa comunicação mostra-se formalmente elaborada, pelo  enunciado concreto, preciso e claro dos factos, desacompanhada da menção de provas, formalidade que se não exige.
  
Improcedendo  a sua pretensão  de se   anular,  e citando-se,  “  todos os actos subsequentes à comunicação da alteração substancial e não substancial dos factos do dia 6/1/2015 “.
VI. Como faz questão de sublinhar  o arguido, o âmbito do recurso para o STJ restringe-se à matéria de direito, cujo reexame é de sua exclusiva competência,  mas apesar disso invoca o vício do erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º n.º 2 c), do CPP.

Este  STJ, historicamente, começou por afirmar-se, por influência do direito emergente  da  Revolução Francesa, a partir de 1876, assim se mantendo até  1926 ( Dec.º n.º 12353, de 22/9 ),    um tribunal de cassação pura, cuja finalidade, própria dos Tribunais situados no topo da pirâmide judiciária, destacados do poder judiciário, mais próximos do poder legislativo,   se resumia a declarar a nulidade ou erro de julgamento e a consequente  devolução ao  tribunal recorrido em vista da sua correcção, conhecendo, apenas, de direito.

Com o rodar dos tempos assistiu-se,  e assim é genericamente (com excepção da Bélgica), na União Europeia,  (incluindo Portugal, como  a Áustria e a Alemanha) à  transição para um regime mitigado de substituição,  em que o Tribunal superior vai, além de verificar as nulidades e erros de julgamento, decidir  sem necessidade de tal remessa, conhecendo,  como regra,  da matéria de direito, debruçando-se  o ST J  na Irlanda, Suécia e Reino Unido,  ainda,  sobre a matéria de facto – cfr. Lebre de Freitas, CPC, anotado, III, 158.

Este sistema de substituição, que erige em fundamento do recurso a infracção das regras  de direito, conhecendo do mérito, emitindo um juízo de rescisão, oferece  a vantagem  de realizar a celeridade, do  maior e melhor   aproveitamento dos meios materiais e humanos, além de satisfazer plenamente as  “…exigências metodológicas  na resolução dos conflitos, pois que a natural incompletude do sistema normativo e a diversidade dos factos em que os conflitos se traduzem, não dispensam  em regra, o constante balanceamento entre a matéria de facto e as normas jurídicas que regulam os conflitos de interesses – cfr. Cons.º  Abrantes Geraldes, in As Recentes Reformas  na Acção Executiva e Recursos, 2009, 16. 

 Equiparando-se a revista à apelação, reserva-se ao STJ, o conhecimento,  em exclusivo, no art.º 434.º, do CPP, da matéria de direito, sem embargo da excepcional  apreciação dos vícios previstos no art.º 410.º n.º 2, do CPP.

Este STJ, de maneira uniforme,  sistemática,  tem afirmado -com a resistência dos  recorrentes -,mantendo-se, sem transigência, na obediência ao primado daquele conhecimento, que o recurso que lhe é dirigido, devendo  fundar-se na  violação de lei, e não no incorrecto julgamento e fixação da   matéria de facto, como recorrente faz, apesar de reconhecer  e declarar  no proémio da motivação, que o âmbito do poder cognitivo  não abrange aquela reponderação.

Significa-se, pois, que ao recorrente, assiste,  unicamente  a faculdade de sugerir ao STJ uma reponderação da matéria de facto, para se furtar e contornar a proibição legal.

Incontestável é que o STJ pode e deve sindicar   a matéria de facto assente  se  ela   estiver inquinada de vícios que comprometam a justa decisão da causa, caso da ocorrência das anomalias previstas no art.º 410.º n.º 2, do CPP, por ser inaceitável que se consentisse na manutenção de uma decisão de direito repousando sobe uma premissa factual deficiente, contraditória nos seus termos ou sempre que,    critérios de normalidade, as regras da experiência, aquilo que é de corrente verificação, autorizam a conclusão, a uma análise sem esforço, de que o tribunal incorreu em evidente erro, impondo a fixação de novos factos,  ou sempre que pelo recurso aos meios de prova produzidos se imponha acolhimento de diverso  acervo factual, mas quando este STJ assim procede, oficiosamente, de resto,  não deixa de  se manter na reserva de conhecimento, ligada à matéria de direito, por a remoção das anomalias constatadas ser imprescindível a uma boa decisão de direito ancorada numa boa decisão de facto, como  deve, capaz de convencer os seus destinatários e a sociedade em geral, funcionando como instrumento legitimador dos tribunais, garantindo que a decisão não procede do arbítrio do julgador, mas de um acto fundamentado, lógico e racional.  

Para além de o arguido  não isolar o segmento decisório inquinado de erro notório na apreciação da prova –art.º 410.º n.º 2 c), do CPC-, que havia de ressaltar do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a outros elementos estranhos àquela, o que se não descortina,  antes  as conclusões do recurso manifestam a sua discordância, por falta de  elementos de prova suficientes para que  se tivessem como provados os factos sob os n.º  3, 4, 5, 6, 9, 10,11,12,13,14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 28, em valoração que faz dos factos, à luz da sua convicção própria, no interesse do arguido, que não tem que  sequer   identificar-se com a do Tribunal, por  forma  a enunciar  o   assertivo  erro de julgamento  na apreciação das provas, proclamado pelo arguido, não se identificando  a divergência  com o erro notório na apreciação da prova.

O erro notório na apreciação da prova não deve confundir-se com a insuficiência da prova para a decisão   da matéria de facto, que cabe no âmbito da livre apreciação da prova –Ac. deste STJ, de 3.4.2003, P.º n.º 3174/06.

Esta STJ, na sua função de tribunal de revista, não reexamina, como regra, a  acerto da matéria de facto fixada   pelas instâncias, encerrando  a Relação o ciclo de tal  conhecimento em moldes definitivos, nos termos dos art.ºs 427.º e 428.º, do CPP     não sindicando  o acerto dos factos provados, deixando o acervo respectivo intocado, inalterado, por  não dispor de imediação com o conjunto das provas, uma relação de proximidade  ao longo da sua produção, maioritariamente em forma oral,  no decorrer da audiência, como é característico e pressuposto na apreciação livre das provas, ao abrigo do art.º 127.º, do CPP. 

O arguido convoca, transcrevendo-os, factos incorrectamente julgados, na quase totalidade, explicitando razões de vária índole, incluindo a não atendibilidade das declarações  da  ofendida CC e constantes no processo  de inquérito nº 1203/08.5pblra, arquivado pelo M.º P.º, cuja certidão se encontra a instruir os presentes autos, onde declarou em 22/10/2008, que nunca tinha sido vitima de qualquer abusos sexual por parte do arguido.

Esse documento é um documento autêntico, porque elaborado pela autoridade  policial a quem cabe o exercício da investigação criminal e, como é próprio de tais documentos, nos temos do art.º 371.º, do CC, a sua probatória  cinge-se á sua autoria  material, ou seja prova  que  emana daquela entidade e que, perante ela, foram produzidas tais  declarações  da ofendida, mas não já  a sua veracidade, pelo que não sendo prova vinculada, tarifária, com uma extensão probatória  além da apontada, autoriza a sua livre valoração, a que se procedeu, não merecendo, consignando -se na motivação decisória, “  especial relevância para a situação em apreço tendo em conta a demais prova “.

O erro de julgamento a  que o Tribunal, em toda a linha, segundo o recorrente, sucumbiu, autorizava o funcionamento do princípio “ in dúbio pro reo “, levando à absolvição do arguido.

 O tribunal apreciou as provas, procedeu ao seu exame crítico, explicitando a razão  do mérito de algumas, repudiando as que não o  mereciam, e, por fim, depois dessa explicação, decidiu fixar    os factos juridicamente relevantes  que, em seu critério, autorizavam  a condenação do arguido, socorrendo-se  de uma panóplia de meios probatórios, validamente adquiridos –art.ºs 124.º e 125.º, do CPP -  em vista da demonstração da responsabilidade criminal do arguido.

 Assim as declarações das menores mostram-se “coerentes e conformes a outros elementos probatórios existentes nos autos”, assentando o  iter decisório na “coerência subjectiva das declarações das menores e verosimilhança suportada“  em  demais elementos probatórios,  nomeadamente nos relatórios periciais; ao invés não lhe mereceu crédito, além do mais,  as declarações do arguido, que  revelou «eminente necessidade de excitação e contactos, uma grande vulnerabilidade na escolha das companheiras, vivência sexual impessoal … denegações, minimizações, racionalizações, atribuições externas e distorções cognitivas são outras das características de funcionamento da sua personalidade, utilizadas para se auto-proteger; a descontracção, ausência de preocupação com aquilo que o rodeia e satisfação consigo mesmo, caracterizam-no e permitem-lhe fazer face a situações de tensão, sem se deixar ficar transtornado e emocionalmente instável; não tende a experimentar tristeza, medo, embaraço, raiva, repulsa e/ou culpabilidade».

O princípio “ in dubio pro reo “  assume-se como a falta de elementos de convicção  suscitando a dúvida de quem julga, e não  que o acusado entende que o tribunal devia ter tido,   em termos de  se mostrar incapaz de firmar  um nexo causal  seguro entre o crime e o acusado, em termos de autoria.  E a dúvida que assalta a mente do julgador é, ou deve ser,  um dúvida selectiva, por dever ser  reflectida, de não primeira aparência,  racional e  permanentemente insuperável  relacionando-se com a matéria de facto, não já  a suscitada em sede de direito porque neste domínio a dúvida resolve-se pelo recurso aos critérios de interpretação e aplicação da lei, optando-se pela solução mais adequada e não já a mais favorável factualmente.

 Sendo uma decorrência da presunção de inocência do arguido, com dominância se entende estar  prevalentemente ligado  e valer só com à relação à prova da matéria de facto, cuja valoração limitativamente  rege, estando, por isso,  excluído do poder cognitivo deste STJ, a menos que se constate que o Tribunal  recorrido incorreu num estado de flagrante dúvida  e não a declarou em desfavor  do arguido  por evidente erro notório na apreciação da prova resultante do texto da decisão recorrida. Configurado, diversamente, como um princípio geral de direito  processual, vigente em sede  de apreciação da prova, a sua apreciação é sindicável pelo STJ, pois se trata de controlar uma regra de decisão, a legalidade do uso dos poderes respectivos na fixação da matéria de facto, cuja  deficiente sindicância ou não aplicação atenta contra os princípios de garantia de defesa, limitando o direito ao recurso. Cfr., neste  sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 347, Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, 217, Acs. deste STJ, de 2.5.96, CJ, STJ, IV, II, 177, 4.1.98, CJ, STJ, VI, III, 201,  3.4.2013, P.º n.º 3174/06, 5.1.2014, P.º n.º 3766 /03, 12.3.2009, P.º 07P/ 76  e de 7.1.2004, P.º n.º 3213/03  e 29/04 /92, P.º n.º 42535.

 No caso o tribunal não teve dúvidas,  decidiu segundo a convicção formada perante as provas produzidas, havendo que afastar, liminarmente, a aplicação do princípio, que não foi infringido ou qualquer outro, bem como os art.ºs  363.º e 364.º , do CPP ,  invocados , mas , sem pertinência , respeitando , como o são , à documentação dos actos de audiência e sua forma .

VIII. A medida das penas:

 Ao arguido foram aplicadas as penas  parcelares de 4 anos e meio e de sete anos, de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado,  p.e p.  pelos  art.ºs  172º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pessoa de BB,  e na pena de 7 anos de prisão pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, ambos de trato sucessivo, p. e p. pelos  art.ºs. 171º, nºs 1 e 2, e 177º, nº 1, alínea b) do Código Penal,  na pessoa de CC; em cúmulo jurídico foi-lhe aplicada a pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.

A agravação é o derivado da relação de filiação da ofendida  BB  com o arguido, seu pai, e da CC enquanto filha da sua companheira e com ele convivente, nos termos do art.º 177.º n.º1 a) e b), do CP, respectivamente, estabelecendo  um moldura penal que comporta o agravamento da pena do tipo simples  (de 1 a 8 anos de prisão, quanto à BB, pela prática de actos sexuais de relevo  com menores dependentes entre 14 e 18 anos  e 3 a 10 anos de prisão, com referência à CC pela prática de cópula),  em 1/3, nos seus limites mínimo e máximo, ou seja de 1 ano e 4 meses  a 10 anos e 4 meses de prisão  e   4 anos a   13  anos e 4  meses de prisão.

O poder cognitivo deste  STJ para decidir enquanto tribunal de recurso mostra-se definida de modo  directamente especificado nas alíneas a), c) e d), do art.º 432.º n.º 1, do CPP, e de modo indirecto por via da remissão que se faz na b), contemplando  as decisões não irrecorríveis proferidas em sede das Relações, nos termos do art.º 400.º, do CPP.

Fundamental é reter o disposto no art.º 432.º n.º 1 c), do CPP, ao subordinar-se o recurso, directo, para o STJ aos acórdãos finais proferidos pelo colectivo ou tribunal de júri que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito, com o que se subtraem do poder cognitivo do STJ as decisões proferidas pelo tribunal singular, não funcionando em júri e que condenem em pena não privativa de liberdade ou prisão, igual ou inferior a 5 anos.

Este preceito harmonizava-se, compaginava-se, de pleno,  com o art.º 400.º n.º 1 e), da proposta governamental n.º 109/X, de acordo com a qual eram irrecorríveis os acórdãos proferidos em recurso pelas Relações que aplicassem pena de prisão inferior a 5 anos, mas esta disposição foi eliminada pela Assembleia da República.

Mas  limitando-se o recurso por via directa para o STJ à reponderação de penas superiores a 5 anos de prisão, ficaria  por compreender –se e aceitar-se que tendo sido aplicada pela Relação uma  pena de prisão de duração igual ou inferior a 5 anos de prisão, goze, ainda, o condenado mais um grau de jurisdição, o triplo, e um de recurso, o segundo.

Isto se diz por identidade ou mesmo maioria de razões, como forma de compatibilizar os preceitos legais, em nome da coerência interna do sistema onde se não concebem contradições, quais “ corpúsculos estranhos “, na expressão de Radbruch.

A interpretação de cada norma susceptível de aplicação não pode ser autónoma e isolada; a norma a aplicar não prescinde da conjugação do artigo 432º, alíneas b), c) e d), e do artigo 400º, nº 1, alínea e) do CPP, fundindo-se num todo unitário, com segmentos que lhe conferem uma dimensão de sentido

O legislador constitucional incluiu, entre as garantias de defesa que o processo penal assegura, no art.º 32.º, da CRP, o direito ao recurso, mas deixou ao legislador ordinário a liberdade de conformação prática desse direito, em termos de,  movendo-se em conformidade com o direito supranacional, mormente o art.º 6.º, da CEDH, que nada mais exige, se bastar com um único grau de jurisdição de recurso e um segundo grau de jurisdição

Não se consagra no nosso sistema jurídico o direito ilimitado ao recurso de todos despachos ou sentenças, admitindo-se que essa faculdade seja restrita a certas fases ou actos do juiz, como igualmente não há lugar ao esgotamento de todas instâncias previstas pela lei de organização judiciária, como igualmente não há um direito irrestrito à audiência de julgamento em sede de recurso ( cfr.  Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, pág. 1036. ) O  art.º 2.º, do Protocolo à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem  e das Liberdades Fundamentais, excepciona do direito ao recurso as infracções menores definidas por lei ou quando o condenado haja sido julgado pela mais Alta instância judiciária  ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso da sua absolvição –n.º 2.

A regra do triplo grau de jurisdição contrariaria  mesmo, segundo este autor, in op.cit., a págs. 1186, o propósito ínsito na Proposta de Lei n.º 109/X, que era o de restringir o recurso de segundo grau para o STJ aos casos de “ maior merecimento penal “, numa manifestação de vontade de “ potenciar a economia processual numa óptica de celeridade e eficiência”

A solução de restringir a recorribilidade à dimensão apontada obedece, pois, a um critério teleológico de interpretação da lei, cuja atendibilidade era conducente  a uma “ regulação materialmente adequada “ da questão a decidir, nas palavras  de Larenz, in Metodologia da Ciência do Direito, pág. 471, ou seja a uma solução lógico –racional da questão .

Ela ajustava-se ao seu elemento  histórico, da “ ocasio legis “, que é a circunstância histórica de onde veio o impulso exterior para a criação da lei, no ensinamento de Ferrara, In Interpretação e Aplicação das Leis, pág. 38; a circunstância jurídico-social do seu aparecimento.

Havia  que fazer apelo, para fixar um campo normativo coerente, à chamada  “redução teleológica”, consistente em reduzir ou excluir do campo de aplicação de uma norma, com fundamento na teleologia imanente à norma, casos aparentemente abrangidos pela expressão estritamente linguística da sua letra (cf. CASTANHEIRA NEVES, “Metodologia”, cit., p. 108) Cfr. Ac. deste STJ, de 16.1.2013, Proc. nº  219/11.9JELSB.S1 -3.ª Sec.

A redução ou correcção a operar respeitava o princípio da proporcionalidade e servia  o interesse preponderante da segurança jurídica.

Este STJ já decidira mesmo nos seus Acs de 2.5. 2012, in P.º n.º 68/09.4.JELSB.L1.S1 e de 16.12 2010, P.º n.º 152/06 6GAPNC.C2. S1, 29.4.2009, P.º n.º 329/05.1PTLRS.S1, de 27..4.2011, P.º n.º 3/07.4GBCBR.C1.S1, de 29.4.2011, P.º n.º 17/09.OPECTB.C1.S1 e no  de 16.1.2013, supracitado,  que era inadmissível o recurso para o STJ de condenação pela Relação na pena igual ou inferior a 5 anos, além de que a credencial da Relação, confirmando as penas, confere a dupla conforme, limitando o recurso para o STJ, restringindo –se apenas à pena unitária excedente àquela.

E a conformidade à CRP foi credenciada, com quase geral unanimidade em vários acórdãos do TC, sendo a alteração recente introduzida ao CPP pela Lei n.º 20/2013, de 21/2, ao art.º 400.º n.º1 e), num intuito interpretativo, a fixar, sem razões para dúvidas, visto o texto legal,  a irrecorribilidade das decisões da Relação que apliquem prisão inferior a 5 anos.

  Complementarmente  é de ter presente que  o art.º 400.º n.º 1, do CPP, na redacção introduzida  pela Lei n.º  48/2007, de 29/8, ao consagrar  a irrecorribidade dos acórdãos condenatórios  da Relação, desde que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão inferior a 8  anos, fornece outra directiva em sede de recorribilidade.

Verificada a dupla conforme, com origem no direito canónico,  e que as penas parcelares, qualquer delas, é inferior a 8 anos, ou a que a  pena unitária, de conjunto igualmente o é, o direito a mais um grau de recurso e de jurisdição é de excluir, de acordo com a jurisprudência uniforme deste STJ, acolhida, desde logo, nos Acs.  recentes  de  14.5.2015, P.º n.º 8/13.6GAPSR.EL.S1, 25.2.2015, P.º n.º 74/12. 1 JASR.CL.S1, a que  se aditam  os Acs. de 8.1.2014, P.º n.º 7/10.OTEL.SB.L1.S1, 8.3.2014, 19.2.2014,   P.º n.º 151/11.LPAVFL.L 1. S1, 6.2.2014, P.º n.º4 17/11 /13.2.2014, P.º n.º 176/10.9GDFAR.E1. S1, de 23.4.2014, P.º n.º 169/12.1 TEOVE.L1. S1, 27.2.2014, 20.3.2014, P.º n.º 433/10.7.JAPRT,.PJ.S1, 13.3.2014, P.º n.º6271/ 03.3 TDLSB. L1.S1, P.º n.º 798/12.3GC.NV.L1.S1,  7.5.2009, CJ, STJ, Ano VII, TII, 193, 12.11.2009, P.º n.º 200/06.0 JAPTM, de 16.12.2006, P.º n.º 893/05.5.GASXL, de 19.10.2011, P.º 421/07.8PCAMD, 4. 5.2011, P.º n.º 628/08. 4GAILH, de 11.2.2012, P.º n.º 158/08.OSVLSB, de 21.3.2012, P.º n.º 303/09.9JDLSB, in www.dgsi..pt, de 26.10.11, CJ, STJ, Ano XIX, III, 198, credenciando o TC a conformidade constitucional  de semelhante entendimento, como se vê dos seus Acs. de 4.4. 2013,   21.12.2001 e 13.1.  2011, disponíveis em www..tribunal.constitucional. pt.

Não cabe, pois, recurso da condenação pela Relação quanto às penas parcelares de  4  anos e 6 meses e 7 anos de prisão, impostas,  restringindo-se à pena de concurso cominada,  de prisão  que excede o limite de 8 anos.     

IX.  O arguido foi condenado pela prática de um crime de trato sucessivo na pessoa das então menores BB e CC tipologia sem consagração no nosso direito positivo, importada  da dogmática alemã, como forma de responder aos casos de prática de uma pluralidade de infracções, cometidas  em momentos temporais distintos, sucessivos, mas em que se torna de difícil ou mesmo impossível a sua  quantificação

Esses delitos de tráfico sucessivo, também denominados de protraídos, protelados ou prolongados ou exauridos, tem merecido alguma referência na nossa jurisprudência sobretudo a respeito dos crimes de tráfico de estupefacientes, de abuso  sexual,  pressupondo  uma unidade resolutiva, que se não identifica  com uma resolução criminosa única, em que se considera haver um só crime, aglutinando,   vários factos criminosos,  cometidos ao longo do tempo, em obediência àquele único desígnio, de punir de acordo  com  conduta mais grave, incluída na totalidade, agravando a responsabilidade a reiteração, algo  paredes meias  com os  ditos crimes  permanentes  ou habituais.

O crime de trato sucessivo supõe, ainda, uma certa conexão temporal e uma certa homogeneidade de factos criminosos, apontando para o mesmo tipo legal de crime ou tipos legais de crimes  protegendo os mesmos bens ou valores jurídicos.

Nos crimes prolongados não é detectável uma diminuição da culpa pelo facto, acentuada pelo grau de  culpa e ilicitude acentuados  pela   deficiente formação da personalidade, que não criou barreiras ao cometimento, não se deixando contramotivar eticamente, incapaz  de  se fidelizar ao direito.

O crime de trato sucessivo envolve uma realização plúrima de  um crime  ou vários,  que  protegem fundamentalmente o  mesmo bem jurídico, executado de forma substancialmente homogénea, manifestado através de uma pluralidade de resoluções criminosas  na produção do resultado que, sendo autónomas,  se  unificam  no quadro de uma única resolução criminosa. Assim, cfr. os Acs. deste  STJ, de 17.9.20 14, P.º n.º 595/12. GTAS LV. G1.S1, de 29.11.2012, P.º n.º 862/11.6.TA PFR. S1. e  12.6.2013, P.º n.º 1291/ 10.4DL.SB. S1 e ainda o recente Ac. deste STJ de 13.1.2016,  Proc. n.º 414/12.

      

   Na doutrina, e para Lobo Moutinho, in     Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, 2005, Universidade Católica Portuguesa, pp. 617, 619 e  segs., os crimes de trato sucessivo correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediando intervalos entre eles. O crime de trato sucessivo será reconduzível à figura do crime habitual, como refere o mesmo autor, op.cit. página 620, nota 1854).

 A  jurisprudência deste STJ  já  considerou que  o crime de abuso sexual poderia   preencher  um crime de trato sucessivo naquele  Ac. de 29.11.2012, que se distingue do crime continuado, segundo o descritivo do art.º 30.º n.º 2, do CP, porque este supondo é certo  uma pluralidade de infracções praticadas em condições substancialmente homogéneas, a solicitação de um conjunto  de solicitações exteriores à pessoa do agente,  há –de diminuir  de forma considerável a culpa do último, abrangidas como estão num dolo contínuo,  abrangente, que se apresenta como um fracasso psíquico do agente (no dizer de Iescheck, in Derecho Penal, Parte Geral, 216),     persistente e padronizado, a que a lei concede protecção, por gerar uma situação de tolerada sucumbência e um menor juízo de censura se o agente  não criar  a ocasião favorável  a essa repetição ou a procurar activamente.     

 Se, pois, o crime fica a dever –se a um conjunto de circunstâncias que o agente praticou, preparou, potenciou ou se aproveitou    ou a uma  qualidade essencialmente desvaliosa da personalidade do agente, então é de afastar a figura da continuação criminosa, com origem histórica na Idade Média como forma de evitar uma acumulação material de crimes que, em caso de pequena gravidade, sobretudo  furtos,  desencadearia pesada condenação.

E em jeito de síntese, ou a culpa foi das circunstâncias ou por estas proporcionada   ou do agente, neste caso, então,  desaparece a  razão legitimante da continuação criminosa – cfr. Cristina Líbano Monteiro – Crime Continuado e Bens Pessoalíssimos, Estudos em Homenagem ao Prof. Figueiredo Dias, 732.

 O legislador à luz  a redacção da lei n.º 59/2007, de  4/9, veio a estabelecer, alterando  o n.º 3, do art.º 30.º, do CP, a respeito do crime continuado, que o seu regime não abrange os crimes contra bens eminentemente pessoais, que são os descritos no Tìtulo lI, do CP, salvo tratando-se da mesma vítima,  vindo a Lei   n.º 40/2010,  de 3/9, a alterar  o regime desse  n.º 3, do art.º 30.º, do CP, pondo  termo, de forma indubitável, a esse   equívoco legislativo do antecedente, causando alguma celeuma na opinião pública, enunciando que o disposto no n.º 2, do at.º 30.º, do CP, definindo o crime continuado  “ … não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais “, pelo que o crime continuado fica, agora,  restrito à pluralidade de infracções a bens não eminentemente pessoais, independentemente do número de sujeitos  lesados.  

 A seguir-se o sentido inovador da redacção de 2007 ao n.º 3,  do art.º 30.º, do CP, seríamos conduzidos a um “ resultado chocante e absurdo “ de ter de ver-se o agente do crime autor de um só crime, quando sobre a vítima praticou uma pluralidade, ofendendo o sentimento jurídico reinante na comunidade, sobretudo quando fossem  alvo, crianças, idosos e incapazes, vivendo sob o mesmo tecto, autoridade, orientação  e dependência, impondo uma imperiosa interpretação restritiva à luz da lógica, razão e dignidade pessoal, como se sublinhou no Ac. deste STJ, de  5.11.2008, P.º n.º  2812 /08 -3.ª Sec.

O crime continuado com ofensa de bens eminentemente pessoais   recebeu com a coerente alteração de 2010, uma sentença de “ morte “, no sugestivo dizer do  citado Ac. deste STJ, de  12.6.2013,que, aceitando a controvérsia na qualificação jurídica, reputou o crime de abuso sexual como de trato sucessivo, na esteira do Ac. de 29.11. 2012.  

Mas  mesmo a qualificação jurídica adoptada no Ac. recorrido, de crimes de trato sucessivo, quantos abusos sexuais de criança,  confirmada pela Relação, advinda da 1.ª instância, que já modificara a de crimes  continuados  imputados na acusação, não escapa ao crivo da crítica, escrevendo Paulo Pinto de Albuquerque, que , transcreve-se   “ …É inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime de trato sucessivo ficcionando o legislador um dolo inicial que engloba todas acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador. “, in Comentário do Código Penal, pág. 162.    No caso de  sucessão de vários crimes contra bens  eminentemente pessoais, deve punir-se  as condutas do agente em crime efectivo; é a consequência prática da supressão da benesse do crime continuado, finaliza o comentário, apud op. e loc. cit.

Assim sendo fica sem compreensão que  no  presente caso de abuso sexual de,  enquanto qualificado como de trato sucessivo, se  ficcione, uma unidade resolutiva, abrangida por um único dolo inicial, que a realidade e as leis da psicologia desmentem, apontando para um dolo fraccionado, uma renovação da vontade criminosa, visível nos separados actos  de consumação distanciados por  visíveis  hiatos  temporais.

 A aplicação do trato sucessivo quando, como sucede nos crimes de abuso sexual de menores, estão em causa bens eminentemente pessoais é igualmente rejeitada no muito recente acórdão deste Supremo Tribunal, de 25 de Novembro de 2015, proferido no processo n.º 27/14.5.JAPTM.S1, «pelas mesmas razões por que se não aceita a configuração do crime continuado» em tais situações.

No acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de Julho de 2012 (Proc. n.º 1718/02.9.JOLSB), foi mantida a condenação do aí arguido pelo concurso de vários crimes de natureza sexual praticados contra o mesmo ofendido, referindo-se, então, após exaustivo levantamento doutrinal, que o comportamento do arguido evidenciava «uma persistente, e renovada, vontade de violar a lei e aviltar as vítimas e que, «em cada um dos actos sexuais praticados, e em relação a cada uma das vítimas, consumou-se uma decisão, uma opção de vontade, perfeitamente delimitada na sua autonomia em relação a todas as outras».

X. A questão da qualificação jurídica não foi colocada às instâncias de recurso, mas a matéria de facto comprovada  permite concluir que, por ex.º, em relação à ofendida CC, filha da sua companheira,  o abuso se consumou mediante cópula,   por, pelo menos,  20 vezes, ao longo dos anos de  2007 ( antes do Natal )  a 2011, entre os seus 10  e 16 anos ( nasceu em ... )  e em relação à filha BB, nascida em...,  mediante actos  sexuais de relevo, como esfregar-lhe  a zona da vulva desta, ou, terminado  o banho, o insistir em ser ele a  espalhar creme pelo   corpo,  todo nu, tocando lhe no peito, nas pernas, na vagina, na vulva, nas nádegas, beijando-lhe os lábios, acordando  com o arguido a seu lado a massajar-lhe o peito e a vagina sem, no entanto, introduzir os dedos nela,  isto por  7 vezes, pelo menos, entre 2003 e 2006, ou seja entre os 10 e 13 anos,   apontaria para um concurso efectivo e real de infracções prejudicial ao arguido, redundando essa mutação em “ reformatio in pejus “, não consentida.

 Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes.

No acórdão deste Supremo Tribunal, de 17 de Setembro de 2014 (Proc. n.º 595/12.6TASLV.E1.S1), num caso em que o aí arguido fora condenado, em concurso efectivo, pela prática de vários crimes de abuso sexual de criança (sua enteada) e reivindicava a sua condenação pela prática de um crime de trato sucessivo de abuso sexual, entendeu-se:

«O crime de trato sucessivo, embora englobe a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea, é unificado pela mesma resolução criminosa, bastando a prática de qualquer das condutas para que fique preenchido o tipo legal de crime.»

No caso aí tratado, pode ler-se que  «as acções adequadas à produção do resultado, ainda que de forma sucessiva, não se encontram interligadas de forma a que só possam produzir o resultado numa adequação conjunta de todas elas. Outrossim, cada acção produz o consequente resultado», inexistindo uma «unidade típica de acção». A renovação de acção criminosa reiteradamente desenvolvida produz, lê-se no mesmo aresto, o consequente e adequado resultado. Embora se verifique homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade de resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal, pelo que inexiste o crime de trato sucessivo.  ”

E outras decisões deste Supremo Tribunal se podem convocar no sentido de que, no caso do crime de abuso sexual de crianças, o entendimento é o da integração da pluralidade de condutas à figura do concurso efectivo de crimes, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente ao crime de trato sucessivo.  Neste sentido, de entre outros, acórdãos de 13-07-2011 (Proc. n.º 451/05.4JABRG.G1.S1-3.ª secção); de 2-09-2012 (Proc. n.º 2745/09.0TDLSB.L1.S1-3.ª secção); de 22-01-2013 (Proc. n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1-3.ª secção); de 17-09-2014 (Proc. n.º 595/12.6TASLV.E1.S1-3.ª secção); de 17-09-2014 (Proc. n.º 67/12.9JAPDL.L1.S1-3.ª secção); e de 22-04-2015 (Proc. n.º 45/13.0JASTB.L1.S1-3.ª secção).

Sendo que o tipo penal do crime de abuso sexual de crianças não é compaginável com tal figura jurídica, uma vez que, a específica configuração do crime de abuso sexual de crianças exige, pressupõe, a afirmação de uma pluralidade de resoluções criminosas na produção do resultado que desencadeiam e que, portanto, se autonomizam como tal.

  XI. Os critérios de formação da  pena de conjunto destacam-se dos da fixação da pena parcelar, pois se trata, agora,  de uma   ponderação casuística  dos factos no seu conjunto, na sua globalidade, sem abstrair d  a sua ligação com a personalidade do arguido –art.º 77.º n.º 1, do CP, este um  critério especial, acrescido,  subtraindo discricionariedade ao julgador,  de forma a indagar se eles representam um confronto  esporádico, acidental, com a lei, de origem exógena, ou, pelo contrário uma manifestação endógena    da pessoa do agente, uma qualidade desvaliosa naquele  radicada sob a forma de delinquir.

A pluriocasionalidade criminosa não é, sem mais,   elemento seguro da predisposição do agente para o crime, que não é mera  resultante de um acumular   material de factos criminosos, uma estratificação  mas antes uma visão de sentido, assente em novos critérios ponderação sob pena de repetição inútil.

  A pena de conjunto está vocacionada para a formação de uma nova conformação, que repensa, critica e normativamente, essa realidade  isolada, nova, que se eleva  racional, não arbitrariamente,  objectivadamente acima   da “  pena disponível “, segundo Iescheck, RPCC, Ano XVI,155, de modo  a fundar  conclusão segura   sobre se é  uma manifestação acidental do agente    ou se, pelo contrário, ela  exprime   uma  “íntima  conexão entre crimes “, que   deva considerar-se  uma inclinação para a prática do crime, uma indiferença  enraizada para com bens ou valores jurídicos, que não de deixar de ser  relevante do ponto de vista do juízo de  censura e consequente culpa, exacerbando-as. Cfr.  CP  Anotado, Miguez Garcia e Castela Rio, 2014, 384, se, pois,  dissociada de uma “ carreira “ criminosa ou uma propensão que aquela exacerba –cfr. Acórdão do STJ de 06-10-2010, proferido  no  P.º n.º 107/08.6GTBRG.S1,  disponível in www.dgsi.pt.- pela  marca de associalidade. 

E essa especificada ponderação é a que mais  se conforma com a humanização da pena, impondo um exame crítico daqueles factores de ponderação, uma nova forma, porém integrante da decisão, de inteligenciar, perceber e sancionar   a realidade ressurgida, a verter num novo  formato, que é o cúmulo jurídico, refutando-se  os princípios da pura absorção e da exasperação  na composição da pena.

A pena que se procura alcançar é, ainda, a  pena  justa,   qualitativa e quantitativamente proporcionada, escrevendo  -se até  que o maior desafio da moderna penologia   se concentra  nessa busca,  em termos de o mal infligido não exceder o benefício logrado com o crime.

A pena justa é a necessária, na concepção de Von Liszt, adequada e proporcional ao mal cometido,  conforme  aos fins  de defesa da sociedade, protegendo os interesses jurídicos dignos de ascenderem à categoria  penal   e à recuperação do agente, enfraquecida   como se mostra a função  retributiva da pena, face à consideração de que em todo o mundo o crime não diminuiu e as cadeias estão superlotadas,  sinal de que não é, também,  na punição  do mal pelo mal que se obtém ganho de causa na luta contra o crime, por isso se compreendendo que no art.º 40.º n.º 1, do CP, o legislador consagre uma visão pragmática da pena, afastando-se dos sistemas mistos, ainda dominantes, que a combinam com aquela feição retributiva, posto que em declínio.              

De grande relevo é, na doutrina do Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime,pág.291, a influência da análise do previsível efeito da pena sob o comportamento futuro do agente e em geral.

A pena de concurso  escapa, no nosso direito, e no americano, onde se ensaiou  um modelo matemático e programado, sem êxito, por ser incapaz de responder à especificidade de cada condenado e caso, a um cálculo matemático, não se aderindo ao esquema de “  compressão e expansão  “, adido de uma fracção aritmética seja qual for,  em crescendo conforme a gravidade,  a pluralidade  dos crimes e a personalidade do agente,   sobre a pena mais elevada, por forma a aglutinar as demais naquela proporção,  porque, com o devido respeito se diz,  carece de tradução legal e não olhar àquela especificidade individual e concreta,  como sustentou o Exm.º Cons.º Carmona da Mota, in intervenção neste STJ, de 3.6.2009, in Colóquio  sobre Direito Penal e Processual.   

Os critérios estão prédefinidos na fixação da pena de conjunta, não se reconduzindo a uma visão atomística,  a uma mera soma aritmética  das penas penar parcelares, relevando a  valoração, a imagem global dos factos, de modo a surpreender-se a personalidade do agente  neles reflectida  e a sua maior ou menor capacidade de  observância ou não do seu dever, como pessoa,  de conformação ou desconformação, em maior ou menor grau, às exigências normativas  de sobrevivência colectiva e, nessa medida, se acolhem uma tendência incrustada   para o crime, enraizada em qualidades desvaliosas prontas a eclodir,  exacerbando a punição ou se manifestam uma pluriocasionalidade, uma acidentalidade no  “iter “ vital.

  Constam  do passado do arguido 5 condenações, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal,  emissão de cheque sem provisão, falsificação de documento, desobediência qualificada e crime de condução de veículo, crimes de pequena e média gravidade, não obstante,  não é bom  o seu comportamento anterior.

Os crimes de abuso sexual cometidos na pessoa da filha ... e na da CC, filha da sua companheira,  ambas conviventes  com o arguido,  repugnam à consciência colectiva,  que aqueles reprova com severidade,  já pela gravidade de que se revestiram, já porque assim são havidos no tecido social, aproveitando-se  o arguido do facto de  estar a sós com as vítimas,    da  noite  ou da saída do banho, ou da autoridade relação de dependência e autoridade,    dispersando-se pelo  contacto corporal  em  diversas  zonas erógenas do corpo, como a vulva, a vagina, o peito, as pernas, nádegas, beijando-lhe os lábios e massajando-lhe o peito ao   espalhar creme no corpo,  estando a filha  BB  nua, isto ao longo de 3 anos ( 2003 e 2006),  quer, ainda, pela manutenção de cópula, pelo menos  por 20 vezes, com a CC,  entre 2007 e 2011.

  Antes do Natal de 2007, na sala dessa residência, o arguido A...,  nu, despiu CC, contra a vontade desta, introduziu-lhe o pénis erecto na vagina  e a pretexto de  levar a CC à catequese, desviava-se do caminho, parava o automóvel em local não apurado, mas ermo e, no banco da frente do automóvel, mantinha cópula;  em dias, meses e horas não apurados do ano de 2010 e 2011, à noite, quando a CC já estava deitada, o arguido mandava-lhe sms dizendo-lhe para ir ter à cozinha e aí introduzia-lhe o pénis na vagina e a  última vez que tal ocorreu, num dia não concretamente apurado de meados de Setembro de 2011, também quando o arguido foi buscar a CC à escola, e, mais uma vez, o arguido desviou o percurso, parou o automóvel numa zona arborizada, contra a vontade da CC, o arguido praticou cópula com e contra a vontade da menor.  

O objectivo era a satisfação da sua lascívia com total inconsideração e desprezo pela idade das então crianças, respeito absoluto  que lhes era devído,  aproveitando-se  da relação familiar, dependência e convivência préxistente, sobressaindo  que o arguido em vista da satisfação da sua lascívia, quando a mãe da BB ( entretanto falecida )  lhe pedia dinheiro, ia ao  ponto de, fora da vista da mãe, prender o dinheiro no elástico das calças da filha  e depois, quando aí colocava as notas, esfregava, pelo lado de fora das calças, a zona da vulva desta.  

 O arguido, deu-se como provado,  com o seu comportamento, causou à BB um estado psicológico de grande vulnerabilidade, com sentimento de vergonha e de intranquilidade, passando a sentir-se insegura, nervosa e instável e com ataques de pânico, um quadro nosológico de frequente ocorrência, típico, e sequelas sem termo, quantas vezes, à vista,  sentindo-se se ofendida na sua dignidade e esfera sexual além que foi prejudicada no seu desenvolvimento global.

O arguido negou a prática dos crimes, não mostrando qualquer arrependimento, adequando-se a uma personalidade defeituosa, mal sã,  que  denota  “ eminente necessidade de excitação e contactos, uma grande vulnerabilidade na escolha das companheiras, vivência sexual impessoal … denegações, minimizações, racionalizações, atribuições externas e distorções cognitivas são outras das características de funcionamento da sua personalidade, utilizadas para se auto-proteger; a descontracção, ausência de preocupação com aquilo que o rodeia e satisfação consigo mesmo, caracterizam-no e permitem-lhe fazer face a situações de tensão, sem se deixar ficar transtornado e emocionalmente instável; não tende a experimentar tristeza, medo, embaraço, raiva, repulsa e/ou culpabilidade», consta do relatório pericial à sua personalidade, a fls. 619 e 620.

E a ser credível – anote-se- a declaração  oriunda da filha BB, exarada na fundamentação  de fls 761, in “ fine “,   segundo a qual ao sair do banho o arguido queria ser sempre a massajar-lhe o corpo, dizendo-lhe “ que tinha que aprender a beijar “, e que “as meninas deviam perder a virgindade com o pai e deviam masturbar-se e por dois dedos na vagina“   não deixa o arguido, considerando, ainda, o traçado da  sua vida sexual pregressa,  de ser propenso à prática de actividade sexual  marginalmente  às regras institucionalizadas, da lei, letra morta para si, de qualquer preconceito e sentido ético nesse domínio,  a quem apenas interessa a satisfação  infrene dos seus apetites sexuais, demandando sérias necessidades de interiorizar pela via da pena o mal feito à filha e à filha da sua companheira na data dos factos, DD.

 XII. O ser-se criança importa  percorrer um longo, por vezes sinuoso, e progressivo caminho na formação da personalidade e vontade individual, sendo impensável que a criança possa desenvolver a sua personalidade sexual de forma saudável, isolada num mundo asséptico, sozinha e sem enfrentar quaisquer tipo de influências negativas, todavia a iniciação sexual de forma precoce e pervertida, com a instrumentalização do menor como objecto de puro prazer, desligado de quaisquer componentes afectivas, levaria  a uma  perigosa  “coisificação da pessoa “,  escreve Inês Ferreira Leite, in A Tutela da Liberdade Sexual, pág. 11.

O tipo legal propõe-se tutelar a liberdade sexual  individual de forma a que ela decorra de forma normal,   sem pressas ou sobressaltos, mas  essencialmente  sem traumas ou influências  negativas,   depois  sem remédio. 

O que se intenta é, com a incriminação, defender a criança de actos ofensivos da  sua sexualidade,  por isso além de contenderem com o sexo, em vista da satisfação de  instintos sexuais,    hão-de revestir-se de uma certa gravidade, uma “ ofensa séria e grave à intimidade e liberdade  “ da vítima, invadindo a reserva da intimidade e  privacidade pessoais, que  são   intocáveis, como é de definição uniforme o acto sexual de relevo, pressuposto na punição –cfr., entre outros, o Ac. deste STJ, de 2.10.96, in CJ, STJ, III, 174 e de 21.11.2002, in www.dgsi.pt.

O legislador presume, juris et de jure, que a prática de actos sexuais de relevo com menor ou em menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor, segundo a Prof. Teresa Beleza, R MP, 15-59, pág, 56, 1999, citada pelo Prof. Figueiredo Dias, in CCCP, I,  pág. 51; o legislador presume a falta de vontade e a ausência de consentimento, que manifestado não exclui a culpa e nem a ilicitude,  havendo quem defenda a  atenuação  da força dessa presunção ante a  pública e maciça  “ sexualização “ a que se assiste ( cfr. Prof. Costa Andrade, in CCCP, pág. 5 42  ),  como contraponto a uma “ histeria de massas “ reclamando uma punição sem compaixão “  dos abusadores de crianças, vendo neles a presença do “ inumano no humano “  e o abuso uma  “ aberração cósmica “.

Seja como for os crimes em causa são extremamente graves, como dito, o arguido agiu com vontade criminosa, firme, intensa, sabendo que a sua conduta era proibida por lei, conhecedor  como era das idades das então crianças,  ofendidas. O seu dolo foi reiterado, repetido no tempo, aproveitando-se das relações em curso, olvidando  sentimentos de  respeito, afeição, carinho e   protecção devidos,  exigências  bem maiores  até  quanto à filha, orfã de mãe na data dos factos, sobrepondo  os de puro egoísmo.

O  grau de contrariedade à lei, atingindo ofensa de direitos fundamentais, como o é o da autodeterminação  sexual,   correspondente ao processo de formação de uma vontade que deverá ser livre, esclarecida e autêntica, sendo uma indispensável componente e integrante da liberdade individual, no dizer de Binding, citado por Karl Natscheradetz, Direito Penal Sexual, conteúdo e limites, Ed. Almedina, 1985, 151, não usufruindo o menor daquele esclarecido poder de autodeterminação, não logrando, ainda, o desenvolvimento  imperturbado da sua juventude, segundo Bauer, op. cit. pág. 124 e o desvalor do resultado, sem deixar de ponderar o modo de execução, prevalecendo-se da proximidade das crianças, do  meio automóvel de que dispunha para desviar a CC do trajecto devido e para  lugar ermo,   configuram um juízo  censura e   ilicitude em grau muito elevado.

E essa ofensividade,  pese o lapso de tempo já decorrido, 9 anos quanto à filha e 4 anos quanto à CC, não apagam os malefícios do seu  mau proceder, assim se justificando que a filha se haja constituido assistente, pela “persistência na  incriminação, prolongadamente no tempo“ –escreve-se a fls. 760, sendo que as declarações das menores se revelam  em julgamento com  “mágoa e sem repulsa“ –fls. 760 -, sinal de que a  lesão não passou ao limbo do esquecimento, perdurante   no campo de consciência.  

Relevante na determinação da pena conjunta é, ainda, a análise do efeito previsível  da pena sobre o comportamento futuro do agente (efeito de  prevenção especial de socialização), sem descurar o efeito de prevenção geral a considerar porque se trata de uma pena, de observar, pois, o art.º 71.º, n.º 1, do CP e o seu sentido intrínseco  de pragmatismo, inscrito, correlativamente,  no art.º 40.º n.º 1, do CP. 

E neste capítulo são particularmente sensíveis as necessidades de prevenção especial ou particular, de evitar a reincidência futura, de assegurar o seu retorno ao tecido social sem risco para os seus cidadãos de os  ostracizar, o que passa pela interiorização das  suas consequências, formação,  aperfeiçoamento e manutenção de uma personalidade conforme ao direito, do qual se mostra dissociado.

De sublinhar que as necessidades de prevenir futuros crimes, agora pelos outros cidadãos em geral, tomando como paradigma a condenação imposta ao arguido e que o gládio da lei se pode abater sobre eles, auferindo vantagens no  cumprimento da lei, se faz sentir num patamar muito elevado, tendo presente a prática assustadora entre nós  de crimes de abuso sexual sobre crianças e o sobressalto que provocam   isto sem esquecer o número  dos que foram praticados, mas   não vieram à luz do dia, pelas mais diversificadas razões.

                                          

14. Termos em que as  penas impostas,  considerando a moldura de 1 ano e  4  meses a 10 anos e 8 meses de prisão, quanto à ..., e 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão, quanto à ...,  por força das qualificativas previstas no art.º 177.º n.º 1 a) e 177.º n.º 1 b) e as penas  parcelares  de    4  anos e 6 meses  e 7 anos de prisão  aplicadas, é inteiramente justa a pena de concurso de 8 (oito) anos e 6 (seis)  meses de prisão que   ambas engloba.

Nega-se provimento ao recurso e confirma-se  o acórdão recorrido.

Taxa de justiça: 8 Uc.        

      

Armindo Monteiro (relator)
Santos Cabral